FIDEICOMISSO
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
REDUÇÃO DE LIBERALIDADE
Sumário

-Para os efeitos do disposto no artigo 2056.º do Código Civil, tendo o cônjuge dado, expressamente, o seu consentimento à instituição de fideicomisso pela sua esposa relativamente ao bem comum do casal, este facto, à míngua de outros de sinal contrário, inculca, com firmeza, a noção da ulterior aceitação da herança, ao menos a nível tácito, após decesso do cônjuge instituidor, honrando compromisso precursor de fixação escrita em instrumento notarial;
-Perante este elemento, cumpria aos herdeiros alegar e patentear factos que apontassem para a não aceitação posterior constituindo-se tal factualidade, no apontado contexto, como constitutiva do direito a pedir a redução de liberalidade para os efeitos do disposto no n.º 1 do art. 342.º do Código Civil;
-Não está em causa qualquer renúncia ao direito de reduzir liberalidades quando nos confrontamos com uma aceitação da herança pelo herdeiro legitimário sem que tenha sido alegada e demonstrada a instauração de acção de redução de liberalidades inoficiosas no prazo de dois anos, que permite concluir, com a necessária segurança, pela verificação de um contexto de caducidade do direito à respectiva invocação.
-Este quadro afasta, de forma manifesta, a possibilidade de ter ocorrido a violação do estabelecido nos arts. 1366.º e 1367.º do Código de Processo Civil, que pressupõem a possibilidade de arguição de inoficiosidades.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Parcial

Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I. RELATÓRIO:

                   
1.B..., C... e OUTROS, todos com os sinais identificativos constantes dos autos, instauraram «acção de processo comum» contra J..., D... e OUTROS, todos neles também melhor identificados, por intermédio da qual peticionaram a condenação dos Demandados a reconhecer que:

a)a falecida F... deixou como herdeiros legitimários o seu cônjuge sobrevivo e o filho J..., ora primeiro réu;
b)o testamento outorgado por F... é parcialmente ineficaz por dispor de bens que não pertencem à sua herança;
c)a  deixa testamentária é inoficiosa, devendo ser reduzida para preenchimento dos quinhões hereditários dos autores;
d)a venda efectuada pelos primeiros Réus aos segundos réus é nula, por se tratar de venda de coisa alheia. Mais pediram o cancelamento dos registos de aquisição do prédio a favor dos segundos Réus e de hipoteca a favor da terceira Ré, bem como quaisquer registos posteriores que tenham sido feitos ou venham a fazer-se sobre o mesmo bem imóvel. Peticionaram, ainda, o regresso do prédio à herança indivisa aberta por óbito do pai dos Autores, com vista à sua partilha no processo de inventário cujo número indicaram, que corre termos no ....º Juízo Cível do Tribunal Judicial do Funchal.

2.Alegaram, para o efeito, que:

Corre termos no Tribunal Judicial do Funchal  processo de «inventário/herança», em que é inventariado J..., pai e sogro dos Autores e dos 1.ºs Réus; no referido inventário, o cabeça-de-casal, a agora A. M..., seleccionou como única verba do activo o bem imóvel descrito no primeiro articulado; tal prédio encontrava-se então inscrito na matriz a favor da herança aberta por óbito de F..., casada que foi com o inventariado J..., sendo a referida F..., mãe do 1.º Réu e madrasta dos Autores; o referido prédio foi construído sobre terreno que pertencia à F..., que esta havia recebido por morte de seus pais, sendo que tal construção foi financiada com as poupanças efectuadas pelo inventariado J... que esteve emigrado na Venezuela, constituindo tal construção uma verdadeira benfeitoria urbana sobre terreno da F..., a qual, por força do regime de bens do casamento (separação de bens), não podia ser bem comum do casal; tendo essa benfeitoria urbana sido implantada apenas com dinheiro próprio do inventariado, seria sempre seu bem próprio; por testamento de 26 de Fevereiro de 1996, a F..., mãe do 1.º R., legou ao seu marido, J..., o prédio identificado no art. 5.º da petição inicial constituindo, ao mesmo tempo, um fideicomisso a favor do seu filho J..., ora 1.º Réu; por morte da referida F..., foi apresentada a respectiva declaração de imposto do selo, na qual consta que pertence à herança ½ do prédio urbano, considerando-se beneficiários da transmissão o cônjuge, pai e sogro dos Autores e 1.ºs Réus (½), e o descendente, ora 1.º Réu (½), sem se distinguir entre o terreno e a benfeitoria urbana; por escritura pública de 5 de Novembro de 2009, o 1º Réu habilitou-se como único herdeiro da sua falecida mãe, F..., preterindo o seu padrasto, que ainda era vivo à data do óbito daquela, ocorrido em 19 de Janeiro de 2004 e, com base nessa habilitação, registou a totalidade do prédio em seu nome, já no estado de casado com a 1.ª Ré; posteriormente, os 1.ºs Réus venderam o prédio dos autos aos 2.ºs Réus que, simultaneamente, celebraram contrato de mútuo com hipoteca a favor da 3.ª Ré, encontrando-se o prédio, no momento da apresentação da petição inicial, com registo de aquisição a favor dos 2ºs Réus e registo de hipoteca a favor do 3.º Réu.

3.Os Demandados contestaram.

4.Os Réus J... e D... impugnaram factos e sustentaram a improcedência da acção.

5.Os Demandados H... e N... deduziram excepção de ilegitimidade activa e defenderam-se por impugnação tendo, também, apresentado pedido reconvencional. Nesta sede, pediram o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio referido nos autos.

6.O Réu BANCO ... S.A. contestou impugnando factos e concluindo pela improcedência da acção e pela necessidade de se manter o registo da hipoteca a seu favor.

7.Os autores replicaram opondo-se ao pedido em sede reconvencional, defendendo a sua improcedência.

8.Foi proferido despacho contendo convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

9.Os autores aceitaram tal convite tendo vindo aos autos esclarecer o conteúdo da mesma.

10.Os réus H... e N... pronunciaram-se sobre esse articulado, tendo mantido as pretensões já formuladas.

11.Foi proferido despacho que julgou improcedente o pedido reconvencional, realizou o saneamento do processo, declarou improcedente a excepção de ilegitimidade activa e conheceu de mérito decidindo: «Com tais fundamentos, decide este Tribunal julgar parcialmente procedente, por provada, a presente acção declarativa de condenação com processo comum e procedente a reconvenção e, em consequência:

a. Declarar que a falecida F... deixou como herdeiros legitimários o seu cônjuge, J... e o filho, J...;
b. absolver os réus dos demais pedidos formulados pelos autores; c. declarar que os réus H... e mulher N... são proprietários do prédio urbano situado em Estrada ..., n.º ..., Serrado da ..., freguesia de ... com a área total de 242 m2, sendo 80 m2 de área coberta, composto de casa de dois pavimentos e logradouro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo Nº... e descrito sob o número ...8/20... e inscrito a seu favor pela inscrição Ap. 5... de 2010/07/29, condenando os autores no reconhecimento desse direito de propriedade».

12.É desta sentença que vem o presente recurso interposto pelos Autores, que alegaram e apresentaram as seguintes conclusões:

A)F..., mãe do 1.º R., outorgou um testamento, em 26.02.1996, no qual legou o prédio urbano identificado nos autos (sua propriedade exclusiva), com cláusula fideicomissária;
B)De acordo com tal cláusula, o prédio foi legado a favor do seu filho, 1.º R., com reserva a favor do seu marido, pai dos AA. e 1.º R. (que são irmãos consanguineos), na qualidade de fiduciário;
C)A testadora faleceu em 2004, sucedendo-lhe, como únicos herdeiros legitimários, o referido filho, 1.º R. e o cônjuge sobrevivo, pai dos AA.e do 1.º R.;
D)A herança da testadora é composta apenas por esse prédio;
E)O 1.º R., após a morte da sua mãe, mas antes do falecimento do seu padrasto, outorga escritura de habilitação de herdeiros, em que se Intitula único herdeiro de sua mãe;
F)Havendo, portanto, preterição de herdeiro legitimário, relativamente ao pai dos AA.;
G)De seguida, o 1.º R. vende o prédio, único bem da herança, a terceiros, sem respeitar a composição ou pagamento da legitima a seu padrasto, também herdeiro legitimário;
H)Nesta medida, o testamento é ineficaz em relação ao cônjuge sobrevivo, na medida em que viola a legitima deste;
I)A deixa testamentária a favor do cônjuge sobrevivo, enquanto fiduciário, independentemente do critério para o cálculo do seu valor, não pode ser imputada na sua legítima, dado não haver declaração expressa da testadora nesse sentido;
J)O que se alcança por aplicação analógica do artigo 2017.º, n.º 1 do CC, para o caso das doações a cônjuges;
K)Por isso, essa deixa testamentária terá de ser sempre imputada na quota disponível da testadora, e não a esgota;
L)Tendo a testadora disposto da totalidade do seu património (o único prédio) a favor do filho, 1º R., este legado tem de ser reduzido por inoficiosidade;
M)Para o apuramento da inoficiosidade, há que atender ao valor dos bens da herança e ao valor das disposições efetuadas;
N)No caso vertente, e porque a herança só tem o bem legado, há inoficiosidade, sem necessidade do apuramento do valor do bem nesta instância;
O)Apesar disso, tal valor pode ser apurado, a título acessório ou instrumental, com vista ao cálculo futuro da quota legitimária do pai dos AA. e do 1.º R. e apuramento da redução a efetuar na liberalidade a favor deste;
P)Contado, o cálculo do valor da massa da herança e o apuramento da inoficiosidade, faz-se dentro do processo de inventário, e é uma operação privativa deste processo, nos termos dos artigos 1366.º e 1367.º do CPC de 1961, aplicáveis à situação dos autos, não competindo ao Juiz a quo decidi-la;
Q)Os AA. têm legitimidade para invocar a inoficiosidade do legado e a condenação dos 1.ºs RR. no pagamento da quota legitimária que pertencia ao seu pai e que para si reverte dada a transmissão do direito de aceitar ou repudiar a herança da testadora, o que não ficou provado ter sido efetuado por este;
R)Os AA. estão em tempo de invocar esta inoficiosidade, Já que apesar do seu pai ter intervindo no testamento, não pode concluir-se que renunciou à sua legítima, o que, aliás, está proibido pelo artigo 2170.º do CC;
S)Por outro lado, não foi alegado pelos RR., nem provado, que o pai dos AA. tenha aceitado a herança da testadora, pelo que não precludiu o prazo para a redução do legado, nos termos do artigo 2178.º do CC;
T)Ao contrário do que afirma o Juiz a quo, os AA. não pedem a entrega do prédio legado, mas apenas que este regresse ao processo de Inventário (onde foi relacionado), para aí prosseguirem as operações de partilha;
U)Nestes autos, são apenas questões essenciais a questão de saber se o prédio identificado nos autos faz parte da herança aberta por óbito da testadora e se este deve regressar e manter-se no processo de inventário, como restituição fictícia, par aí ser relacionado e partilhado entre os herdeiros legitimários;
V)Ao decidir, embora de forma distorcida e não fundamentada, sobre as questões da essencialidade da alegação e prova do valor do imóvel, inoficiosidade do legado, imputação do direito do fiduciário na sua legítima, ilegitimidade dos AA. para reclamar a legitima do seu pai e preclusão do seu direito, e, a partir daí, julgar a ação Improcedente nesta medida, o Juiz a quo invade questões privativas do processo de inventário e que só podem nele ser decididas;
X)Por isso, a decisão recorrida viola, entre outros, os artigos 2017.º, n.º 1 (aplicado por analogia), 2056.º, n.º 3, 2058.º, 2170.º, 2178.º, 2290.º e 2293.º, todos do Código Civil;
Y)A decisão recorrida viola ainda as disposições contidas nos artigos 1366.º e 1367.º, ambos do Código de Processo Civil de 1961, aplicável ao caso, dada a pendência de processo de inventário judicial, proposta antes da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 5 de março.
Z)Concluindo-se pela não citação de doutrina e jurisprudência sobre as questões estendas expostas, atenta a liquidez das soluções que estão acima alegadas e resultam inequivocamente do texto da lei.

13.Terminaram sustentando que:

«Deve ser proferido douto Acórdão que, confirmando que o pai dos AA. e o 1.º R. são os únicos herdeiros legitimários da testadora F..., revogue o saneador/sentença do Juiz a quo, na parte restante, no que se refere à absolvição dos 1.ºs RR., declarando que o prédio identificado nos autos pertence à herança aberta por óbito da testadora, tendo os AA., enquanto filhos do cônjuge sobrevivo e herdeiro legitimário desta, legitimidade para reclamar a sua legítima, estando em tempo de o fazer, dado não ter precludido o seu direito, e nessa medida, que o legado efetuado a favor do 1.º R. é inoficioso, independentemente de avaliação do Imóvel, pois tal é uma redundância. Mais deve ser decidido que tal prédio, enquanto único bem da herança, deve regressar e manter-se relacionado no processo de inventário pendente, em que é inventariado o pai dos AA. e do 1.º R., sendo da exclusiva competência da secção cível da instância local onde está pendente as operações de cálculo do seu valor e bem assim do montante de redução por inoficiosidade da disposição testamentária a favor do 1.º R., por se tratarem de operações da partilha por morte, para as quais o Juiz a quo é incompetente, atenta a forma de processo dos autos recorridos».

14.Os Réus reponderam às alegações de recurso sem formular conclusões e defendendo a manutenção da decisão impugnada.

15.Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

16.É a seguinte a questão a avaliar:
A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 2017.º, n.º 1 (aplicado por analogia), 2056.º, n.º 3, 2058.º, 2170.º, 2178.º, 2290.º e 2293.º, todos do Código Civil, e nos artigos 1366.º e 1367.º, ambos do Código de Processo Civil de 1961?

II. FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

17.Consta da decisão impugnada a seguinte fundamentação fáctica:

1.Corre termos na actual Secção Cível da Instância ... do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira (anteriormente no extinto ...º Juízo Cível do Tribunal Judicial do Funchal), sob o n.º .../12.8T2ETR, um processo de inventário por óbito de J..., em que exerce as funções de cabeça-de-casal, M..., no âmbito do qual esta, nessa qualidade, prestou declarações dando conta que o inventariado faleceu no estado de viúvo de F..., não deixou testamento, dívidas, doações ou quaisquer outras disposições de última vontade, tendo deixado a representá-lo os filhos do primeiro casamento com A...: M..., D... e C... e o filho do segundo casamento, J... (documento de fls. 245 a 249 p.p.).
2.No âmbito do inventário referido em 1. o cabeça-de-casal apresentou a relação de bens de que consta apenas Activo com o seguinte bem descrito: casa de dois pavimentos e logradouro, com a área total de 242,00 m2, sita na Estrada ..., n.º ..., Serrado da ..., 9300-..., freguesia e concelho de ..., inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo nº... e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...8/20..., com o valor patrimonial actual de € 92 320,00 (documento de fls. 250 p.p.).
3.No âmbito do processo de inventário referido em 1. foi proferido despacho em 12-03-2013 que determinou a cumulação de inventários por morte de J... e F... e mais decidiu remeter os interessados para os meios comuns quanto à questão da titularidade do bem cuja partilha foi requerida (documento de fls. 220 a 223 p.p.).
4.Em 19-02-2010 o prédio identificado em 2. encontrava-se inscrito na matriz predial urbana a favor da herança de F..., em propriedade plena (documento de fls. 253 a 255 p.p.).
5.Em 9 de Outubro de 1971 J... e F... contraíram casamento católico sob o regime imperativo da separação de bens, dissolvido por óbito do cônjuge mulher, falecido em 19 de Janeiro de 2004 (documento de fls. 90 e 91 p.p.).
6.J... faleceu no dia 12 de Outubro de 2009 no estado de viúvo de F... (documento de fls. 87 a 89 p.p.).
7.Com data de 5 de Novembro de 2009 foi lavrada escritura de habilitação a folhas 38 a 38 verso do Livro de Notas número ...-A do Cartório Notarial de ... mediante a qual J... declarou que é cabeça-de-casal da herança deixada por óbito de sua mãe, F..., falecida em 19 de Janeiro de 2004, no estado de casada no regime imperativo de separação de bens com J...; que a falecida fez testamento público, em 26 de Fevereiro de 1996, no qual dispôs de um legado, nos termos e condições naquele constantes e deixou como herdeiros, por direito de sucessão legítima, o cônjuge sobrevivo e o seu único filho, a saber: cônjuge – J..., posteriormente falecido no estado de viúvo da referida F...; filho – o declarante J...; que não existem outras pessoas que, segundo a lei e o referido testamento, possam concorrer ou preferir à sucessão (documento de fls. 269 a 271 p.p.)
8.Pelo extinto ...º Juízo Cível da Comarca do Funchal correu termos o processo de inventário n.º 5.../19... por óbito de M... e J... em que eram interessados J..., F..., M..., M..., M..., J..., R..., C..., H..., M..., M..., F... e H... (documento de fls. 94 a 103 p.p.).
9.Na relação de bens apresentada no processo de inventário referido em 8. foi relacionada sob a verba Três o seguinte bem: prédio rústico, ao sítio da ..., freguesia e concelho de ..., confrontando a Norte com a Estrada Nacional, Sul com Herdeiros de A..., Leste com F... e Oeste com a Vereda ou servidão, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 14/3 da secção NA, com o valor patrimonial de 33 594$00, omisso na Conservatória do Registo Predial de ... (documento de fls. 94 a 103 p.p.).
10.Em sede de conferência de interessados a relação de bens referida em 9. foi objecto de rectificação de modo que sob a verba Três-A foi relacionado o seguinte: a benfeitoria urbana inscrita na matriz sob o artigo nº..., com a área total de 242 m2, nela incluindo o respectivo solo, correspondente à parcela B da planta junta nos respectivos autos de inventário, a qual foi construída pela interessada F... (documento de fls. 94 a 103 p.p.).
11.A verba 3-A referida em 10. foi licitada pela interessada F... mediante o preço de um milhão de escudos, a quem foi adjudicada, conforme partilha posteriormente homologada por sentença judicial proferida nos autos de inventário em 20-03-2002 (documento de fls. 94 a 103 p.p.).
12.O prédio identificado em 2. foi construído sobre o terreno identificado em 9. (admissão).
13.Com data de 26 de Fevereiro de 1996 foi lavrado testamento a folhas 73 a 74 do livro de testamentos número 56 do Cartório Notarial de ... mediante o qual F..., filha de J... e de M..., como primeira outorgante, declarou que por este testamento, o primeiro, com fideicomisso a favor de seu filho J..., solteiro, maior, consigo residente, lega a seu marido o prédio urbano onde todos residem à referida Estrada ..., n.º..., da Vila de ..., prédio com seu solo e arredores que é o inscrito na matriz sob o artigo nº.... Declarou depois o segundo outorgante, J..., dar o necessário consentimento ao fideicomisso instituído por sua mulher, do bem comum do casal (documento de fls. 257 a 261 p.p.).
14.Na sequência do óbito de J... foi apresentada no Serviço de Finanças de ... a declaração de imposto de selo figurando no activo como bem transmitido ½ do artigo urbano nº... (documento de fls. 263 a 266 p.p.).
15.A propriedade do prédio urbano situado em Estrada ... , n.º ..., Serrado da ..., freguesia de ... com a área total de 242 m2, sendo 80 m2 de área coberta, composto de casa de dois pavimentos e logradouro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº... e descrito sob o número ...8/20... encontrava-se inscrita a favor de J... desde 6-11-2009 conforme Ap. 4268 por legado do sujeito passivo e devolução ao sujeito activo – fideicomissário – após o falecimento do fiduciário J... (documento de fls. 93 p.p.).
16.Com data de 29 de Julho de 2010 foi lavrada escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca a folhas 5 a 7 verso do Livro de Notas número 211-A do Cartório Notarial do Notário Sr. Dr..., em que J..., com o consentimento da mulher D..., como primeiros outorgantes, declararam que pelo preço de cento e vinte e cinco mil euros, já recebido, vende aos segundos outorgantes, H... e mulher N..., livre de quaisquer ónus ou encargos, o prédio urbano habitacional, sito à Estrada ..., nº, Serrado da ..., freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial sob o artigo nº, com o valor patrimonial de € 92 320,00, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número ..., que declararam aceitar a compra e se confessaram devedores ao Banco ... S. A., terceiro outorgante, da importância de cem mil euros que dele receberam a título de empréstimo e que vai ser aplicada na aquisição. Mais declararam os segundos outorgantes que para garantia do pagamento e liquidação da quantia financiada aos mutuários, no montante de cem mil euros, e bem assim dos respectivos juros à taxa anual efectiva que, para efeitos de registo se fixa em nove por cento, acrescidos de uma sobretaxa até quatro por cento ao ano em caso de mora, a título de cláusula penal, e outros acessórios do crédito e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em quatro mil euros, sendo o montante máximo garantido de cento e quarenta e três mil euros, os mutuários constituem a favor daquele banco, quer aceita, hipoteca sobre o imóvel atrás identificado e ora adquirido, abrangendo a hipoteca ora constituída, todas as construções, benfeitorias e acessões, presentes e futuras do imóvel hipotecado (documento de fls. 27 a 33 p.p.).
17.A propriedade do prédio identificado em 15. encontra-se actualmente inscrita a favor de H... e N... pela inscrição Ap. 5606 de 2010/07/29, figurando ainda o registo de hipoteca voluntária a favor do Banco Comercial Português, S. A., com o montante máximo assegurado de € 143 000,00, pela AP. 5607 de 2010/07/29 (documento de fls. 217 e 218 p.p.).
18.A presente acção encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial respectiva pela apresentação Ap. 2078 de 2015/02/25 (documento de fls. 217 e 218 p.p.).

Fundamentação de Direito.

A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 2017.º, n.º 1 (aplicado por analogia), 2056.º, n.º 3, 2058.º, 2170.º, 2178.º, 2290.º e 2293.º, todos do Código Civil, e nos artigos 1366.º e 1367.º, ambos do Código de Processo Civil de 1961?
18.Os Recorrentes insurgiram-se contra a absolvição dos Réus J... e D... (aceitando, consequentemente, a absolvição dos demais Demandados), e apenas relativamente aos pedidos b), c) e f) – cf n.º 3 das alegações. Face a tal restrição, não estão já abrangidas pela impugnação judicial as questões relativas à nulidade da venda do imóvel a terceiros que, assim, surge aceite pelos Recorrentes, bem como as questões registrais associadas a tal aquisição – a relativa à aquisição propriamente dita e a atinente ao registo de direito de garantia.
19.No âmbito do pedido b) sustentava-se que o testamento seria ineficaz com fundamento no facto de a falecida F... ter, alegadamente, disposto de «bens que não pertencem à sua herança». Dando como assumida a impropriedade do uso do plural, já que está em causa apenas um bem imóvel – o referenciado no ponto 13 da fundamentação de facto, ou seja, o prédio inscrito na matriz sob o artigo 3234 e melhor descrito nesse número – temos que, nas alegações de recurso (cf. ponto 19), os Recorrentes referiram expressamente que «os AA. Dão por assente que o prédio pertencia exclusivamente à testadora». Daqui resulta, com a necessária clareza, dever manter-se a declaração de improcedência de tal pretensão.
20.Subsistem, pois, as dissensões atinentes aos pedidos identificados com as letras «c)» e «f)», ou seja, os relativos à justificabilidade da redução da deixa testamentária com fundamento em inoficiosidade e à inclusão do apontado bem imóvel na herança indivisa aberta por morte de J...
21.Não tem sentido apreensível a invocação do disposto no artigo 2017.º do Código Civil, relativo ao «casamento declarado nulo ou anulado», pelo que nada se dirá a respeito de qualquer eventual violação do estabelecido nesta norma.
22.Relativamente ao disposto no artigo 2056.º do mesmo encadeado normativo e com relevo quanto à questão da eventual redução da deixa testamentária com fundamento em inoficiosidade temos que, nos termos do fixado no ponto 13 da fundamentação de facto, J... deu, expressamente, o seu consentimento à instituição do fideicomisso pela «sua mulher» relativamente ao «bem comum do casal» – querendo, assim, referenciar o imóvel objecto do litígio. Este facto, à míngua de outros de sinal contrário, aponta, com firmeza, a noção da ulterior aceitação, ao menos a nível tácito, após decesso do cônjuge instituidor, honrando compromisso precursor de fixação escrita  em instrumento notarial.
23.Perante este elemento, cumpria ao Autores alegar e patentear factos que apontassem para a não aceitação posterior – face a tal declaração que constituía um elemento suficientemente seguro de sinal oposto – constituindo-se tal factualidade, no apontado contexto, como constitutiva do direito a pedir a redução de liberalidade para os efeitos do disposto no n.º 1 do art. 342.º do Código Civil. Não nos encontramos, neste domínio, face a ónus demonstrativo dos Demandados já que os mesmos não alegaram a caducidade da acção de redução de liberalidades inoficiosas no quadro do estabelecido no art. 2178.º do Código Civil. Demonstrariam, assim, em termos manifestamente constitutivos do seu direito – sob o regime do artigo 2058.º do mesmo Código, cuja violação apontaram – que o sucessível chamado à herança havia falecido sem a haver aceitado ou repudiado, circunstância da qual brotaria a transmissão para si do direito de  aceitar ou repudiar, com todas as consequências que daí resultariam.
24.Não estamos, num tal contexto, no âmbito de subsunção do artigo 2170.º, também alegadamente agredido, já que não está em causa qualquer renúncia ao direito de reduzir liberalidades. Antes temos, ao menos em termos tácitos, um aceitação da herança pelo herdeiro legitimário sem que tenha sido alegada e demonstrada a instauração de acção de redução de liberalidades inoficiosas no prazo de dois anos (o que, aliás, seria antitético com a tese da titularidade própria dessa faculdade, brandida pelos Autores), o que permite concluir, com a necessária segurança, pela verificação de um contexto de caducidade do direito à respectiva invocação (direito de acção).
25.A ser assim, como é insofismavelmente, não poderia proceder a pretensão de redução com fundamento em inoficiosidade, não fazendo sentido que se sustente a ineficácia do testamento, pelo que se impõe concluir que não colhe sustentação esta vertente do recurso.
26.Este contexto afasta, de forma manifesta, a possibilidade de ter ocorrido a violação do estabelecido nos art.s 1366.º e 1367.º do Código de Processo Civil na versão indicada na questão supra-lançada, que pressupõem a possibilidade de arguição de inoficiosidades.
27.Sendo assim, também o pedido f), dependente da solução desta questão por envolver a noção prévia de que o bem deve integrar a herança, não recebe suporte, pelo que se desenha como adequada a decisão do tribunal no sentido de decretar a sua improcedência. Aliás, na tese mais moderada agora surgida no recurso, os Autores já não pleiteiam defendendo a construção da nulidade da venda e sustentando a consequente necessidade de cancelamento dos registos, antes aceitando a titularidade por parte dos segundos Demandados. Tal sempre determinaria a improcedência do pedido tal como está formulado. Por assim ser, os Recorrentes sentiram a necessidade de um serôdio câmbio cosmético, lançando nas alegações a menção substitutiva «imputação fictícia» que, como não ignorarão, não corresponde ao que brandiram em juízo e verteram na pretensão em apreço.
 
III. DECISÃO

28. Pelo exposto, julgamos a apelação totalmente improcedente e, em consequência, confirmamos a sentença impugnada.
29. Custas pelos Apelantes.


Lisboa, 10.03.2016


Carlos M. G. de Melo Marinho (Relator)
Maria Regina Costa de Almeida Rosa (1.ª Adjunta)
Maria Manuela B. A. dos Santos e Guedes Gomes (2.ª Adjunta)