Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 663º, do novo Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, como segue:
“I – Não é inequívoca a intenção do legislador, na Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, de revogar a norma do artigo 9º, n.º 4, do Decreto-Lei 287/93, de 20 de Agosto.
II – Ainda que o fosse, o documento particular titulador de contrato de mútuo celebrado entre o Banco e um particular, ainda no domínio de vigência do artigo 46º, n.º 1, alínea c), do anterior Código de Processo Civil, sempre conservaria a conferida qualidade de título executivo.
III - Existindo já à data da prolação do despacho de “indeferimento liminar” do requerimento executivo, jurisprudência e doutrina no sentido da sobrevigência do referenciado artigo 9º, n.º 4, e da inconstitucionalidade do artigo 703º, n.º 1, enquanto interpretado no sentido de, conjugado com o artigo 6º, n.º 3, ambos do novo Código de Processo Civil, recusar a qualidade de título executivo aos documentos particulares emitidos em data anterior à entrada em vigor daquele, e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, não é manifesta a falta de título executivo a que se refere o artigo 726º, n.º 2, alínea a), do novo Código de Processo Civil.”.
Alegando que os Executados deixaram de pagar, das acordadas prestações mensais, as que se venceram a partir de 11-04-2008, sendo assim devedores, à data de 14-08-2014, de €2.043,05 de capital vencido; €179,08, de juros (remuneratórios); €2.145,19, de juros de mora e €231,77, de comissões, num total de €4.599,09, acrescido de juros, sobretaxa, comissões e imposto de selo “se aplicável”.
Vindo a mesma exequente, em ato subsequente, requerer o aperfeiçoamento do requerimento executivo, no tocante à indicação do título executivo, “o qual deverá, antes, ser qualificado de “documento autenticado” e, ainda quanto à sua espécie, devendo a mesma passar a ter a natureza de “Execução ordinária (Ag. Execução)”.
Considerando, designadamente e…afinal, que “6. A execução em apreço funda-se num “contrato de mútuo”, formalizado por documento particular simples, i.e., sem ser autêntico ou autenticado.”.
Documento que deverá ser considerado título executivo, “face ao vertido na alínea d) do art. 703º do (novo) C.P.C., conjugado com o n.º 4 do art 9º do D.L. n.º 287/93 de 20 der agosto”.
Sobre tais requerimentos recaindo despacho liminar, reproduzido a folhas 23 a 26 – considerando que o disposto no artigo 9º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 287/1993, de 20 de Agosto, não se encontra em vigor – e com o seguinte dispositivo:
“a) Declaro que a cópia certificada do "Contrato de Mútuo" dada à presente execução (fls. 5-10) não configura título executivo.
b) Em fase da ausência de título executivo, indefiro liminarmente a presente
acção executiva (artigos 10.°. n.ºs 5 e 6, a contrario, 551.°, n.º 5. 723.°, n.º 1. alíneas a) e d), 726.°, n.ºs 1, 2, alínea a), do Código de Processo Civil).
c) Em consequência do acima decidido, indefiro na íntegra o pedido de aperfeiçoamento da exequente, com e para todos os efeitos, não havendo lugar à alteração da espécie dos presentes autos.”.
Inconformada, recorreu a C.G.D., S. A., formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“1. A exequente, é a Caixa Geral de Depósitos, S.A., pelo que a sua pretensão, quando alega que a dívida é certa, líquida e exigível;
2. E, salvo melhor opinião, encontra fundamento no disposto no artigo 9º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20/8, diploma que estabeleceu o regime jurídico da Caixa Geral de Depósitos, S.A. (artigo alterado pelo Decreto-Lei n.º 56-A/2005, de 3/5 – que manteve a redacção do referido n.º 4), o qual dispõe que «os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela Caixa, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades».
3. Assim sendo, uma vez que o referido preceito legal não foi objecto de revogação expressa, nomeadamente pelo artigo 4º da Lei n.º 41/2013, de 26/6;
4. Impõe-se concluir que o referido documento, por titular acto/contrato realizado pela Caixa, prevê a existência de obrigações por parte do mutuário, respectivamente assinado, cabendo na previsão do artigo 703º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil, revestindo de “de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”.
5. Em todos os títulos enunciados na motivação, o legislador criou lei especial para que se integrem na alínea d) do n.º 1 do art.º 703.º do atual CPC [anterior alínea d) do art.º 46.º do antigo CPC]. Daqui se depreende que o legislador não quis que nenhum destes títulos fosse considerado "documento particular" abrangido, pelas diversas redações da alínea c) do n.º 1 do art.º 46.º do então CPC e não se podem confundir com "documentos particulares".(sublinhado nosso).
Sem prescindir,
6. Serve de título à presente execução um contrato de mútuo assinado em 20/03/2008, que, não obstante a entrada em vigor novo Código mantém, a sua força executiva.
7. Por força do artigo 6º, nº. 3 da Lei que aprovou o novo CPC, ainda que interpretado extensivamente, os títulos executivos que face ao antigo CPC tinham força executória, não perdem esse valor com entrada do novo CPC.
8. A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.
9. A eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no ordenamento jurídico que não era previsível.
10. Se, à data em que tais documentos foram constituídos os mesmos eram dotados de exequibilidade, é de esperar alguma constância no ordenamento no âmbito da segurança jurídica constitucionalmente consagrada. Assim, a alteração da ordem jurídica não era de todo algo com que se pudesse contar. Daí que os titulares de documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que tinham a característica da exequibilidade conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do velho código, tivessem uma legítima expectativa da manutenção da anterior tutela conferida pelo direito.
11. Por conseguinte, a aplicação retroativa do artigo 703º do novo Código de Processo Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas.
12. Se a nova lei se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da data da sua entrada em vigor, existirão certamente situações em que o credor, mesmo sabendo que a partir de 31 de agosto de 2013 já não pode utilizar aquele documento para intentar a respetiva ação executiva, nada poderá fazer porque o cumprimento da obrigação está, por exemplo, fixado para um momento posterior à data da entrada em vigor da nova lei.
13. As expectativas dos credores (de que os documentos particulares com que se muniram eram já ou poderiam ser títulos executivos) não eram simples expectativas futuras, mas verdadeiros interesses legítimos dignos de tutela.
14. A retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos teve dois objetivos em vista: (i) diminuir o número de ações executivas; (ii) criar medidas para agilizar o processo executivo, libertando o mesmo de identificadas causas de protelamento e complexidade (v.g. oposições à execução).
15. Ponderando-se os dois interesses em confronto - os particulares têm interesse na estabilidade da ordem jurídica e das situações jurídicas constituídas a fim de organizarem os seus planos de vida, evitando-se o mais possível a frustração das suas expectativas fundadas; o interesse público preocupa-se com a transformação da ordem jurídica de modo a adaptá-la o mais possível às necessidades sociais- o método do juízo de avaliação e ponderação dos interesses relacionados com a proteção da confiança é igual ao que se segue quando se julga sobre a proporcionalidade ou adequação substancial de uma medida restritiva de direitos. Mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança e adaptação do quadro legislativo vigente, ainda assim é necessário aferir, à luz de parâmetros materiais e axiológicos, se a medida do sacrifício é «inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa» (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 862/13 e n.º 287/90) (sublinhado nosso).
16. Posto isto, no contrato de mútuo apresentado com o requerimento executivo foi conferida a característica da exequibilidade por força do disposto no artigo 46º, nº1, alínea c) do anterior Código de Processo Civil. E, considerando a inconstitucionalidade da norma que retirou essa característica da exequibilidade, conjugada com o artigo 6º, nº3 da Leinº41/2013, na interpretação supra identificada, a mesma é inaplicável, pelo que se mantém o regime anteriormente previsto e, como tal, o documento apresentado pela exequente constitui um título executivo que, como tal deverá ser aceite, devendo a execução prosseguir a sua normal tramitação.
17. A presente sentença viola o disposto no artigo 4º e 6º da Lei n.º 41/2013, de 26/6, que aprovou o novo CPC; artigo 12.º do C. Civil; artigo 703º, nº 1 alínea d) do CPC; artigo 9º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20/8 e artigos 2º, 13º e 18º n.º 2 da Lei Fundamental.”.
Remata com a revogação da “sentença recorrida”, e sua substituição “em conformidade com os termos e com os fundamentos acima enunciados, com as legais consequências.”.
II- Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do novo Código de Processo Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal, a de saber se o “contrato de mútuo” dado à execução constitui título executivo.
O que se desdobra em duas sub-questões, quais sejam:
- se o artigo 9º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20/8, foi revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26/6;
- na positiva, se subsiste a exequibilidade que ao sobredito documento, haja sido conferida pelo artigo 46º, nº1, alínea c) do anterior Código de Processo Civil.
Com interesse emerge da dinâmica processual o que se deixou referido supra, em sede de relatório.
II – 1 – Da sobrevigência do artigo 9º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20/8.
1. O referido Decreto-Lei transformou a então Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência “em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, passando a denominar-se Caixa Geral de Depósitos, S.A., abreviadamente designada neste diploma por Caixa.”, cfr. artigo 1º, n.º 1.
Sendo que, de acordo com o supra citado artigo 9º, n.º 4, “Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela Caixa, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades.”.
Na decisão recorrida seguiu-se a posição sustentada por Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro,[1] no sentido da cessação da “vigência da norma contida no n.º 4 do artigo 9º do D. L. n.º 287/93, de 20 de Agosto.”.
Para aqueles anotadores, “Confrontando a norma contida no n.º 4 do art. 9º do DL n.º 287/93, de 20 de agosto, com o disposto na exposição de motivos deste diploma, constata-se que aquela tem um sentido próprio de uma norma de direito transitório: No exórdio, consta que o circunstancialismo presente no início da última década do século passado apontava “para a sujeição da Caixa a um regime de direito privado ou, mais rigorosamente, para a aplicação à instituição de regras idênticas às que regem as empresas privadas do sector. O mesmo objectivo de aproximação da Caixa às restantes empresas do sector levou à adopção da forma de sociedade anónima. A mencionada norma assegurava, assim, que, com a revogação do art. 61º do DL n.º 48953 de 5 de abril de 1969, os documentos já criados com força executiva mantinham essa força evitando a desproteção da Caixa Geral de Depósitos, S.A. - que não teria criado documentos com outras formalidades, contando com a força executiva do elaborado nos termos da legislação então vigente.
Em face do raciocínio expendido, e ainda que possamos não estar formalmente perante uma norma de direito transitório, resulta da mencionada exposição de motivos que não houve qualquer intenção do legislador em beneficiar a Caixa, mas tão-só assegurar uma transição adequada. Não há, pois, qualquer fundamento para se concluir que a revisão dos títulos executivos operada pelo novo Código pretendeu deixar de fora os títulos em análise, considerando que a transição da Caixa já ocorreu há muito - cessante ratione legis cessat ipsa lex.”
E “Resulta da exposição de motivos da PL-CPC que o preponente - o Governo -, no que foi acompanhado pelo legislador - a Assembleia da República -, pretendeu retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem (...) [ressalvando apenas] (...) os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder logo à "Via executiva (...) [ainda que] (...) como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente". O proponente, de forma perentória e para fundamentar a proposta de restrição da força executiva atribuída aos documentos particulares, afirma a necessidade de "os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares" serem sujeitos à sua prévia declaração, na sede processual própria - a ação declarativa. Esta inequívoca intenção, não excecionando certos credores, por exemplo, integra a ressalva à regra de acordo com a qual a lei especial não é revogada pela lei geral (prevista na segunda parte do nº 3 do art. 7º do CC).
Resta acrescentar que, na reconstrução do pensamento legislativo, importa ter sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (art. 9º, n.º 1, do C.C.). O novo Código insere-se num sistema jurídico onde as empresas do sector empresarial do Estado estão sujeitas às regras gerais de concorrência, nacionais e comunitárias''. Estas regras impedem que a Caixa Geral de Depósitos, S.A., tenha uma situação de privilégio, podendo criar títulos executivos e, assim, desenvolver a sua atividade em condições diferentes das permitidas às restantes instituições de crédito".
2. Desde logo, como aqueles Autores afinal concedem, não estamos, no confronto do artigo 4º do artigo 9º do DL n.º 287/93, “formalmente” perante uma norma de direito transitório.
Sendo que como em anotação ao artigo 7º, n.º 1, do Código Civil, referem P. Lima e A. Varela,[2] “1. A lei tem vigência temporária, quando se fixa o seu termo em certa data, se torna a sua vigência dependente de certo pressuposto (o estado de guerra, por exemplo) ou se destina à consecução de certo fim (por exemplo, expropriações na Cidade Universitária de Coimbra). Em qualquer destes casos, a cessação da vigência da lei não depende da sua revogação.”.
Ensinando Oliveira Ascensão que “Pode a lei fixar, casuisticamente, a solução das hipóteses que se coloquem na fronteira entre uma e outra lei, se assim o faz, temos o chamado direito transitório.”[3] (o grifado é, também aqui, nosso).
Ora nada disso resulta do normativo em causa, desde que se respeite o princípio fundamental em matéria de interpretação da lei, a saber, o de que “A letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer isto dizer que o texto funciona também como limite da busca do espírito. Os seus possíveis sentidos dão-nos como que um quadro muito vasto, dentro do qual se deve procurar o entendimento verdadeiro da lei. Para além disto, porém, não se estaria a interpretar a lei mas a postergá-la, chegando-se a sentidos que não encontrariam no texto qualquer apoio.”.[4]
Mais tabelarmente referindo João de Castro Mendes que a primeira e principal tarefa do intérprete “é ler a lei e ver o que aí se diz”.[5]
Naturalmente, e como prossegue Oliveira Ascensão, “esta conclusão não nos deve levar à afirmação oposta, que a interpretação se deve limitar à escolha de um dos possíveis sentidos literais do texto. Em breve veremos que à letra se pode preferir o sentido que a letra traiu. Mas terá de se assentar na valoração de elementos que o texto, mesmo que defeituosamente, refere. Se se prescinde totalmente do texto já não há interpretação da lei, pois já não estaremos a pesquisar o sentido que se alberga em dada exteriorização.”.[6]
Ora é esse o caso – e salvo o devido respeito – quanto a qualquer pretensão de transitoriedade da norma do artigo 9º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 287/93.
O texto respetivo não suporta qualquer restrição à vigência temporal da norma.
3. Por outro lado, e pelo que respeita à sustentada “inequívoca intenção do legislador”, no sentido da revogação daquela “lei especial” pela “lei geral” que é a Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho – convocando-se assim o disposto no artigo 7º, n.º 3, 2ª parte, do Código Civil – temos que “Em qualquer caso, o intérprete terá de procurar apurar um sentido objectivo da lei. Esse sentido é o de regular exaustivamente um sector, não deixando subsistir fontes especiais. Não é directamente o sentido de revogar as fontes especiais, pois esse é mera consequência da destinação à regulação integral.
Esse sentido há-de revelar-se por indícios de uma das seguintes ordens:
1) a premência da solução, igualmente sentida no sector em que vigorava lei especial;
2) o facto de a solução constante da lei "especial" não se justificar afinal por necessidades próprias desse sector, pelo que não merece subsistir como lei especial.
Em sentido técnico, a nova lei realiza a revogação global da legislação referente àquele instituto.
(…)
Se o legislador se decide a alterar o regime geral, o que temos de perguntar é o seguinte: o regime estabelecido nesse domínio especial é justificado por considerações próprias desse sector?
Se o é - e mesmo que estejamos em total discordância com a solução trazida - o regime especial é insensível à alteração da lei geral.
Mas se o não é, se não há nenhumas razões de especialidade substancial que o justifiquem, então esse regime foi atingido pela alteração da lei geral. Não há nada nele que oponha resistência à vigência da lei geral.”,[7] (grifado, ainda e sempre, nosso).
Pois bem, como visto já, nos termos do citado artigo 1º, n.º 2, daquele Decreto-Lei – na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 106/2007, de 03-04 – “A Caixa rege-se pelo presente decreto-lei, pelos seus estatutos, pelas normas gerais e especiais aplicáveis às instituições de crédito, pela legislação aplicável às sociedades anónimas e pela demais legislação aplicável.”.
O que porém não obnubila o facto de ter sido transformada “pelo presente diploma em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (…)”, vd. n.º 1, do mesmo artigo 1º.
Nem que tendo “A Caixa (…) por objecto o exercício da actividade bancária nos termos definidos nos seus estatutos e dentro dos limites estabelecidos na legislação aplicável.”, “No exercício da sua actividade, (…) deverá promover a formação e a captação da poupança e contribuir, designadamente através das suas operações de financiamento, para o desenvolvimento económico e social do País.”.
Sendo ainda que “assegurará a prestação ao Estado de quaisquer serviços bancários, sem prejuízo das regras da concorrência e do equilíbrio da sua gestão.”.
E, “exercerá ainda outras funções que lhe sejam especialmente cometidas por lei, podendo as modalidades e os termos do exercício dessa funções ser definidos por contrato a celebrar com o Estado.”, cfr. artigo 3º, do mesmo Decreto-Lei.
Ou seja, e em suma, nem o legislador de 2007 sentiu a necessidade de – quase catorze anos depois da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 287/93 – tocar no artigo 9º, n.º 4 do mesmo, nem a “sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos” em que foi transformada a “A Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência” tem escopo e constituição inteiramente coincidentes com o supletivamente consagrado na lei para as sociedades comerciais, em geral, e para as instituições de crédito, em especial, cfr. artigo 1º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, e o DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro.[8]
Como também assinala Menezes Cordeiro,[9] “Hoje a Caixa apresenta-se como uma instituição de crédito de tipo bancário, mas com algumas especificidades”, apontando como “bastante sintomático” o disposto no já abordado artigo 3º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto.
Acresce que o próprio artigo 703º, n.º 1, alínea d), do novo Código de Processo Civil, contempla como títulos executivos “Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.”.
Como assim é o caso dos documentos particulares previstos no questionado artigo 9º, n.º 4, do Decreto-Lei 287/93.
Referindo José lebre de Freitas,[10] entre outros documentos particulares que podem constituir título executivo por disposição especial de lei, “o documento de contrato de mútuo concedido pela Caixa Geral de Depósitos, nos termos do art. 9-4 do D.L. 287/93, de 20 de agosto.”.
Não é pois de concluir que o legislador de 2013 pretendeu, inequivocamente, revogar a norma do sobredito artigo 9º, n.º 4, do Decreto-Lei 287/93, de 20 de Agosto.
II – 2 – Da exequibilidade que ao sobredito documento, haja sido conferida pelo artigo 46º, nº1, alínea c) do anterior Código de Processo Civil.
Embora se trate esta de questão prejudicada pela solução dada à anterior, não deixará de se assinalar, conquanto assim apenas marginalmente, que o Tribunal Constitucional, em Acórdão n.º 408/2015, de 23-09-2015,[11] declarou “com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil, e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição)”.
Ora se é certo que a presente execução foi requerida em 10-10-2014, quando já se encontrava em vigor o Novo Código de Processo Civil, também verdade é que à alegada data da celebração do contrato de mútuo titulado pelo documento junto a folhas 5 a 11 – a saber, 11-10-2004 – vigorava o anterior Código de Processo Civil.
Cujo artigo 46º, n.º 1 alínea c), incluía, entre os títulos executivos “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
Previsão que deixou de constar, naqueles termos, no atual Código de Processo Civil, de que o artigo 703, n.º 1, alínea c), refere, tão só – no que aos meros documentos particulares respeita – poderem servir de base à execução “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que neste caso os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.
Posto o que, na sequência do decidido no sobredito Acórdão do Tribunal Constitucional, entenderíamos não ser de aplicar, in casu, na apreciação da existência de título executivo por parte da Exequente, o artigo 703º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil.
Sendo, por outro lado, de concluir que o oferecido documento particular titulador de um contrato de mútuo, celebrado entre a Exequente e o Executado – e cuja conformidade com o original respetivo se mostra certificada, conserva a qualidade de título executivo reconhecida, à data da sua produção, pelo anterior Código de Processo Civil.
Bem com também, na doutrina, Maria João Galvão Telles, in “A Reforma do Código de Processo Civil: A Supressão dos Documentos Particulares do Elenco dos Títulos Executivos”.[16]
Ora o indeferimento liminar do requerimento executivo apenas pode ter lugar – e pelo que agora poderia estar aqui em causa – quando “Seja manifesta a falta ou insuficiência do título”, cfr. artigo 726º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
Circunstância que se não pode dar por verificada quando, como assim se ilustrou, à data da prolação da decisão recorrida, a doutrina e a jurisprudência se não mostravam uniformes, ou sequer maioritárias, no sentido ali acolhido.
III - Nestes termos, acordam em julgar a apelação procedente e revogam a decisão recorrida, a substituir por outra que – se a tanto coisa diversa não obstar – determine o prosseguimento dos termos da execução, com apreciação do que se considerou prejudicado pelo julgado naquela decisão.
Sem custas.
Lisboa, 2016-03-10
(Ezagüy Martins)
(Maria José Mouro)
(Maria Teresa Albuquerque)
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