1. A questão das perícias médico-legais, em sede cível, encontra-se estribada quer no Código de Processo Civil, quer na Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto, sendo que esta última “estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses” (art.º 1.º), revogando alguns diplomas que dispunham sobre tal temática (vide art.º 33.º).
2. Tal diploma privilegia as perícias singulares sobre as colegiais, sem prejuízo destas poderem ocorrer quando expressamente previstas (n.º 3 daquele art.º 21.º).
3. Da conjugação desta Lei n.º 45/2004, com o estipulado nos artgs. 467.º e 468.º do Código de Processo Civil, atenta a natureza especial daquela, há que concluir que as perícias médico-legais colegiais civeis só ocorrerão nos casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada (n.º 4, do art.º 21.º daquela Lei).
I – RELATÓRIO
A. intentou acção de processo comum contra Companhia de Seguros B..
Em sede de audiência prévia e no âmbito da discussão sobre os moldes em que o exame pericial (perícia médica) requerido por ambas as partes se deveria realizar, o A. sustentou “que a ser admitido a realização do exame pericial, deverá ser realizado por um só perito no gabinete Médico-legal e Forense da Madeira”.
Por seu turno a Ré defendeu “que tal como já tinha requerido na sua contestação o exame pericial deverá ser realizado de forma colegial”.
Na sequência dessa discussão a Senhora Juíza proferiu o seguinte despacho:
“Defere-se a realização de uma perícia-médico-legal conforme requerido por ambas as partes – art.º 467.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A perícia será realizada em molde colegial (por 3 peritos), por tal ter sido requerido por uma das partes (a R.) conforme resulta da conjugação do disposto no art.º 467.º, 468.º, n.º 1, al. b) e 5.º a contrario sensu do Código de Processo Civil.
Assim sendo, no que concerne ao perito a nomear pelo tribunal, oficie ao Instituto de Medicina Legal solicitando a indicação de perito especializado em ortopedia a fim de realizar a perícia requerida juntando o presente despacho, petição inicial e contestação para melhor compreensão.
Nomeia-se ainda como perito o indicado pela R..”
Inconformado com tal despacho, veio o A. recorrer do mesmo, tendo apresentado as suas alegações, nas quais verteu as seguintes conclusões:
«[…].»
Por seu turno a R. apresentou contra-alegações, exibindo as seguintes conclusões:
«[…].»
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto dos recursos acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que no acaso em apreço a única questão que importa conhecer prende-se com o eventual erro de direito praticado na decisão recorrida, ao ter determinado a realização duma perícia médico-legal colegial, quando a lei, na óptica do recorrente, estipula que a mesma seja singular.
III – FUNDAMENTOS
1. De facto
A factualidade a considerar para a apreciação da questão suscitada é a constante do relatório supra enunciado.
2. De direito
Apreciemos então a questão colocada.
A questão das perícias médico-legais, em sede cível, encontra-se estribada quer no Código de Processo Civil, quer na Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto.
Esta última, “estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico- -legais e forenses” (art.º 1.º), revogando alguns diplomas que dispunham sobre tal temática (vide art.º 33.º).
Ora, de acordo com o art.º 21.º, n.º 1 de tal Lei “Os exames e perícias de clínica médico-legal e forense são realizados por um médico perito.”
Trata-se de um enunciado que percorre todo o diploma, privilegiando-se as perícias singulares sobre as colegiais, sem prejuízo destas poderem ocorrer quando expressamente previstas, sendo disso sintomática a previsão do n.º 3 daquele art.º 21.º ao estipular:
“3 — O disposto no n.º 1 não se aplica aos exames em que outros normativos legais determinem disposição diferente.”
Porém, no n.º 4 deste mesmo dispositivo legal reitera-se a ideia transversal do diploma que privilegia a perícia singular sobre a colegial, adiantando-se até as razões para tal – “Dado o grau de especialização dos médicos peritos…” (economia de meios com melhor aproveitamento dos quadros técnicos especializados).
Esse importante preceito legal, enuncia as razões e a forma como as perícias deverão ser organizadas, consagrando também uma especial restricção à realização das perícias colegiais consagradas no Código de Processo Civil.
È o seguinte o teor de tal preceito:
«4 (do art.º 21.º) – Dado o grau de especialização dos médicos peritos e a organização das delegações e gabinetes médico-legais do Instituto, deverá ser dada primazia, nestes serviços, aos exames singulares, ficando as perícias colegiais previstas no Código de Processo Civil reservadas para os casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada.»
Vale isto por dizer que quando em sede processual civil se consagre a possibilidade de perícia médico-legal colegial (e convém realçar que os ditames da Lei 45/2004 se circunscrevem a esta espécie de perícias, enquanto que as previstas no Código de Processo Civil abarcam toda a sorte de perícias), esta salvaguarda da parte final do n.º 4, do art.º 21.º da Lei n.º 41/2004 terá de ser respeitada.
Diga-se, em reforço desta posição (prevalência desta lei especial sobre a lei geral que é o Código de Processo Civil) que é o próprio n.º 3 do art.º 467.º que estipula que “As perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta”.([1])
Ora, a ser assim, as perícias médico-legais previstas em sede processual civil terão sempre de respeitar os termos e condicionantes previstas na indicada Lei 45/2004.
Desta forma, o art.º 468.º da nossa lei adjectiva civil ao disciplinar a realização das perícias colegiais e singulares, no que concerne às específicas perícias médico-legais, terá de harmonizar os seus ditames com as previsões daquela lei especial.
Tal harmonização implicará necessariamente que independentemente das condicionantes impostas por este normativo, para que se possa realizar uma perícia colegial, designadamente a estipulada no n.º 5 desse art.º 468.º (a contrario sensu) — “Nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, a perícia é realizada por um único perito, aplicando-se o disposto no artigo 467.º” -, tal tipo de perícia médico-legal apenas poderá ser realizada quando o juiz “o determine de forma fundamentada” (n.º 4 do art.º 21.º da Lei n.º 45/2004).
Sendo este o regime aplicável, voltemos ao caso em apreço e vejamos se a situação se enquadra nestes parâmetros.
Tendo presente o teor do despacho proferido pela Senhora Juíza, teremos forçosamente de concluir que a exigência de fundamentação da necessidade da realização da perícia médico-legal colegial não se mostra concretizada na decisão recorrida.
Com efeito, o despacho limita-se a dizer que a perícia médico-legal será colegial “por tal ter sido requerido por uma das partes (a R.) conforme resulta da conjugação do disposto no art.º 467.º, 468.º, n.º 1, al. b) e 5.º a contrario sensu do Código de Processo Civil.”
Inexiste assim qualquer fundamentação sobre a necessidade de se realizar a perícia médico-legal colegial, ao invés da singular, que é o regime regra.
Nesta conformidade há que considerar assistir razão ao apelante, devendo nessa medida revogar-se o despacho recorrido.
IV – DECISÃO
Assim, os juízes desembargadores que integram o presente colectivo, acordam em revogar o despacho recorrido, determinando que a perícia médico-legal em causa seja uma perícia singular, devendo a Senhora Juíza providenciar para que a mesma se realize de acordo com os termos procedimentais legais.
Custas pela recorrida.
Lisboa,
(José Maria Sousa Pinto)
(Jorge Vilaça Nunes)
(João Vaz Gomes)
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[1] Sublinhado nosso, sendo certo que o diploma que as regulamenta é precisamente a Lei n.º 41/2004, de 19 de Agosto.