FORÇA PROBATÓRIA
DOCUMENTO PARTICULAR
PROVA TESTEMUNHAL
Sumário

Tendo o demandado invocado o pagamento e juntado, com a oposição, um documento alegadamente feito pelo punho da autora e por ela assinado, onde declara ter recebido a quantia peticionada, não pode ser produzida prova testemunhal tendente a comprovar a falsidade da letra e da declaração confessória sobre o pagamento, se na resposta se tiver limitado a “impugnar o seu conteúdo, designadamente no que respeita a expressão já recebido”, sem arguir a falsidade da declaração que lhe é atribuída.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


C. P. P., residente em Cascais, requereu procedimento injuntivo contra M. G. P., residente em Sintra, alegando ter vendido à requerida em 1/11/2011 pelo preço de €12.000,00, diverso equipamento que constituía o recheio de um estabelecimento de restauração, reclamando por isso o pagamento do aludido valor e juros vencidos e vincendos, aqueles no montante de €1429,48, além da taxa de justiça no montante de €102,00.

A requerida deduziu oposição, dizendo ter pago a quantia peticionada e invocando também a prescrição presuntiva prevista na alínea b) do artigo 317º do Código Civil.

Distribuídos os autos foi a requerente notificada para responder às exceções esgrimidas pela requerida, o que fez através do articulado que constitui fls 20 a 23.

Discutida a causa foi a final proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente por provada e a condenar a ré a pagar à autora a quantia de €12.000,00, acrescida de juros de mora contados desde a notificação do requerimento injuntivo até integral e efetivo cumprimento, bem como em 2 UCs de multa e €600,00 de indemnização à autora, por litigância de má fé.

Inconformada com a decisão recorreu a ré para pugnar pela revogação da sentença, alinhando para tal as seguintes razões:

A)As questões a apreciar resumem-se à apreciação da prova produzida, nomeadamente ao efeito probatório do documento particular a fls. 26 quanto à declaração de recebimento do preço e a consequente impugnação da matéria de facto dada como provada nos arts. 1, 3 e 4 e a reapreciação da resposta negativa dada à al. b) dos factos não provados, bem como a reapreciação da decisão que condenou o exequente como litigante de má-fé.
B)A Recorrente contestou, tendo invocado a excepção de prescrição presuntiva, bem como o facto extintivo pelo pagamento da quantia peticionada, tendo junto documento particular, onde a Recorrida reconhecia o recebimento, estando assinado pela mesma, a fls. 26.
C)A Recorrida apenas impugnou o conteúdo do documento “designadamente no que respeita à expressão já recebido”, cfr. art. 6º da resposta à contestação, apresentada a 04/05/2015, a fls..
D)A Recorrida não impugnou a autoria, nem a assinatura do documento, nem fez arguição da sua falsidade e não invocou que as declarações nele constantes tenham sido efectuadas através de qualquer vício de vontade.
E)O documento a fls. 26 é um documento particular, onde esta declara, unilateralmente, ter vendido uma quantidade de material, aí identificado, à Recorrente, pelo valor de 12.000,00€ e onde reconhece ter recebido o valor, encontrando-se assinado pela mesma.
F)No que toca à força probatória de um documento particular, refere o art. 376º nº 1 do Código Civil (CC), “o documento particular cuja autoria seja reconhecido nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento”.
G)Acrescenta o nº 2 da disposição que “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão”.
H)O nº 1 do art. 374º do CC refere-se expressamente à autoria do documento reconhecida nos termos dos artigos antecedentes, isto é, os documentos particulares devem ser assinados nos termos indicados pelo art. 373º do CC, sendo que “a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras”.
I)Acrescenta o nº 2 da disposição que “se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova
da sua veracidade”.
J)Por fim, “se estiverem reconhecidas presencialmente, nos termos das leis notariais, a letra e assinatura do documento, têm-se por verdadeiras (art. 375º nº 1 do CC).
K)“Se a parte contra quem o documento é apresentado arguir a falsidade do reconhecimento presencial da letra e assinatura, ou só da assinatura, a ela incumbe a prova dessa falsidade” (nº 2 do mesmo artigo).
L)Destarte, os documentos particulares assinados pelo seu autor, se não existir a impugnação a que aludem os arts. 374º e 375º do CC, fazem prova plena em relação às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo, porém, da arguição e prova da sua falsidade.
M)Os factos objecto da declaração que forem contrários aos interesses do declarante apresentam-se como factos objecto de confissão e, por isso, consideram-se provados nos termos gerais da confissão (vide a este propósito Vaz Serra in RLJ, ano 110º, pág. 85).
N)Sendo um documento particular, em que se encontra provado a assinatura, tem-se por plenamente provado que o signatário emitiu todas as declarações constantes do documento, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade deste, nos termos do art. 376º nº 1 do CC.
O)No presente caso, o recebimento do preço, porque desfavorável à Recorrida, deverá considerar-se plenamente provado.
P)Por outro lado, não está em causa a indivisibilidade da declaração constante do documento em causa, já que a Recorrente nunca pôs em causa a venda dos materiais ali descritos.
Q)Nesta conformidade, a declaração é equiparada a uma confissão, aplicando-se-lhe o respectivo regime.
R)Por isso, a afirmação exarada no documento de que recebeu a quantia nele indicada, faz prova plena dessa afirmação, equivalendo a uma confissão extrajudicial.
S)O art. 347º estabelece que “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei”.
T)Porém, para se admitir prova em contrário, a lei exige nalguns casos que se alegue e prove a falsidade do meio de prova, cfr. art. 372º nº 1, art. 376º e nº 2 do art. 393º do CC.
U)Assim, em relação a um documento particular, para que se possa admitir prova em contrário, será necessário que se argua e prove a falsidade do mesmo (vide art. 376º nº 1 do CC).
V)Nunca tal matéria foi arguida pela Recorrida, apenas tendo sido suscitada em plena audiência de julgamento, através de prova testemunhal e de depoimento.
W)Se o facto estiver provado por documento particular cuja autoria se encontre reconhecida, não é admissível prova testemunhal, na parte respeitante aos factos desfavoráveis ao declarante, nos termos do art. 393º do CC.
X)Tendo o Tribunal a quo admitido prova testemunhal sobre aquele facto, essencial para dar como provado os pontos 3 e 4 da matéria de facto, bem como a alínea b) dos factos não provados, está a assentar a sua decisão em prova ilegal, porque viola do disposto no art. 393º do CC.
Y)Da mesma forma e pela mesma razão, não deveria ser admitido o depoimento de parte da Recorrida, em causa própria, para impugnar os factos que lhe são desfavoráveis e onde, na sua versão, estaria a constituir direitos sobre a Recorrente.
Z)A razão da distinção efectuada na primeira parte do nº 2 do art. 376º do CC está em que, no respeitante a declarações de ciência, ninguém pode ser aceite como testemunha qualificada em causa própria e, relativamente às declarações de vontade, ninguém pode, em principio, constituir titulo escrito a seu favor (sublinhado nosso), conforme defende Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 524).

AA)Em consequência do acima exposto, não podia ser dado como provado (ponto 3 dos factos provados), que “no momento em que a A. apôs a sua assinatura não continha o dizer “Já recebido”.
BB)Como também não poderia ser dado como provado (ponto 4 dos factos provados), que “a R. não procedeu ao pagamento da quantia referida em 1., apesar de lhe ter sido pedido que efectuasse o pagamento pela A.”.
CC)Da mesma forma, deveria ser dado como provado o constante da al. b) dos factos não provados, ou seja que “A A. reconheceu ter recebido esse valor no documento junto a fls. 26”.
DD)A admissibilidade de prova testemunhal e do depoimento de parte, sobre aqueles factos, viola o disposto no art. 376º nº 2 e art. 393º do CC.
EE)A exactidão, seriedade e veracidade do conteúdo das declarações constantes do documento de fls. 26 não pode constituir matéria a provar, dado não ter sido arguida a falsidade do documento.
FF)A questão acolhida na decisão a quo aprecia de facto a falsidade do documento, ao dar como provado que no momento em que a A. apôs a sua assinatura não continha o dizer “Já recebido”.
GG)Essa apreciação nunca foi arguida pela Recorrida e resulta da prova testemunhal e do depoimento de parte, pelo que é desnecessária e ilegal.
HH)Acresce que, a sentença ora posta em crise, fundamenta ainda que o documento a fls., seria uma mera cópia e que a expressão recebido se encontra entrelinhada, o que excluiria a força probatória do documento e sustentaria a credibilidade das testemunhas e das declarações da Recorrida.
II)Sucede que, o documento de fls. 26 foi apresentado nos termos do art. 4º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, que estabelece que a apresentação de peças processuais e documentos por transmissão eletrónica de dados dispensa a remessa dos respetivos originais, duplicados e cópias, nos termos da lei.
JJ)Nunca a autenticidade ou genuinidade do documento foi posto em causa, nem foi requerida perícia à letra ou assinatura do documento.
KK)Não obstante, requere-se a junção do documento em causa e se dá por reproduzido, nos termos do art. 651º, nº 1 do CPC.
LL)No entender da Recorrente, a junção do documento torna-se necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância, considerando-se apto a modificar o julgamento, na medida em que se poderá verificar que a expressão “recebido” não se encontra entrelinhada.
MM)Com o devido respeito, a Recorrente não se conforma com a condenação do Tribunal a quo como litigante de má-fé, considerando que tal condenação deveria recair sobre a Recorrida.
NN)Lamentando profundamente a conclusão de que a Recorrente actuou de forma dolosa, ao considerar que sabia que não tinha pago a quantia e mesmo assim não se coibiu de o afirmar.
OO)Sem transigir, a sentença recorrida poderá concluir que a Recorrente, à sua vista, não logrou provar os factos que alegou, mas não pode concluir pela falsidade das suas alegações.
PP)A Recorrente não se conforma com a conclusão de que não foi a Recorrida a apor a expressão recebido e que a mesma não constava do documento aquando da sua assinatura.
QQ)Nunca tal matéria foi arguida pela Recorrida, apenas tendo sido suscitada em audiência de julgamento, através de prova testemunhal e de depoimento de parte sobre o documento que a própria Recorrida elaborou.
RR)Tal questão não deveria ser sujeita a prova.
SS)Com efeito, a Recorrida não impugnou a letra e a assinatura do documento, não arguiu a sua falsidade e não invocou que as afirmações nele constantes haviam sido efectuadas com qualquer vício de vontade.
TT)Pelo que não deverá ser a Recorrente condenada como litigante de má-fé e, em consequência, no pagamento de multa ou qualquer indemnização, devendo tal condenação recair sobre a Recorrida.
UU)Ao condenar a Recorrente em litigância de má fé a sentença viola o disposto no art. 542º do CPC.
***

Respondeu a recorrida para defender a confirmação do julgado, dizendo por seu turno que:

(…)
2.O thema decidendi em apreciação consiste na apreciação da prova produzida, nomeadamente ao efeito probatório do documento particular junto a fls.26.
3.Considera a recorrente que invocou a prescrição presuntiva, bem como a excepção do pagamento do preço da venda, sendo que juntou documento particular, assinado pela recorrida, onde esta reconhecia ter recebido o valor da venda dos bens.
4.Sem embargo do que se possa dizer, a realidade é que dos factos provados e não provados resulta que a ora recorrida, não reconheceu ter recebido a quantia em causa nos autos,
5.E resulta claro - da prova produzida, que a expressão constante desse documento, o qual se encontra junto a fls. 26 que poderia ter essa leitura foi aposta após a sua assinatura.
6.Por outro lado, tal declaração é uma mera cópia e não o original.
7.Se a recorrida impugnou o documento na parte relativa à expressão “já recebida”, impugnou, portanto, a sua letra nessa parte, pelo que incumbia à recorrente provar que tal expressão era verdadeira, o que não fez.
8.Efectivamente não existem dúvidas de que os factos em causa são contrários ao interesse da recorrida, pelo que poderia a recorrente invocar tal documento como prova plena quanto a ela.
9.No entanto, e como refere o douto Tribunal a quo, “analisando o documento de fls. 20, sendo ele uma mera cópia, vemos ainda que a expressão “recebido” encontra-se entrelinhada, o que exclui a força probatória do documento que a R. pretendia prevalecer-se sendo igualmente um factor que vem reforçar a credibilidade do testemunho de Giacomo Maccário e das próprias declarações da A.”
10.Por outro lado, a recorrente não juntou prova nenhuma de que tenha feito o pagamento, como concluiu e bem o douto Tribunal a quo.
11.Deste modo, o Tribunal não podia ter decidido de outra forma, bem andou na decisão que tomou!
***

Fundamentação de facto:

A sentença impugnada assentou nos seguintes factos:

1.No dia 13 de Outubro de 2011 a A. declarou vender à R. que declarou comprar-lhe os bens, equipamento e máquinas identificados a fls. 26 referentes a actividade de restauração que se encontravam no estabelecimento sito em Alcabideche, pelo preço de €12.000,00 que a A. tinha explorado.
2.Tais móveis foram entregues pela A. à R. e destinavam-se ao exercício da actividade de hotelaria/restauração pela R. e seu pai no estabelecimento sito na mesma morada.
3.Na data referida em 1. foi assinada pela A. a declaração junta a fls 26, “a qual, no momento em que a A. apôs a sua assinatura não continha o dizer já recebido”.
4.Não obstante terem-lhe sido entregues os bens adquiridos a R. não procedeu ao pagamento da quantia referida em 1., apesar de lhe ter sido pedido que efectuasse o pagamento pela A. .
***

Análise do recurso:

Tal como a recorrida assinala “o thema decidendi consiste na apreciação da prova produzida, nomeadamente ao efeito probatório do documento particular junto a fls.26”.

Na verdade, nenhuma controvérsia foi suscitada quanto à alegação de que a autora vendeu à recorrente, pelo preço de 12.000 euros, os bens discriminados no documento de fls 26 que a demandada juntou com a oposição deduzida.

Por conseguinte, a controvérsia estava confinada à valoração da oposição deduzida pela demandada, que se desdobra em dois temas imbricados entre si.

Com efeito, foi invocada a prescrição presuntiva prevista na alínea b) do artigo 317º do CC que dispensa a beneficiária de fazer prova do pagamento alegado, onerando a credora com a demonstração de que o pagamento não foi feito, por força da regra plasmada no artigo 350º, nº1 do mesmo diploma.

O tribunal não se pronunciou sobre a verificação de tal exceção perentória, tendo aliás aprazado o julgamento no mesmo despacho em que ordenou a notificação da autora para responder à matéria das exceções constante da oposição (fls 18).

Deixando de parte tal anomalia processual, diremos todavia que a invocada prescrição presuntiva se revela patentemente inconsistente, porquanto o alegado crédito da autora provém da venda das máquinas e equipamentos afetados à exploração de um estabelecimento de restauração e destinavam-se ao exercício da mesma atividade pela adquirente, o que desde logo afasta a presunção presuntiva esgrimida pela ré.

Por isso, restava apurar se o preço dos bens vendidos fora pago como a demandada alegara, tarefa que sobre ela impendia, por força da regra constante do nº2 do artigo 342º do CC.

Na verdade, a demandada na sua oposição alegou que:

“(…) O crédito é inexistente, dado que esse valor foi pago à A. em diversas prestações em dinheiro, sendo a última prestação recebida em 13 de outubro de 2011”.

E acrescenta:
A autora veio a reconhecer já ter recebido aquele valor, conforme documento particular assinado pela mesma e que se junta como documento 1”.

Ou seja, a demandada não se limitou a alegar a exceção perentória de pagamento, pois desde logo apresentou um documento particular em que, supostamente, a Autora teria reconhecido o recebimento do valor peticionado no processo.

Trata-se de um documento manuscrito, datado e assinado a final, de que se destaca a seguinte passagem:

DECLARAÇÃO
Eu, C. P. P. DECLARO QUE VENDI PELO VALOR DE 12.000 (DOZE MIL EUROS) JÁ RECEBIDO O SEGUINTE MATERIAL: (…)”.
*

Notificada para responder à contestação, veio a autora pronunciar-se pela improcedência da prescrição presuntiva invocada, assinalando justamente que os bens por si vendidos se destinavam ao exercício do comércio da adquirente e, no tocante ao pagamento invocado pela demandada e ao documento junto tendente a comprová-lo, disse simplesmente (artº6º):
Do documento junto sob a designação de 1, a requerente impugna o seu conteúdo, designadamente no que respeita a expressão “já recebido”.
Como a recorrente sustenta, de tal incipiente declaração não resulta nem a impugnação da letra, nem da assinatura constante do documento em causa, do mesmo modo que não se pode vislumbrar em tal impugnação a arguição de qualquer falsidade.
Neste contexto, pergunta-se: seria processualmente admissível que a autora, não tendo impugnado a assinatura que lhe é atribuída, viesse depois arrolar testemunhas para comprovar não ser sua tal assinatura?
A resposta, parece evidente, não pode deixar de ser negativa.
Com efeito, dispõe o nº1 do artigo 374º do Código Civil que “a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado”.

Por conseguinte, tivessem ou não sido feitas pelo punho da autora a letra e a assinatura constantes do documento em causa, no plano processual ficou adquirido que tanto a letra como a assinatura lhe pertencem.

Assinala-se em todo o caso que a autora não põe em crise a autoria da assinatura aposta no documento e, por outro lado, a questão da letra, em princípio, seria irrelevante, pois se a autora assinou o documento do qual consta a declaração que lhe é atribuída, conformou-se com o seu teor, seja ele datilografado ou manuscrito por terceiro.

No caso vertente, a questão da letra ganha sentido em virtude de não se vislumbrar qualquer dissemelhança gráfica entre a expressão “já recebido” e o restante conteúdo do documento, sugerindo assim que todo o documento foi lavrado pela mesma pessoa.

Por isso, não tendo a Autora impugnado a letra do documento, ter-se-ia de concluir que a expressão “já recebido” foi também aposta pelo seu punho.

Como quer que seja, ainda que o documento tivesse sido elaborado por terceiro, isso não lhe retiraria força probatória no que tange às declarações nele recolhidas, pois a assinatura da autora aposta no final sem qualquer ressalva traduz a sua concordância com os dizeres do documento, tendo por isso inquestionável força vinculante.

Chegámos assim ao ponto nuclear da decisão que se prende com o facto recolhido sob o ponto 3 do elenco de factos provados no qual ficou consignado que “na data em que foi assinada pela A., a declaração junta a fls 26 não continha o dizer “Já recebido”.

Ou seja, a autora teria assinado uma declaração a reportar a venda dos bens pelo valor de €12.000, à qual posteriormente teria sido acrescentada, à sua revelia e contra a sua vontade, a expressão “já recebido”.

Como a recorrente sublinha “nunca tal matéria foi arguida pela recorrida, apenas tendo sido suscitada em plena audiência de julgamento, através de prova testemunhal e de depoimento de parte”.

Compulsados os autos (fls 27) verifica-se que a ré não apresentou qualquer outra prova e a autora arrolou duas testemunhas e requereu a prestação de declarações de parte e com base em tais depoimentos concluiu o tribunal que o documento foi redigido pelo pai da ré, o qual depois de assinado lhe acrescentou a expressão “já recebido”.

É irrecusável que impendia sobre a demandada a prova do pagamento, por força da regra constante do nº2 do artigo 342º do CC, prova que ela pretendeu fazer com a junção da declaração confessória atribuída à Autora e atinente ao recebimento do preço.

Confrontada com tal documento, limitou-se a autora a dizer que “impugnava o seu conteúdo, designadamente no que respeita à expressão já recebido”.

Por força do disposto no nº1 do artigo 376º do CC “o documento particular cuja autoria seja reconhecida (…) faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento”.

Ou seja, a lei não impedia à autora a prova de que o documento cuja autoria lhe foi atribuída não corresponde à realidade, fosse porque a declaração confessória nele exarada está inquinada por qualquer vício da vontade, fosse porque foi objeto de viciação por parte do beneficiário da declaração ou de terceiro.

Nesse contexto, cumpre ao declarante comprovar o vício da vontade ou a falsidade da declaração a fim de afastar a força probatória do documento particular e, por essa via, infirmar as declarações nele exaradas.

Até à reforma processual de 95/96 a falsidade dos documentos era processada como incidente da instância (artºs 360º a 370º do CPC), mas com o DL nº180/96 e “de acordo com a melhor doutrina, insere-se no âmbito da prova documental a regulamentação da matéria atinente à impugnação da genuinidade dos documentos e à ilisão da autenticidade ou força probatória dos mesmos, estabelecendo-se regime articulado com as soluções do Código Civil (…)”.

Dispõe agora o artigo 444º do CPC sobre a impugnação da genuinidade de documento, que tal impugnação seja feita no prazo de 10 dias contados da apresentação do documento (nº1) ou no articulado seguinte, se o documento tiver sido junto com o articulado que não seja o último (nº2).

Tal normativo é também aplicável quando se pretenda ilidir a autenticidade ou a força probatória de documento particular em que tenha sido inserida declaração divergente do ajustado com o signatário (nº1 do artigo 446º do CPC) e a instrução e julgamento do incidente precede naturalmente a da própria causa, cujos termos são suspensos, se necessário, como postula o nº3 do artigo 449º do CPC.

Por isso mesmo, a matéria do incidente “é considerada nos temas da prova enunciados ou a enunciar nos termos do nº1 do artigo 596º”, incidindo a produção de prova, bem como a decisão, tanto sobre a matéria do incidente como sobre o fundo da causa.

No caso vertente não foram enunciados os temas da prova, tendo o tribunal aprazado logo a audiência, antes mesmo de findarem os articulados (fls 18).

E a audiência serviu apenas para a autora produzir prova sobre a falsidade de um documento, sem que em sede própria - leia-se, na resposta de fls 20 - tivesse arguido qualquer vício.

Ora, não tendo a autora impugnado a assinatura aposta no documento, nem a letra do mesmo que lhe é atribuída, ou a falsidade do seu conteúdo por “inserir declarações divergentes do ajustado”, não podia ser produzida prova testemunhal tendente a demonstrar a sua falsidade, por tal lhe ser vedado pelo nº2 do artigo 393º do Código Civil.

Assim, não tendo sido arguida a falsidade do documento de fls 26, não podiam as declarações dele constantes ser infirmadas por prova testemunhal, porquanto o documento faz prova plena quanto às declarações atribuídas à autora e a lei não admite tal meio de prova nas apontadas circunstâncias.

É certo que a falsidade da declaração sobre o recebimento do preço também se louvou no depoimento da própria autora, mas como é intuitivo se o depoimento das testemunhas é ineficaz para infirmar a declaração aposta no documento, por maioria de razão o tem de ser a declaração de parte emitida pela autora sobre um facto que lhe é favorável e que no momento processual oportuno não cuidou de invocar.

Em suma, é através do processo e de acordo com regras preestabelecidas que as partes fazem valer os seus direitos e daí que lhes cumpra tomar posição em consonância com os seus ditames, sob pena de verem postergada a defesa dos seus interesses.

A terem as coisas acontecido pela forma que se deu por provada na sentença, então devia a autora ter impugnado a letra e arguido a falsidade do documento, quando foi com ele confrontada, por a declaração confessória, supostamente, ter sido inserida à revelia da sua vontade e em divergência com a intenção que presidira à feitura do documento.

Comprovada tal falsidade, ficaria destruída a força probatória do documento, impendendo assim sobre a demandada a prova do pagamento invocado.

Cingindo-nos agora à sentença, destaca-se então o seguinte segmento:
“Destarte, mesmo que a A. tivesse declarado que foi pago o preço da venda podia provar que tal declaração não correspondia à realidade, o que a autora conseguiu fazer, através, nomeadamente, da prova testemunhal e da prova por declarações à A”.

Com o devido respeito, a afirmação precisa de ser compaginada com o disposto no artigo 376º do Código Civil já citado, sob pena de conduzir ao absurdo, pois de nada valeriam os recibos e documentos de quitação se o emitente, de modo irrestrito e sem precisar de pôr em crise a força probatória de tais documentos, pudesse vir provar que a sua declaração não correspondia à realidade, tornando o aludido artigo perfeitamente inútil.

Por isso e como já acima se assinalou, “sem arguição e prova da falsidade de um documento particular, não podem os factos nele constantes ser infirmados por prova testemunhal” (citámos Ac RC de 1/2/1983, CJ, I/83, pág.42).

Mas na sentença escreve-se ainda:
Outrossim, não podemos deixar de notar o facto de a R. invocar que o pagamento foi efectuado “em dinheiro”, não juntando qualquer documento relativo a levantamento de quantias na data que alega que o pagamento foi efectuado ou mesmo arrolando testemunha.

A alusão, mais uma vez, revela-se perfeitamente descabida, pois se o demandado junta aos autos uma declaração assinada pela autora em que esta confessa o pagamento, não carece de fazer outra prova, necessariamente mais frágil.

Tivesse a autora alegado e provado que a menção “já recebido” fora colocada por outrem após a assinatura do documento e, então sim, cumpriria à ré produzir prova sobre o pagamento invocado.

Por fim, refere-se ainda na sentença:
Ademais, analisando o documento de fls. 26 (por lapso manifesto diz-se 20), sendo ele uma mera cópia, vemos ainda que a expressão “recebido” encontra-se entrelinhada, o que exclui a força probatória do documento que a R. pretendia prevalecer-se (…)”.

Não se vislumbra o sentido ou alcance da afirmação, sendo certo que já antes se dissera que “tal declaração é uma mera cópia e não o original que não foi junto pela R”, pois como a recorrente salienta (conclusão II) o documento foi apresentado em consonância com o disposto na lei e nem o tribunal reputou necessária a junção do original, nem a autora requereu tal junção ou colocou em causa a sua conformidade.

Por outro lado, está longe de ser evidente a afirmação de que a palavra recebidoencontra-se entrelinhada”, para com base nisso se excluir a força probatória da declaração, para além, repete-se, de que nunca a autora suscitara tal questão.

Claro que toda a construção feita na sentença assenta num equívoco, pois se escreve na motivação da decisão de facto queo A. impugnou o documento na parte relativa à expressão “já recebida”, impugnou, portanto, a sua letra nessa parte, pelo que incumbia à R. provar que tal expressão era verdadeira, o que não fez” (é nosso o sublinhado).

Ora a afirmação feita pela autora de que “impugna o seu conteúdo, designadamente no que respeita a expressão já recebido” não releva como impugnação da letra do documento, mas apenas do seu teor: a autora nega o recebimento do valor, mas não a letra ou a assinatura que lhe são atribuídas.

Ou seja, sem que a autora tivesse invocado a falsidade do documento confessório junto com a contestação, o tribunal a quo deu por provada essa falsidade com base no depoimento das testemunhas, em inequívoca violação do disposto no artigo 5º do CPC, pois como a recorrente refere (conclusão RR) “tal questão não deveria ser sujeita a prova”, pela singela razão de que não foi invocada pela autora como lhe impõe o nº1 do artigo 376º do CC.

Por isso, do facto recolhido no ponto 3) elimina-se a expressão “a qual, no momento em que a A. apôs a sua assinatura não continha o dizer “Já recebido”, porquanto não foi suscitada pela autora a falsidade do documento e considera-se não provado o facto enunciado sob o ponto 4), uma vez que o pagamento está comprovado por documento dotado de força probatória plena.

Em suma, tem absoluta razão a recorrente quando refere que “a afirmação exarada no documento de que recebeu a quantia nele indicada, faz prova plena dessa afirmação, equivalendo a uma confissão extrajudicial” e, assim sendo, a apelação não pode deixar de obter provimento.

Por conseguinte e como corolário do decidido, impõe-se também a revogação da sentença no tocante à condenação da ré como litigante de má-fé.
***

Decisão:

Nos termos expostos, julga-se a apelação procedente e revoga-se a sentença impugnada, absolvendo-se a ré do pedido.
Custas em ambas as instâncias a cargo da autora.


Lisboa,19 de abril de 2016



(Gouveia Barros)
(Conceição Saavedra)
(Cristina Coelho)