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GARANTIA BANCÁRIA
MÁ-FÉ
ÓNUS DA PROVA
Sumário
A autonomia da garantia (garantia bancária autónoma on first demand) não é absoluta; o garante pode opor ao beneficiário determinadas exceções, não fundadas nessa relação e assentes em factos relativos ao contrato base, sendo consensual que uma dessas hipóteses ocorre quando o beneficiário, acionando a garantia, atua notória ou com manifesta com má-fé e de forma abusiva (art. 334º do Cód. Civil), impondo-se, casuisticamente, aferir da verificação desses pressupostos, cujo ónus de alegação e prova impende, inequivocamente, sobre o garante. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.
1.RELATÓRIO:
K. GRUNDBAU GmbH, SUCURSAL em PORTUGAL intentou a presente ação declarativa de condenação contra CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., pedindo que a ré seja condenada no pagamento à autora da quantia de capital de € 67.898,60 (sessenta e sete mil, oitocentos e noventa e oito euros e sessenta cêntimos) acrescida de juros vencidos no montante de € 1.024,99 (mil e vinte e quatro euros e noventa e nove cêntimos) bem como de juros vincendos até integral cumprimento.
Para fundamentar a sua pretensão invoca, em síntese, que é beneficiária de uma garantia bancária à primeira solicitação, prestada pela ré por ordem da C., para garantia do integral cumprimento de um contrato de empreitada celebrado entre a autora e a referida C..
A C. cumpriu defeituosamente o contrato de empreitada e está insolvente, e impossibilitada de reparar os defeitos ou indemnizar.
A. autora interpelou a ré para pagar o valor das obras necessárias à reparação dos defeitos, ao abrigo da garantia, mas a ré nada pagou.
A ré contestou, invocando, em síntese, que a garantia caducou, que a reparação dos defeitos importa em valor muito inferior ao reclamado e que a autora aciona a garantia em abuso de direito.
Termina pedindo que a ação seja julgada não provada e improcedente, com a sua consequente absolvição do pedido.
Procedeu-se ao saneamento do processo, fixando-se os temas da prova.
Realizou-se o julgamento após o que se proferiu decisão que conluiu nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julgo a ação totalmente provada e procedente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de € 68.923,59 (sessenta e oito mil, novecentos e vinte e três euros, e cinquenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora às taxas aplicáveis aos atos comerciais, sobre o capital de € 67.898,60 (sessenta e sete mil, oitocentos e noventa e oito euros e sessenta cêntimos), desde a propositura da ação até integral pagamento.
Custas pela Ré.
Registe e notifique”.
Não se conformando, a ré apelou formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
“1. A sentença recorrida é nula por ter conhecido de questões que não podia tomar conhecimento, nos termos do art. 615º, n.º 1 alínea d) do Cl'C, 2. Consta da sentença recorrida que "Autora e C. tinham estipulado que a última entregaria à primeira uma garantia bancária autónoma, à primeira interpelação, do montante correspondente a 10% do preço da empreitada, que com a receção provisória da obra, se reduziria para 5% daquele preço (factos 5 e 7). Terá sido esta a ideia da dona da obra e da empreiteira aquando da celebração do contrato de empreitada. Tudo indica que, ulteriormente, alteraram esse acordo pois, quando a garantia foi prestada, em Março de 2010, já a obra tinha sido provisoriamente recebida havia pelo menos, seis meses." 3. Não foi alegado, nem feita qualquer prova, sobre qualquer alteração do contrato de empreitada pelo dono da obra e da empreiteira, pelo que não pode o tribunal recorrido concluir no sentido em que concluiu. 4. Certo é que consta dos factos assentes que dono da obra e empreiteira acordaram que com a receção provisória a garantia bancária se reduziria ao montante de 5% do preço da obra. 5. Aliás, os factos assentes constantes 5 e 7 são até contraditórios com o agora decidido pela sentença recorrida, pelo que a sentença é igualmente nula nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, alínea c) do CPC 6. Entende o tribunal recorrido que quando se trate de garantia bancária autónoma à primeira solicitação, o beneficiário da mesma fica dispensado de fazer prova do facto constitutivo do seu direito, mas tal dispensa não decorre da definição da garantia bancária autónoma à primeira solicitação. 7. A garantia bancária em causa na presente ação é uma garantia de boa execução, ou seja, destina-se a assegurar o cumprimento do contrato-base. 8. A referida garantia não é absoluta, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/10/2004, proe. 04B2883. 9. Mesmo na garantia bancária à primeira solicitação, a prova do incumprimento tem que ser feita. 10. A garantia bancária, como a dos presentes autos, que visa garantir o exato e pontual cumprimento das obrigações emergentes do contrato de empreitada de construção do edifício de escritórios K. pela C., está ligada a este contrato de empreitada, pelo que tem de se aferir se o contrato de empreitada não foi exato e pontualmente cumprido pela ordenadora. 11. Resulta da prova efetuada que, em finais de 2013 fruto de chuvas intensas que se fizeram sentir, o imóvel objeto da empreitada começou a deixar entrar água em quase todos os vãos das janelas, a evidenciar manchas e fingos nas faces interiores das paredes exteriores e fissuras e empolamentos nas faces exteriores. 12. Não resultou provado que os defeitos que ocorreram mais de 4 anos após a receção provisória fossem defeitos de construção, ou seja, que não cumprissem o estipulado no projeto de construção. 13. Termos em que, não tendo sido feita prova do incumprimento do contrato de empreitada pela C., não pode a Recorrente ser condenada no pagamento do valor garantido. 14. Pelo exposto, não podia a sentença recorrida condenar a Recorrente no pagamento de € 68.937,59, dado que não foi feita prova do incumprimento do contrato de empreitada, condição para que a garantia bancária pudesse ser honrada, visto ter sido emitida para garantir o exato e pontual cumprimento das obrigações emergentes do contrato de empreitada de construção do edifício de escritórios K.. 15. Mas mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede, sempre se teria de entender que com a receção provisória da obra, a garantia bancária se encontrava automaticamente reduzida ao valor de 5% do preço acordado. 16. Como resulta dos factos provados n.º 11, a receção provisória da obra ocorreu em Setembro de 2009. 17. Nos termos do contrato de empreitada que a garantia bancária visa garantir (facto provado n.º 7) "com a receção provisória da obra, o valor da caução seria reduzido para 5% do preço da empreitada" 18. Ora, como decorre do texto da garantia bancária, a Recorrente prestou garantia bancária destina a garantir o exato e pontual cumprimento das obrigações emergentes do contrato de empreitada de construção do edifício de escritórios K., pelo que foi prestada garantia bancária para garantir cumprimento deste contrato de empreitada e não qualquer outra obrigação. 19. Nestes termos, a garantia bancária apenas poderia garantir o valor de € 30.838,30 e não o valor de € 69.340,47. 20. A Recorrida sabia que com a receção provisória da obra a garantia estipulada pelas partes no contrato de empreitada se encontrava reduzida a 5% do preço da empreitada, pelo que a garantia bancária apenas poderia garantir o valor de € 30.838,30 e não o valor de € 69.340,47, como pretendido pela Recorrida. 21. O pagamento à 1 ª solicitação implica a obrigação de pagar ao beneficiário a indemnização objeto da garantia, não podendo ser-lhe oponíveis exceções reportadas à relação principal, salvo em casos determinados, designadamente se não existir já o direito a que se arroga o beneficiário ou se houver evidentes indícios de atuação de má-fé ou abuso de direito, como é amplamente entendido pela jurisprudência. 22. Termos em que ao exigir a totalidade do valor garantido, em 2014, a Recorrida atuou com manifesta má- fé, pelo que a recusa de pagamento pela Recorrente é legítima e justificada. 23.Assim, a recusa de pagamento pela Recorrente encontra-se justificada pela atuação abusiva da Recorrida, que pretendia o pagamento da garantia bancária por valor que sabia que ao abrigo do contrato de empreitada já não se encontrava abrangido. Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas. deve conceder-se provimento ao presente recurso, fazendo-se a costumada JUSTIÇA!”
Foram apresentadas contra-alegações.
A Meritíssima Juiz apreciou das nulidades de sentença invocadas, concluindo pela sua improcedência, conforme despacho de fls. 246.
Cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO.
A primeira instância deu por assentes os seguintes factos:
1. A autora é uma sociedade comercial cuja atividade se traduz no aluguer de bens imóveis. (1.º p.i.)
2. Em 6 de março de 2009, a autora celebrou, na qualidade de dona da obra, com a sociedade C. – Engenharia e Construção, S.A. um contrato de empreitada nos termos da qual esta última, na qualidade de empreiteira, se obrigou a construir um edifício de escritórios em Castanheira do Ribatejo, pelo preço global de € 616.766,00. (2.º p.i.)
3. Nos termos da cláusula 3.ª deste contrato, o preço da empreitada devia ser pago apenas depois da conclusão da obra e respetiva receção provisória (1.º cont.)
4. De acordo com a cláusula 4.ª, n.º 1, do mesmo contrato, a obra devia estar concluída até 31/03/2009. (2.º cont.)
5. Na cláusula 7.ª do contrato de empreitada, as partes estipularam que a C. entregaria à K. uma garantia autónoma, à primeira interpelação, de montante correspondente a 10% do preço, para caucionar o pontual cumprimento de todas as obrigações que para a C. resultassem do contrato e da lei, incluindo o pagamento de multas contratuais e indemnizações, e que vigoraria até à receção definitiva da obra (cl. 7.ª, n.º 1, do contrato de empreitada junto pela autora e que a ré aceita ter sido celebrado entre a autora e a C.).
6. De acordo com o disposto no n.º 5 da mesma cláusula 7.ª, a garantia aí prevista caducaria automaticamente no prazo de 5 anos após a data da receção provisória da obra (5.º cont.).
7. Nos termos da cláusula 7.ª, n.º 3, do contrato de empreitada, com a receção provisória da obra, o valor da caução seria reduzido para cinco por cento do preço da empreitada (13.º cont.).
8. Para garantia do bom e integral cumprimento das obrigações decorrentes para C. do referido contrato, e a pedido desta, a ré emitiu, em 15 de março de 2010, uma garantia bancária autónoma, on first demand, a favor da autora, correspondente à operação n.º 0083.015421.993, até ao montante de € 69.340,47 (sessenta e nove mil, trezentos e quarenta euros e quarenta e sete cêntimos) (3.º p.i.).
9. Nos termos da garantia emitida pela ré, o pagamento por parte desta à autora de montante até ao valor máximo da garantia seria efetuado na primeira solicitação por escrito, independentemente de qualquer decisão judicial ou outro facto e com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia, sem averiguação dos motivos do pedido, nem consideração dos respetivos fundamentos, ou oposição de qualquer exceção ou objeção (14 p.i.).
10. Ainda de acordo com o estabelecido na garantia, a mesma manter-se-ia válida até ao dia 24 de julho de 2014 (arts. 21 da p.i.).
11. Em setembro de 2009, a C. concluiu a obra de que foi encarregada e emitiu a última fatura, tendo a autora liquidado integralmente o preço acordado pela empreitada (4.º e 5.º p.i.).
12. Em finais de 2013, e na sequência de chuvas intensas que se faziam sentir ao tempo, o imóvel em causa começou a deixar entrar água em quase todos os vãos das janelas, a evidenciar manchas e fungos nas faces interiores das paredes exteriores, e fissuras e empolamentos nas faces exteriores, tendo sido elaborado um relatório provisório, por peritos, dos danos sofridos e das suas prováveis causas (6.º p.i.).
13. A C. tinha sido declarada insolvente por sentença proferida em 19/10/2011, no proc. 1420/11.0TYLSB do 1.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa (1.ª parte do 7.º p.i. e 20 cont.).
14. Em 7 de Fevereiro de 2014, a autora procedeu à notificação da C., na pessoa do seu Administrador de Insolvência, para proceder à reparação dos danos no prazo de 30 dias, informando que estavam orçamentados em € 22.754,24, tendo a Massa Insolvente da C. informado da impossibilidade de proceder às reparações solicitadas e necessárias, uma vez que se encontrava já em processo de liquidação decorrente da insolvência (2.ª parte do 7.º p.i. e 8.º p.i.).
15. Para averiguar o real volume e consequente valor das obras necessárias à correção das anomalias, a autora solicitou a uma empresa especializada – a AMR – Consultores e Peritos de Seguros, Lda. –, a realização de uma vistoria/peritagem ao imóvel a fim de averiguar e registar diversos tipos de anomalias verificadas no imóvel, bem como apurar a sua origem, tendo sido elaborado por esta empresa um relatório, em 4 de abril de 2014 (10.º p.i.).
16. Em 04/04/2014, o edifício evidenciava humidades nas paredes exteriores, com manchas, fungos e bolores nas faces interiores, e, nas faces exteriores, com fissuração generalizada, manchas de escorrências de sais de cálcio das fissuras e eflorescência de sais junto aos passeios.
17. A reparação das deformidades visíveis, com correção dos defeitos estruturais que as causavam, importava, em abril de 2014, em € 67.898,60 (12.º p.i.).
18. Por carta de 22 de abril de 2014, recebida pela ré a 24, a autora comunicou à ré que a C. havia incumprido com as obrigações emergentes do contrato cujo cumprimento estava garantido pela garantia, que havia necessidade de reparar defeitos orçamentados em € 67.898,60, que o Administrador da massa insolvente da C. tinha informado não existir possibilidade de a massa suportar a reparação dos defeitos, e, em consequência, interpelou a ré para o pagamento da referida quantia, fornecendo, na mesma carta, os dados da conta bancária da autora para efetivação da transferência de fundos (13.º p.i. e 7º cont.).
19. A ré não procedeu ao pagamento da garantia, no valor reclamado (15.º p.i.).
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635º e 639º do novo C.P.C. [ [1] ] – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, ponderando as conclusões de recurso, impõe-se apreciar:
- Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia;
- Da nulidade de sentença por contradição;
- Das exceções oponíveis ao autor (beneficiário) pela ré (garante);
2. A apelante aponta à sentença vício decorrente da Meritíssima Juiz ter conhecido de questão que não podia tomar conhecimento, incorrendo, pois, em nulidade (art. 615º, nº 1, alínea d) do C.P.C.).
A expressão “questões”, enunciada no referido preceito, reporta-se à pretensão formulada pela parte ou aos elementos inerentes ao pedido e à causa de pedir, de sorte que se tem entendido que apenas há excesso de pronúncia quando o tribunal decidida de questão que não devia conhecer e não quando aprecie qualquer argumento ou razão que as partes não enunciaram e relacionada com essa questão.
Para fundamentar a alegada nulidade a apelante critica o específico segmento de texto da sentença, que segue:
“Sabemos que no contrato de empreitada, celebrado em 06/03/2009, Autora e C. tinham estipulado que a última entregaria à primeira uma garantia autónoma, à primeira interpelação, de montante correspondente a 10% do preço da empreitada, que, com a receção provisória da obra, se reduziria para 5% daquele preço (factos 5 e 7). Terá sido esta a ideia da dona da obra e da empreiteira aquando da celebração do contrato de empreitada. Tudo indica que, ulteriormente, alteraram esse acordo pois, quando a garantia foi prestada, em março de 2010, já a obra tinha sido provisoriamente recebida havia, pelo menos, seis meses”.
Trata-se de passagem inscrita a propósito da análise feita quanto ao “valor máximo garantido quando a Autora reclamou o pagamento”, confundindo a apelante entre questões e argumentos ou raciocínios valorativos. Efetivamente, sendo esta a questão a decidir – tanto assim que é delimitada, em epígrafe, sob a alínea b) – o aludido segmento mais não é senão a análise feita pelo tribunal recorrido; assim, a crítica feita releva no âmbito da apreciação do mérito da sentença ou, mais precisamente, da fundamentação respetiva, e não em sede de averiguação de vício formal de nulidade, como infra melhor se verá.
O mesmo se diga relativamente à apontada nulidade por contradição entre a fundamentação de facto e a decisão, tendo por referência a factualidade enunciada sob os números 5 e 7 (art. 615º, nº1, alínea c), nulidade que é inexistente, relevando a questão suscitada pela apelante em sede de análise do mérito da sentença e não de reclamação por nulidade da mesma.
Improcedem as invocadas nulidades.
3. Não se discute a qualificação jurídica dos negócios em causa nos autos e aludidos na decisão recorrida: o contrato principal, que se reconduz a um contrato de empreitada, outorgado entre a autora (dono da obra) e a C. (empreiteira), documentado a fls. 10 a 16 dos autos e a que se reporta a factualidade dada por assente sob os números 2 a 7 (contrato subjacente ou contrato-base), com referência à garantia autónoma titulada pelo documento junto a fls. 17 e a que se reportam os factos dados por assentes sob os números 8 a 10, entendendo-se esta como o contrato celebrado entre o interessado – o mandante – e o garante, a favor de um terceiro – o garantido ou o beneficiário [ [2] ] [ [3] ]. Refira-se que o processo é omisso quanto ao contrato de cobertura celebrado entre o devedor/ordenante/garantido, desconhecendo-se quaisquer elementos alusivos ao mesmo.
No caso, ponderando o texto da garantia, que “é essencial para determinar o seu alcance”[ [4] ], e distinguindo entre os vários tipos de garantia autónoma, estamos perante garantia à primeira solicitação (on first demand), ou, usando a terminologia vertida no documento aludido, uma “[g]arantia bancária autónoma à primeira interpelação”. O que significa, e por contraposição às garantias autónomas simples, que o beneficiário não está vinculado a provar o incumprimento por parte do garantido bastando, para acionar a garantia e obrigar o banco ao pagamento do valor respetivo, a mera afirmação daquele facto. No caso, essa características esta claramente evidenciada na factualidade assente e enunciada sob os números 8 e 9.
A característica apontada, automaticidade, não se confunde, como a doutrina e jurisprudência vem assinalando, com outra característica, a autonomia; esta (autonomia) reporta-se à independência relativamente às demais relações, ponderando a apontada estrutura triangular (contrato de cobertura, entre o banco garante e o devedor/ordenante/garantido, o contrato-base, celebrado entre este e o credor beneficiário e o título de garantia emitido), considerando-se que o garante não pode opor ao beneficiário os meios de defesa que assistam ao devedor garantido, com base em factos ou circunstâncias que se prendem com o contrato base; a automaticidade, como se disse, tem que resultar do texto da garantia e prende-se com a apontada caraterística, isto é, a vinculação ao cumprimento da garantia por mera solicitação do beneficiário.
É certo que “[n]ormalmente, porém, a garantia exige que o garante, antes de efectuar qualquer pagamento, proceda à breve análise de determinados documentos: facturas, ordens de fornecimento, boletins de transporte ou de embarque. Tal exame não se confunde, porém, de modo algum, com um juízo de cumprimento ou de incumprimento da relação principal. As novas normas uniformes da Câmara de Comércio Internacional determinam que o garante examine todos os documentos especificados no texto da garantia com um cuidado razoável” [ [5] ].
Ponderando a função da garantia, estamos perante uma garantia de boa execução do contrato, usualmente associada a contratos de empreitada, como acontece no caso, particularmente aqueles que assumem alguma dimensão.
Feita esta síntese conclusiva, claramente se infere que, no caso em apreço, não tem qualquer cabimento a argumentação da ré entidade bancária quando, colocando o acento tónico no contrato de empreitada, afirma que “mesmo na garantia bancária à primeira solicitação, a prova do incumprimento tem que ser feita” (fls. 230 dos autos), pretendendo depois discutir se em concreto se verifica uma hipótese de cumprimento defeituosos da obra e concluindo em sentido negativo, invocando que “os alegados danos no imóvel” se ficaram a dever às “chuvas intensas que se fizeram sentir” no final de 2013.
Acrescente-se que nem sequer a factualidade assente – que não foi objeto de impugnação – suporta essa interpretação. Ou seja, a ré coloca-se, afinal, na posição do empreiteiro ordenante/garantido, pretendendo usar dos meios de defesa que só a este assistiriam, assim descaracterizando a garantia prestada, o que não pode admitir-se.
Registe-se que não se discute a orientação seguida no aresto que a apelante, nesta sede, enuncia, orientação a que facilmente se adere e que temos por adquirida. O ponto é que o acórdão do STJ a que a apelante faz referência [ [6] ], não é citado com propriedade, desde logo porque essa ação foi intentada pelo devedor/garantido/ordenante contra o beneficiário da garantia, não sendo o banco garante parte no processo, peticionando os autores que se declare inexistente o direito da ré a executar as garantias bancárias aí referidas e, por via disso, ordenar-se o levantamento do montante do depósito referido nessa petição inicial, a favor dos autores – o valor da garantia foi depositado nos autos de providência cautelar [ [7] ] – sendo que, como se disse, nem sequer se questiona a inteira justeza da orientação aí expressa [ [8] ].
Improcedem, pois, as conclusões de recurso (conclusões 6ª a 14ª inclusive).
4. Com referência ao valor garantido, lê-se na decisão recorrida:
“b) Do valor máximo garantido quando a Autora reclamou o pagamento
A Ré sustenta que após a receção provisória da obra, o valor da garantia teria sido reduzido a 5% do preço da empreitada.
Fá-lo, uma vez mais, com fundamento no contrato de empreitada a que é alheia e de cujas cláusulas não pode opor à Autora, pois a garantia é autónoma e o que vale entre as partes é apenas o que dela consta.
Sabemos que, no contrato de empreitada, celebrado em 06/03/2009, Autora e C. tinham estipulado que a última entregaria à primeira uma garantia autónoma, à primeira interpelação, de montante correspondente a 10% do preço da empreitada, que, com a receção provisória da obra, se reduziria para 5% daquele preço (factos 5 e 7). Terá sido esta a ideia da dona da obra e da empreiteira aquando da celebração do contrato de empreitada.
Tudo indica que, ulteriormente, alteraram esse acordo pois, quando a garantia foi prestada, em março de 2010, já a obra tinha sido provisoriamente recebida havia, pelo menos, seis meses.
Logo, se a C. tivesse entendido que a cláusula do contrato de empreitada se mantinha, teria dado ordem à ora Ré CGD para uma garantia de montante igual a 5% do preço da empreitada (ou seja, de € 30.838,30 (5% de € 616.766,00). Com certeza deu ordem para a emissão de uma garantia no valor de € 69.340,47, e foi por esta que pagou, e foi em função deste valor que a CGD se acautelou, pois de outro modo não a teria prestado.
A garantia prestada, conforme dela consta «autónoma, à primeira interpelação, até ao montante máximo de € 69.340,47» não prevê redução a qualquer percentagem do valor da empreitada a partir de qualquer momento”.
Discorda-se do raciocínio mas adere-se à solução propugnada pela primeira instância.
Não oferece dúvida que o garante pode opor ao beneficiário as exceções derivadas da própria relação de garantia, como acontece, por exemplo, quando se invoca que o beneficiário acionou a garantia fora do respetivo prazo, ou quando é solicitado valor superior ao garantido, sendo estas as hipóteses mais comuns – no caso, a ré invocou precisamente que o autor acionou a garantia após o termo da sua validade, mas não logrou provar a factualidade pertinente, nem sequer se discutindo essa matéria em sede de recurso.
O que se questiona é se o garante pode opor ao beneficiário determinadas exceções derivadas da sua relação com o garantido e/ou da relação entre o garantido e o beneficiário, sendo que se impõe uma apreciação muito cautelosa, sob pena de se perverter a ratio deste tipo de garantia das obrigações.
Como refere Meneses Cordeiro, “perante uma garantia autónoma à primeira solicitação, de nada servirá vir esgrimir com argumentos retirados do contrato principal: a garantia tem fins próprios, auto-suficientes, servindo, nas palavras de GALVÃO TELES, como um simples sucedâneo de um depósito em dinheiro. Mas não um equivalente perfeito, uma vez que, em casos de má fé manifesta, ela pode ser bloqueada” [ [9] ] [ [10] ] [ [11] ] [ [12] ].
A prática jurisprudencial vai igualmente no sentido de que a autonomia da garantia não é absoluta e que o garante pode opor ao beneficiário determinadas exceções, não fundadas nessa relação e assentes em factos relativos ao contrato base, sendo consensual que uma dessas hipótese ocorre quando o beneficiário, acionando a garantia, atua notória ou com manifesta com má-fé e de forma abusiva (art. 334º do Cód. Civil), impondo-se, casuisticamente, aferir da verificação desses pressupostos [ [13] ].
Recai, no entanto, sobre o demandado garante o ónus de alegação e prova dos pressupostos respetivos, devendo a entidade bancária especificar com precisão os factos em que suporta a recusa de pagamento; efetivamente, sabendo-se que a “garantia autónoma automática implica, simetricamente, à «maxima protecção» do credor beneficiário, um risco elevadíssimo para o sujeito que assume a posição de garante” [ [14] ], não pode a entidade bancária ignorar que a recusa em honrar o compromisso assumido só muito pontualmente se justifica, em casos de demarcada e inequívoca má fé do beneficiário.
No caso em apreço, a apelante concluiu que a autora, ao exigir a totalidade do valor garantido, em 2014, “atuou com manifesta má-fé pelo que a recusa de pagamento pela Recorrente é legítima e justificada” (22ª conclusão).
O contrato de empreitada foi outorgado em Março de 2009, a obra foi concluída em setembro de 2009, data em que a autora ultimou o pagamento do preço devido, e em 15 de março de 2010 a ré prestou a garantia bancária nº 0083.015421.993, válida até 24 de julho de 2014, sendo que a autora pede a condenação da ré no pagamento do valor de capital de 67.898,60€, valor este que se circunscreve na quantia garantida, que foi fixada “até ao montante de € 69.340,47”, correspondente a 10% do preço da empreitada [ [15] ].
Não se vislumbram razões para considerar que o pedido da autora excede o valor devido, atentos os estritos termos da garantia prestada, no contexto assinalado, que vincula a ré, parecendo-nos também evidente que não há factos que suportem afirmação de conduta abusiva da autora, mormente por via de qualquer enriquecimento injustificado, que é inexistente. Assim, é suposto que os edifícios corretamente construídos não sofram as deteriorações evidenciadas no prédio em causa, menos de cinco anos depois do terminus da construção, ainda que ocorram “chuvas intensas”, sendo que está provado – e não foi impugnado pela ré – que a reparação das deformidades visíveis importa em 67.898,60€, nos moldes indicados nos número12 a 17 dos factos assentes.
É certo que não é inteiramente percetível o valor da garantia, quando concatenado com algumas cláusulas da empreitada, mormente as cláusulas 6ª e 7ª. Assim, pela cláusula 7.ª a autora e a C. estipularam que a C. entregaria à autora uma garantia autónoma, à primeira interpelação, de montante correspondente a 10% do preço da empreitada, valor este que seria reduzido para 5% com a receção provisória da obra. As partes estipularam ainda que, finda a vistoria e no caso de a obra estar em condições de ser recebida seria lavrado auto de recepção provisória nos moldes constantes da cláusula 6ª, nº2.
Ora, no caso, nada se provou quanto à receção provisória da obra – foi dada resposta negativa à matéria da contestação, em sede de julgamento de facto, que a ré não impugnou –, sabendo-se apenas que a obra foi concluída em setembro de 2009 e que a autora ultimou o pagamento na mesma data. A afirmação constante da 16ª conclusão – “[c]omo resulta dos factos provados n.º 11, a receção provisória da obra ocorreu em Setembro de 2009” – não consubstancia a afirmação de um facto mas mera interpretação da apelante que, porque não se provou a data de receção provisória da obra ou sequer se ocorreu alguma “receção provisória”, reconduz a mesma, tout court, à data de conclusão da obra. Ora, pode até presumir-se que a obra foi entregue em setembro de 2009, uma vez que nessa data estava concluída e foi integralmente paga, mas não mais do que isso [ [16] ].
Assim, não se alcança inteiramente a razão pela qual, já depois da conclusão da obra e, obviamente, entrega da mesma, a ré emitiu e prestou uma garantia pelo valor de 10% e não de 5%, desconhecendo-se nomeadamente, qualquer elemento alusivo ao contrato de cobertura.
Mas essa incongruência não permite especular sobre eventual alteração do acordo (de empreitada), em sentido mais favorável à autora, nos termos apresentados pela Meritíssima Juiz, tratando-se de interpretação que não se mostra alicerçada nos factos provados e que, acrescente-se, é despicienda. Acrescente-se que do despacho em que a Meritíssima Juiz indeferiu a reclamação de nulidade de sentença resulta exatamente que a análise assim feita na sentença mais não constitui senão hipótese académica colocada pela Meritíssima Juiz sendo, nessa medida, impertinente [ [17] ].
O que não significa que, no contexto assinalado e pelas razões apontadas, se não chegue à mesma conclusão a que chegou a primeira instância, mas apenas porque a ré não apresentou qualquer razão válida para que não se atribua à autora um valor que se mostra contido na garantia – e que o texto da garantia postula –, provando-se, como se provou, que a empreitada foi deficientemente cumprida e que a garantia tinha por função, exatamente, assegurar ao beneficiário o correto e pontual cumprimento da obrigação do garantido.
Conclui-se que, ao contrário do que defende a apelante, a recusa de pagamento não se mostra justificada, impondo-se que a ré honre a garantia prestada.
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
Lisboa, 31 de maio de 2016
(Isabel Fonseca)
(Maria Adelaide Domingos)
(Eurico José Marques dos Reis)
[1]Aprovado pela Lei 41/2013 de 26/06, em vigor desde 1 de Setembro de 2013. [2]Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª edição, 2008, Almedina, Coimbra, p. 642.
[3]“O processo de formação do negócio de garantia que está na base da emissão do título respectivo tem estrutura complexa, triangular.
Decompõe-se, com efeito, em três relações distintas, a saber:
a) - um contrato base (no caso, de compra e venda, mas que pode ser, v.g., de empreitada, ou de fornecimento, etc), que constitui a relação principal, causal ou subjacente;
b) - um contrato de mandato, pelo qual o obrigado naquele primeiro contrato (na hipótese, ao pagamento do preço estipulado) incumbiu o garante (no caso, como em geral, um banco ), de prestar a garantia (neste caso, de pagamento) exigida pela contraparte; e, finalmente,
c) - o contrato de garantia pelo qual o garante, emitindo o competente título, se obrigou a pagar o montante convencionado”( acórdão do STJ de 30-01-2003, processo:02B4252 (Relator: Oliveira Barros), acessível in www.dgsi.pt.
[4]Meneses Cordeiro, obr. e loc. cit.
[5]Meneses Cordeiro, obr. e loc. cit. [6]Acórdão de 14-10-2004 Processo: 04B2883 (Relator: Araújo Barros), acessível in www.dgsi.pt.
[7]Lê-se no aresto: “Por último, é igualmente líquido que os bancos dadores daquelas garantias depositaram nos autos de providência cautelar nº 92/2002 (requerida pelos autores contra a ré em que aqueles pretendiam a abstenção por parte da ré de accionar e executar junto dos bancos as referidas garantias bancárias) os respectivos montantes, à ordem do M.mo Juiz da 12ª Vara Cível do Tribunal de Lisboa”.
[8]Lê-se nesse aresto (com referência, igualmente, a garantia bancária autónoma on first demand): “O garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembolsar o garante, também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor" (…).
Ademais, e apesar da natureza automática da garantia on first demand, a sua automaticidade não é absoluta, assistindo-se, actualmente a um movimento da sua relatividade, através da "admissibilidade do dever (sob pena de perder o direito de regresso contra o mandante) de oposição pelo garante ao beneficiário da excepção de fraude manifesta ou abuso evidente deste na execução da garantia, desde que o garante tenha em seu poder prova líquida e inequívoca dessa fraude ou abuso, ou sejam estes um facto notório", assim como da "admissibilidade da instauração pelo mandante de providências cautelares, urgentes e provisórias, em sede judicial, destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou do abuso evidente do beneficiário". (…)
Ora, é isto exactamente que os autores pretendem com a presente acção (que se desenrola apenas entre eles, ordenadores da garantia, e os recorridos, beneficiários). O que intentam - aliás na sequência da providência cautelar que requereram - é que o beneficiário se não aproveite da garantia, recebendo a soma pecuniária correspondente (ou que a devolva caso já a haja recebido) porquanto, segundo alegam, não ocorre qualquer situação (como se propõem demonstrar) que justifique que aquela garantia seja accionada. Em última análise, a sua intenção é evitar que a beneficiária da garantia a exija quando nenhuma razão válida existe para tal, em consequência, fazendo-o abusivamente.
É, assim, perfeitamente claro e possível o objecto da acção, não havendo, neste aspecto das relações entre os ordenadores da garantia e a beneficiária, qualquer motivo para tomar em consideração (salvo se os autores não provarem os fundamentos que invocam) a natureza automática da garantia bancária on first demand”. [9]Obr. cit., p. 644.
[10]Sublinhado nosso.
[11]Sobre a recusa da prestação pelo garante vide Miguel Brito Bastos, “[a] recusa lícita da prestação pelo garante na garantia autónoma «on first demand»”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Manuel Sérvulo Correia, III, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, (pp. 525-555). A propósito do exercício abusivo do crédito de garantia escreve o autor:
“Como a generalidade das posições jurídicas, o crédito de garantia do beneficiário está sujeito aos limites do art. 334º CC. Têm aqui particular relevância as situações em que a paralisação do beneficiário face ao garante se funda em factos relativos à relação entre aquele e o ordenante: fala-se – na esteira de Canaris – de um aproveitamento das excepções da relação de valuta por força do abuso de direito (…)
Não significa isto que sempre que, na relação de valuta, o ordenante puder opor qualquer excepção ao beneficiário, a solicitação por este do pagamento ao garante seja abusiva – o que equivaleria a acabar com a independência da obrigação de garantia face à obrigação de valuta –, sendo antes necessário que a perturbação da relação de valuta seja suficientemente grave para que a solicitação consubstancie uma violação da boa fé ou dos bons costumes. Pense-se assim em situações nas quais, não se excluindo a anulação do contrato de base do âmbito dos riscos assumidos pelo garante, esse contrato é anulado por dolo ou coacção do beneficiário ou nas situações em que, declarando séria e definitivamente que não pretende cumprir as suas obrigações da relação de valuta, o beneficiário solicita ao garante a execução da garantia (…).
Grande parte da discussão doutrinária sobre a recusa da prestação pelo garante com fundamento no carácter abusivo da solicitação pelo beneficiário centra-se na necessidade do carácter claro ou manifesto desse abuso (…). Essa discussão é, porém, sempre travada em torno da automaticidade da garantia, o que demonstra a correcta intuição de que não se trata de um limite ao exercício do crédito de garantia próprio sensu, mas ao direito decorrente da cláusula “solve et repete”” (p. 540).
[12]Ainda sobre as hipóteses em que tem sido afirmada a possibilidade do garante recusar a soma objeto da garantia vide Mónica Jardim, A Garantia Autónoma, Almedina, 2002, Coimbra, pp. 261-312. Com referência à possibilidade de recursa do garante com fundamento em factos referentes ao contrato base, refere a autora que “o garante pode recusar a soma objecto da garantia, sempre que:
a) O contrato base seja contrário à ordem pública ou aos bons costumes do país do ordenamento jurídico competente para regular o contrato de garantia. (…).
b) A prova líquida da fraude ou de abuso de direito seja plenamente possível na altura da solicitação, sem necessidade de mais diligências. É o que ocorre, por exemplo, quando: o beneficiário solicita a soma objecto da garantia apesar do incumprimento do contrato de base lhe ser imputável de acordo com a prova pronta e inequívoca em poder do banco; o beneficiário solicita a entrega da soma objecto da garantia tendo o banco em seu poder prova pronta e líquida do cumprimento do contrato base por parte do exportador; ocorre a solicitação, não obstante o contrato base ser inválido de acordo com decisão judicial definitiva. (…).
c) Ocorra uma modificação do contrato-base, sem que o garante seja consultado, que comporte uma alteração substancial dos riscos por si assumidos.
Sempre que a modificação do contrato base determine a alteração dos pressupostos de funcionamento da garantia relativos ao resultado garantido, determina também a alteração dos riscos inerentes à obrigação assumida pelo garante e, não tendo este sido consultado, pode considerar-se desvinculado (…).
d) Ocorra cessão da posição contratual detida no contrato base pelo exportador/devedor, pois as garantias prestadas por terceiro não se mantêm, a não ser que o autor as queira renovar (…).
e) Ocorra a cessão do crédito derivado do contrato base, sem que ocorra a cessão do direito de garantia por falta do consentimento do garante.
Afirmamos a possibilidade de recusa nesta hipótese, uma vez que defendemos a intransferibilidade ex lege do direito de garantia aquando da cessão do crédito derivado do contrato base. Consideramos indispensável, para a cessão do direito de garantia, o acordo do garante na operação económica e entendemos que, na ausência de tal acordo a garantia se extingue” (pp. 277-279). [13]Por todos, cfr. o ac. STJ de 06-03-2014, processo 20900/01.0TVLSB.L1.S1 (Relator: Silva Gonçalves), acessível in www.dgsi.pt. Lê-se aí:
“Convenhamos, porém, que, no caso de ser prestada uma garantia “on first demand” há-de aceitar-se a existência de um limite ao modo como há-de processar-se o seu cumprimento e cuja violação implicará um desrespeito aos princípios basilares da ordem jurídica portuguesa; e, assim sendo, neste contexto o garante deve poder recusar o pagamento se alcançar provar a manifesta improcedência do pedido, juízo que também é acompanhado por outros tratadistas (Pedro Romano Martinez e Pedro Fuseta da Ponte, Garantias do Cumprimento, pág. 79; Calvão da Silva, Garantias Acessórias e Garantias Autónomas, pág. 343; Dekeuwer-Défassez, Droit Bancaire, pág.101; Duarte Pinheiro, Garantia Bancária Autónoma, pág. 450).
A este propósito lembramos que o Banco pode ainda opor-se à pretensão deduzida pelo beneficiário deste pacto, não pagando a garantia, se vier a demonstrar-se que a atitude do beneficiário, ao solicitar a garantia, constituiu uma situação líquida e inequívoca da má fé patente, de fraude evidente, clara, sem contestação, a tal ponto que o abuso do beneficiário fere a vista... (Prof. Dr. Mário J. Almeida Costa e Dr. António Pinto Furtado; Garantias Bancárias; C. J., XI, 1986, 5 pág. 21).
Esta perceção, vincadamente limitativa, que a doutrina vem delineando sobre a restrição que tem de andar ligada à rejeição do cumprimento desta destacada garantia, também vem sendo acolhida por este Supremo Tribunal de Justiça [1] - sob pena de se frustrar o escopo das garantias à primeira solicitação que só viriam a ser pagas após longa controvérsia, quando existem precisamente para evitar dilações, deve ser-se muito restritivo e exigente na demonstração da quebra pelo beneficiário dos deveres acessórios de conduta, como a boa fé” (Ac. STJ de 12-9-06 (relatado pelo Ex. mo Cons. Dr. Sebastião Povoas); por via da autonomia, o garante à primeira solicitação deve pagar não podendo, salvo em casos excepcionais, reportar-se ao contrato-base para recusar o pagamento (Ac. STJ de 20.03.2012 (relatado pelo Ex. mo Cons. Dr. Fonseca Ramos) (…)”. [14]Miguel Brito Bastos, obr e loc. cit., pp. 541-542.
[15]Sublinhado nosso.
[16]A lei civil não distingue entre recepção provisória e definitiva da obra, tratando-se no entanto de conceitos trabalhados no domínio da contratação pública (cfr. o art. 395º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Dec. Lei nº 18/2008 de 29 de janeiro).
[17]Lê-se nesse despacho: “Apreciando e decidindo.
É certo que ninguém alegou ou provou ter havido uma alteração ao contrato de empreitada.
Quando afirmo na fundamentação de direito da sentença «Tudo indica que, ulteriormente, alteraram esse acordo pois, quando a garantia foi prestada, em março de 2010, já a obra tinha sido provisoriamente recebida havia, pelo menos, seis meses», não estou a dar como provado esse facto (tanto que não consta do elenco dos factos), estou a dizer que é possível que isso tenha acontecido.
Se sucedeu ou não, é irrelevante, uma vez que a Ré não pode, a este respeito, aproveitar-se do estipulado entre a Autora e a C. no contrato de empreitada, tendo simplesmente que respeitar a garantia que prestou e que, por certo, lhe foi encomendada pela C..
Não há, portanto, excesso de pronúncia, nem tão-pouco há no caso (nem é suscetível de haver em abstrato) contradição entre factos provados e facto que se coloca como hipótese na argumentação de direito, mas cuja verificação é irrelevante para o desfecho da causa. Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no art. 615 do CPC, a contrario sensu, julgo improcedente a arguida nulidade”.