SEGURO AUTOMÓVEL
RESPONSABILIDADE CIVIL
TRACTOR AGRÍCOLA
MÁQUINA INDUSTRIAL
Sumário

- São abrangidos pelo regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel acidentes em que intervêm tractores ou máquinas agrícolas ou industriais, determinando riscos causalmente ligados ao funcionamento do veículo enquanto tal.

Texto Integral



Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


I – E... SA, intentou acção declarativa de condenação, com pedido de citação urgente, contra Companhia de Seguros ..., e A..., pedindo a condenação dos réus em € 7.011,14 (sete mil e onze euros e catorze cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos, desde a citação.
Alegou que, o 2.º Réu conduzia um tractor agrícola e embateu num poste de média tensão destruindo-o bem como o poste adjacente e as linhas de condução de energia eléctrica, causando prejuízos no valor global de € 7.011,14 (sete mil e onze euros e catorze cêntimos). A responsabilidade civil emergente de acidentes de viação do referido veículo encontrava-se transferida para a 1.ª Ré.
Pessoal e regularmente citados, vieram os Réus contestar. O réu A.... alegou a sua ilegitimidade para a causa, em decorrência dos danos emergentes da circulação do tractor encontravam-se cobertos por seguro. Por outro lado, excepcionou a prescrição do direito indemnizatório de que a Autora se arroga, alegando que à data em que foi citado já haviam decorrido mais de 3 anos sobre a data dos factos subjacentes ao pedido formulado. Além disso, impugnou por desconhecimento os danos alegados pela Autora. Concluiu pedindo a absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, a sua absolvição do pedido.
A companhia de seguros ..., excepcionou a sua ilegitimidade para a causa, alegando que o seguro de responsabilidade civil celebrado para o veículo em apreço não abarca a cobertura dos danos peticionados. Por outro lado, defendeu que o contrato de seguro é nulo, sustentando que os danos foram causados por um reboque, serviço que o 2.º Réu expressamente declarou que o veículo não fazia, pelo que prestou declarações inexactas, o que é determinante da nulidade do contrato de seguro. Além disso, impugnou, por desconhecimento, a dinâmica do acidente e os danos invocados, alegando ainda que a Autora concorreu de forma grave para a sua ocorrência, uma vez que por imposição legal o poste deveria estar circundado por uma área, cerca, vedação ou muro de protecção que impedisse a aproximação de pessoas, animais ou máquinas, assim impedindo a produção do acidente. Terminou pedindo a absolvição do pedido.
Após a selecção da matéria de facto e conhecimento das excepções invocadas procedeu-se a julgamento, a acção foi julgada procedente e condenou a ré “Companhia de Seguros ...” a pagar à Autora E... S.A. a quantia de € 7.011,14 (sete mil e onze euros e catorze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vincendos contabilizados desde a citação até ao efectivo e integral pagamento. E absolveu o réu A... do pedido contra si formulado.
Não se conformando com a decisão interpôs recurso a ré e nas suas alegações concluiu:
1.ª Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, que correu seus termos na Comarca dos Açores – Inst. Local – Secção Cível – J2, sob o n.º 758/11.1TBAGH e que julgou procedente o pedido formulado pela A. e ora recorrida e consequentemente condenou a Recorrente a pagar à A. ora recorrida a quantia de € 7.011,14 (sete mil e onze euros e catorze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vincendos contabilizados desde a citação até ao efectivo e integral pagamento.
2.ª Salvo o devido respeito, a recorrente não se pôde conformar com a douta decisão recorrida, porquanto o Tribunal a quo procedeu a uma inadequada apreciação da prova produzida em julgamento, errando no julgamento e na fixação da matéria de facto. Para além de tudo isso, o tribunal errou na interpretação e aplicação do direito.
3.ª O ponto concreto da matéria de facto que a recorrente considera erroneamente julgados é o seis da matéria de facto dada como provada “ (Como causa directa e necessária do embate, a Autora teve que recorrer aos serviços de um empreiteiro, tendo despendido com materiais, mão-de-obra, utilização de viaturas e deslocações, tendentes à reparação dos estragos acima identificados, a quantia global de € 7.011,14 (sete mil e onze euros e catorze cêntimos).
4.ª As Concretas provas que fundamentam uma decisão sobre a matéria de facto (ponto n.º 6) diversa da defendida pela decisão recorrida e que se considera erroneamente julgada são os depoimentos das testemunhas F... e E... que se encontram gravados no sistema citius em uso no tribunal a quo e que se passam a identificar: 00:00:01 Testemunha F... 30-09-2015 12:19:55 00:28:43 Fim Gravação 30-09-2015 12:48:38 00:00:00 Início Gravação 30-09-2015 12:48:39
7- Ora em face desses depoimentos que foram aqui transcritos, jamais poderia a senhora juíza considerar como provados os valores dos danos fixados na sentença em ponto 6. Da matéria dada como provada.
8- Os documentos que a senhora juíza alicerçou a sua convicção encontram-se impugnados pelos RR., a sua emissão, os seus valores, quer em quantidade quer em preços unitários não foram confirmados pelas testemunhas F... e E..., que os desconheciam.
9.ª Dos depoimentos das testemunhas que a sentença socorrida se socorreu para dar como provado o ponto 6 da matéria dada como provada (o montante dos prejuízos) resulta claramente que a meritíssima julgadora violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 483.º, 494.º e 566.º, n.º 2 e 3 do C. Civil.
10.ª Na realidade, dos depoimentos transcritos e prestados pelas referidas testemunhas resulta que os valores fixados na sentença não decorreram dos danos efectivamente causados pelo ilícito que deu causa ao acidente, mas sim de uma actividade de actualização e melhoramento da rede eléctrica que nada teve que ver com o acidente e que, independentemente do acidente ocorreria por necessidades de segurança e de melhoramente da rede. De facto, as duas testemunhas referiram que a instalação afectada pelo acidente causador dos danos estava muito antiquada e que há muito não era objecto de reparação e conservação e que, independentemente da existência ou não do acidente que se faria a substituição das instalações. Mais, que as peças substituídas não se encontravam inutilizadas, mas necessitavam de uma actualização e melhoria.
11.ª Ora o artigo 483.º, n.º 1, do C. Civil refere expressamente que a imposição da reparação abrange apenas os danos resultantes da violação e o artigo 494.º do mesmo diploma consagra que, em face das circunstâncias do caso, haverá limitação das responsabilidades no caso de mera culpa. E aqui a circunstância é o facto de a própria EDA ter feito uma actualização e melhoramento da linha que se encontrava já programada e não uma mera reparação.
12.ª Por último, o artigo 566.º, n.º 2 e 3 do C.Civil impõe-se como limite da indemnização o montante apurado entre a situação do lesado antes da violação e depois da violação. Não se sabendo qual é essa situação, dever-se-ia ter aplicado critérios de equidade.
13.ª A correcta interpretação e aplicação destes preceitos imporiam ou a consideração de que não se encontrava provada o montante dos danos, ou, pelo menos, a sua redução a valores fixados pela equidade.
14.ª O seguro de responsabilidade civil automóvel não cobre, de acordo com o disposto no n.º 4 e 1 do artigo 4.º do D.L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto, a situações em que o veículo se encontre em funções meramente agrícolas ou industriais e, por sua vez, nos termos do artigo 2.º do Código da Estrada o acidente a que se refere os presentes autos não é um acidente de viação.
15.ª Entendeu a senhora julgadora que existia semelhança entre a situação dos autos de processo 758/11.1TBAGH e a situação tratada no Acórdão do TJUE (proferido em reenvio prejudicial) no caso Vnuk, de 04/09/2014, e, como tal, deve-se seguir o entendimento nele sufragado de que houve aqui ‘circulação de veículo’.
16.ª Mas a verdade é que não há. Na realidade, quem lê a matéria dada como provada, verifica que o que o tractor estava a fazer não era circular, mas sim a servir como uma máquina meramente agrícola como resulta do ponto 2 da matéria de facto dada como provada ( “Pelas 9:00 horas do dia 22 de Maio de 2008, no lugar de Fajã, freguesia da Serreta, o 2.º Réu, quando se encontrava a conduzir o tractor agrícola de marca “John Deere”, modelo “M 610-A”, com a matrícula 48-29-FH, embateu com o mesmo num poste de média tensão, propriedade da Autora, sito no interior de um prédio rústico composto por terra lavradia e também do ponto 3 da matéria de facto provada (“o 2.º Réu encontrava-se no local a realizar trabalhos agrícolas com o tractor, mais concretamente de apanha de erva, circulando com uma alfaia atrelada ao veículo”.
17.ª No caso do acórdão do TJUE o tractor não estava a laborar, mas sim a circular mais concretamente: numa manobra de arrumação de um “um tractor com reboque num celeiro”.
18.ª A sentença recorrida violou abertamente por erro de interpretação e aplicação o disposto no n.º 4 e 1 do artigo 4.º do D.L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto e no artigo 2.º do Código da Estrada. A correcta interpretação dessas normas imporiam a conclusão que o presente acidente se encontra excluída da cobertura da apólice que legitima a intervenção da recorrente nos presentes autos e a sua absolvição do pedido formulado e em que a R, foi condenada.
Deve ser julgado procedente o recurso e revogada a decisão recorrida e substituída por outra que absolva a ré ora recorrente do pedido
Factos
1) A Autora exerce a actividade de produção, aquisição, transporte, distribuição e venda de energia eléctrica, sendo a concessionária do transporte e energia eléctrica na Região Autónoma dos Açores, concessão que exerce em regime de serviço público.
2) Pelas 9:00 horas do dia 22 de Maio de 2008, no lugar de Fajã, freguesia da Serreta, o 2.º Réu, quando se encontrava a conduzir o tractor agrícola de marca “John Deere”, modelo “M 610-A”, com a matrícula 48-29-FH, embateu com o mesmo num poste de média tensão, propriedade da Autora, sito no interior de um prédio rústico composto por terra lavradia.
3) O 2.º Réu encontrava-se no local a realizar trabalhos agrícolas com o tractor, mais concretamente de apanha de erva, circulando com uma alfaia atrelada ao veículo.
4) O tractor agrícola de matrícula 48-29-FH pertence ao 2.º Réu, A...
5) O embate provocou a queda do mencionado poste, que ficou destruído, bem como a destruição do poste adjacente e o rebentamento das linhas de condução de energia eléctrica, também propriedade da Autora.
6) Como causa directa e necessária do embate, a Autora teve que recorrer aos serviços de um empreiteiro, tendo despendido com materiais, mão-de-obra, utilização de viaturas e deslocações, tendentes à reparação dos estragos acima identificados, a quantia global de € 7.011,14 (sete mil e onze euros e catorze cêntimos).
7) O 2.º Réu, A..., transferiu a responsabilidade civil obrigatória contra terceiros emergente de acidentes de viação para a 1.ª Ré, Companhia de Seguros ... através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 750911999, com início em 27 de Outubro de 2005 e duração de um ano, renovável por um ano e seguintes, sendo o capital mínimo de cobertura de € 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil euros).
8) Do documento que titula as “CONDIÇÕES PARTICULARES” da apólice n.º 750911999 consta, designadamente o seguinte:
“Produto: AUTO Tradicional
Condições Gerais: N.º 10 do ramo automóvel
(…)
Risco Seguro:
Tipo Tractor Agrícola com Matrícula
Marca/Modelo/Versão JOHN DEERE M 610-A
Matrícula 48-29-FH
Condutor Habitual A...
Não há cobertura de extras para este risco.
Declarações e Cláusulas Particulares
O veículo seguro não faz serviço de reboque. (…)”.
9) Em 23 de Maio de 2008 a Autora remeteu à 1.ª Ré, via fax, escrito designadamente com o seguinte teor:
“Assunto: acidente tractor agrícola – derrube de dois postes
Pelas 09:00 horas do dia 22-05-2008, no lugar da Fajã, freguesia da Serreta, um tractor agrícola de matrícula 48-29-FH propriedade de A..., residente ao Pico n.º 54, freguesia da Serreta, concelho de Angra do Heroísmo, conduzido pelo próprio, embateu num poste de média tensão, tendo a queda do mesmo provocado a ruptura de outro poste e o rebentamento das linhas.
Para além da interrupção de energia, este acidente provocou prejuízos que após a reparação em curso, serão contabilizados e enviados para a vossa companhia, para ressarcimento da EDA através da apólice 750911999.”.
10) A 1.ª Ré remeteu à Autora escrito designadamente com o seguinte teor:
“Assunto: Acidente de viação ocorrido em 22-05-2008
Exmos. Senhores,
Com referência ao acidente acima mencionado, confirmamos a recepção da vossa reclamação de 26/05/2008, que mereceu a nossa melhor atenção.
Concluída a instrução do nosso processo, cumpre-nos informar V. Exas. que os danos provocados pelo nosso Segurado ocorreram em consequência de trabalhos de laboração, o que significa que não estamos perante um acidente de viação. Nestas circunstâncias, não se encontram preenchidos os pressupostos necessários ao accionamento do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, previsto no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
Face ao exposto, esta Seguradora declina toda e qualquer responsabilidade pelos prejuízos emergentes do referido acidente.”.
11) Perante tal comunicação, a Autora emitiu nova factura no dia 15 de Julho de 2008, sob o n.º 108400529, remetendo-a ao 2.º Réu.
12) Perante a não liquidação da factura e a inexistência de qualquer resposta, em 22 de Dezembro de 2008 a Autora emitiu e remeteu ao 2.º Réu carta designadamente com o seguinte teor:
“Assunto: Interpelação
Ponta Delgada, 22 de Dezembro de 2
Exmo. Senhor,
O meu escritório representa a E... S.A.
Como é do seu conhecimento, tem V. Exa. pendente perante a nossa constituinte, factura n.º 108000928, emitida a 15/07/2008 e vencida a 13/09/2008, no valor de € 7.011,14 (sete mil e onze euros e catorze cêntimos), referente a um acidente ocorrido a 22/05/08 no lugar da Fajã, Freguesia da Serreta, Concelho de Angra do Heroísmo.
Tal acidente foi provocado por um tractor agrícola com a matrícula 48-29-FH, conduzido por V. Exa., que embateu num poste de iluminação pública que se encontrava no local, tendo a queda do mesmo provocado a ruptura de outro poste e o rebentamento de linhas, todos propriedade da nossa constituinte.
Em consequência do acidente a nossa constituinte teve de substituir os referidos equipamentos, tendo despendido para o efeito a quantia supra mencionada.
Pelo exposto, solicita-se a V. Exas. a liquidação da quantia em dívida, no valor de € 7.011,14 (sete mil e onze euros e catorze cêntimos), no prazo máximo de oito dias a contar da recepção da presente comunicação. Caso contrário, e a nosso pesar, será instaurada a competente acção judicial para cobrança coerciva, acrescida de custas e juros legais, bem como de todos os incómodos inerentes a este tipo de procedimentos.”.
13) A presente acção judicial deu entrada em juízo no dia 17/05/2011.
14) O 2.º Réu foi citado para os termos da presente acção judicial em 23/05/2011.
15) No formulário da petição inicial a Autora formulou pedido de citação urgente.
16) Por despacho de 18/05/2011, foi a Autora convidada a alegar os motivos que fundamentavam o pedido de citação urgente, ao que aquela correspondeu em 19/05/2011, tendo nessa mesma data sido proferido despacho a determinar a citação prévia.
17) O poste de electricidade em que o 2.º Réu embateu não se encontrava circundado por uma área, cerca, vedação ou muro de protecção.
Houve contra alegações defendendo a manutenção da decisão
Corridos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento
II – Apreciando
A apelante não aceita a decisão pediu a revogação, após a alteração da matéria de facto. Podemos adiantar que nenhuma razão lhe assiste.
1.1 Alteração da matéria de facto
Vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (art. 607/4 do cpc), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
De acordo com este princípio, que se contrapõe ao princípio de prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas. Acresce que o princípio da livre apreciação das provas só cede perante situações de prova legal, que fundamentalmente se verificam nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais. No domínio da prova testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação das provas - art. 396º do CC - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto - art. 607 - sem embargo, naturalmente, do dever de as analisar criticamente e especificar os fundamentos decisivos para a convicção adquirida - art. 607/5 do CPC.
O art. 6 tinha a seguinte redacção: Como causa directa e necessária do embate, a autora teve que recorrer aos serviços de um empreiteiro, tendo despendido com materiais, mão-de-obra, utilização de viaturas e deslocações, tendentes à reparação dos estragos acima identificados, a quantia global de € 7.011,14 (sete mil e onze euros e catorze cêntimos).
Apoia a recorrente a sua pretensão no depoimento das testemunhas F... e E..., sem que, no entanto, transcreva a totalidade dos respectivos depoimentos. Na fundamentação, o tribunal relativamente a este facto levou em consideração a ficha da ocorrência (fls. 19-20); despesas de fls. 21 e 22; factura emitida que consta de fls. 23 e 33; autos de medição de fls. 24 a 29 testemunhas F..., E..., E..., D... e P.... Ouvidos os depoimentos, não colhe a sua argumentação de que a substituição dos componentes não existindo os que lá estavam teriam de ser substituídos pelos que lhe sucederam. Nem altera o facto de a rede estar velha e precisar de ser substituída. Se não tivesse sido danificada seguramente que não se impunha a sua substituição naquelas condições de emergência e naquela data. Foi o embate que provocou os danos na rede eléctrica e o derrube dos postes. É verdade que tais componentes podiam estar, ainda hoje, em funcionamento, apesar de estarem velhos e a necessitar remodelação. Não havendo no mercado material igual, têm de ser aplicadas as componentes que existem.
Não procede a requerida alteração da matéria de facto.
1.2- O acidente ocorreu no dia 22 de Maio de 2008 e o contrato foi celebrado em 27 de Outubro de 2005. O seguro do tractor agrícola com matricula 48-29-FH, remete para o seguro obrigatório.
No contrato de seguro constava como cláusulas de exclusão: 1- o veículo seguro não faz serviço de reboque; 2- nem transporta materiais perigosos; 3- nem transportes internacionais. A apelante defendeu a nulidade do contrato de seguro, uma vez que estava a fazer a ser utilizado como reboque o que era expressamente proibido pelo contrato. O significado de reboque é a acção ou efeito de rebocar. Tracção de um veículo por outro. Veículo próprio para arrastar outro avariado, acidentado, ou que se quer deslocar à força, como por exemplo os que estão estacionados em local proibido.
O réu, A..., transferiu a responsabilidade civil obrigatória contra terceiros emergente de acidentes de viação para a 1.ª Ré, Companhia de Seguros ..., através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 750911999, com início em 27 de Outubro de 2005 e duração de um ano, renovável por um ano e seguintes, sendo o capital mínimo de cobertura de € 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil euros).
No Decreto-Lei – 291/2007 o art. 4 define a obrigação de seguro obrigatório no art. 4. e nº 4 a exclusão
1 — Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar -se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto -lei.
4 — A obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.
O primeiro objectivo da obrigatoriedade do seguro automóvel é a protecção do lesado, o que justifica uma interpretação do âmbito de aplicação conforme com essa mesma protecção. “A obrigatoriedade do seguro é estabelecida no interesse de terceiros (vítimas do acidente ou donos das coisas transportadas) e não do detentor ou condutor do automóvel (art. 7º, 8º e 10º, 2)”, escreveu Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., Coimbra, 2000, pág. 710, enunciando os pontos fundamentais do Decreto-Lei nº 522/85.
Na alegação a apelante defendeu que uma alfaia agrícola é um atrelado. Estava na altura a ser utilizado nas actividades agrícola. Quando o tractor lavra, tem uma alfaia, que é adaptada à tarefa que quer realizar. No caso vertente não estava circular com reboque. O reboque como se disse significa a acção ou efeito de rebocar. Tracção de um veículo por outro. O veículo assim conduzido próprio para arrastar outro avariado, acidentado, ou que se quer deslocar à força, como por exemplo os que estão estacionados em local proibido. Ou seja, não podem ser consideradas como reboque as alfaias para lavrar semear cortar e outras. A questão colocada é saber se o veículo ao causar o dano estava abrangido pela exclusão invocada.
Esta matéria tem sido muito debatida como a decisão impugnada dá conta. O Ac. do Trib. de Justiça da União Europeia (TJUE), de 4-9-14, 3ª Secção, proferido no âmbito do reenvio prejudicial nº C-162/13 (http://curia.europa.eu/juris...) que visou clarificar uma dúvida suscitada em torno do conceito de “circulação de veículos”, mais concretamente se o regime do seguro de responsabilidade civil automóvel abarcaria ou não a utilização de um tractor agrícola no terreiro de uma quinta, numa ocasião em que realizava uma manobra para colocar o respectivo reboque num celeiro. Refere-se no aludido acórdão que os conceitos como “acidente”, “sinistro”, “circulação” ou “utilização de veículos”, “devem ser interpretadas de modo autónomo e uniforme em toda a UE, tendo em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra”. Depois de assinalar alguns segmentos de diversas Directivas, concluiu que um tractor com reboque ainda se inscreve na categoria de “veículos” a que, em abstracto, se destina o seguro obrigatório de responsabilidade civil. Nesta sede, ponderou que o facto de o tractor ser utilizado como máquina agrícola não interfere naquela inclusão, desde que, ao abrigo do art. 4º da 1ª Directiva, essa espécie de veículos não tenha sido excluída pelo respectivo Estado-Membro, em Portugal a exclusão restringe-se aos veículos referidos no art. 4º, nº2, do Dec. Lei nº 291/07, nos termos do qual estão isentos do regime do seguro automóvel as “máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula” (“agriculture machines not subject to matriculation”, em http://ec.europa.eu/finance/insurance/docs/motor/list-exempt-5th- dir_en.pdf).
TJUE concluiu no mencionado acórdão que o conceito de “circulação de veículos” adoptado nas Directivas (maxime no art. 3º, nº 1, da Primeira Directiva) “abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo”, podendo, assim, “ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro”.
Na jurisprudência tem-se decidido de forma uniforme nesse sentido. No Ac. de 30-10-08, em www.dgsi.pt (e CJSTJ, tomo III, pág. 104), para concluir que “está abrangido pelo regime seguro obrigatório automóvel o acidente no qual uma pessoa é atingida por uma peça que caiu duma máquina retroescavadora destinada à construção civil que seguia para um terreno onde iria ser usada na preparação do solo para construção duma casa”. Invocou ainda o Ac. do STJ, de 23-11-06, em www.dgsi.pt, onde se considerou que “está abrangido pelo seguro obrigatório um acidente em que uma máquina se desloca para trás e para a frente em terraplanagem de ampliação dum caminho público e, num desses movimentos, colhe um menor”.
No mesmo sentido o Ac. do STJ, de 7-11-06, em www.dgsi.pt, com uma situação que envolveu uma “retroescavadora que não se encontrava na sua função específica de escavação, antes transitava pela via pública, enquanto veículo circulante, com os riscos de circulação inerentes ao comum dos veículos terrestres a motor”. Isto “não obstante a máquina circulasse de um local de trabalho para outro local de trabalho, de uma margem para a outra do rio a fim de prosseguir os trabalhos de limpeza que acabara de concluir numa delas e tivesse de passar pelo local do acidente para aceder à outra margem, pois tal situação não se distingue de outra em que se termina um trabalho e se circula, pela via pública, até ao local onde se vai dar início a um novo trabalho ou se vai estacionar a máquina”.
Também no Ac. do STJ, de 25-10-12, em www.dgsi.pt, se considerou “acidente de viação aquele que envolveu uma pá escavadora que, não se encontrava na sua função específica de escavação, antes transitava, como veículo circulante, pela via pública”. Conclusão que não suscitou qualquer polémica no Ac. do STJ, de 31-10-06 (www.dgsi.pt), sobre um acidente que envolveu um cilindro de compactação nas mesmas circunstâncias.
No Ac. do STJ, de 8-5-13, em www.dgsi.pt, a qualificação de um tractor como veículo de circulação terrestre, actuando em local não aberto à circulação, em trabalhos agrícolas, foi feita no âmbito da definição da responsabilidade civil, nos termos e para efeitos do art. 503º do CC.
No Ac. da R.C., de 10-3-15, acessível através de www.dgsi.pt, refere que:
“1. O atropelamento de um peão quando uma empilhadora executava uma manobra de marcha atrás, no espaço exterior circundante de um armazém, onde se realizavam operações de carga e descarga e considerado via pública, deve considerar-se um acidente abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
2. O acórdão do TJUE, proferido em reenvio prejudicial, no caso Vnuk, de 4-9-14, ao considerar que o art. 3º, nº 1, da Directiva nº 72/166/CEE deve ser interpretado no sentido de que o conceito de "circulação de veículo", para efeito da obrigação de segurar, abrange qualquer utilização de um veículo, em conformidade com a sua função habitual, vincula os Tribunais de todos os Estados-Membros a adoptar uma interpretação idêntica, quando sejam confrontados com uma questão jurídica substancialmente similar, quanto à interpretação desse normativo da aludida Directiva.
3. A interpretação do direito nacional deve efectuar-se em conformidade com as Directivas, independentemente da sua transposição, funcionando como conformidade com as Directivas a interpretação destas pelo TJUE.
4. A exclusão do âmbito do seguro obrigatório prevista no nº 4, do art. 4º, do Dec. Lei nº 291/07, apenas ópera em relação a máquinas industriais utilizadas exclusivamente para fins industriais ou agrícolas, em si mesmo e que não apresentem qualquer sobreposição com utilizações próprias da circulação de veículos que gerem a obrigação de segurar no domínio do seguro automóvel”.
No Ac. do STJ, de 17-6-10 (www.dgsi.pt), para efeitos de qualificar um acidente como “acidente de viação”, nos termos do art. 503º do CC. Refere-se no respectivo sumário que “o acidente num armazém de mercadorias aberto ao público ocorrido com uma empilhadora, veículo de circulação terrestre, que, quando o seu condutor efectuava manobra de marcha atrás, atingiu o lesado no momento em este escolhia mercadoria exposta para venda, tal acidente subsume-se ao disposto no art. 503.º do CC”.
No caso em análise, o tractor estava ser utilizado nas suas funções normais e foi ao circular que embateu no poste e danificou a rede - como se tem decido os acidentes relevantes para o efeito não são apenas os típicos acidentes de circulação rodoviária, mas todos os derivados da utilização de veículos automóveis na sua função habitual, ou seja, como meios de transporte ou de locomoção autónomos. No Ac. do STJ, de 3-5-01, já referido decidiu que para efeitos de inclusão no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel relevam acidentes que “podem ocorrer tanto nas vias públicas como nas particulares e, até, em locais não destinados à circulação e que não é o facto de o veículo se encontrar parado que impede que como tal se considerem”, para logo acrescentar, no entanto, que se exige que “o veículo tenha sido causa directa ou indirecta do evento”, isto é, que o acidente tenha relação com os perigos que a sua utilização efectivamente comporte”.
No caso vertente os danos provocados foram causa directa da condução do mesmo e resultaram dos perigos que a sua utilização comporta.
Improcedem as conclusões.
Concluindo
O Ac. do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 4-9-2014 (no âmbito do reenvio prejudicial nº C-162/13), decidiu que o conceito de “circulação de veículos”, previsto no art. 3º, nº 1, da Primeira Directiva Automóvel, “abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade” com a sua “função habitual”, incluindo, em concreto, “a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro”.
O STJ, vem decidindo que são abrangidos pelo regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel acidentes em que intervêm tractores ou mesmo máquinas agrícolas ou industriais, determinando riscos causalmente ligados ao funcionamento do veículo enquanto tal.
III – Decisão: em face do exposto, julga-se improcedente a apelação, mantendo-se a decisão impugnada.
Custas pela apelante

Lisboa, 2/6/2016

Maria Catarina Manso

Pedro Lima Gonçalves

Maria Alexandrina Branquinho