EMBARGO DE OBRA NOVA
SERVIDÃO DE VISTAS
EIRADO
Sumário

I-O poder de embargar obra nova (providência cautelar com funções preventivas ou conservatórias, cujos requisitos estão previstos no art.º. 397º, do CPC) não é exclusivo dos tribunais judiciais, podendo ser feito diretamente pelo interessado, embora, neste caso, fique sujeito a ratificação judicial (artsº. 397º, nº2 e 400º, do CPC).

II-À semelhança do que ocorre com a generalidade das providências cautelares, exige-se que o requerente demonstre, ainda que sumariamente, a violação ou perigo de violação de um direito subjetivo, maxime do direito de propriedade, quer a ofensa derive de um conflito de vizinhança, quer de outra situação de onde, em termos objetivos, possam resultar prejuízos de ordem patrimonial.

III-O conteúdo do direito de propriedade sofre limitações decorrentes da necessidade de conciliar os interesses conflituantes dos proprietários limítrofes. Uma dessas restrições resulta da existência de uma servidão de vistas, nos termos previstos no art.º. 1362.º, do CC;

IV-O objeto da restrição não é propriamente a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda do terraço, do eirado ou de obra semelhante, que deite sobre o prédio nas condições previstas no artigo 1360.º Não se exerce a servidão pelo facto de se disfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho. Pode a janela ou a porta estar fechada, desde que o não seja, definitivamente, com pedra e cal, que a servidão não deixa de ser exercida.

V-A inobservância das restrições legais nesta matéria (abertura de janelas, portas, varandas, terraços, eirados e obras semelhantes) pode originar, nos termos gerais, a constituição de uma servidão de vistas. Constituída a servidão, por usucapião ou outro título, o proprietário vizinho só poderá levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe livre entre as duas construções uma zona de metro e meio, no espaço fronteiro às obras que materializam a servidão (art.º. 1362º, nº2, CC).

VI-«Eirado», do latim «aeratus», é uma plataforma, em geral, sem teto, situada no topo de um prédio, em vez de telhado, ou na frente, num dos lados ou na retaguarda do edifício, sobre arcadas ou colunatas, ao nível do primeiro andar, destinado ao gozo da aragem, do sol e da vista de mar ou de paisagem terrestre. Tem quase sempre um peitoril de pedra, ferro ou alvenaria, de sorte que pode o seu proprietário debruçar-se nele para espreitar e devassar o prédio vizinho.

VII-Um jardim, com relva e vegetação, ao nível do solo, não é um eirado, nem é de equiparar a «obra semelhante a varanda, terraço ou eirado, para efeitos da previsão normativa do art.º. 1360º, nº2, do CC..
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1.-FERNANDO ... DA ... ... ... e MARIA DE FÁTIMA ... ..., intentaram o presente procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova, contra ..., S.A., alegando, em síntese, que:

São donos do prédio identificado em 1. dos factos provados, o qual confina, pelo norte, com o Pátio do Pimenta, e pelo sul e oeste, com as traseiras de prédios da Rua de S. ....
A requerida é dona do prédio identificado em 2. dos factos provados, o qual confina, pelo norte e pelo nascente, com o prédio identificado em 1., o qual, obviamente, confina com aquele pelo sul e pelo poente.
A confrontação da estrema poente do prédio identificado em 1. com a estrema nascente do prédio do prédio identificado em 2., é feita por um eirado sobranceiro a um saguão deste prédio, do qual está separado por um murete com 4,70m lineares de extensão, com uma altura que varia entre 1,10m, junto ao contraforte do prédio identificado em 1., e 1,05m na extremidade sul.
Esse murete está atualmente encimado por uma rede, amovível, colocada pelos requerentes, a qual não impede as vistas nem diminui a insolação do eirado do prédio identificado em 1..
O murete que separa o prédio identificado em 1., pelo poente, do prédio identificado em 2., pelo nascente, existe há mais de 100 anos, sendo mesmo anterior à edificação deste prédio.
Em Fevereiro de 2016, a requerida deu início a obras de reabilitação e modificação do prédio identificado em 2.
No dia 22 de Abril de 2016, os requerentes foram surpreendidos com uma intervenção da requerida, quer na estrema nascente do prédio identificado em 2., na zona onde confina com o prédio identificado em 1., quer na estrema norte.
Assim, no que diz respeito ao murete, a requerida procedeu à destruição parcial do respetivo capeamento, por forma a retirar as extremidades de uns tubos metálicos que nele se encontravam cravados e que sustentavam uma parte de um telhado de fibrocimento que cobre uma dependência clandestina do prédio identificado em 1., procedendo posteriormente à sua reparação, tudo indicando que se preparava para o altear, transformando-o numa parede na ampliação em curso no prédio identificado em 2..
Por outro lado, no que respeita à estrema norte do prédio identificado em 2., verificaram os requerentes, no mesmo dia 22 de Abril de 2016, que os operários que soldaram uma nova viga de aço (perfil I com cerca de 15cm de altura), na continuação de outra que, na execução da obra em curso, haviam anteriormente cravado numa parede dessa estrema norte; nova viga essa que, por si só, e por se encontrar a uma altura superior à do murete separador, prejudica a servidão de vistas do prédio dos requerentes.
Essa extensão foi, por sua vez, soldada a um pilar de aço entretanto instalado pela requerida.
Acresce que, por entre os espaços deixados à vista sob um telhado de fibrocimento que cobre uma dependência clandestina do prédio identificado em 2., os requerentes verificaram que a requerida escavou o contraforte que garante a estabilidade de uma parte do prédio identificado em 1., tendo aberto um buraco retangular no contraforte, o que pode determinar o compromisso da estabilidade deste prédio.
A parede que a requerida se prepara para levantar na confrontação nascente do prédio identificado em 2., com a estrema poente do prédio identificado em 1., põe em causa a insolação do eirado deste prédio, precisamente na zona onde esse eirado é insolado durante mais tempo ao longo de todo o ano.
Os requerentes concluem pedindo que o procedimento cautelar seja julgado procedente, por provado e, por via dele, que seja declarado ratificado o embargo extrajudicial de obra nova da requerida tal como os limites com que foi efetuado e ordenada a destruição das alterações erigidas após a efetivação do embargo extrajudicial.

2.-A requerida deduziu oposição, pugnando para que seja declarada:
a)A caducidade do presente procedimento cautelar;
b)A nulidade do presente procedimento cautelar por ineptidão do requerimento inicial, com fundamento na falta de causa de pedir;
c)A não ser assim entendido, pediu a improcedência da providência.

3.-Procedeu-se à inspeção judicial ao local e à inquirição das testemunhas.

4.-Foi, a final, proferida sentença que, julgando improcedente o procedimento cautelar:
a)Não ratificou o embargo extrajudicial de obra nova realizado pelos requerentes;
b)Determinou o levantamento de tal embargo.

5.Inconformados com a decisão, dela apelaram os requerentes, e, em conclusão, disseram:

a)Os requerentes, ora apelantes, são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito em Lisboa, no Pátio do …, nº. …, que confronta pelo Sul e pelo Poente com traseiras de prédios da Rua de S. ...;
b)A requerida é proprietária do prédio urbano sito em Lisboa, na Rua de S. ..., nºs. 140 e 142, que confronta com o prédio dos ora apelantes pelo Norte e pelo Nascente;
c)A confrontação da estrema Poente do prédio dos ora apelantes com a estrema Nascente do prédio da apelada, é feita por eirado, em cuja extremidade existe um muro com 4,70 metros lineares de extensão, com uma altura (do lado do prédio dos ora recorrentes) que variava entre 1,05 metros e 1,10 metros;
d)Esse muro separador existe, com aquela altura, desde, pelo menos, 1938, permitindo que o prédio dos recorrentes tenha vista sobre o prédio da recorrida, que nessa extremidade ostenta um saguão, ulteriormente coberto por um telheiro de fibrocimento, abaixo do parapeito do muro separador;
e)A recorrida deu início a obras de remodelação do seu prédio no decurso das quais, em 22 de Abril de 2016, encetou uma intervenção na zona em que confina com o prédio dos ora apelantes;
f)A recorrida pretendia acrescentar um andar ao seu prédio (no local onde ultimamente existia um saguão (coberto), trocando a cobertura de fibrocimento por uma laje aligeirada, em cujas extremidades pretendia levantar dois muros (cuja preparação é visível na fotografia de fls. 141);
g)A parede Norte desse corredor técnico seria levantada sobre o muro separador do eirado do prédio dos apelantes do antigo saguão do prédio da aqui apelada;
h)Esse alteamento do muro separador – entretanto consumado – impede que do prédio dos requerentes haja vista sobre o prédio da requerida, ficando o eirado emparedado;
i)A nova parede iria nascer (nasceu) sobre o parapeito do primitivo muro separador, como se vê nas fotografias de fls. 149 e 150;
j)Dando-se conta das obras lesivas da servidão de vistas, os requerentes promoveram embargo extrajudicial das obras da ora apelada (cfr. auto de fls. 138 e ss.);
k)A ora apelada não acatou o embargo extrajudicial da sua obra, que prosseguiu com o levantamento da parede lesiva do direito dos apelantes;
l)A servidão de vistas do prédio dos apelantes sobre o prédio de que actualmente é proprietária a apelada constituiu-se por usucapião, nos termos do disposto no nº. 1 do art. 1362º. do Código Civil;
m)A servidão de vistas não é constituível apenas pela existência de janelas e portas, mas também pela de varandas, terraços e eirados, o que exclui que a razão de ser da norma – o nº. 1 do art. 1362º. do Código Civil – seja exclusivamente a entrada de luz e o arejamento, posto que, por definição, os terraços e os eirados são espaços a céu aberto;
n)A servidão de vistas relativamente aos eirados (e também quanto aos terraços) visa evitar o emparedamento desses espaços, prescrevendo o nº. 2 do art. 1362º. do Código Civil que o proprietário do prédio serviente não pode levantar edifício ou outra construção sem deixar entre a obra e o eirado do prédio dominante a distância de 1,50 metros;
o)Antes das obras levadas a efeito pela apelada, os apelantes possuíam um eirado sobranceiro ao prédio dela; após as obras passaram a ter um espaço emparedado, como o Mmo. Juiz a quo reconheceu no ponto 20. dos factos indiciariamente provados no, aliás douto, despacho recorrido;
p)A obra nova da requerida – embargada extrajudicialmente – lesa a servidão de vistas de que os apelantes são titulares, pelo que o procedimento cautelar deveria ter sido julgado procedente;
q)O Mmo. Juiz a quo, porém, entendeu que só a violação do direito à insolação, que considerou não se verificar, poderia servir de fundamento à providência requerida, desconsiderando a especificidade da servidão de vistas dos eirados;
r)O Mmo. Juiz a quo procedeu no, aliás douto, despacho recorrido, a errada interpretação e aplicação dos arts. 1362º. do Código Civil e 397º. Do Código de Processo Civil revisto.
Pelo exposto e pelo douto suprimento do Venerando Tribunal ad quem, deve ser revogado o, aliás douto, despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ratifique o embargo extrajudicial de obra nova, como é de inteira justiça.

6.Nas contra alegações, pugnou-se pela confirmação da sentença recorrida.
7.Atendendo ao teor das conclusões que, como se sabe, delimitam o objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir se deve, ou não, ser ratificado o embargo extrajudicial de obra nova, realizado pelos requerentes.

8.Fundamentação de facto.

8.1.-Com relevo para a decisão da causa, está indiciariamente provado que:

1.Pela Ap. 2 de 2000/07/25, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, a aquisição a favor dos requerentes, do prédio urbano sito no Pátio do …., nº .., em Lisboa, composto por cave, rés-do-chão, pátio, jardim e uma dependência, descrito naquela Conservatória sob o nº 23/19880418, com a superfície coberta de 462,48 m2, e descoberta de 405,72, m2;
2.Pela Ap. 1917 de 2014/09/23, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, a aquisição a favor da requerida, do prédio urbano sito na Rua de São ..., nºs 140 e 142, em Lisboa, composto de rés-do-chão, seis andares e logradouro, descrito naquela Conservatória sob o nº ….., com a superfície coberta de 81,10 m2, e descoberta de 50,90, m2;
3.Na estrema poente do prédio identificado em 1. existe um jardim com relva e vegetação, com uma área de cerca de 250 m2, que dele faz parte integrante;
4.(...) jardim esse que confronta com uma empena em alvenaria, com 4,70 metros lineares de extensão, situada no perímetro do prédio identificado em 2., e que serve de parede interior de uma divisão deste prédio;
5.Tal empena existe desde pelo menos 1938;
6.Em consequência da diferença de cotas entre os dois prédios, do lado do jardim do prédio identificado em 1., a altura dessa empena varia entre 1,10 metros junto a uma parede desse prédio, e 1,05 metros na sua extremidade sul;
7.Na divisão referida em 4. do prédio identificado em 2., a altura da parede é de cerca de 2,50 metros;
8.No cimo da empena referida em 4., na parte que dá para o jardim mencionado em 3., os requerentes colocaram, em data não apurada, uma rede de metal em malha aberta;
9.Em 14 de março de 2016, a requerida deu início a obras de ampliação e reabilitação do prédio identificado em 2.;
10.No dia 22 de abril de 2016, os requerentes constataram que no decurso dessas obras, na estrema norte do prédio identificado em 2., foi soldada uma viga de aço, perfil I, com cerca de 15 centímetros de altura;
11.(...) e que na continuação de uma outra viga que, na execução da mesma obra, anteriormente foi cravada numa parede dessa estrema norte;
12.A viga referida em 9. foi soldada a um pilar de aço entretanto instalado pela requerida;
13.Na mesma data os requerentes constataram que por entre os espaços deixados à vista sob um telhado de fibrocimento que cobre uma dependência do prédio identificado em 2., foi aberto um buraco retangular;

14.No dia 26 de abril de 2016 pela agente de execução Júlia M... L... foi elaborado o documento cuja cópia consta de fls. 25, intitulado «CERTIDÃO DE NOTA DE NOTIFICAÇÃO DE EMBARGO DE OBRA NOVA EXTRAJUDICIAL», do qual consta, além do mais, o seguinte:

«Pelas 9:10 do dia 26 de Abril de 2016, na Rua de São ..., 140 e 142, em Lisboa, o(s) Exmos(s) Senhor(es) Joaquim …. (...), na qualidade de encarregado de obra, da empreiteira, H… Construções, Lda., fica(m) para os devidos efeitos notificado(s) que a partir da presente data e hora a execução das obras no prédio situado em Lisboa, na Rua de São ..., nº 140 e 142, que vai pelas traseiras, até ao Páteo do …, confrontando pelo norte e pelo nascente com o sul e poente do prédio do Páteo do …, fica embargado, devendo, imediatamente, as obras abaixo descritas ser suspensas, nos termos do nº 2 do artigo 397º do Código de Processo Civil:
-Levantamento de parede e/ou paredamento na confrontação nascente do prédio da embargada com eirado a poente do prédio dos embargantes que tapam as vistas sobre o prédio do notificante;
-Fica também embargada qualquer intervenção no contraforte sul do prédio dos embargantes que confrontam com a extrema norte do prédio da embargada;
-Qualquer escavação nas extremas que coloquem em perigo o prédio do embargante, nomeadamente, escavações no contraforte.
-A presente notificação foi realizada na presença das Testemunhas José …. e Clara Maria da …….
- (...)
A presente notificação foi feita pelo Sr. Eng.º Fernando ... da ... ... ... ao supra identificado encarregado de obra recusou-se a assinar a presente certidão de notificação tendo ficado com a notificação do embargo»;

15.O documento transcrito em 14. encontra-se assinado pelo embargante, o requerente Fernando ... da ... ... ..., e por José …………….. e Clara Maria …… ….., na qualidade de testemunhas;
16.Na parte superior da empena referida em 4., no limite em que tal empena deita para o jardim mencionado em 3., e em toda a extensão em que a mesma confronta com o jardim, a requerida construiu um muro em alvenaria com cerca de um metro de altura;
17.Esse muro projeta, a determinada altura do dia, uma sombra residual sobre o jardim referido em 3.;
18.No local onde atualmente se encontra construído o muro referido em 16. existia, até há alguns meses, plantada pelos requerentes, uma sebe com cerca de três metros de altura contados a partir do chão do jardim referido em 3.;
19.(...) o que provocava o efeito referido em 17.;
20.O muro referido em 16. impede que quem se encontre no jardim referido em 3. tenha vista sobre o prédio identificado em 2.
21.O prédio identificado em 1. tem neste momento construídos dois pisos acima da cota de soleira;
22.Pelo menos a partir do último desses pisos, os réus desfrutam de vista sobre parte do prédio identificado em 2., e de uma vista panorâmica sobre uma parte da cidade de Lisboa e do rio Tejo;
23.No dia 8 de fevereiro de 2016, o requerente marido, engenheiro civil de formação, requereu na Câmara Municipal de Lisboa a reprodução de documentos/peças desenhadas de arquitetura e especialidades do projeto licenciado por aquele órgão municipal sob o nº 616/ED1/2015, referente à obra em curso no prédio identificado em 2.;
24.A requerida enviou à requerente mulher a carta cuja cópia se encontra a fls. 75, datada de18 de janeiro de 2016, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido;
25.A essa carta respondeu o requerente marido através daqueloutra carta datada de 29 de janeiro de 2016, cuja cópia consta de fls. 79 e cujo teor aqui se dá igualmente por inteiramente reproduzido;
26.No mês de fevereiro de 2016, os requerentes dirigiram-se pessoalmente à Câmara Municipal de Lisboa onde consultaram o projeto licenciado e pediram a sua reprodução, ficando com uma cópia em seu poder;
27.Reuniram ainda com o arquiteto da CM Lisboa responsável pelo licenciamento, que os informou que se tratava de um projeto devidamente licenciado, ou seja, cumpridor de toda a legislação e regulamentação aplicáveis, incluindo o parecer favorável da Direcção-Geral do Património Cultural, por estar incluindo na denominada “zona pombalina”;
28.Em 22 de Abril de 2016, os requerentes já conheciam o projeto integral licenciado há mais de dois meses;
29.Todas as intervenções que os requerentes referem ter sido efetuadas pela requerida, ocorreram, sem exceção, ao abrigo do processo de licenciamento nº 616/EDI/2015, aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa e Direção-Geral do Património Cultural e que deu origem ao alvará de obras nº 116-EOCML-2016;
30.A execução dos respectivos projetos está em conformidade com o licenciado.

8.2.Com relevo para a decisão da causa, foi considerada indiciariamente não provada a seguinte factualidade:
a)A viga referida em 9., por si só, e por se encontrar a uma altura superior à do murete separador, prejudica a servidão de vistas do prédio dos requerentes;
b)O buraco referido em 12. foi escavado e aberto no contraforte do prédio identificado em 1.;
c)(...) o que pode determinar o compromisso de estabilidade do prédio identificado em 1.;

9.Fundamentação de Direito.
O poder de embargar obra nova (providência cautelar com funções preventivas ou conservatórias, cujos requisitos estão previstos no  art.º. 397º, do CPC) não é exclusivo dos tribunais judiciais, podendo ser feito diretamente pelo interessado, embora, neste caso, fique sujeito a ratificação judicial (artsº. 397º, nº2 e 400º, do CPC).
À semelhança do que ocorre com a generalidade das providências  cautelares, exige-se que o requerente demonstre, ainda que sumariamente, a violação ou perigo de violação de um direito subjetivo, maxime do direito de propriedade, quer a ofensa derive de um conflito de vizinhança, quer de outra situação de onde, em termos objetivos, possam resultar prejuízos de ordem patrimonial.

Vejamos, então, se os requerentes lograram provar, ainda que indiciariamente, os requisitos inscritos na previsão normativa, sabido que é sobre eles que recai o correspondente ónus da prova (cf. art.º 342º, nº1, do CC).[1]

No requerimento inicial, os requerentes alegaram que a obra levada a cabo pela requerida (escavação do contraforte do seu prédio e elevação de um murete que separa o seu prédio do da requerida) compromete a estabilidade de uma parte do prédio e põe em causa a insolação do respectivo «eirado».

Na sentença, o Tribunal a quo julgou improcedente a providência requerida, por não ter sido feita a prova dos factos integradores da ofensa invocada, como seu pressuposto.

Neste recurso, os requerentes insurgem-se contra a decisão proferida, na parte em que desconsiderou a existência de uma “servidão de vistas” sobre o prédio da requerida, a favor do seu prédio.

A questão central que nos ocupa consiste, então, em saber se os factos apurados permitem considerar a existência de uma “servidão de vistas”, constituída por usucapião, tal como pretendem os apelantes.

Ora bem.
Conforme se estabelece no art.º 1305º, do CC, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
O conteúdo do direito de propriedade sofre, porém, as limitações decorrentes da necessidade de conciliar os interesses conflituantes dos proprietários limítrofes.
Uma dessas restrições é precisamente, em matéria de «vistas».

Na verdade, o Código Civil dedicou à servidão de vistas o artigo 1362.º, cujo teor é o seguinte:
«1-A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião.
2-Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras».

Este normativo tem de ser conjugado com o disposto no artigo 1360.º, do mesmo Código onde se estatui que:
«1.O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem diretamente sobre o prédio vizinho [2] sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.
2.Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.
3.Se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente levantado; mas, se a obliquidade for além de quarenta e cinco graus, não tem aplicação a restrição imposta ao proprietário».

O termo «servidão de vistas», embora seja a designação tradicional, não é inteiramente exato e pode prestar-se a equívocos.

Com efeito, no caso da «servidão de vistas» a sua utilidade está em poder ver e devassar o prédio vizinho. O conteúdo da servidão reside no próprio facto de ter a janela, porta, varanda, terraço, eirado ou obra semelhante a deitar sobre o prédio serviente, e não no facto de gozar ou disfrutar as vistas. Daí que se entenda que se adquire a servidão por usucapião, desde que essas obras existam pelo tempo necessário, independentemente de o proprietário ter ou não gozado as vistas que, por meio delas, poderia disfrutar.[3]
Como, a propósito, referem Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, III, 2ª edição, pág. 219, “o objeto da restrição não é propriamente a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda do terraço, do eirado ou de obra semelhante, que deite sobre o prédio nas condições previstas no artigo 1360.º Não se exerce a servidão com o facto de se disfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho. Pode a janela ou a porta estar fechada, desde que o não seja, definitivamente, com pedra e cal, que a servidão não deixa de ser exercida.“

A inobservância das restrições legais nesta matéria (abertura de janelas, portas, varandas, terraços, eirados e obras semelhantes) pode, assim, originar, nos termos gerais, a constituição de uma servidão de vistas (art.º. 1362º, nº1, CC). Constituída a servidão, por usucapião ou outro título, o proprietário vizinho só poderá levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe livre entre as duas construções uma zona de metro e meio, no espaço fronteiro às obras que materializam a servidão (art.º. 1362º, nº2, CC).

No caso sub judice, os apelantes alegaram que a materialidade física que dá corpo à invocada «servidão de vistas» é a existência de um “eirado” no seu prédio, limitado por um “murete”, de altura inferior a um metro e meio, situado na extrema com o prédio da requerida.

Todavia, o que resultou apurado é que, no prédio dos requerentes, se encontra, ao nível do solo, um jardim com relva e vegetação, o qual confronta com uma empena em alvenaria, situada no prédio da requerida, cuja altura varia entre 1,05 e 1, 10 metros, empena que existe desde, pelo menos, 1938 - cf. pontos 3, 4 e 5, dos factos provados.

Ora, um jardim, ao contrário do que sustentam os apelantes, não é um eirado[4]. Tão pouco é de equiparar a «obra semelhante a varanda, terraço ou eirado, para efeitos da previsão normativa do art.º. 1360º, nº2, do CC., tanto mais que nem sequer é servido por «parapeito», como expressamente exige o preceito legal mencionado.
Está, por conseguinte, votada ao insucesso a pretensão dos apelantes.

Acresce que:

Resultou indiciariamente provado que os requerentes não só colocaram uma rede de metal em malha aberta no cimo da empena, a que nos referimos supra, precisamente na parte que dá para o seu jardim, como também plantaram uma sebe com cerca de três metros de altura (cf. ponto 18, dos factos provados).
Dir-se-á, assim, que, também por esta via, se encontra comprometida a sua pretensão, por tal poder configurar um abuso de direito. Efetivamente, sendo o fundamento do pedido baseado na possibilidade de devassamento do prédio vizinho, ao nível do jardim, o que se provou, afinal, foi que essa possibilidade de devassa foi voluntariamente impedida, ou, pelo menos, fortemente condicionada, pelos próprios requerentes.

Improcede, pois, a apelação.

10.Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.



Lisboa, 27/09/2016
(Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado)
(Rosa Maria Ribeiro Coelho)
(Maria Amélia Ribeiro)


[1]Sobre os requisitos do embargo de obra nova, cf. Moitinho de Almeida, Embargo ou Nunciação de Obra Nova, 2ª edição, pag. 31 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., 3ª edição, págs. 240 e ss.
[2]Quer dizer: que permita a alguém olhar direta e comodamente ou debruçar-se para dentro do prédio vizinho – cf. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, tomo XII, pag. 71.
[3]Cf. José Luís Santos, Servidões Prediais, 2ª edição, Coimbra editora, 55 e Henrique Mesquita, Direitos Reais, págs. 148 e ss..
[4]Como afirma Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, pág. 74, «eirado»,  do latim «aeratus», é uma plataforma, em geral, sem teto, situada no topo de um prédio, em vez de telhado, ou na frente, num dos lados ou na retaguarda do edifício, sobre arcadas ou colunatas, ao nível do primeiro andar, destinado ao gozo da aragem, do sol e da vista de mar ou de paisagem terrestre. Tem quase sempre um peitoril de pedra, ferro ou alvenaria, de sorte que pode o seu proprietário debruçar-se nele para espreitar e devassar o prédio vizinho.