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DESCOBERTO BANCÁRIO
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I – O “descoberto em conta” constitui uma medida excepcional de crédito de curto prazo para acudir a necessidades momentâneas e imprevistas de clientes de confiança, sem necessidade de instruções escritas; trata-se de um afloramento típico das chamadas relações contratuais de facto, envolvendo um comportamento de confiança. II – Assim, há que aceitar a aparência dos factos como tal: se a conta é solidária, também o débito o deverá ser, excepto a alegação e prova de factos que afastem a solidariedade no débito. III – Desta forma, na conta solidária. a dúvida, por falta de alegação e de prova, sobre qual dos dois depositantes assumiu a responsabilidade pelo descoberto, não aproveita aos Réus-depositantes mas à Autora-banco, já que é a alegação e prova de que tal responsabilidade foi assumida apenas por um dos depositantes que constitui facto extintivo do direito do Banco contra o outro dos depositantes (artº 342º nº2 C.Civ.).
Texto Integral
Acordão no Tribunal da Relação de Guimarães
Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº61/2000, do 1º Juízo Cível de Barcelos. Autora – A. Réus – B.
Pedido
Que os RR. sejam condenados a pagar à Autora o capital mutuado de Esc.5.106.220$00, acrescido de juros vencidos, a contar de 10/9/97, e imposto de selo, no valor, à data da propositura da acção, de Esc. 1.163.792$00, bem como os juros vincendos, á taxa legal, e imposto de selo.
Tese da Autora
Os RR, abriram, em balcão da Autora, instituição de crédito, conta de depósito á ordem.
A Autora autorizou vários saques, sem provisionamento da conta, ascendendo ao montante peticionado.
Invoca a existência de empréstimo mercantil válido; a ser considerado nulo, ainda assim devem os RR. restituir à Autora a quantia prestada. Tese dos Réus
Impugnam a alegação da Autora.
Sentença
Na sentença proferida pelo Mmº Juiz “a quo”, a acção foi julgada procedente, por provada, e os RR. condenados a pagar à Autora a quantia de PTE 5.106.220$00 (€ 25 469), imposto de selo e juros de mora, à taxa de 12%, a contar da citação.
Conclusões do Recurso de Apelação interposto pelos RR.
1 – O douto acordão recorrido considerou os movimentos bancários constantes dos documentos de fls. dos autos como saques e que consubstanciam a figura do “descoberto em conta”.
2 – Mas o “descoberto em conta” é definido como uma operação bancária através da qual um banco consente que um cliente seu saque, para além do saldo existente na conta de que é titular, até um certo limite e por um certo prazo (cf. Ac.R.P. C.J. 2001 – I – pgs.284ss.; Abílio Neto, Legislação Bancária e Financeira, 2ª ed., Ediform, Lisboa, pg.824).
3 – Da matéria de facto dada como provada não resulta a verificação cumulativa dos três elementos constitutivos do “descoberto em conta”.
4 – Como também não resulta da matéria de facto dada como provada quais os saques que o Apelante efectuou e respectivos montantes, bem como quais os saques que a Apelante efectuou e respectivos montantes.
5 – E portanto não se apurou a responsabilidade de cada um dos Apelantes no saldo negativo final.
6 – Como também não se provou a existência do consentimento expresso ou tácito de um titular da conta ao outro para proceder a qualquer movimento bancário sem que a respectiva conta estivesse provisionada.
7 – Como também se não provou que os saques documentados nos autos se destinassem ao pagamento de dívida da responsabilidade comum dos Apelantes.
8 – Pois tal factualidade não foi alegada pelo Apelado.
A Recorrida sustenta o julgado.
Factos Apurados em 1ª Instância
1. A Autora aceitou a abertura de uma conta de depósitos à ordem em nome dos Réus com o n.º 1022-2.
2. A Autora autorizou aos Réus saques sem que a conta estivesse provisionada para o efeito.
3. Dos movimentos feitos na conta referida em 1., através de ordens de pagamento/cheques ou entregas feitas pelos Réus ou por terceiros, resultou em 10.09.97, um saldo a descoberto de 5.106.220$00.
4. O Réu Morais... remeteu à Autora a carta de fls. 9, datada de 30.09.97, onde a informa estar a diligenciar junto do sacador do cheque a regularização da situação, solicitando um pouco mais de tempo.
Fundamentos
As conclusões do recurso apresentado pela A. restringem a matéria do dito recurso à apreciação efectuada na decisão em crise relativa às seguintes questões:
1 – Verificação no caso concreto dos elementos definidores do descoberto em conta – saque para além do saldo da conta, até um certo limite e por um certo prazo.
2 – Responsabilidade individual de cada um dos Demandados, na inexistência de prova acerca de quem efectuou os saques e por que montantes, posto que se trata de uma “conta solidária”.
3 – Responsabilidade comum dos Demandados nos saques efectuados individualmente por cada um deles.
I
São abundantes os exemplos doutrinais sobre a matéria do “descoberto em conta”, pelo que, ex abundanti, se alinharão algumas considerações a tal respeito.
Descoberto em conta ou “facilidades de caixa” é a situação que se gera quando, numa conta corrente subjacente a uma abertura de conta, o banqueiro admita um saldo a seu favor, logo um saldo negativo para o cliente (ut Meneses Cordeiro, Manual deDireito Bancário, 1ª ed., §188).
O descoberto em conta pode advir de um negócio prévio com o banqueiro ou pode ser consequência de outros dispositivos – entre estes, lançamento de despesas, movimentos automáticos, pagamento de cheques sem provisão ou outros.
Na primeira modalidade (negócio prévio) o descoberto resulta de um acordo com o Banco para efeito de concessão de crédito, segundo o qual o Banco pagará por conta do cliente / depositante, adiantando fundos, eventualmente sem documentos (clean credit) – utAc.S.T.J. 2/2/93Col.I/121.
Como resulta da matéria de facto provada sob 4., o Banco disponibilizou aos depositantes o valor de dois cheques, que não vieram a obter boa cobrança, dando assim origem ao apontado saldo negativo.
Os autos indiciam assim encontrarmo-nos perante uma concessão de crédito esporádica, sem acordo prévio, vulgarmente designada crédito de tesouraria, facilidade de caixa ou overdraft, mediante o qual o depositante é autorizado a levantar quantias superiores às depositadas, convertendo o saldo em devedor (Ac.S.T.J. cit.).
Constitui uma medida excepcional de crédito de curto prazo para acudir a necessidades momentâneas e imprevistas de clientes de confiança, sem necessidade de instruções escritas.
O descoberto é tolerado pelo banqueiro por curto período (M. Cordeiro, op. e loc. cits.).
Com efeito, as relações que se estabelecem entre o Banco e o respectivo cliente são relações “intuitu personae” – ou, dito de outro modo, relações entre pessoas recomendáveis (cf. Ac.R.L. 23/7/87Col.IV/137 ou Alberto Luís, Direito Bancário, pgs. 65 a 67).
Encontramo-nos no puro domínio das relações factuais.
A respeito dessas relações contratuais de facto, não nascidas de negócio jurídico, pôde escrever Varela, Das Obrigações em Geral, I-199 (cit. in Ac.R.L. 6/2/97Col.I/121): “a terceira categoria abrange os casos (vulgaríssimos no tráfico jurídico de massas) em que as relações entre as partes resultam de um comportamento social típico, que não envolve nenhuma declaração de vontade” – nessas relações contratuais “a declaração negocial não tem forçosamente por base a palavra oral ou escrita do declarante (artº 217º nº1 in fine C.Civ.)”, já que “há outras formas de exteriorização da vontade do declarante, cabendo entre elas as formas de comportamento social típico”.
Desta forma, a técnica do “descoberto em conta” distingue-se do empréstimo pelo facto de o banco poder exigir a restituição a qualquer tempo e não somente ao fim de um prazo contratualmente determinado (Simões Patrício, Direito do Crédito, pg. 30).
Ou, na formulação de Meneses Cordeiro, op. e loc. cits., trata-se de uma tolerância do banqueiro, que não constitui direitos para o cliente.
Assim, por consequência, não sendo estipulado prazo para o cliente do banco efectuar o reembolso, pode o banco exigir o montante do descoberto a todo o tempo, como flui do artº 777º nº1 C.Civ. (cf. Ac.R.P.16/3/98Col.II/206).
O descoberto em conta é um mútuo, vencendo juros remuneratórios em conformidade, de resto à luz dos artºs 102º, 395º e 363º C.Com. (Quirino Soares, Contratos Bancários, Scientia Juridica, 295/109, Ac.R.C. 15/12/92Col.V/76 e Ac.R.G. 7/5/03 sumariado in Scientia Juridica 296/369).
Só que desta feita um mútuo como que por inversão, passando os RR. a ser os mutuários e incumbindo-lhes, a eles RR., a obrigação de restituir (Ac.S.T.J. 9/2/95Col.I/75).
Por todo o exposto, mostra-se apodíctico concluir pela negativa, relativamente à pretensão dos Recorrentes – os autos patenteiam um “descoberto em conta”, encontrando-se preenchidos todos os respectivos requisitos.
II
Agora, quanto à responsabilidade individual de cada um dos titulares da conta e ora Recorrentes.
As cláusulas contratuais gerais atinentes à abertura de conta prevêem como negócio subsequente a concessão de crédito por descoberto em conta; esta concessão depende apenas da decisão a tomar pelo banqueiro (Meneses Cordeiro, op. cit., §161-IV).
As contas bancárias colectivas chamam-se solidárias quando qualquer dos titulares possa movimentar sozinho e livremente a conta, exonerando-se o banqueiro, entregando a totalidade do saldo a quem o pedir (M. Cordeiro, Depósito Bancário e Compensação, Col.S.T.J.02-I-8).
Assim, quando celebram uma conta solidária, todos os intervenientes se encontram cientes de que qualquer dos titulares da conta pode esgotar o saldo da conta e, como no caso dos autos, sacar a descoberto. Meneses Cordeiro escreveu (Depósito Bancário e Compensação) que, se um titular pode esgotar o saldo, também poderá sozinho constituir débitos que impliquem o esgotamento do saldo (por via do mecanismo da compensação e da aplicação ao caso do disposto no artº 528º nº1 C.Civ.).
Mas se, como no caso dos autos, se vai para além da compensação de créditos e se ignora qual dos dois depositantes solidários acordou, expressa ou tacitamente, com o banco, o descoberto?
Desde logo, será necessário não olvidar ainda que nos encontramos no campo da responsabilidade contratual, e que, por força dos princípios da responsabilidade contratual e da presunção de culpa do devedor (artºs 798º e 799º nº1 C.Civ.) era a este devedor (no caso, devedores) que incumbia alegar e provar que o seu saldo devedor não era devido, por não lhes poder ser imputado (cf. Ac.R.L. 28/5/87Col.III/103, para o caso do depósito bancário).
Nesta hipótese funciona a presunção de igualdade das participações – artºs 534º, 1403º nº2 e 1404º C.Civ. – são iguais as partes que têm na obrigação divisível os vários credores ou devedores, se outra proporção não resultar da lei ou do negócio jurídico.
Por outro lado, encontrando-se estipulada a solidariedade no depósito (artº 535º nº1 C.Civ.), na dúvida é de presumir a solidariedade da responsabilidade no descoberto.
Sustentaram tal doutrina os Acs. S.T.J. 16/3/00Bol.495/329 e 3/2/00Bol.494/294.
De resto, como na feliz formulação do Ac.R.P. 9/4/92Bol.416/705, cada uma das partes tem o ónus da prova dos factos integrativos dos pressupostos da norma que lhe sejam favoráveis.
O Autor sustenta que não se encontra provada a responsabilidade de cada um dos depositantes (nem se um deles deu consentimento à assumpção de responsabilidades pelo outro) – o que se dirá é que não se encontra provado que não hajam assumido tal responsabilidade ou não hajam dado tal consentimento; isto é, incumbia aos Réus a prova de factos que afastassem a solidariedade aparente que os autos demonstram, de acordo com a regra legal do artº 342º nº2 C.Civ.
Esses factos, se alegados e provados, seriam extintivos do efeito jurídico pretendido pela Autora.
Se o descoberto em conta é um afloramento típico da relevância jurídica das relações contratuais de facto, e se as relações entre o banco e o cliente relevam de um comportamento típico de confiança, então há que extrair daí as necessárias consequências e aceitar a aparência dos factos como tal: se a conta é solidária, também o débito o deverá ser, excepto a alegação e prova de factos que afastem a solidariedade no débito.
A dúvida invocada pelos apelantes não lhes aproveita, portanto: aproveita à apelada.
A fundamentação poderá resumir-se por esta forma: I – O “descoberto em conta” constitui uma medida excepcional de crédito de curto prazo para acudir a necessidades momentâneas e imprevistas de clientes de confiança, sem necessidade de instruções escritas; trata-se de um afloramento típico das chamadas relações contratuais de facto, envolvendo um comportamento de confiança. II – Assim, há que aceitar a aparência dos factos como tal: se a conta é solidária, também o débito o deverá ser, excepto a alegação e prova de factos que afastem a solidariedade no débito. III – Desta forma, na conta solidária. a dúvida, por falta de alegação e de prova, sobre qual dos dois depositantes assumiu a responsabilidade pelo descoberto, não aproveita aos Réus-depositantes mas à Autora-banco, já que é a alegação e prova de que tal responsabilidade foi assumida apenas por um dos depositantes que constitui facto extintivo do direito do Banco contra o outro dos depositantes (artº 342º nº2 C.Civ.).
Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar integralmente improcedente, por não provado, o recurso interposto, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelos Apelantes.