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IMPUGNAÇÃO PAULIANA
LIVRANÇA EM BRANCO
AVALISTA
Sumário
A anterioridade do crédito, que constitui um dos requisitos da impugnação pauliana (ressalvado o caso de dolo), mostra-se preenchida em relação a crédito cambiário que tem como contrapartida a subscrição de livrança em branco ocorrida em momento comprovadamente anterior à prática do ato alvo da impugnação, posto que a livrança tenha vindo a ser preenchida, mesmo que em data posterior à da prática do ato impugnado e ainda que na livrança tenha sido aposta data posterior à da efetiva subscrição da livrança em branco.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.
RELATÓRIO:
Em 02.8.2013 Manuela e Vítor intentaram nas Varas Cíveis de Lisboa ação declarativa com processo ordinário (impugnação pauliana) contra Maria, Mário, Pedro, Ana e Bruno.
Os AA. alegaram, em síntese, que Leasing, SA, instaurou contra os ora AA. e os ora 1.º e 2.º RR. uma execução, com base numa livrança subscrita pelos ora 1.º e 2.º RR., na qual os ora AA. figuram como avalistas. Tal livrança foi subscrita em branco, para garantir um contrato de locação financeira referente a uma loja, celebrado em 20.4.2007 entre a Leasing e os ora 1.º e 2.º RR., contrato que os ora 1.º e 2.º RR. incumpriram. Os AA. apuseram a sua assinatura no verso da livrança por indicação da R. Maria, convencidos que tal era necessário para o contrato de locação financeira, em que pensavam que a ora A. interviria juntamente com a 1.ª R.. Os ora AA. nunca se aperceberam que se estavam a vincular como avalistas, o que alegaram na dita execução, em sede de oposição. Sucede que na execução foram penhorados, entre outros, uma fração autónoma pertencente aos AA., para garantia do valor de € 56 108,73, sendo esse o crédito perante os 1.º e 2.º RR. que os AA. pretendem ora garantir mediante a presente ação de impugnação pauliana. Esta tem por objeto a doação que em 07.9.2010 a ora 1.ª R., com autorização do 2.º R., fez a favor dos 3.º e 5.º RR. (sendo a 4.ª R. mulher do 3.º R.), do direito de superfície sobre uma determinada fração autónoma, para habitação, sita em Lisboa, com reserva do usufruto e por conta da quota disponível. Tal negócio foi efetuado dolosamente, bem sabendo os RR. que assim ficavam desprovidos do único bem que poderia garantir o pagamento das responsabilidades decorrentes dos acima mencionados contratos de leasing e livrança. Na aludida execução foi também penhorado o direito de usufruto da 1.ª R. sobre a referida fração doada.
Os AA. terminaram pedindo que fosse declarado ineficaz em relação aos AA. o ato de doação referido, com todas as legais consequências, designadamente que fosse ordenado o cancelamento do respetivo registo e que os ora 3.º a 5.º RR. procedessem à restituição do referido bem ao património da ora 1.ª R., de modo a que os ora AA. se pudessem pagar à custa dessa fração autónoma do seu crédito no valor, pelo menos, de € 56 108,73.
Os RR. contestaram, alegando que o contrato de locação financeira fora celebrado e a livrança fora subscrita no interesse da A. e da 1.ª R., que se haviam constituído sócias gerentes de uma sociedade que iria explorar um salão de cabeleireiro no imóvel objeto do contrato de locação financeira. Os AA. não assinaram o contrato de locação financeira mas obrigaram-se nele como avalistas porque a A. não tinha oficialmente rendimentos que permitissem que interviesse como titular do contrato de locação financeira. Os AA. não se apresentam como titulares de qualquer crédito sobre os RR., carecendo de interesse em agir e, além disso, o direito da 1.ª R., usufruto do direito de superfície sobre o aludido imóvel alvo da doação, tem valor mais do que suficiente para pagar a quantia exequenda. Acresce que os RR. auferem de rendimentos de trabalho como funcionários públicos, que também podem ser penhorados. A doação foi efetuada, não para prejudicar eventuais credores, mas porque tendo a dita fração autónoma sido adquirida pela 1.ª R. ainda em solteira, e tendo esta casado posteriormente com o 2.º R. sob o regime de separação de bens, e sendo os 3.º e 5.º RR. filhos apenas da 1.ª R., que não do 2.º R., a 1.ª R. acordou com o 2.º R. em fazer a aludida doação a fim de excluir o 2.º R. de eventual sucessão por morte da 1.ª R. em relação a esse bem.
Os RR. concluíram pela ilegitimidade dos AA., pelo que os RR. deveriam ser absolvidos da instância e, no mais, deveriam ser absolvidos dos pedidos formulados.
Os AA. replicaram, reiterando o peticionado.
Em 24.02.2015 os AA. juntaram aos autos comprovativo de transação, judicialmente homologada, celebrada na supra mencionada oposição à execução entre os ora AA. e a exequente, nos termos da qual os AA./executados se davam, cada um, perante a exequente, como devedores da quantia de € 14 338,12, no total de € 28 676,24.
Em 15.5.2015 os AA. juntaram aos autos documentos comprovativos de que o agente de execução havia, no âmbito da execução supra referida, declarado extinta a execução quanto aos ora AA., por haverem pago à exequente a quantia acordada na transação supra mencionada.
Em 22.9.2015 realizou-se audiência prévia, na qual foi julgada improcedente a exceção de falta de interesse em agir dos AA., se consignou entender-se que tendo os AA., em sede de oposição à execução, efetuado a transação supra mencionada, não podiam, por existir exceção material inominada aparentada com o caso julgado, colocar a questão da invalidade por falta de consciência de estarem a emitir uma declaração negocial no que concerne ao aval. Mais se declarou que o crédito dos AA. que estes pretendiam salvaguardar e que havia de ter em consideração nesta ação, era o que decorria da sua qualidade de avalistas na livrança de que eram subscritores os dois primeiros RR., atento o disposto no art.º 32.º da LULL, aplicável às livranças nos termos do disposto no art.º 77.º da LULL, segundo o qual se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra. Na audiência consignou-se ainda quais os factos que se entendia estarem já assentes e enunciou-se os temas da prova.
Efetuou-se prova pericial.
Realizou-se audiência final e em 07.7.2016 foi proferida sentença em que se julgou a ação totalmente procedente, por provada, e em consequência declarou-se a ineficácia relativamente aos AA. da doação supra referida.
Os RR. apelaram, tendo apresentado alegações em que formularam as seguintes conclusões:
1.-São requisitos do instituto da impugnação pauliana, a anterioridade do crédito ( art. 610 , alínea a) do CC), impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito (art. 610, alínea b) do CC).
2.-Em relação ao primeiro requisito, a anterioridade do crédito, é necessário que o crédito se mostre anterior ao ato a impugnar, o que efetivamente não aconteceu.
3.-Na verdade, a livrança tem aposta a data da sua emissão, sendo que a mesma só foi válido como título executivo após o preenchimento da mesma e não com a sua entrega.
4.-Aquando da entrega da livrança que servia de garante ao contrato de leasing imobiliário, em caso de incumprimento, nem sequer havia incumprimento.
5.-Foi celebrado um contrato de leasing imobiliário entre a Autora e a 1ª Ré, na qualidade de sócias de uma sociedade comercial por quotas de cabeleireiro e, o bem adquirido com a celebração do contrato de leasing imobiliário, serviria de sede da sociedade comercial e local de prestação de serviços de cabeleireiro.
6.-Foi celebrado em abril de 2007 e, a data de emissão que consta da livrança é de 27 de junho de 2011.
7.-Foi nesta data que se constituiu um título executivo e permitiu à Leasing vir executar quer os AA quer a 1ª e 2º RR.
8.-Portanto, não pode haver dúvida que o crédito é posterior ao ato de doação que é objeto da presente ação de impugnação pauliana.
9.-Quanto à impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito, sempre se dirá que a doação efetuada não produziu ou agravou a impossibilidade de o credor poder conseguir a inteira satisfação do seu crédito.
10.-Na verdade, os bens penhorado – a penhora do imóvel dos AA e a penhora do usufruto da 1ª Ré, são superiores do crédito dos AA.
12.-O usufruto do imóvel foi avaliado em 35.009,35€, sendo superior ao valor do crédito dos AA.
13.-Além disso, os AA sempre têm a salvaguarda da penhora dos vencimentos do 1ª e 2º RR, que são trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado e, responderão também através da penhora do seu vencimento, pelo crédito que os AA são titulares.
14.-Pelo que não podia o tribunal a quo vir dar como procedente a presente ação de impugnação pauliana pois não se encontram reunidos os requisitos necessários relativos à referente ação.
15.-Portanto, faltam, em absoluto, os requisitos exigidos para a impugnação pauliana (art. 610 do CC), porquanto, o crédito não é anterior à doação efetuada e nem sequer impossibilita a satisfação do crédito que os AA detém.
16.-Cabendo a V. Exas. analisarem o presente recurso e darem razão à recorrente, devendo o Tribunal a quo refazer a sentença, pronunciando-se sobre os fatos aqui expostos.
Termos em que deve o presente recurso ser recebido e, a final, julgado procedente, anulando-se a douta sentença recorrida, como é de Justiça.
Os AA. contra-alegaram, tendo rematado com as seguintes conclusões:
1º- Os Apelantes interpuseram Recurso da Douta Decisão final de fls., a qual julgou a acção inteiramente procedente por provada, em consequência do que se declara a ineficácia relativamente aos AA da doação da 1ª R, com autorização do 2º R. aos 3º, 4º e 5º RR do direito de superfície sobre a fração autónoma, destinada a habitação, de que eram proprietários, designada pelas letras “BA”, correspondente ao décimo primeiro andar C, do prédio sito na Rua, concelho de Lisboa, descrita na Conservatória de Registo Predial de Lisboa com o n.º /”;
2º- Salvo melhor opinião, não ocorrem quaisquer fundamentos legais para a procedência do recurso;
3º- Tendo os Apelantes interposto recurso de Apelação duma Decisão que pôs termo à causa, o modo de subida será nos próprios autos, nos termos do artº 645º nº1, alínea a) do C. P. Civil, e não em separado como referem no requerimento;
4º- Não se aplica à Decisão Recorrida o artº 644º nº 2 alínea a) do C.P.C. mencionado no mesmo requerimento, mas sim o artº 644º nº1 alínea a) do mesmo diploma;
5º- Os Apelantes juntaram documentos às Alegações em clara violação designadamente do disposto no artº 651º do C. P. Civil, pelo que os mesmos devem ser desentranhados, o que requerem respeitosamente a V. Exªs;
6º- O Douto Tribunal recorrido decidiu bem ao julgar a ação totalmente procedente e provada, como se impunha em resultado da matéria dada como provada, quer decorrente da carreada para os autos como da produzida em audiência de julgamento;
7º- As alegações dos Apelantes, salvo melhor opinião, são confusas e repetitivas, contendo reiteradamente factos contrários à verdade, pelo que devem os Apelantes ser condenados como litigantes de má fé, o que se requer respeitosamente a V. Exªs;
8º- A presente Acção de impugnação pauliana foi instaurada, em vista a ser declarado ineficaz em relação aos Autores o ato de doação realizado no dia 07/09/2010 pela ora 1ª Ré, com a autorização do ora 2º Réu, aos ora 3º e 5º Réus, do direito de superfície sobre a fração autónoma, destinada a habitação, de que era proprietária, designada pelas letras ”BA”, correspondente ao décimo primeiro andar C, do prédio sito na Rua, lote, concelho de Lisboa, com todas as legais consequências;
9º- A Douta Decisão recorrida considerou que se mostravam verificados os respetivos pressupostos da impugnação pauliana;
10º- Não se conformando com a Douta Decisão, vêm os Apelantes alegar que não ocorrem os pressupostos da impugnação pauliana previstos no artº 610º do C Civil, em concreto os requisitos respetivamente da anterioridade do crédito e da impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito, mas não têm razão;
11º- Verificam-se todos os requisitos do instituto da impugnação pauliana previstos no art. 610º do CC, designada e respetivamente a anterioridade do crédito quanto ao ato e resultar do mesmo a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito;
12º- Ocorre a anterioridade do crédito dos Autores quanto ao ato, no caso concreto uma doação e resulta da mesma a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito dos Autores;
13º- Resulta da matéria provada que não correspondem à verdade muitos dos factos alegados pelos Apelantes, sendo evidente que litigam com manifesta má fé;
14º- É falso que os Autores tenham subscrito uma livrança;
15º- Não é verdade que tenha sido celebrado um contrato de leasing imobiliário entre a Autora e a 1ª Ré, e que estas tivessem à data do contrato a qualidade de sócias de uma sociedade comercial;
16º- O Contrato de locação financeira imobiliária foi celebrado em 20 de abril de 2007 entre a 1ª Ré e a Leasing, SA;
17º- À data do contrato ainda não tinha sido constituída qualquer sociedade comercial entre a Autora e a 1ª Ré que só foi constituída a 07/05/2007;
18º- A livrança foi garante do Contrato de locação financeira imobiliária datado de 20 de abril de 2007, constando no mesmo os nomes dos Autores como avalistas da livrança, pelo que à data a livrança já tinha sido subscrita e avalizada em branco e entregue à Leasing;
19º- Razão porque esta instaurou a execução também contra os Autores na qualidade de alegados avalistas;
20º- Os AA tiveram que celebrar uma transação no âmbito dessa execução a fim de evitar a venda da fração onde habita o ora Autor, a qual tinha sido penhorada e cuja venda já estava em curso, no âmbito da mesma execução;
21º- Da matéria provada resulta que os Autores apuseram as suas assinaturas na livrança que foi garante do contrato de leasing imobiliário, o qual foi outorgado no dia 20 de abril de 2007, tendo a doação sido efetuada posteriormente, ou seja, por escritura outorgada no dia 7 de setembro de 2010;
22º- O crédito dos Autores é anterior à doação, já que a constituição do mesmo crédito ocorreu na altura em que os Autores colocaram as suas assinaturas na livrança em branco que foi entregue e dada como garante do contrato de locação imobiliária realizado a 20 de abril de 2007, e a doação somente foi realizada no dia 07/09/2010;
23º- O crédito ocorreu quando foi subscrita e avalizada em branco a livrança, e não na data de emissão que consta na mesma;
24º- Diferentes realidades são respetivamente a data da em que são criados o crédito e a data em que o crédito pode ser executado, conforme jurisprudência, designadamente, Ac. STJ de 27/09/2016, in www.dgsi.pt;
25º- Nos termos do art.614º, nº1 do C. Civil, se admite que o credor, cujo crédito já se constituiu, mas ainda não se venceu, possa recorrer à impugnação pauliana;
26º- O momento da criação do crédito não tem que coincidir com o vencimento desse crédito, o que deita inequivocamente por terra a tese dos Apelantes;
27º- O crédito dos Autores é anterior ao ato de que resultou a transferência do direito de superfície dos dois primeiros Réus para os demais Réus;
28º- Ocorre, pois, a anterioridade do crédito dos Autores à doação, não tendo razão os Apelantes quanto à falta do requisito da anterioridade do crédito;
29º- Da prova produzida decorre que da doação resultou a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade da satisfação integral do crédito por parte dos AA, designadamente do relatório pericial e prova documental;
30º- Resulta do relatório pericial, qual o valor da nua propriedade e do usufruto, tendo em consideração as regras emergentes da legislação do imposto municipal de imóveis, bem como dos depoimentos de algumas testemunhas da área do imobiliário, qual o valor de mercado do usufruto, atentas as respetivas condições do imóvel e ainda do usufrutuário, designadamente a sua idade e ainda as condições gerais do mercado imobiliário;
31º- O Douto Tribunal considerou e bem com base nestes elementos e no conhecimento comum que não é credível que o direito de usufruto possa vir a ser vendido por valor suscetível de ressarcir os AA do seu direito de crédito sobre os RR.;
32º- Cabia aos RR provar que possuem bens penhoráveis de igual ou maior valor ao das dívidas (art.611º do C. Civil), o que efetivamente os RR não provaram;
33º- Contrariamente ao que os RR alegam os AA não têm salvaguarda da penhora dos vencimentos dos 1º e 2º RR, pois não trabalham, ou pelo menos a Ré não trabalha, estando atualmente reformada, vivendo apenas da sua pensão no valor mensal de 736,86 Euros;
34º- Dada a atual situação e o valor de mercado do imobiliário, não é verdade que o usufruto da fração doada pela 1ª Ré seja superior ao crédito dos AA., tanto mais que a 1º Ré ainda não tem 70 anos, além de que se encontra reformada, bem como ao que parece o seu marido;
35º- A Douta sentença recorrida não violou o disposto no artº 610º do C Civil, ou qualquer outra norma, pois o crédito é anterior à doação efetuada e esta impossibilita a satisfação do crédito que os AA têm sobre os 1º e 2º RR;
36º- Assim, face a todo o exposto, e pelo Douto suprimento de V. Exªs, deve ser mantida a Douta Decisão Recorrida, como é de Direito e de Justiça.
Em 07.11.2016 foi proferido despacho que ordenou o desentranhamento dos documentos juntos com as alegações de recurso dos apelantes, por se entender que a sua junção era inadmissível.
Na mesma data o recurso foi recebido, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
O ordenado desentranhamento de documentos foi concretizado em 05.12.2016.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO.
A questão, suscitada pelos apelados, da inadmissibilidade dos documentos juntos pelos apelantes com o recurso, foi decidida por despacho do juiz da primeira instância, que transitou em julgado. Assim, as questões a apreciar neste recurso são as seguintes: anterioridade do crédito dos AA.; impossibilidade ou agravamento de impossibilidade de satisfação do crédito dos AA.. Primeira questão (anterioridade do crédito dos AA.)
O tribunal a quo deu como provada e não foi impugnada, a seguinte.
Matéria de facto.
1- Os AA. apuseram as respectivas assinaturas no verso da livrança de que se mostra junta cópia a fls. 53 (cf. fls. 54) na qual, assinaladamente, se lê: no seu vencimento pagaremos por esta única via de livrança à Leasing ou à sua ordem, a quantia de quarenta e nove mil novecentos e trinta euros.
2- Sobre cada uma das respectivas assinaturas dos AA. consta manuscrita a expressão Por aval ao subscritor.
3- Da livrança consta como local de emissão Lisboa e como data de emissão 27-6-2011, com vencimento à vista.
4- Os RR. Maria e Mário apuseram as respectivas assinaturas na mesma livrança enquanto subscritores.
5- A livrança foi entregue em branco à “Leasing” enquanto garantia do pagamento das prestações emergentes do contrato de locação financeira imobiliária de que se mostra junta cópia de fls. 68 a 81.
6- O acordo, datado de 20-4-2007, foi celebrado entre a “Leasing”, enquanto locadora, e Maria, enquanto locatária.
7- O acordo reportava-se à cedência, por 180 meses, da fracção autónoma designada pela letra “B” (rés do chão com o n.º 71-B) do prédio urbano sito na Rua n.ºs 71 a 71-B, em Lisboa.
8- Por escritura de doação realizada no dia sete de Setembro de dois mil e dez, a 1.ª R. com a autorização do 2.º R., doou aos 3.º e 5.º RR. o direito de superfície sobre a fracção autónoma, destinada a habitação, de que era proprietária, designada pelas letras “BA”, correspondente ao décimo primeiro andar C, do prédio sito na Rua, lote um (actual nº 111 a 111 D), freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrita na Conservatória de Registo Predial de Lisboa com o n.º.
9- Fê-lo com reserva de usufruto e por conta da quota disponível.
10- No âmbito da execução que corre termos no 1.º Juízo, 2.ª secção do Tribunal de Execução de Lisboa, proc. n.º 559/12.0YYLSB, o direito de usufruto da 1.ª R. sobre o direito de superfície foi penhorado.
11- Por transacção homologada por sentença de 20-2-2015 no âmbito da oposição à execução que corre termos na 1.ª secção de execução da instância central de Lisboa, proc. n.º 559/12.0YYLSB-A, os ora AA. confessaram-se devedores de € 14 338,12 cada um e comprometeram-se a proceder ao pagamento de € 7 169, 06 no prazo máximo de 30 dias e do remanescente no prazo máximo de 60 dias.
12- Os AA. procederam ao pagamento acordado na sentença, conforme docs. de fls. 669 verso a 671 e 673.
13- Por decisão proferida pelo agente de execução de 18-5-2015, a instância executiva foi declarada extinta no que concerne aos AA., conforme fls. 680 verso.
14- O valor do usufruto da fracção autónoma, destinada a habitação, designada pelas letras “BA”, correspondente ao décimo primeiro andar C, do prédio sito na Rua, lote um (actual nº 111 a 111 D), freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrita na Conservatória de Registo Predial de Lisboa com o nº é, para efeitos de cálculo do valor do IMI de € 35 009, 35, não tendo valor comercial ou tendo este expressão muito reduzida e o valor da nua propriedade é de € 65 531, 65.
O Direito.
O cumprimento da obrigação é assegurado pelos bens que integram o património do devedor (art.º 601.º do Código Civil). O património do devedor constitui assim a garantia geral das suas obrigações. A lei concede aos credores meios de conservação dessa garantia geral. Entre eles conta-se a ação pauliana ou, na terminologia do Código Civil de 1966, a ação de impugnação pauliana (art.º 610.º e seguintes do Código Civil).
A impugnação pauliana visa os atos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito dos quais resulte “a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade” (alínea b) do art.º 610.º do Código Civil).
Com ela não se questiona a validade do ato impugnado, mas a sua eficácia perante o credor. “Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”(n.º 1 do art.º 616.º do Código Civil).
O crédito que se visa garantir deve ser anterior ao ato impugnado, mas também se pode proteger crédito posterior, se o ato tiver sido “realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor” (alínea a) do art.º 610.º do Código Civil).
Não obsta à impugnação a circunstância de o crédito, embora já constituído, não ser ainda exigível (n.º 1 do art.º 614.º).
O art.º 611.º do Código Civil estipula que incumbe ao credor a prova do montante das dívidas e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do ato a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.
O art.º 612.º n.º 1 estabelece que o ato oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má-fé; se o ato for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa-fé.
Na sentença recorrida reconheceu-se que os AA. eram titulares de um direito de crédito contra os 1.º e 2.º RR.. Esse direito, segundo a sentença, era o decorrente do pagamento (parcial) da livrança efetuado pelos AA., na qualidade de avalistas dos subscritores, à tomadora que a dera à execução, direito esse consagrado no terceiro parágrafo do art.º 32.º da LULL (“se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra”).
Nas conclusões da apelação (as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso – art.º 635.º n.º 4 do CPC) os RR. apelantes não questionam a existência desse direito, pelo que nesta parte não há que pôr em causa a admissibilidade de impugnação pauliana.
O que os RR. rejeitam, em primeira linha, é que o aludido crédito seja anterior ao ato impugnado.
Vejamos.
A doação impugnada data de setembro de 2010.
Nessa data não se vislumbra, perante o factualismo provado, que os AA. fossem titulares de qualquer direito face aos 1.º e 2.º RR.. O que resulta dos factos provados sob os n.ºs 1, 2, 5 a 7 é que os AA. se encontravam sujeitos, nessa data, à eventualidade de a locadora financeira referida na matéria de facto preencher a livrança em que os AA. (e os 1.º e 2.º RR., estes como subscritores) haviam, em abril de 2007, aposto o seu aval aos subscritores, com a livrança em branco. Situação essa que desembocou na sujeição a uma plena obrigação cambiária, na qualidade de avalistas dos subscritores, operada pelo preenchimento da livrança, ocorrido, aparentemente, em 27.6.2011, data que no título consta como sendo a da emissão da livrança (cfr. artigos 76.º e 10.º da LULL, ex vi art.º 77.º da LULL).
A colocação dos AA. na posição de credores dos 1.º e 2.º RR. só ocorreu, pois, em março e abril de 2015, quando, demandados pela tomadora da livrança em sede de execução cambiária (instaurada em 10.01.2012, conforme decorre de fls 67 dos autos), pagaram parcialmente o seu valor (a livrança ostenta o valor de € 49 930,00 e os AA. pagaram, cada um, € 14 338,12, no total de € 28 676,24).
Tal pagamento parcial é possível, conforme decorre do art.º 39.º n.º 2 da LULL. E, sendo o pagamento efetuado em sede de execução, aligeirada ficará a formalização da comprovação desse pagamento (cfr. art.º 39.º da LULL; neste sentido, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, “Títulos de Crédito”, 2.ª Edição, 2017, Almedina, páginas 182 e 183).
Segundo o terceiro parágrafo do art.º 32.º da LULL, “se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra” – e esta norma é aplicável às livranças (art.º 77.º, último parágrafo, da LULL).
O texto do aludido preceito da LULL parece referir-se a uma sub-rogação pessoal. Ou seja, um fenómeno que, numa das suas modalidades, consiste em um terceiro substituir, numa relação jurídica a que é alheio, o credor nos respetivos direitos. Por força da sub-rogação, que pode ter origem convencional ou legal (art.º 592.º do Código Civil), “o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam” (art.º 593.º n.º 1 do Código Civil). Por conseguinte, o sub-rogado fica investido na posição jurídica até aí atribuída ao credor da relação obrigacional, incluindo as respetivas garantias e demais acessórios, como numa cessão de créditos, cujo regime é aplicável à sub-rogação (artigos 582.º e 594.º do Código Civil). Operando a sub-rogação como uma cessão de créditos, o direito em que o sub-rogado foi investido mantém, para os efeitos de impugnação pauliana, a anterioridade de que eventualmente gozasse à data da sub-rogação (vide Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Garantias das Obrigações”, 2016, 5.ª edição, Almedina, pág. 75).
Porém, costuma salientar-se que a expressão do art.º 32.º da LULL (“fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra”) constitui tradução infiel dos textos originais das versões autênticas da LULL, a inglesa e a francesa: “The giver of an "aval" is bound in the same manner as the person for whom he has become guarantor. (…).He has, when he pays a bill of exchange, the rights arising out of the bill of exchange against the person guaranteed and against those who are liable to the latter on the bill of exchange”; “Quand il paie la lettre de change, le donneur d'aval acquiert les droits résultant de la lettre de change contre le garanti et contre ceux qui sont tenus envers ce dernier en vertu de la lettre de change” (vide José Gabriel Pinto Coelho, “Lições de Direito Comercial”, 2.º volume, Fascículo IV, Lisboa, 1946, páginas 9 e 10, nota 1; idem, Pinto Furtado, “Títulos…”, citado, pág. 186, nota 223).
Assim, o avalista que paga o título não fica propriamente sub-rogado no direito do portador, mas sim investido nos direitos atribuídos pelo art.º 49.º da LULL (na livrança, ex vi art.º 77.º): pode reclamar do avalizado e/ou dos seus garantes a soma integral que pagou ao portador, os juros dessa soma, calculados desde a data em que pagou, e as despesas que teve. Tudo com base em direito de regresso, emergente do cumprimento que fez de obrigação própria, que havia assumido enquanto garante do pagamento do título, por reporte ao avalizado (art.º 32.º, I e II, e 77.º da LULL), sendo certo que a responsabilidade solidária que emergia da subscrição do título como avalista expressa-se na regra geral contida no art.º 47.º da LULL. Salienta-se que se o avalista adquirisse propriamente os direitos do portador do título então poderia acionar também os obrigados intermédios, ou seja, aqueles que respondiam perante o portador do título mas não perante o avalizado. Assim, a norma específica do parágrafo terceiro do art.º 32.º da LULL visa situar o avalista na cadeia dos direitos de regresso e ao reconhecer expressamente o seu direito de acionar cambiariamente o avalizado supre a omissão literal que se verifica, quanto ao “avalizado”, na menção dos acionáveis contida no art.º 47.º da LULL (vide, neste sentido, v.g., Carolina Cunha, Letras e Livranças – Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime”, 2012, Almedina, páginas 113 e 114).
Porém, a verdade é que o avalista que paga a livrança adquire os direitos que dela emergem contra o seu avalizado e contra os obrigados deste. Adquire um direito cambiário, tal como decorre da livrança, ou seja, pode exigir do avalizado (e/ou dos seus obrigados) o cumprimento da respetiva obrigação cambiária, conforme o avalizado (e/ou os seus obrigados) a assumiu ao subscrever (em sentido amplo) a livrança.
A livrança sub judice está datada de 27.6.2011, ou seja, momento posterior à doação impugnada (que ocorreu em 07.9.2010).
Porém, provou-se que a livrança foi subscrita pelos 1.º e 2.º RR. (tal como pelos AA., estes como avalistas dos subscritores) em abril de 2007, com a livrança em branco.
Discute-se, na doutrina e na jurisprudência, se a subscrição de letra ou livrança em branco gera de imediato uma obrigação cambiária.
Para uns, a intenção de se obrigar cambiariamente, presente na aposição da assinatura no título em branco e sua entrega a outrem, a quem se concede o direito de o preencher nos termos de um acordo expresso ou tácito, aliada à possibilidade de circulação do documento em branco e à proteção concedida a terceiro portador de boa-fé, bastam para que se reconheça, logo nesse momento, a constituição de uma obrigação cambiária, cuja efetivação fica, ainda assim, subordinada ao preenchimento da letra ou da livrança (na doutrina, neste sentido, José Marques de Sá Carneiro, “Da Letra de Câmbio na Legislação Portuguesa”, Porto, 1919, páginas 87 a 90; José Gonsalves Dias, “Da letra e da livrança segundo a Lei Uniforme e o Código Comercial, volume IV, Coimbra, 1942, páginas 420 a 422; Vaz Serra, “Títulos de crédito”, BMJ n.º 61, Dezembro de 1956, pág. 264; Abel Delgado, “Lei Uniforme sobre Letras e Livranças” 6.ª edição, 1990, Livraria Petrony, página 76, nota 10 ao art.º 10.º; na jurisprudência, STJ, 22.01.2004, processo 03B3854; STJ, 20.3.2012, processo 29/03.TBVPA.P2.S1; STJ, 15.5.2013, processo 3057/11.5TBGDM-A.P1.S1; STJ, 27.9.2016, processo 701/07.2TBMCN.P1.S1).
Para outros, a circunstância de a letra ou a livrança só valerem, enquanto tais, quando estiverem preenchidas com os seus elementos essenciais (artigos 1.º, 2.º, 75.º e 76.º da LULL), impõe que a obrigação cambiária só se mostre constituída após o preenchimento do documento; antes disso, haverá uma vinculação cambiária em estado embrionário (na doutrina, v.g., Pinto Coelho, “Lições de Direito Comercial”, 2.º volume, Fascículo II, “As Letras, 2.ª parte”, Lisboa, 1943, páginas 31 a 33; Carolina Cunha, “Manual de Letras e Livranças”, 2016, Almedina, páginas 198, 229 a 233; Pinto Furtado, “Títulos ….”, citado, página 120; na jurisprudência, STJ, 12.7.2005, 05B2344 e, porventura, STJ, 16.01.2014, 1094/12.1TBTVD.L1.S1).
A jurisprudência que se baseia na primeira visão desta problemática reconhece ao tomador de letra ou livrança, que a tenha recebido subscrita em branco por avalista ou sacado ou subscritor antes de ato prejudicial à sua garantia patrimonial geral praticado pelo avalista, sacado ou subscritor, ato esse por sua vez anterior ao preenchimento do documento, direito à impugnação pauliana desse ato, preenchido que se mostre o título (vide acórdãos do STJ supra citados). Para solução contrária propenderá a citada jurisprudência oposta (vide mencionado acórdão do STJ, de 12.7.2005, que, porém, para o efeito levou em consideração o teor da relação jurídica subjacente e do contrato de preenchimento da livrança).
Mas, mesmo os defensores da tese negadora da natureza cambiária da obrigação assumida pelo subscritor (em sentido amplo) de letra ou livrança em branco reconhecem que tal assinatura intencional não é desprovida de efeitos jurídicos, criando um “embrião” da vinculação cambiária, na medida em que, representando a entrega do título em branco uma garantia (lato sensu) para o credor, “o devedor inadimplente fica num estado análogo ao da sujeição, ou seja, inevitavelmente exposto à produção de uma consequência na sua esfera jurídica por mero efeito do preenchimento (conforme) do título. Essa consequência não é outra, claro está, do que a constituição da obrigação cambiária” (Carolina Cunha, “Manual…”, citado, pág. 230).
Tal situação suscitará uma expetativa que justificará uma proteção idêntica à conferida ao credor condicional: nos termos do art.º 614.º n.º 2 do Código Civil, “o credor sob condição suspensiva pode, durante a pendência da condição, verificados os requisitos da impugnabilidade, exigir a prestação de caução” – mas não, pois, acionar a impugnação pauliana (neste sentido, Carolina Cunha, “Manual…”, citado, páginas 232 e 233). Porém, verificado o facto condicionador, que em princípio opera retroativamente à data da conclusão do negócio (art.º 276.º do Código Civil) o credor já poderá acionar a impugnação pauliana (João Cura Mariano, “Impugnação pauliana”, 2.ª edição, 2008, Almedina, página 169 e 170). Ou seja, à luz desta visão das coisas, uma vez preenchido o título de crédito, já o credor cambiário, a quem o título havia sido entregue assinado em branco em data anterior ao preenchimento, poderá impugnar paulianamente ato prejudicial da sua garantia patrimonial geral (ou seja, diminuidor do património do devedor) praticado pelo assinante em data posterior à assinatura, mesmo que anterior ao preenchimento do título. O que conduzirá a solução idêntica à da jurisprudência maioritária, supra indicada.
No caso dos autos, os ora AA./apelados apresentam-se como titulares do crédito titulado pela livrança, quanto à parcela que pagaram. Nessa medida podem confrontar os RR., subscritores da livrança, com a atuação prejudicial à solvabilidade do seu património perante a obrigação, agora inegavelmente cambiária, cuja constituição os RR. desencadearam em abril de 2007.
É certo que, como realçam os apelantes, a livrança se mostra datada de 27.6.2011. Porém, tal não obsta a que se tome em consideração a data real da emissão da livrança em branco, ou seja, aquela em que os RR. realmente a assinaram. Conforme dizia Pinto Coelho, relativamente à hipótese de falsidade da data de emissão ou criação do título nele constante, “…a literalidade dos títulos de crédito, se impede que, em relação a terceiros de boa fé, se alegue que a data indicada na letra não é a verdadeira data da criação do título, não impede, no entanto, que ao próprio sacador ou ao possuidor de má fé seja oposta a falsidade da data, visto que é princípio unanimemente aceite que a literalidade, como as demais características da obrigação cambiária e dos títulos de crédito em geral, só jogam como meios de protecção da boa fé, não podendo nunca converter-se em instrumentos de fraude” (obra citada, volume II, fascículo II, páginas 12 e 13). Também Vaz Serra admite que “na letra em branco, a data indicada no título no momento do preenchimento pode ser posterior à data em que o título é assinado” (BMJ 61, nota 1072). Igualmente Carolina Cunha defende que, nestas situações de desconformidade entre a data aposta no título emitido em branco e a da efetiva emissão, deverá proceder-se à respetiva reconfiguração da pretensão cambiária, maxime quando ela é operada face ao subscritor que, ao assinar e entregar um título em branco, conscientemente colocou o seu património na contingência de se ver afetado pela constituição de uma obrigação cambiária (Letras e Livranças…, citado, páginas 645 a 647, a propósito de um caso em que fora inscrita numa livrança uma data posterior à da morte do subscritor em branco).
O STJ, nos acórdãos supra citados, datados de 20.3.2012 e de 27.9.2016, admitiu, sem levantar problemas, impugnações paulianas sustentadas em títulos de crédito emitidos em branco em datas anteriores às constantes no título (tendo os atos impugnados ocorrido entre cada um desses momentos).
Pelo exposto, voltando ao caso dos autos, tendo a livrança sido emitida em abril de 2007, data que é a que releva em termos de constituição da obrigação cambiária dos RR., e datando o ato impugnado de setembro de 2010, considera-se, tal como na sentença recorrida, que in casu se verifica o requisito da anterioridade do crédito invocado.
Segunda questão (impossibilidade ou agravamento de impossibilidade de satisfação do crédito dos AA.) Quanto a esta questão provou-se, sem impugnação relevante pelas partes, o seguinte:
14- O valor do usufruto da fracção autónoma, destinada a habitação, designada pelas letras “BA”, correspondente ao décimo primeiro andar C, do prédio sito na Rua, lote um (actual nº 111 a 111 D), freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrita na Conservatória de Registo Predial de Lisboa com o nº é, para efeitos de cálculo do valor do IMI de € 35 009, 35, não tendo valor comercial ou tendo este expressão muito reduzida e o valor da nua propriedade é de € 65 531, 65.
Como se disse supra, recai sobre o devedor o ónus da demonstração de que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao da dívida em causa (art.º 611.º do Código Civil).
As dívidas em causa orçam, só em capital, € 28 676,24. O único património conhecido dos RR. é o direito ao usufruto da fração autónoma, em direito de superfície (sobre terreno que é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, conforme consta na certidão do registo predial junta aos autos), que a 1.ª R. doou aos 3.º e 5.º RR., direito de usufruto esse que, conforme se provou, não tem valor comercial, ou é muito reduzido (n.º 14 da matéria de facto).
De resto, todos os RR., segundo afirmam, gozam do benefício de apoio judiciário, com dispensa do pagamento de custas, o que corrobora uma situação de insuficiência económica.
Assim, mostra-se preenchido o requisito previsto na alínea b) do art.º 610.º do Código Civil, para a procedência da impugnação pauliana.
A apelação é, pois, improcedente.
Na contra-alegação os recorridos alegaram que os apelantes interpuseram o recurso em termos que constituem litigância de má-fé.
Nos termos do disposto no art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A atual redação do preceito, introduzida no anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
No acórdão do STJ, de 11.12.2003 (processo 03B3893 – internet, dgsi-itij), expendeu-se o seguinte: “O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do artº 456º, CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a e b, do nº2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico - sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual.”
Concorda-se com a abordagem do referido instituto expressa no citado acórdão, a qual se mostra reiterada igualmente, por exemplo, nos acórdãos do STJ de 28.5.2009 (09B0681), 21.5.2009 (09B0641) e 26.2.2009 (09B0278).
Ora, in casu a apelação alicerça-se, por um lado, numa apreciação jurídica dos factos que, como resulta da fundamentação do acórdão, não é líquida e suscita debate e, por outro, numa invocação de factualismo que, embora parcialmente divergente do que foi fixado pelo tribunal a quo, é facilmente fiscalizável face aos elementos patenteados nos autos e se mantém dentro dos limites legais e constitucionais do direito de defesa e de impugnação das decisões judiciais.
Entende-se, pois, que os apelantes não preencheram os pressupostos legais da litigância de má-fé.
DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo dos apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.