SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONTUMÁCIA
Sumário

1)- A declaração de contumácia proferida num processo não implica a suspensão do incidente de revogação da suspensão da pena de prisão que corre num outro processo;

2)- Quando o condenado não foi ouvido presencialmente pelo tribunal sobre a revogação – mas apenas por tal audição ter sido absolutamente inviabilizada pelo mesmo, apesar das exaustivas diligências realizadas nos autos com vista ao seu contacto direto – não houve violação do disposto no artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nem se verificou a nulidade insanável prevista na alínea c) do artigo 119.º do mesmo diploma.

3)- Se, após ter sido notificado do plano de reinserção social no âmbito do regime de prova, o condenado deixou propositadamente de comparecer perante o técnico de reinserção social e de cumprir todos os deveres aí assinalados – só voltando a contactar o tribunal mais de 5 anos depois, quando já havia decorrido todo o período de suspensão de execução da pena – é correta a revogação desta suspensão pelo tribunal recorrido, por incumprimento grosseiro e reiterado daquele plano (artigo 56º/1/a do Código Penal).

(sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Por acórdão proferido no processo comum nº 116/08.5GDALM (autos principais), transitado em julgado em 18/2/2010, o arguido L... foi condenado – em cúmulo jurídico de cinco penas parcelares aplicadas pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21°, n° 1, do Decreto-Lei n° 15/93 de 22/1, de um crime de roubo, previsto e punido, pelo artigo 210°, n° 1 do Código Penal, de um crime de extorsão, previsto e punido, pelo artigo 223° do Código Penal, de um crime de falsificação agravada, previsto e punido pelo artigo 256°, nº1, alíneas a) e c) e nº 3 do Código Penal, e de um crime de recetação, previsto e punido, pelo artigo 231°, n° 1 do Código Penal – na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, nos termos dos artigos 50°, n.°s 1 e 5, e 53° do Código Penal.

Elaborado plano individual de reinserção, mas não tendo o mesmo sido cumprido – por o arguido se ter, entretanto, ausentado para destino desconhecido, em França, e não se tendo revelado possível a sua notificação – e, depois de se ter constatado a inviabilidade da sua audição, para os efeitos do disposto no artigo 495°, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, veio a ser proferido despacho judicial em que, concluindo-se pela violação grosseira, pelo condenado, dos deveres inerentes ao plano de reinserção social, foi revogada a suspensão da execução da pena e determinado o cumprimento da mesma.

                                                      *                                                  

Inconformado com o assim decidido, o arguido L... interpôs o presente recurso, cujos fundamentos condensou nas seguintes conclusões:

«1 - O presente recurso irá quedar-se basicamente no facto de se saber se a questão da contumácia aplicada num processo, produz efeitos no âmbito de demais processos que contra o arguido se encontrem a correr, ou se apenas "vale, produz efeitos, no processo onde foi aplicada.

2 - E isto porque, em termos muito simples, se a declaração de contumácia, declarada a 18/03/2013, no âmbito do proc. 1375/13.7TBALM, que corria os seus termos no 3° Juízo de Competência Criminal do Tribunal de Família e de Menores de Almada, cfr. consta de fls. 1313 dos autos à margem referenciados, não produz efeitos no âmbito dos presentes autos, a pena aplicada neste processo a 15 de janeiro de 2010, que, quanto ao arguido ora recorrente, transitou em julgado a 18 de fevereiro de 2010, cfr.  fls. 1317 dos autos, extinguiu-se por decurso do tempo no dia 17 de fevereiro de 2015, pois não consta dos presentes autos nenhuma causa de suspensão e interrupção ou sequer de prorrogação da pena nestes autos aplicada.

3 - Se entendermos que a declaração de contumácia decretada a 18/03/2013, no âmbito do proc. 1375/13.7TBALM, que corria os seus termos no 3° Juízo de Competência Criminal do Tribunal de Família e de Menores de Almada, cfr. consta de fls. 1313 dos autos à margem referenciados, produz efeitos no âmbito dos presentes autos, então todas as notificações efetuadas a partir de tal data ao arguido para a morada constante do TIR que prestou a fls. 7 nos presentes autos, no dia 16 de fevereiro de 2008, são nulas, não produzindo estas qualquer efeito, devendo a Douta Decisão ser considerada nula, porquanto o arguido não foi notificado, devendo os presentes autos ficarem suspensos até à apresentação do arguido em juízo e prestação de novo TIR, tendo o Douto Tribunal conhecimento de que o mesmo se encontrava contumaz no âmbito de um outro processo.

4 - Acresce que o Tribunal revogou a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido, sem que se cumprisse o disposto no artigo 495° nº 2 do Código de Processo Penal, sendo certo que tal omissão é culminada ([1]) de nulidade insanável nos termos do disposto no artigo 119° alínea c) do Código de Processo Penal.

4 – Assim, face ao supra exposto, ou se considera que ouve falta de notificação (atendendo à contumácia do arguido decretada no âmbito do processo já supra identificado), devendo, por conseguinte, o arguido ser notificado, para pronunciar-se nos termos do disposto no artigo 495° nº 2 do Código de Processo Penal, sendo certo que a decisão que revogou a pena de prisão que lhe foi aplicada, se deve ter como inexistente, ou deve, conforme é nosso entendimento e salvo melhor e Douta opinião, a pena nos presentes autos ser declarada extinta pelo decurso do tempo, uma vez que inexiste nos autos e tal pode ser verificado por V. Exas. pela simples leitura de fls. 1200 a 1441, verifica-se que o Douto Tribunal não ordenou a suspensão do incidente de revogação da suspensão, permitindo, assim, em nosso modesto entender, a extinção da pena pelo simples decurso do tempo, o que ocorreu em 17 de fevereiro de 2015.

5 - Não pode o Douto Tribunal vir, em 3 de dezembro de 2015, com base numa promoção de 28/10/20015, revogar a suspensão da execução da pena, determinando o cumprimento da mesma, sem ouvir o arguido, nos termos do disposto no artigo 495° nº 2 do Código de Processo Penal.

6 - Tanto mais que, em 3 de julho de 2014, entende-se por essencial a presença do arguido, conforme consta de fls. 1387 e 1388 dos autos.

7 - Tal como supra se referiu, a pena dos presentes autos deve ser declarada extinta pelo decurso do tempo, uma vez que o Douto Tribunal não fez operar no processo nenhuma causa de suspensão ou interrupção da referida pena.

8 - Acresce que, tal como já supra se referiu, o Douto Tribunal tinha pela consciência de que o arguido estava declarado contumaz no âmbito de um outro processo.

9 - A contumácia é a situação processual de suspensão dos termos de um processo-crime, por ausência do arguido, e que conduz a que se imponha, ao declarado contumaz, um conjunto de medidas que, por lhe dificultarem a vida, se consideram adequadas a persuadi-lo a comparecer.

10 - A contumácia representa como que um “coma processual”, quer para o arguido, quer para o próprio processo.

11 - Mas se a declaração de contumácia é um reconhecimento de que, no processo, se gorou a possibilidade de localizar o arguido e de o sujeitar a TIR, ela indicia também que o arguido desconhece a pendência de processo-crime.

12 - Nestes casos, é de reconhecer a impossibilidade de cumprimento dos deveres decorrentes da posição de arguido, mesmo que um concreto acusado pretendesse responder perante a justiça. Ou desejasse ‘apresentar-se’, no sentido ‘mala partem’ que é dado ao termo legal no despacho recorrido.

13 - A prestação de TIR é condição sine qua non da possibilidade de prosseguimento do processo, pois só ela garante os direitos de defesa, investindo plenamente o arguido nesse estatuto complexo de direitos/poderes/deveres. Mas também apenas o próprio prosseguimento do processo garante, por seu turno, o cumprimento das finalidades do próprio processo penal.

14 - Assim, a contumácia não pode deixar de representar uma suspensão do processo indesejável, uma anomalia, um remedeio necessariamente transitório para uma enfermidade adjetiva que é a impossibilidade de localização do arguido. Impossibilidade que impede o julgamento e obsta à decisão do caso e da causa, enquanto essa localização não se verificar.

15 - Por isso que a lei processual obriga, nestes casos, o Ministério Público e o próprio Juiz de julgamento a encetar todas as diligências necessárias à localização do arguido ausente, de forma a que, encontrado, se lhe dê conhecimento da existência do processo e da acusação contra si deduzida, seja sujeito a prestação de TIR, assim se alcançando o objetivo do prosseguimento do processo "paralisado".

16 - De outro modo, não se percebe a preocupação processual de procurar a localização do arguido, que aliás a lei não limita ao espaço nacional. Encontrado o arguido no estrangeiro, obtida a sua atual residência, nada obsta, pelo contrário, impõe-se que ao mesmo se dê conhecimento da existência do processo e da acusação contra si deduzida para lhe permitir o exercício dos seus poderes/deveres e, por outro lado, consolidar a realização de justiça pelos Tribunais/Estado com a prolação de uma sentença.

17 - De qualquer modo, entende-se que, se no momento em que se completa o período de suspensão não se tiver iniciado o incidente de incumprimento das condições a que foi subordinada a suspensão, impõe-se declarar extinta a pena de substituição, em face da regra geral prevenida no nº 1 do artigo 57° do Código Penal.

18 - Nos casos de suspensão da execução da pena de prisão, concluído o período da suspensão, só a pendência de incidente por incumprimento dos deveres, regras de conduta ou do plano de readaptação (hoje, plano de reinserção) ou a pendência de processo por crime que possa determinar a sua revogação poderão evitar a extinção da pena pelo decurso do período de suspensão (artigo 57°, nº 1, do Código Penal), mas, em nosso entender, tem o Tribunal de ordenar a suspensão do incidente de revogação da suspensão, pois, se assim não o fizer, conforme sucedeu nos presentes autos, a pena tem de ser declarada extinta pelo decurso do tempo.

19 - Do disposto nos artigos 50°, nºs 2 e 3, 51°, nº 4, 52°, nº 4, e 53°, nº 2, todos do Código Penal, e 595°, nº 2, do Código de Processo Civil, bem como do princípio do contraditório, decorre que, no incidente de revogação da suspensão da pena de prisão, o Tribunal deve sempre ouvir o Arguido.

20 - Tal audição tem de ser presencial sempre que, durante a suspensão da execução da pena, tenha havido intervenção dos serviços de reinserção social, sendo desnecessária a audição presencial quando tal intervenção não tenha sucedido.

21 - Acresce que o facto de ter processos em curso ou mesmo o cometimento de um crime no período de suspensão da execução da pena de prisão não determina automaticamente a revogação daquela.

22 - Sendo até jurisprudência dos nossos tribunais que só a pena de prisão efetiva e após o trânsito em julgado poderá vir a determinar a revogação da suspensão da pena aplicada.

23 - O Arguido deveria ter sido ouvido presencialmente pelo Tribunal recorrido e, não o tendo sido, deve a decisão recorrida ser revogada, a fim de ser cumprida tal formalidade. Vejamos:

24 - Relevam os artigos 50°, nºs 2 e 3, 51°, nº 4, 52°, nº 4, e 53°, nº 2, todos do Código Penal, e 595°, nº 2, do Código de Processo Penal, assim como o princípio do contraditório.

25 - O artigo 50°, nºs 2 e 3, do Código Penal refere que “o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”, sendo que “os deveres e as regras de conduta podem ser impostas cumulativamente”. ---

26 - Segundo os artigos 51°, nº 4, e 52°, nº 4, do Código Penal, caso a suspensão da execução da pena de prisão fique subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, “o tribunal pode determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos”.

27 - Nos termos do artigo 53°, nº 2, do Código Penal, “o regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social”.

28 - Ou seja, nos termos do apontado regime legal, a suspensão da pena de prisão, enquanto pena de substituição desta, pode revestir uma de cinco modalidades: ---

· Suspensão da pena de prisão tout court,---

· Suspensão da pena de prisão com cumprimento de deveres; ---

· Suspensão da pena de prisão com regras de conduta; ---

· Suspensão da pena de prisão com cumprimento de deveres e regras de conduta;

-Suspensão da pena de prisão com regime de prova. ---

29 - No primeiro caso, a suspensão da pena de prisão não tem acompanhamento dos serviços de reinserção social.

30 - No último caso, tal acompanhamento é inerente à pena.

31 - Nos restantes casos, o acompanhamento dos serviços de reinserção social pode ser determinado pelo Tribunal.

32 - Por outro lado, o artigo 495°, nº 2, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe "falta de cumprimento das condições de suspensão", dispõe que, para efeitos de apreciação judicial do cumprimento daquelas condições, nomeadamente a fim de as modificar ou de revogar a suspensão da execução da pena de prisão, “o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições de suspensão”.

 33 - O principio do contraditório, constitucionalmente reconhecido cfr. artigo 32°, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório, impõe que qualquer participante processual seja ouvido pelo Tribunal antes da decisão deste, quanto a toda e qualquer questão de que aquele tenha um interesse direto quanto ao respetivo desfecho.

34 - Do cotejo do apontado regime legal decorre que, no incidente de revogação da suspensão da pena de prisão, o Tribunal deve sempre ouvir o Arguido.

35 - Tal audição deve ser presencial sempre que, durante a suspensão da pena, tenha havido intervenção dos serviços de reinserção social, sendo desnecessária a audição presencial quando tal intervenção não tenha sucedido.

36 - No sentido do aqui sufragado, vejam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.06.2012, Processo nº 56/05.0GCPBL.C1, relatado pelo Senhor Desembargador Jorge Jacob, do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.11.2009, Processo nº 51/01.8PAOERL1-3ª, relatado pelo Senhor Desembargador Augusto Lourenço, e 28.02.2012, Processo nº 565/04.8TAOER.L1-5ª, relatado pelo Senhor Desembargador Neto Moura, todos in www.dgsi.pt, salvo o segundo, in pgdlisboa.pt.

37 - No sentido de que o arguido deve ser sempre ouvido presencialmente, vejam-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.12.2008, Processo nº 70/97.7IDSTRC1, relatado pelo Senhor Desembargador Brízida Martins, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 30.06.2010, Processo nº 3506/02.3TDLSB.L 1- 3, relatado pela Senhora Desembargadora Maria José Costa Pinto, todos in www.dgsi.pt.

38 - Não se vislumbra é motivo para entender de forma diversa.

39 - Desde logo, por se considerar a letra do nº 2 do mencionado artigo 495°: aí se refere a necessidade de ouvir “o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições de suspensão”, o que significa que, inexistindo tal apoio e fiscalização, a audição do “condenado”, em cumprimento do princípio do contraditório, não tem que ser presencial.

40 - No caso em apreço, o Douto Tribunal incumpriu o estatuído no artigo 495° nº 2, o que, nos termos do artigo 119° alínea c), constitui nulidade insanável, a qual desde já se argui.

41 - Da justeza da revogação da suspensão da pena de prisão em razão do incumprimento do plano de (?):

42 -Apenas se pode afirmar no presente caso que o arguido, tentando e lutando por uma vida melhor e por ter contrato de trabalho que lhe permite sustentar a sua mulher e filho, emigrou para França, tentando desse modo reintegrar-se e tornar-se um elemento válido na nossa comunidade.

43 - Nada mais se pode assacar da decisão ora [sob] recurso, que padece, em nosso entender, de falta de fundamentação, porquanto não constam da mesma elementos suficientes que possam indicar por parte do arguido uma conduta reiterada e dolosa, pelo que entendemos que, também por insuficiência da fundamentação, deve a presente decisão ter-se por nula – artigo 379° nº 1 alínea c), aplicável também a Despachos finais, como é o presente.

44 - Acresce apenas dizer que o cometimento de um crime no período de suspensão da execução da pena de prisão não determina automaticamente a revogação daquela.

45 - Tal revogação apenas decorre caso se mostrem frustrados os objetivos que justificaram a suspensão da execução da pena. ---

46 - Findo o período de suspensão, a falta de cumprimento dos deveres condicionantes da suspensão não desencadeia, automaticamente, a revogação da suspensão, pois é necessário que o condenado tenha infringido “grosseira ou repetidamente” esses deveres, o que pressupõe que a sua atuação tenha sido particularmente censurável.

47 - Conforme supra se referiu, não é passível, pois tal não consta fundamentado da Douta Decisão de que ora se recorre, que a atuação do arguido tenha sido especialmente censurável, não devendo, por conseguinte, manter-se tal decisão.

48 - Pelo que, tal como já se referiu, questão fulcral é a de saber se deve ou não ser obrigatória a audição do arguido aquando da decisão de revogação da suspensão.

49 - No entender do Professor Paulo Pinto de Albuquerque, a não audição do arguido nestas situações constitui uma nulidade, nos termos do artigo 119°, alínea c), do Código de Processo Penal, independentemente do motivo da revogação da suspensão, visto que a lei não distingue.»

Terminou o condenado por pedir, singela e remissivamente, ‘pelos fundamentos supra expendidos, (…) o provimento’ do recurso.

                                                      *

O Ministério Público apresentou resposta, em que concluiu que:

«A) O recurso não merece provimento.

B) O douto despacho encontra-se bem fundamentado e espelha (bem) a prova recolhida em sede de audiência de discussão e julgamento.

C) Não merece qualquer reparo.»

                                                      *

Já nesta instância de recurso, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que concluiu que o recurso não merece provimento.

                                                      *

Cumpre decidir.

                                                      *

II – Fundamentação

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ([2]), sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Partindo da decisão da 1ª instância – que, previamente, se reproduzirá – e dos termos do recurso interposto, as questões a decidir são as de saber:

- se a contumácia do arguido – declarada, entretanto, noutro processo em fase de julgamento – afeta a validade das notificações entretanto efetuadas para a morada constante do termo de identidade e residência prestado no processo da condenação;

- se a falta de audição pessoal do arguido implica nulidade insanável que importa a invalidade, nomeadamente, do despacho em que decretou a revogação de suspensão da prisão;

- se o despacho recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação;

- se a falta de cumprimento do plano de reinserção social é fundamento suficiente da revogação da suspensão de execução da prisão.

                                          *

O despacho recorrido, de 3 de dezembro de 2015 (transcrição):

«L... foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 18/02/2010, na pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova,

Foi elaborado plano individual de reinserção, homologado por despacho de folhas 1312.

Porém, o condenado ausentou-se do território nacional, sem dar conhecimento de tal facto aos serviços de reinserção social competentes e sem voltar a contactar aqueles serviços.

O progenitor do condenado, confirmou a ausência daquele, em França, indicando uma morada (folhas 1252).

Tentou-se, assim, notificar o condenado, sem êxito, tendo a notificação sido devolvida com a menção "destinatário desconhecido".

Mostram-se esgotadas, sem êxito, todas as diligências tendentes à aludida notificação.

A ausência do território nacional, sem morada conhecida e a omissão de contacto com os serviços da DGRSP consubstanciam, no caso em apreço, incumprimento do plano individual de reinserção estabelecido, inviabilizando ainda qualquer fiscalização do cumprimento das obrigações impostas.

Demonstra, assim, desinteresse e falta de colaboração com os serviços de reinserção social e escassa adesão à execução da medida aplicada.

Não foi possível proceder à sua audição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 495° nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, não obstante as diversas diligências realizadas nos autos com vista à sua localização.

Estabelece o artigo 56°, n° 1 do Código Penal que a suspensão da execução da pena é revogada sempre que o condenado (...) infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou (...) cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

É de concluir pela violação grosseira, pelo arguido/condenado, dos deveres inerentes ao Plano de Reinserção Social homologado judicialmente, cujo cumprimento constituía condição de suspensão da execução da pena de prisão.

Impõe-se, pois, concluir que as finalidades subjacentes à suspensão da execução da pena não puderam afinal ser alcançadas.

Pelo exposto, considerando o disposto no artigo 56° do Código Penal, revogo a suspensão da execução da pena e determino o cumprimento da mesma pelo arguido/condenado.

Remeta boletim para registo criminal.»

                                                      *

A) Os invocados efeitos da declaração de contumácia em outros processos 

Ventilou o recorrente/condenado a virtualidade de a declaração de contumácia – decretada, entretanto, num outro processo em fase de julgamento (no caso, por despacho proferido a 18/3/2013, no âmbito do processo 1375/13.7TBALM) – afetar a validade das notificações entretanto efetuadas para a morada constante do termo de identidade e residência prestado no processo da condenação.

Pois bem.

A declaração de contumácia na fase de julgamento de um determinado processo, prevista nos termos dos artigos 335º a 337º do Código de Processo Penal, é direcionada a obter a apresentação do arguido nesse processo, através da suspensão dos termos posteriores desse processo até à apresentação ou detenção do arguido nesse mesmo processo. Tais efeitos intraprocessuais decorrem essencialmente do disposto no nº 3 do artigo 335º do Código de Processo Penal.

O artigo 337º prevê ainda a emissão de mandados de detenção, no âmbito desse mesmo processo, bem como sanções de natureza civilística, destinadas a reforçar a intencionalidade de repor o normal andamento do concreto processo penal assim suspenso.

Não prevê, no entanto, a lei processual penal qualquer forçosa extensão aos restantes processos penais, designadamente aos já julgados, dos efeitos da contumácia, não alargando aos presentes autos o alegado “coma processual” (cfr. conclusão 10ª do recurso), tão desejado como provocado pelo arguido/condenado (apesar de, mais adiante e contraditoriamente, pretender a extinção da pena pelo decurso do prazo de suspensão da mesma…).

Assim, entendemos que, independentemente de todos os seus eventuais efeitos práticos extraprocessuais, a declaração de contumácia não revoga medidas de coação vigentes em processos diversos daquele em que é proferida, como sucede com o TIR prestado nos presentes autos.

Anote-se ainda que, na conclusão 18ª do seu recurso, o condenado alegou que “(…) tem o Tribunal de ordenar a suspensão do incidente de revogação da suspensão, pois, se assim não o fizer, conforme sucedeu nos presentes autos, a pena tem de ser declarada extinta pelo decurso do tempo”.

Porém, se já expressámos que a declaração de contumácia proferida num outro processo não implica a suspensão do presente incidente de revogação da suspensão da pena de prisão, não podemos também deixar de afirmar que, no presente caso, o Tribunal recorrido não poderia declarar extinta a pena pelo decurso do prazo da suspensão.

Na verdade, o nº 2 do artigo 57º do Código Penal dispõe hoje expressamente que, “se, findo o período da suspensão, se encontrar pendente processo por crime que possa determinar a sua revogação ou incidente por falta de cumprimento de deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção, a pena só é declarada extinta quando o processo ou o incidente findarem e não houver lugar à revogação ou à prorrogação do período da suspensão”.

 Ora, apesar de ter decorrido já o prazo da suspensão, verifica-se que, na data em que este, pelo normal decurso do tempo, se completou (17 de fevereiro de 2015), se encontravam pendentes pelo menos dois outros processos contra o recorrente, por factos posteriores ao trânsito em julgado do acórdão que estabeleceu a pena ora em execução, a saber:

- aquele em que foi declarada a contumácia (nº 1375/13.7TBALM, já acima referenciado);

- o processo nº 287/11.3GDALM, em que o ora recorrente, por factos de 24/4/2011, foi condenado como coautor de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º, nº 1, do Código Penal, não tendo a respetiva sentença, quanto ao arguido aqui recorrente, transitado em julgado, por não se ter conseguido a sua notificação pessoal ([3]).

Assim, porque se encontravam pendentes processos por crimes que podem vir a determinar a revogação da suspensão de execução da presente pena de prisão, mostrava-se e continua a mostrar-se legalmente inadmissível a declaração de extinção da pena em causa.

De resto, também no que tange ao presente incidente, mesmo que não se tenha iniciado antes da data do termo do normal decurso do prazo da suspensão, refere-se indubitavelmente a um alegado incumprimento do plano de reinserção social ocorrido durante tal prazo de suspensão. Tanto bastaria para obstar à declaração de extinção da pena, face ao próprio nº 1 do artigo 57º do Código Penal, onde se preceitua que a pena é declarada extinta decorrido o período da sua suspensão, “(…) se (…) não houver motivos que possam conduzir à sua revogação”. O que só poderia suceder depois de o juiz verificar, através da necessária decisão (que não foi, entretanto, proferida), a inexistência de tais motivos.   

Improcede, assim, este fundamento do recurso.

                                                      *

B) A alegada nulidade por incumprimento do contraditório

Alegou o recorrente que, no caso em apreço, o Tribunal incumpriu o estatuído no artigo 495°, nº 2, do Código de Processo Penal, o que, nos termos do artigo 119°, alínea c), do mesmo diploma, constituiria nulidade insanável – nulidade essa que expressamente arguiu.

Para apreciar a questão suscitada, há que atender às seguintes ocorrências processuais:

1) no âmbito da elaboração do plano de reinserção social – datado de 24/11/2010 e homologado por despacho judicial de 9/12/2010 – o condenado ora recorrente foi entrevistado pelo técnico de reinserção social, tomou conhecimento das acções que viriam a ser incluídas em tal plano e manifestou concordância com as mesmas (cfr. plano de reinserção de fls. 1307-1310 dos autos principais);

2) o referido despacho homologatório foi notificado ao condenado, com prova de depósito efectuada a 15/12/2010 (fl. 1320 do processo principal), bem como ao seu (então) mandatário constituído;

3) no plano de reinserção social consta como dever a respeitar pelo condenado, entre outros, o de “informar antecipadamente o técnico superior de reinserção social sobre a deslocação superior a cinco dias e sobre a data do previsível regresso, solicitando autorização prévia ao Tribunal competente em caso de deslocação ao estrangeiro”;

4) o arguido compareceu à 1ª entrevista de acompanhamento, em janeiro de 2011, informando de que continuava a viver, com a companheira e filha menor, junto do seu agregado de origem, assinalando que não conseguia arranjar trabalho em Portugal e de que perspetivava ir trabalhar para França, junto de um tio que tinha uma firma de construção civil; foi-lhe, então, referido (pelo técnico) que deveria solicitar autorização ao Tribunal e que seria aconselhável apresentar contrato de trabalho ou uma declaração do empregador;

5) em junho de 2011, foi realizada um nova entrevista com o arguido, tendo este referido que já tinha uma carta de chamada do tio e que aguardava que o mesmo lhe remetesse o contrato de trabalho para então solicitar a autorização para se ausentar para França, tendo sido logo agendada uma entrevista para julho de 2011, à qual o arguido não compareceu (cfr. relatório de avaliação de folhas 1335-1337 do processo principal);

6) entretanto, o arguido continuava a viver junto do seu agregado de origem, aguardava contacto da Escola do Monte de Caparica para iniciar o processo RVCC (revalidação, verificação e certificação de competências, no âmbito das “Novas Oportunidades”) e já se tinha apresentado na Equipa de Tratamento de Almada, para eventual tratamento à toxicodependência (cfr. relatório de avaliação de folhas 1335-1337 do processo principal);

7) face à não comparência do arguido, este foi convocado para se apresentar na DGRS em novembro de 2011, não tendo comparecido nem entrado em contacto com esses serviços, sendo estes informados, em dezembro de 2011, pela mãe daquele arguido de que este se tinha ausentado para França com a companheira e a filha menor (cfr. relatório de avaliação de folhas 1335-1337 do processo principal);

8) o arguido não voltou, por qualquer meio, a contactar com os serviços de reinserção social, assinalando-se que o mesmo deveria comparecer, no dia 1 de janeiro de 2012, nos serviços do Ministério Público do T.J. de Almada (1ª secção de processos) para interrogatório, na qualidade de suspeito, no âmbito do processo 450/11.7GDALM, então na fase de inquérito (cfr. relatório de avaliação de folhas 1335-1337 do processo principal);

9) notificado para tal pelo Tribunal de 1ª instância, veio o pai do arguido informar sobre a morada deste em França (cfr. folhas 1346 e 1352 do processo principal);

10) por despacho de folha 1381 do processo principal, foi ordenada a notificação do arguido, por carta registada com A.R., para a nova morada em França indicada pelo seu pai – para se pronunciar sobre o comunicado incumprimento do plano de reinserção social – carta essa que veio devolvida com a anotação de “pli non distribuable, destinataire non identifiable” (em tradução livre, “carta não distribuível, destinatário não identificável”) (cfr. folhas 1381 e 1385);

11) ordenada, então, a notificação do condenado na morada do TIR, através da GNR da Trafaria, foi lavrada certidão de não notificação pessoal do arguido, tendo como justificação: “segundo informação da madrasta, Sr.ª Engrácia Correia Mendes, o mesmo emigrou para França há cerca de dois anos; desconhece morada (contacto), bem como quando regressa a Portugal”;

12) por factos de 24/4/2011, no processo nº 287/11.3GDALM, o ora recorrente foi condenado como coautor de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º, nº 1, do Código Penal, não tendo a respetiva sentença, quanto ao arguido aqui recorrente, transitado em julgado, por não se ter conseguido a sua notificação pessoal (cfr. cópia da certidão junta a folhas 1427-1439 do processo principal);

13) depois de nova pesquisa de morada atual nas bases de dados nacionais sem qualquer resultado, foi solicitada, em cumprimento de despacho judicial de 13/3/2014, nova averiguação de paradeiro junto de familiares ao OPC, mas também sem resultados positivos;

14) designada data para tomada de declarações ao arguido (3/7/2014), nos termos do artigo 495º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, efetuando-se a notificação pessoal daquele, por carta registada com prova de depósito, na morada conhecida nos autos (a do TIR);

15) o respetivo mandatário constituído, também notificado, declarou renunciar ao mandato;

16) na referida data de 3/7/2014, nem o ora recorrente nem o seu mandatário compareceram à diligência marcada, na qual foi proferido novo despacho a ordenar repetição da averiguação junto das bases de dados, novamente sem resultados positivos;

17) a 10/7/2015, a Equipa de Setúbal da DGRSP informou que, até ao termo previsto do prazo da suspensão da execução da pena com regime de prova (2/8/2015), nunca mais o condenado, ora recorrente, voltou a comparecer ou efetuar qualquer contacto com os serviços e que resultaram infrutíferas todas as tentativas de contacto para os números de telemóvel facultados;

18) após promoção do Ministério Público no sentido da revogação da suspensão da pena aplicada, foi proferido o despacho ora recorrido;

19) com vista à notificação do despacho recorrido ao condenado, foi ordenada nova notificação do pai do mesmo para indicar morada mais completa, tendo este informado que não tem conhecimento de quaisquer outros dados;

20) foi ainda tentada a notificação do condenado na localidade de nascimento, também sem sucesso;

21) o condenado apresentou-se no Tribunal da condenação a 18/8/2016, onde, nessa data, lhe foi notificado o teor do despacho ora recorrido, informando que a sua atual morada era a constante do TIR, vindo a constituir como sua nova mandatária a que subscreveu o presente recurso.

                                                      *

 Face a estas ocorrências processuais, importa começar por proceder ao enquadramento legal da presente questão.

Dispõe o artigo 495.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe Falta de cumprimento das condições de suspensão:

«1 – Quaisquer autoridades e serviços aos quais seja pedido apoio ao condenado no cumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos comunicam ao tribunal a falta de cumprimento, por aquele, desses deveres, regras de conduta ou obrigações, para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 51.º, no n.º 3 do artigo 52.º e nos artigos 55.º e 56.º do Código Penal.

2 - O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente.

(…)»

Aliás, esta obrigatoriedade de audição prévia do condenado antes da decisão sobre a revogação da suspensão da execução da pena de prisão – para além de constitui uma emanação do princípio do contraditório consagrado no nº 5 do artigo 32º da CRP – traduz a extensão expressa à fase de execução da pena do direito geral de todo o arguido “ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete”, reconhecido pelo artigo 61.º, n,º1, alínea b) do Código de Processo Penal.

E, na verdade, o artigo 119º, al. c), do Código de Processo Penal comina com nulidade insanável “a ausência do arguido e do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência”.

Da conjugação destes preceitos resulta que o despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão sujeita a regime de prova é precedido de audição do arguido.

Esta audição deve ser presencial, até porque o nº 2 do artigo 495.º do Código de Processo Penal – a partir da redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29/8 – prevê que expressamente que o condenado seja ouvido “na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”.

Na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque entende mesmo que o arguido deve ser sempre ouvido pessoal e presencialmente, independentemente do motivo da revogação da suspensão, sob pena da nulidade do artigo 119º, alínea c), “uma vez que a lei não relaciona a audição do arguido com nenhum motivo em especial” ([4]).

Também a jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a pronunciar-se maioritariamente por esta aplicação estrita e de máximo garantismo para o arguido deste comando legal, como se pode ver, a título de exemplo, no acórdão da Relação de Évora de 12/7/2012, proferido no processo 691/09.7GFSTB.E1, relatado pela Desembargadora Ana Maria Brito, no acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2015, proferido no processo 83/10.5PAVNO.E1.C1, relatado pelo Desembargador Orlando Gonçalves, no acórdão da Relação de Guimarães de 18/4/2016, proferido no processo 1629/03.0PBBRG.G1, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira,  e nos acórdãos da Relação do Porto de 6/3/2013, proferido no processo 691/05.6PIPRT.P1 e de 9/3/2016, proferido no processo 25/06.2SFPRT-A.P1, relatados, respetivamente, pelos Desembargadores Moreira Ramos e José Carreto (todos acedíveis em www.dgsi.pt).

Todavia, permitindo uma interpretação menos rígida do preceito, podemos encontrar André Lamas Leite ([5]) – no sentido de que é obrigatório que o tribunal envide todos os esforços para ouvir o condenado – e, sobretudo, Vinício Ribeiro ([6]) – que, embora afirmando a obrigatoriedade da audição presencial do arguido, como regra, considera excessivo manter tal obrigatoriedade nos casos em que o tribunal faz, todas as diligências no sentido de notificar o arguido para comparecer, mas sem sucesso.

Na verdade, a previsão do direito de audição [presencial] do condenado não pode ser vista em termos absolutos, sem quaisquer restrições. Basta pensar na hipótese, verificada nos autos, de o condenado se ter ausentado para parte incerta. A entender-se de outro modo, ficaria inviabilizada a adequada resposta do sistema punitivo, perante o impedimento da execução tanto da pena de substituição, como da pena principal.

Como se escreveu no acórdão da Relação do Porto de 30/5/2012, proferido no proc. 135/04.0IDAVR-B.C1.P1, relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio «(…) o reconhecimento da plenitude do direito não pode confundir-se com a complacência perante o abuso de direito, não devendo os tribunais inibir-se de reconhecer, declarar e repudiar as situações que extravasam os limites da boa-fé, e daí extrair as necessárias consequências.

Na verdade, se o arguido sabe perfeitamente que tem um processo pendente, no âmbito do qual foi condenado em pena de prisão cuja execução ficou suspensa e, estando devidamente representado por defensor, se furta ao contacto com o tribunal, ignorando convocatórias e notificações ou ausentando-se mesmo para paradeiro desconhecido, sem cuidar de fazer chegar aos autos nova morada onde possa ser contactado, parece-nos que, tendo as autoridades competentes feito inúmeras tentativas de o encontrar/contactar e esgotados os meios ao seu dispor sem lograr atingir tal desiderato, não poderá aquele vir, depois, invocar o seu direito ao exercício pessoal do contraditório e audição presencial, por manifesto venire contra factum proprium, impondo a salvaguarda da harmonia de todos os interesses em presença que, nessa circunstância, se considere bastante a concessão da possibilidade de contraditório decorrente da notificação para o efeito ao defensor e ao arguido, este a notificar na morada indicada no processo e por via postal, se outra não se mostrar viável, à semelhança, aliás, da jurisprudência estabelecida no Acórdão do STJ n.º 6/2010, de 15/4/2010, publicado no DR, 1ª Série, de 21/5/2010, para a notificação da decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, sob pena de, a ser de outra maneira, se gorarem as expectativas da comunidade na boa administração da justiça.»

No mesmo sentido se pronunciou o acórdão da Relação do Porto de 9/3/2016, processo n.º 25/06.2SFPRT-A.P1, relatado pelo Desembargador José Carreto, em cujo sumário se lê: «Deve proceder-se à decisão do incidente de incumprimento do regime de prova (relativo à suspensão da execução da prisão) sem a audição do condenado, quando tal audição se revela inviável por o arguido se ter ausentado da residência constante do TIR sem dar conhecimento aos autos ou aos técnicos da DGRS e não se conseguir apurar ao seu paradeiro.»

Também no mesmo sentido se decidiu, por exemplo, no acórdão da Relação de Lisboa de 24/6/2014, publicado na CJ, XXXIX, tomo III, página 163, e, mais recentemente, nomeadamente, no acórdão da Relação de Guimarães de 6/3/2017, processo 182/11.6GAFAF.G1, relatado pelo Desembargador Jorge Bispo, e no acórdão da Relação do Porto de 29/3/2017, processo 9/09.9GAMCN.P2, relatado pela Desembargadora Maria Luísa Arantes, ambos acedíveis em www.dgsi.pt.

No caso vertente, o condenado não foi ouvido presencialmente pelo tribunal, por tal audição ter sido absolutamente inviabilizada pelo mesmo, apesar das exaustivas diligências realizadas nos autos com vista à sua localização. Com efeito, não obstante ter sido condenado em pena de prisão suspensa na sua execução com sujeição ao regime de prova, o arguido ausentou-se para o estrangeiro, sem dar conhecimento ao tribunal ou aos serviços da DGRS da sua efetiva saída do país e da sua nova morada.

Ausentando-se para o estrangeiro sem comunicar ao tribunal ou aos serviços de reinserção social tal facto e a nova morada, o arguido inviabilizou a sua notificação para a audição presencial, sendo que as diversas tentativas para o contactar na morada constante do TIR, a fim de permitir atingir os objectivos estabelecidos no plano de reinserção social, se mostraram vãs. Não basta o arguido afirmar, inicialmente, que está disposto a colaborar com a justiça, quando o seu comportamento revela o contrário, não indicando a sua morada no estrangeiro, quando bem sabia que tinha sido condenado numa pena suspensa na sua execução, mediante regime de prova, a que, aliás, chegou a dar o seu acordo. O arguido só voltou a estar contactável, quando veio a ser notificado presencialmente do despacho a revogar a suspensão da execução da pena, sem que esta apresentação possa ser considerada como um ato demonstrativo de vontade de colaborar com o Tribunal, visto que, para tal ato de notificação, não era exigível o ‘contacto pessoal’ ([7]).

A falta de audição pessoal do condenado ocorreu, pois, em consequência de comportamentos unicamente imputáveis ao mesmo.

Deste modo, entende-se que não houve violação do disposto no artigo 495.º, n.º2, do Código de Processo Penal, não se verificando a nulidade insanável prevista na alínea c) do artigo 119.º do mesmo diploma, arguida pelo recorrente.

Improcede, assim, este fundamento do recurso.

                                                      *

C) A invocada nulidade por falta de fundamentação

Alega o recorrente que a decisão ora sob recurso padece de falta de fundamentação, porquanto não constam da mesma elementos suficientes que possam indicar, por parte do arguido, uma conduta reiterada e dolosa, pelo que entende que, agora também por insuficiência da fundamentação, deve a decisão em causa ter-se por nula, pois o artigo 379°, nº 1, alínea c) ([8]), do Código de Processo Penal, é aplicável também a despachos finais, como é o presente.

Ora bem.

O despacho sobre a revogação da suspensão, como qualquer despacho decisório, deve ser fundamentado, nos termos gerais previstos no nº 5 do artigo 97º do Código de Processo Penal ([9]).

O despacho recorrido, conquanto parcimonioso e enxuto, é constituído por catorze parágrafos, assim estruturados: os primeiros cinco contêm unicamente matéria de facto; os quatro seguintes incluem concomitantemente matéria de facto e algumas considerações jurídicas; os três seguintes consubstanciam unicamente argumentação de direito; o 13º, embora fazendo apelo ainda ao disposto em um preceito legal, tem conteúdo decisório ou dispositivo; o último traduz uma mera ordem de remessa de boletim ao registo criminal, de resto só eventualmente cumprível após o trânsito em julgado da decisão.

Assim, não obstante o seu sintetismo, o despacho recorrido não se nos afigura desprovido da necessária fundamentação, a que obriga o nº 5 do artigo 97º do Código de Processo Penal.

Ainda que o despacho recorrido carecesse de fundamentação (o que se não concede), sempre teria que se considerar – face ao princípio do ‘numerus clausus’ instituído em matéria de nulidades (nº 1 do artigo 118º do Código de Processo Penal) – que se estava perante uma mera irregularidade, a arguir, o mais tardar, no prazo de 3 dias após a notificação do recorrente, pelo que a sua invocação se mostraria extemporânea, tanto mais que não afetaria o valor do ato praticado (cfr. artigos 118º/2 e 123º/1 e 2 do mesmo diploma).

Improcede, consequentemente, a arguição de nulidade efetuada pelo recorrente.

                                                      *

C) A revogação da suspensão de execução da pena

Importa agora apreciar a invocada falta de fundamento substancial para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao recorrente.

Sustenta este que apenas se pode afirmar que emigrou para França para tentar lutar por uma vida melhor para a sua mulher e o seu filho, não existindo, assim, uma conduta reiterada e dolosa, nem particularmente censurável, que justifique a revogação da suspensão da pena, tanto mais que nem o cometimento de um crime no período de suspensão da execução da pena de prisão determina automaticamente a revogação daquela, sendo ainda necessário que se mostrem frustrados os objetivos que justificaram tal suspensão.

Vejamos.

A suspensão da execução da pena é uma pena de substituição que tem um regime próprio, com pressupostos formais e materiais e duração legalmente definidos, assumindo modalidades diversas – a simples suspensão na execução, a suspensão sujeita a condições e a suspensão com regime de prova – podendo ser alterada (na duração ou nas condições) e revogada – artigos 50.º a 56.º do Código Penal.

Dispõe o artigo 55.º do Código Penal, sob a epígrafe ‘Falta de cumprimento das condições da suspensão’, dispõe: «Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, pode o tribunal:

a) Fazer uma solene advertência;

b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão;

c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção;

d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano, nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50.º»

Por sua vez, o artigo 56.º do Código Penal, ‘Revogação da suspensão’, estabelece:

«1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado.»

Da conjugação destes dispositivos legais resulta que qualquer alteração à suspensão da execução da pena, por violação dos deveres e das regras de conduta ou do plano de reinserção impostos na sentença, pressupõe a culpa no não cumprimento da obrigação. E que a hipótese de revogação apenas pode colocar-se nos casos em que a culpa se revele grosseira.

Exigindo-se culpa no não cumprimento das condições a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena, é necessária a imputação ao agente de um juízo de censura ético-jurídica por ter atuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso, atentas as concretas circunstâncias que tenham ficado demonstradas ([10]).

No presente caso, o ora recorrente foi condenado, por sentença transitada em julgado em 18/2/2010, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita à condição de o arguido se submeter ao plano de reinserção social a elaborar pela DGRS.

No plano de reinserção social, do qual teve conhecimento e a que até declarou aderir, consta como dever a respeitar pelo condenado, entre outros, o de “informar antecipadamente o técnico superior de reinserção social sobre a deslocação superior a cinco dias e sobre a data do previsível regresso, solicitando autorização prévia ao Tribunal competente em caso de deslocação ao estrangeiro”;

Quando o arguido compareceu à 1ª entrevista de acompanhamento, em janeiro de 2011, face à perspetiva, que então ventilou, de ir trabalhar para França, junto de um tio que tinha uma firma de construção civil, foi-lhe, reiterada, pelo técnico de reinserção social, que deveria solicitar autorização ao Tribunal e que seria aconselhável apresentar contrato de trabalho ou uma declaração do empregador.

Depois da entrevista de junho de 2011, nunca mais o arguido compareceu às entrevistas marcadas pelo técnico de reinserção social, nomeadamente à de julho de 2011 (que ficou então marcada) e à de novembro do mesmo ano, deixando de cumprir todas as demais obrigações fixadas no plano de reinserção (passando, designadamente, pela revalidação de competências e pelo tratamento acompanhado à toxicodependência), sendo a sua ausência para França chegado ao conhecimento da DGRS apenas através da sua mãe, já em dezembro de 2011, pois o arguido não voltou, por qualquer meio, a contactar com os serviços de reinserção social, em total incumprimento dos seus deveres que bem conhecia.

Deixou também de comparecer a todos os atos para que foi sendo convocado em processos criminais que contra si foram sendo instaurados, por factos alegadamente cometidos após o trânsito em julgado da condenação na pena dos presentes autos.

Por outro lado, nunca o arguido indicou qualquer morada em que verdadeiramente pudesse ser notificado em França, pois a indicada pelo seu pai não se mostrou servível para tal efeito.

Tal situação, criada voluntária e esclarecidamente pelo arguido, levou a que fosse mesmo julgado na sua ausência no processo nº 287/11.3GDALM – sendo mesmo aí condenado, embora sem trânsito em julgado – e declarado contumaz no âmbito do processo 1375/13.7TBALM (situação que, decerto, terá pressionado o ora recorrente a apresentar-se).

Note-se que a residência indicada no TIR dos presentes autos é a mesma que o condenado veio indicar quando voltou a comparecer no Tribunal recorrido a 18/8/2016: é a residência da sua família de origem, que nunca deixou de aí viver.

Assim, não restam dúvidas de que o condenado, apesar de ter perfeita consciência da sua condenação e dos deveres que da mesma decorriam, agiu, desde data não exatamente determinada de 2011, como se tal condenação não existisse, incumprindo total e conscientemente a totalidade dos deveres impostos, no âmbito do regime de prova, como condicionantes da suspensão de execução da pena de prisão originária.

Face às informações precisas e detalhadas dadas pelo técnico de reinserção social, o comportamento do arguido não pode deixar de considerar-se como um incumprimento grosseiro dos deveres impostos pelo plano de reinserção social, pelo que, nenhuma censura havendo a fazer à revogação da suspensão decidida pela 1ª instância, improcederá totalmente o recurso.

                                                      *

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo condenado L..., confirmando inteiramente a decisão recorrida que revogou a suspensão de execução da pena de prisão.

                                                     *

Custas criminais a cargo do recorrente, fixando-se em 3 U.C.s a taxa de justiça.

      *

Lisboa, 11 de maio de 2017


Vítor Morgado

Maria do Carmo Ferreira

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[1] Sic.
[2] Tal decorre, desde logo, de uma atenta interpretação do disposto no nº 1 do artigo 412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[3] Cfr. cópia da certidão junta a folhas 1427-1439 do processo principal.
[4] Cfr. o seu Comentário do Código de Processo Penal (…), 4ª edição, 2011, UCE, nota 2 ao artigo 495º, página 1252, onde cita diversa jurisprudência nesse sentido, designadamente o acórdão da Relação de Lisboa de 30/6/2010, in C.J., ano XXXV, tomo 3º, página 140, o acórdão da Relação do Porto de 4/11/2009, in C.J., ano XXXIV, tomo 5º, página 190, o acórdão da Relação de Guimarães de 21/9/2009, in C.J., ano XXXIV, tomo 4º, página 290, o acórdão da Relação de Coimbra de 5/11/2008, in C.J., ano XXXIII, tomo 5º, página 38, e o acórdão da Relação de Évora de 22/2/2005, in C.J., ano XXX, tomo 1º, página 267.
[5] No seu estudo “A suspensão da execução da pena privativa da liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal”, in “Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias”, volume II, Coimbra Editora, páginas 583-630.
[6] In Código de Processo Penal, Notas e comentários, 2ª edição, Coimbra Editora, página 1485.
[7] Com efeito, a posição uniformizadora assumida no acórdão do S.T.J. de fixação de jurisprudência  nº 6/2010 já acima citado, estabeleceu, designadamente, as seguintes diretrizes: “(…) II- O condenado em pena de prisão suspensa continua afeto, até ao trânsito da revogação da pena substitutiva ou à sua extinção e, com ela, à cessação da eventualidade da sua reversão na pena de prisão substituída, às obrigações decorrentes da medida de coação de prestação de termo de identidade e residência (nomeadamente a de ‘as posteriores notificações serem feitas por via postal simples para a morada indicada’); III – A notificação ao condenado do despacho de revogação da suspensão de execução da pena de prisão pode assumir tanto a via de ‘contacto pessoal’ como a ‘via postal registada, por meio de carta ou aviso registados’ ou, mesmo, a ‘via postal simples por meio de carta ou aviso’ (artigo 113º, nº 1, alíneas a, b e c, do Código de Processo Penal)”.
[8] Provavelmente, querer-se-ia referir à alínea a), pois a menção da alínea c) não parece fazer qualquer sentido.
[9] Neste sentido, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal (já citado na nota 3 deste despacho), página 1252, anotação nº 3 ao artigo 495º.
[10] Cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, volume I, página 316, a propósito da culpa.