I - Para se concluir que uma violação das regras de circulação rodoviária foi grosseira, há que levar em conta as circunstâncias dos factos, designadamente a justificação, a extensão, o grau, a intensidade, a duração, a repetição, etç.;
II - Quando a violação dessas regras é dolosa e com a intenção de embaraçar a condução doutrem, além de ser repetida e constituída pela infracção de vários tipos de regras estradais, não pode deixar de se considerar grosseira.
Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
No Juízo Local Criminal de Mafra, por sentença de 23/11/2016, constante de fls. 107/203, foi o Arg.[1] XXX, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 16[3]) condenado nos seguintes termos:
“… Pelos fundamentos expostos, julgo procedente a acusação pública e, em consequência, decido:
a) condenar o arguido XXX como autor material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artº 291º, nº 1, al. b) do C.P., na pena de 115 (cento e quinze) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), o que perfaz a multa global de 690,00 € (seiscentos e noventa euros);
b) condenar o arguido XXX na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do artº 69º nº 1 al. a) do C.P.;
Deverá o arguido entregar, no prazo de dez dias, após o trânsito em julgado da sentença, na secretaria deste Tribunal, ou em qualquer posto policial, a sua licença de condução ou qualquer outro documento que a habilite a conduzir qualquer tipo de veículo, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência (artigos 69.º, n.º 3, 348º, nº 1, al. b) do C. P. e 500º, nº 2 do C. P. P. e Acórdão S.T.J. nº 2/2013).
Se conduzir veículo automóvel no período durante o qual se encontra proibido de o fazer, incorrerá na prática de um crime de violação de proibições (artº 353º do C.P.).
c) Mais decido condenar o arguido nas custas processuais penais, fixando-se em 2 UC’s a taxa de justiça (artºs 513º e 514º do C.P.P., 8º, nº 9 do R.C.P. e tabela III anexa). …”.
*
Não se conformando, o Arg. interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 129/154, com as seguintes conclusões:
“… 1. – A sentença de que ora se recorre enferma de vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º, nº 2, b) do C. P. Penal. De facto,
2. – Da análise dos depoimentos do queixoso e de sua companheira resultam claras discrepâncias em pontos fundamentais dos discursos no que tange ao preenchimento dos elementos constitutivos do crime de que o arguido vem acusado.
3. – O arguido não colocou em momento nenhum em perigo, objectivamente, a vida ou a integridade física dos ocupantes do veículo conduzido pelo queixoso.
4. - De facto, não violou grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, á ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão de sentido de marcha em auto-estrada ou em estrada fora de povoações, à marcha atrás em auto-estrada ou em estradas fora de povoações ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita.
5. – Por um lado a deslocação em velocidade propositadamente lenta não se encontra mencionado entre os casos objectivamente mencionados no artº 291º, nº 1, al. b) do C. P. Penal.
6. – Por outro lado, a ultrapassagem foi efectuada por forma forçada pois o queixoso vinha impedindo que a mesma se realizasse e quando este verificou que não a conseguia impedir travou para que a mesma se concluísse com segurança – “Mas pronto, depois ele ultrapassou porque eu travei e ele depois passou pata a frente…”
7. – A versão de que o queixoso travou para permitir a ultrapassagem, versão por este debitada, entra em choque com a da sua companheira que refere que o queixoso travou porque o arguido “… quando ultrapassou, guinou…”, “… não deu espaço de segurança para se dirigir para a direita…”.
8. – E quando o arguido parou junto à casa do filho, onde tem a sua garagem, parou fora da estrada onde ambos os carros vinham circulando. Contudo,
9. – A AAA, companheira do queixoso, quando foi instada para responder “… se ele parou dentro da estrada em que vocês seguiam ou fora da estrada?...” ela referiu que “… sim. Foi relativamente… foi a metade. Pronto”.
10. – Já o queixoso, quando a Meritíssima Juiz a quo perguntou “…se o carro do arguido quando parou à frente da casa do filho, se impediu, se tiveram que se desviar vocês para prosseguirem o vosso caminho?” ele respondeu “… Ah, a gente teve que travar se não, não dava depois para passar, que ele estava a obstruir a ruazita”.
11. – Sendo certo que qualquer das duas testemunhas ouvidas sobre esta matéria referiram, unanimemente que o veículo do arguido parou fora da rua/estrada, dentro do lugar do Carvalhal, por onde até então haviam circulado os dois veículos.
12. –A diferença dos depoimentos do queixoso e sua companheira, que claramente pretendiam incriminar o arguido, e a sua falta à verdade no tocante ao local de paragem no final do trajecto comum –único facto presenciado por terceiros – deviam ter alertado a Meritíssima Juiz a quo para a infidelidade dos dois no respeitante à verdade dos factos.
13. – Ao aceitar como integralmente verdadeiros tais depoimentos, dispensando uma cuidada análise sobre a matéria de facto que deu como provada, julgou a Meritíssima Juiz a quo incorrectamente cometendo um erro notório na apreciação da prova.
14. – As diferenças de versões transmitidas pelo queixoso e sua companheira e a sua falta à verdade quanto ao ponto de paragem no final da viagem, impõem decisão diversa da recorrida. De facto,
15. – Quando não se queira aceitar a versão do arguido, e não se vê razão para não a aceitar a menos que se entenda que por ser versão de arguido a mesma não é, por si, credível, levaria pelo menos a recorrer ao princípio “in dubio pro reo” e não se dar como provados os factos constitutivos da acusação.
16. – “O princípio do in dubio pro reo sendo emanação do princípio da presunção de inocência surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo” – cfr. Acórdão do Tribunal de Relação de Coimbra de 25.03.2010 – Proc. 1058/08.0TACBR.C1.
17. – II - O «in dubio pro reo é um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição do STJ. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova: mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista» – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed. (1974), Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 217-218; cf., ainda, Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 437.
III- O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
IV- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
– vide Acórdão do S.T.J. de 12.03.2009 tirado no Proc. 07P1769.
18. – Deverá, pois, quanto mais não seja por respeito a este princípio, ser anulada a sentença ora posta em crise e em sua substituição ser proferida uma outra que dando como não provados os factos de acusação, absolva o arguido da mesma. …”.
*
A Exm.ª Magistrada do MP[4] respondeu ao recurso, a fls. 194/198, nos seguintes termos:
“… 1. De uma leitura atenta da decisão recorrida, resulta que a Mma. Juiz a quo, cumpriu a exigência legal de fundamentação ínsita no artigo 374.º, do Código de Processo Penal, descrevendo os factos que considerou provados e, seguidamente, descrevendo o raciocínio que a levou a considerar tais factos provados.
2. Nessa análise da prova produzida explanada na sentença não se detecta qualquer erro notório na apreciação da prova, como previsto no artigo 410.º, n.º2, alínea c), do Código de Processo Penal.
3. Com efeito, o vício do erro notório na apreciação da prova apenas se verifica quando os factos dados como provados ou não provados contrariam todas as evidências, na perspectiva de um homem de formação média, bem como vão contra a lógica e as regras do senso comum.
4. O raciocínio do Tribunal ao apreciar a prova produzida foi devidamente explicado na sentença e seguiu as regras da experiência e do senso comum, não existindo qualquer anomalia no processo lógico seguido.
5. O que se verifica in casu é que, pura e simplesmente, o recorrente discorda da forma como o Tribunal analisou a prova produzida.
6. E nesta sede, há que recordar que, nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
7. Não podemos olvidar que o princípio constitucional da presunção de inocência (previsto no artigo 32.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa), do qual decorre o princípio do in dúbio pro reo apenas prevalece sempre que da apreciação da prova resulte uma dúvida insanável acerca da prática dos factos descritos na acusação. E, tal dúvida, não existiu na mente da Mma. Juiz a quo, pois que o Tribunal chegou a uma convicção não se vislumbrando da argumentação expendida na sentença qualquer falta de objectividade e lógica na apreciação feita.
8. Por todo o exposto, afigura-se-nos que a decisão encontra-se devidamente fundamentada, sendo inatacável o processo lógico formado pelo Tribunal a quo para chegar à decisão.
Por todo o exposto, entendemos dever ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos, com o que V. Exas. farão a costumada Justiça! …”.
*
Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 204/209, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.
*
A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis, ou seja, o princípio da verdade material; da livre apreciação da prova e o princípio “in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no caso vertente, tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade bem como da oralidade e da imediação.
O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto:
“… a) Matéria de facto provada:
1. Da acusação e da discussão da causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1 - No dia 30/11/2014, pelas 15h30m, na Av. De Espanha, em Cheleiros, Mafra, BBB conduzia o veículo automóvel de matrícula FU-66-22.
2 - Nas mesmas condições de tempo e lugar o arguido XXX conduzia o seu veículo automóvel.
3 - Nesse momento, ao avistar o veículo de BBB, o arguido colocou a sua viatura em marcha, em perseguição ao ofendido, colocando-se na via esquerda, ou seja, na via contrária à do seu sentido de trânsito, enquanto ultrapassava aquele, ao mesmo tempo que aproximava o seu veículo da viatura de BBB, como que para empurrá-lo para a direita.
4 - Para evitar a colisão, BBB adoptou uma manobra defensiva e travou o veículo que conduzia.
5 - Em acto contínuo, o arguido colocou-se à frente da viatura de BBB, seguindo com velocidade manifestamente baixa, enquanto travava e acelerava ligeiramente, sucessivas vezes, ao longo da Avª de Espanha e até ao acesso ao Carvalhal, não permitindo que BBB o ultrapassasse e obrigando-o a circular tão devagar que quase parado, por forma a evitar embater no veículo do arguido.
6 - Quando já se encontram no acesso ao Carvalhal, o arguido travou bruscamente a sua viatura e parou junto à residência de seu filho, tendo BBB de travar de forma a evitar o embate.
7 - O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que não podia conduzir violando as regras de circulação rodoviária, nomeadamente, circulando na via contrária à do trânsito, não respeitando a distância de segurança entre as viaturas enquanto efectuava uma manobra de ultrapassagem, circulando a velocidade manifestamente baixa enquanto travava e acelerava ligeiramente, sucessivas vezes, ao longo da Avª de Espanha e até ao acesso ao Carvalhal, não permitindo que BBB o ultrapassasse e obrigando-o a circular tão devagar que quase parado, por forma a evitar embater no veículo do arguido, bem sabendo que com a sua conduta punha em perigo a vida e a integridade física de BBB e dos restantes ocupantes da viatura, mormente sua companheira e seu filho menor.
8 - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.
9 – No certificado de registo criminal e no registo individual de condutor do arguido não consta averbada qualquer condenação.
10 - O arguido recebe mensalmente 808,00 € de pensão de reforma.
11 - A sua mulher recebe mensalmente 290,00 € de pensão de reforma.
b) Matéria de facto não provada:
Com interesse para a decisão da causa ficaram por provar os seguintes factos, constantes da acusação:
1 – Que o arguido, junto à residência do seu filho, no acesso ao Carvalhal, colocou o seu veículo de forma a bloquear a passagem da viatura de BBB. …”.
*
Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[5] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado[6].
No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma:
“… A convicção do tribunal assentou no conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma conjugada e crítica à luz de regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
O arguido prestou declarações, negando a factualidade constante da acusação.
Segundo o relato do arguido, encontrava-se estacionado junto à sua residência, onde também estacionara BBB, sendo a residência dos sogros deste contígua à sua.
Quando decide sair do local, BBB colocou-se à sua frente. Logo que pode ultrapassou-o.
Após ultrapassar BBB, não andou manifestamente devagar, nem travou bruscamente, o que apenas poderá ter sido mal entendido por aquele, afirma o arguido.
Ouvidas as testemunhas arroladas na acusação, BBB, condutor do veículo com a matrícula FU-66-22, e AAA, companheira deste e ocupante do lugar do passageiro da frente, resultou, da conjugação dos seus depoimentos, a confirmação da factualidade tal qual se enumerou provada e não provada.
Ambos circunstanciaram, com pormenor, rigor e isenção, as manobras e o modo como o arguido conduziu na via pública, o que fez de feição, manifestamente, a transtornar a condução de quem seguia atrás de si, ou seja, BBB, tendo este e sua companheira temido, efectivamente, pela ocorrência de um embate no veículo do arguido, parecendo-lhes ser esse o objectivo deste.
Também resultou do testemunho de ambos que, não fora a destreza de BBB, que é motorista profissional, decerto o embate teria ocorrido.
Não se provou que quando o arguido estacionou seu veículo junto à residência de seu filho, no acesso ao Carvalhal, tenha ficado a bloquear a passagem do veículo do queixoso, mas que ao travar, para estacionar de repente, caso BBB não viesse sobremaneira atento, e não tivesse travado de imediato, decerto colidiria com o veículo do arguido.
Isto resultou do testemunho de ambos, do condutor BBB, e da ocupante AAA, sendo congruente com o comportamento que o arguido adoptou ao longo da Avª de Espanha e do percurso até estacionar no acesso ao Carvalhal, já próximo à residência de seu filho.
Aliás, ainda que o arguido tenha utilizado um discurso de negação dos factos, ficou patente, no modo como prestou as suas declarações, que desde o momento em que estacionou junto à sua residência até ao momento em que o fez próximo da residência de seu filho, esteve, sempre, movido contra BBB, quase provocando um acidente de viação entre os dois veículos.
A testemunha CCC, arrolada pelo arguido, não demonstrou conhecimento algum do sucedido no percurso efectuado pelo arguido e por BBB, tendo-se limitado a asseverar que, após estacionado, o veículo do arguido ficou de molde a permitir a passagem de quem circulava pela via de onde tinham vindo o arguido e BBB.
A testemunha DDD, filho do arguido e testemunha por si arrolada, igualmente não tendo presenciado facto algum ocorrido no percurso efectuado pelo arguido e por BBB, veio também unicamente confirmar que o local onde seu pai estacionou o seu automóvel, próximo da sua residência, permitia a passagem dos demais automobilistas na via de onde provinham seu pai e BBB.
No que respeita à ausência de condenações prévias, o atestam o CRC e o RIC do arguido, constantes a fls. 82 e 98 dos autos.
Relativamente às suas condições familiares e socioeconómicas, o Tribunal ateve-se às próprias declarações quanto a esta matéria. …”.
*
É pacífica a jurisprudência do STJ[7] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[8], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:
I – Reapreciação da matéria de facto;
II – Erro notório na apreciação da rpova;
III – Tipificação da conduta do Arg..
*
Cumpre decidir.
I - O Recorrente entende que o tribunal recorrido não devia ter fixado a matéria de facto pela forma como o fez, porque não foi isso que resultou da prova produzida em audiência.
Uma vez que o Recorrente entende que foi mal julgada a matéria de facto, o que invoca é a existência de erro na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos.
A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.
Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[9],[10],[11].
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto[12].
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»)[13].
Como diz Francisco Quevedo, “Quem julga pelo que ouve e não pelo que entende, é orelha e não juiz.”[14].
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal[15]; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado.
Importa realçar que “O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência. …”[16],[17].
Ora, é precisamente isto que sucede no presente caso, em que o Recorrente faz uma valoração alternativa da prova produzida em audiência, discutindo a credibilidade dada às suas declarações e aos depoimentos do Ofendido e da sua companheira, o que é legítimo, mas não processualmente relevante como forma de impugnação da matéria de facto.
Por outro lado, a Recorrente não deu cumprimento ao disposto no art.º 412º/3/4, não fazendo nas conclusões as especificações impostas por esta norma.
Não fizemos o convite à correcção das mesmas (art.º 417º/3 do CPP), porque, embora do corpo da motivação constem algumas transcrições de partes das suas próprias declarações e dos depoimentos do Ofendido e da sua companheira (o Recorrente juntou também a transcrição completa das declarações e depoimentos prestados em audiência), elas não impõem que se dêem como não provados tais factos, pois isso só aconteceria se o tribunal recorrido tivesse dado mais credibilidade às suas declarações do que aos depoimentos destes, o que, como já vimos, e o Arg. reconhece, não aconteceu.
A existência de depoimentos e declarações contraditórios entre si não basta para anular a relevância probatória de qualquer dessas provas nem obsta a que o tribunal opte por uma das versões[18], desde que tenha razões sérias para isso e essas razões constem da fundamentação[19].
No presente caso, as discrepâncias que o Arg. aponta aos depoimentos do Ofendido e da sua companheira também não impõem a alteração da matéria de facto, porque se trata de pequenas discrepâncias e, aliás, se referem a um facto dado como não provado na decisão recorrida.
Importa realçar que a especificação prevista no art.º 412º/3-b)/4 do CPP não se basta com a transcrição integral dos depoimentos ou declarações que, no entender do recorrente, impõem decisão diversa, devendo os erros ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas, nomeadamente, das passagens em que funda o seu entendimento, que demonstram esses erros[20].
Também não é processualmente válida a impugnação que se faz invocando toda a prova produzida[21].
Está, pois, este tribunal impedido de reapreciar a matéria de facto[22].
Sempre diremos, no entanto, que o tribunal, na fundamentação da matéria de facto explicou, com clareza, o caminho lógico que percorreu para fixar a aquela matéria e esse caminho foi razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, pelo que é inatacável[23].
Quanto à violação do princípio in dubio pro reo[24], dir-se-á, em síntese que o que resulta do princípio citado é que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido. Mas para que a dúvida seja relevante para este efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 205)[25].
A violação deste princípio tem sempre que ser aferida em concreto, porque só em concreto pode acontecer que no final da produção da prova no tribunal permaneça alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido. Tal aferição não pode ser feita em abstracto, dizendo-se que a admissão deste ou daquele tipo de prova viola este princípio. Existem provas proibidas e provas cuja valoração é proibida, em determinadas circunstâncias, mas isso é outro problema. Se as provas levadas em conta forem legais, só em concreto se pode aferir se o tribunal ficou, ou devia ter ficado, com dúvidas relevantes.
Ora, não vislumbramos na decisão recorrida, quer na matéria de facto dada como provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o tribunal recorrido tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, tal como não fixou qualquer facto que pudesse colocar em questão a autoria dos factos, ou seja, não teve qualquer dúvida e também não vemos que devesse ter tido. O tribunal retirou directamente tais conclusões da prova produzida em audiência. Não deveria/poderia, em consequência, fazer uso de tal princípio.
Improcede, pois, nesta parte o recurso.
*
II – Entende o Recorrente que a decisão recorrida padece do vício de erro notória na apreciação da prova, porque o tribunal aceitou “… como integralmente verdadeiros tais depoimentos, dispensando uma cuidada análise sobre a matéria de facto que deu como provada, julgou a Meritíssima Juiz a quo incorrectamente cometendo um erro notório na apreciação da prova.“ (13ª conclusão).
Erro notório na apreciação da prova é a “… falha grosseira e ostensiva da análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.”[26].
Os vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, que são de conhecimento oficioso[27], e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[28].
Assim, desde logo, não se pode recorrer aos depoimentos e declarações prestados em audiência, porque são elementos externos da sentença, salvo na parte em que nela se encontrem transcritos ou resumidos.
Ora, não vislumbramos na decisão recorrida qualquer dos erros supra apontados como constituindo este vício.
Para além disso, analisando as conclusões de recurso do Recorrente, logo se percebe que a sua intenção foi a de impugnar a matéria de facto nos termos do disposto no art.º 412º/3/4/6 do CPP e não a de invocar o referido vício[29].
Não padece, pois, a decisão recorrida do apontado vício.
*
Antes de prosseguirmos, importa consignar que não vislumbramos na decisão recorrida qualquer outro dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP.
*
III – Entende o Arg. que não se mostram preechidos os elementos do tipo da condução perigosa, porque “… não colocou em momento nenhum em perigo, objectivamente, a vida ou a integridade física dos ocupantes do veículo conduzido pelo queixoso“, nem “… violou grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, á ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão de sentido de marcha em auto-estrada ou em estrada fora de povoações, à marcha atrás em auto-estrada ou em estradas fora de povoações ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita. “ (3ª e 4ª conclusões).
O tribunal recorrido considerou que foram grosseiramente violadas as regras de trânsito relativas à ultrapassagem e aos limites de velocidade.
Quanto a esta matéria, no essencial provou-se que o Arg., iniciou a manobra de ultrapassagem do Ofendido, quando ambas as viaturas se encontravam lado a lado, aproximou o seu veículo do do Ofendido, como que para o empurrar para a sua direita, e que, quando terminou a ultrapassagem, se colocou à frente da viatura do Ofendido, em velocidade manifestamente baixa, travando e acelerando várias vezes, e não permitindo que este o ultrapassasse. Tais manobras obrigaram o Ofendido a fazer manobras defensivas, para evitar o embate entre ambas as viaturas. Na viatura deste, além dele próprio seguiam a sua companheira e o filho menor de ambos.
Na normalidade das coisas, a condução é uma actividade de risco, mesmo quando se observam as regras de trânsito. Esse risco aumenta exponencialmente quando não se cumprem as regras de trânsito.
Para se concluir que uma violação das regras de circulação rodoviária foi grosseira[30], há que levar em conta as circunstâncias dos factos, designadamente a justificação, a extensão, o grau, a intensidade, a duração, a repetição, etç.
Quando a violação dessas regras é dolosa e com a intenção de embaraçar a condução doutrem, além de ser repetida e constituída pela infracção de vários tipos de regras estradais, não pode deixar de se considerar grosseira.
E foi o que aconteceu no presente caso, pelo que concluímos que a forma como o Arg. violou as apontadas regras de trânsito foi grosseira.
O crime de condução perigosa, p. e p. pelo art.º 291º do CP, é um crime de perigo concreto, sendo que nestes é necessária a verificação efectiva do perigo de lesão[31].
Como afirma Germano Marques da Silva[32], para o apuramento deste perigo deverá sempre atender-se às circunstâncias concretas da circulação, relacionando a violação das regras da circulação rodoviária com o perigo previsível.
“Não basta, por conseguinte, ao preenchimento do tipo legal, a insegurança na condução ou a violação grosseira das regras da circulação rodoviária, tornando-se necessário, que da análise das circunstâncias do caso concreto, se deduza a ocorrência desse mesmo perigo concreto.
Esse perigo não existe se o condutor embriagado perde o controle do veículo 150 metros à frente da passadeira de peões (…), ou se o condutor em virtude de uma visão deficitária passa o semáforo vermelho numa rua deserta às quatro da madrugada. Também não permite só por si afirmar a existência de um perigo concreto a circunstância de se encontrarem pessoas na “zona de perigo” criada pelo agente (…).”[33],[34],[35].
No caso concreto, as infracções estradais do Arg., obrigaram o Ofendido a várias manobras defensivas para evitar o embate entre ambas as viaturas. Isso leva à conclusão de que houve perigo concreto de esse embate ocorrer, ainda que a velocidade dos veículos fosse baixa: basta pensar na hipótese de o Ofendido, por qualquer razão, não poder ou não ser capaz de efectuar tais manobras.
O embate de viaturas implica, na normalidade das coisas, o perigo de danos para estas e para a integridade física dos seus ocupantes.
Quanto aos veículos, ainda que tenham sido postos em perigo, não sabemos o respectivo valor, pelo que não podemos concluir que se trata de bens de valor elevado.
Temos, pois, que o Arg. violou grosseiramente normas estradais relativas à velocidade e à ultrapassagem e com essa violação pôs em perigo a integridade física dos ocupantes do veículo do Ofendido, pelo que se mostram preenchidos os elementos objectivos do tipo, o que, pelo Arg., vinha posto em causa.
É, pois, improcedente, também nesta parte, o recurso.
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos inteiramente a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC.
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Notifique.
D.N..
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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).
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Lisboa, 18/05/2017
João Abrunhosa
Vítor Morgado
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[1] Arguido/a/s.
[2] Termo/s de Identidade e Residência.
[3] Prestado em 12/03/2015.
[4] Ministério Público.
[5] Código de Processo Penal.
[6] Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”.
Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista “Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss..
Ver ainda José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss. donde citamos: “Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.”.
Ver, por último, o acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007, que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.”.
[7] Supremo Tribunal de Justiça.
[8] “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[9] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.
[10] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
[11] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.
[12] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.
[13] Neste sentido, veja-se o acórdão da RG de 16/05/2016, relatado por João Lee Ferreira, no proc. 732/11.8JABRG.G1, com o seguinte sumário: “I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.”.
[14] Citação publicada no jornal “Público” de 18//11/2014.
[15] Neste sentido, ver o acórdão da RP de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. 23/14.2PCOER.L1-9, in www.dgsi.pt.
[16] Acórdão da RP de 06/10/2010, relatado por Eduarda Lobo, in www.gde.mj.pt, processo 463/09.9JELSB.P1.
[17] No mesmo sentido, cf. o acórdão da RG de 28/06/2004, relatado por Heitor Gonçalves, in www.gde.mj.pt, processo 575/04-1, do qual citamos: “… Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas por em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37). …”.
[18] Nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos:
- da RE de 07/01/2014, relatado por Ana Brito, no proc. 59/11.5GDPTG.E1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “…V - Também as pequenas disparidades encontradas na prova oral, as dissemelhanças pontuais sinalizadas entre depoimentos, não fragilizam necessariamente o valor probatório do testemunho; os testemunhos assim prestados serão mesmo tendencialmente mais verdadeiros, pois mostra a experiência que a concertação e treino de versões “falsas” dará mais facilmente lugar a descrições de factos modelarmente análogas e admiravelmente coincidentes. …”;
- da RE de 25/11/2014, relatado por João Amaro, no proc. 86/09.2GTALQ.E1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…É que, ao contrário do que parece entender o ora recorrente, nada obsta, por princípio, a que a convicção do tribunal se forme exclusivamente com base no depoimento de uma única testemunha ou nas declarações de um único assistente (ou de um único demandante) ou até de um único arguido. Esse depoimento e estas declarações, como qualquer meio de prova oral, estão sujeitos ao princípio da livre convicção, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Ou seja, e no caso destes autos: acreditar o tribunal (quer este tribunal ad quem, quer o tribunal a quo) na versão, naquilo que é essencial, das testemunhas J e R (apesar da sua qualidade de “ofendidos” na factualidade agora em apreço), é uma questão de convicção e entronca no princípio da livre apreciação da prova.
Depois, invoca o recorrente que existem contradições entre os depoimentos prestados pelas testemunhas J e R.
…
Em segundo lugar, há que dizer que, efetivamente, e conforme se assinala na motivação do recurso, os depoimentos das testemunhas J e R não são integralmente coincidentes (não são cópia um do outro).
Porém, e ao contrário do que invoca o recorrente, a existência de divergências entre os depoimentos produzidos por pessoas que presenciaram uma mesma factualidade não é necessariamente sintoma do carácter inverídico do respetivo conteúdo, podendo ser, bem pelo contrário, demonstrativa da sua natureza não estereotipada e da sua espontaneidade. …”.
[19] Neste sentido, vejam-se os seguintes acórdãos:
- da RE de 12/12/2014, relatado por Ana Brito, no proc. 28/11.5TACVD.E1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “…3. Do princípio do in dubio pro reo decorre que ao arguido basta fragilizar a prova da acusação, já que inexiste repartição de ónus de prova em processo penal e acusação e defesa não se encontram, neste ponto, em situação de igualdade. 4. Daí que o julgador, na decisão da matéria de facto, quando se depare com provas de sinal contrário e abstractamente de igual peso probatório – como sejam as declarações do arguido versus as declarações da vítima –deva procurar socorrer-se de outros elementos probatórios corroborantes dos factos controvertidos da acusação. 5. Na ausência destes, deverá justificar de um modo especial a eventual superior verosimilhança da versão da vítima, fazendo-o, por exemplo, com base na maior racionalidade da versão apresentada por esta (de acordo com regras da lógica e de experiência comum), na superior credibilidade (devidamente objectivada) merecida pela testemunha-vítima, sob pena de, não o alcançando, dever fazer operar o princípio do in dubio pro reo. …”;
- da RC de 03/06/2015, relatado por Fernando Chaves, no proc. 12/14.7GBSRT.C1, de cujo sumário citamos: “I - Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum. II - Quando a prova pessoal produzida aponta em dois sentidos ou direcções completamente distintas, o tribunal deve recorrer às regras de experiência e apreciar a prova de forma objectiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos constante da acusação e a não dar credibilidade à versão dos factos apresentada pelo arguido, permitindo aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador. …”.
[20] Nesse sentido, cf. o acórdão da RP de 02/12/2015, relatado por Artur Oliveira, no proc. 253/06.0GCSTS.P1, n www.degsi.pt, com o seguinte sumário: “I – Visando a impugnação ampla da matéria de facto, o recorrente, nos termos do artº 412º nº 4 CPP, deve “indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” pelo que tratando-se de provas gravadas tem de identificar as passagens a que atribui o mérito de imporem decisão diversa da recorrida. II – A transcrição integral (ou quase) desses depoimentos inviabiliza que o tribunal realize o confronto da decisão com a evidência de uma prova que a contraria a ponto de impor a sua modificação. III – Visando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida. … .”.
No mesmo sentido, veja-se o acórdão da RC de 16/11/2016, relatado por Vasques Osório, no proc. 208/14.1JACBR.C1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I - O regime disciplinador da impugnação ampla da matéria de facto impõe ao recorrente a observância do ónus de uma tripla especificação: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas. II - Quando as concretas provas tenham sido provas gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta da audiência de julgamento, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação. III - Finalmente, devem todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (cfr. art. 417º, nº 3 do C. Processo Penal). …”.
[21] Nesse sentido, cf. o acórdão da RC de 16/12/2015, relatado por Inácio Monteiro, no proc. 76/14.3JACBR.C1, n www.degsi.pt, de cujo sumário citamos: “I - Na impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento, cuja modificabilidade se pretende com base na reapreciação da prova, na motivação de recurso o recorrente deve observar as exigências do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, especificando os concretos pontos que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que pretende sejam reapreciadas no sentido de imporem decisão diversa da recorrida, não lhe bastando impugnar toda a matéria de facto e invocar toda a prova produzida que em seu entender impunha a absolvição, sob pena não se considerar impugnada naqueles termos e não haver lugar a despacho de aperfeiçoamento a que alude o art. 417.º, n.º 3, do CPP, por o aperfeiçoamento não permitir modificar o âmbito do recurso.…”.
[22] Nesse sentido ver também o acórdão da RE de 07/12/2012, relatado por Ana Barata Brito, in www.gde.mj.pt, processo 197/10.1TAMRA.E1, com o seguinte sumário: “1. Como insistentemente tem vindo a ser afirmado, inicialmente na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, secundada depois pelas Relações e artigos doutrinários, o recurso da matéria de facto não é um segundo julgamento e visa unicamente a detecção do erro de facto. 2. O erro de facto tem de ser correctamente identificado no recurso – o(s) concreto(s) facto(s) ou o(s) ponto(s) de facto – e acompanhado das concretas provas que, segundo o recorrente, impõem decisão oposta à tomada na sentença. 3. Esta exigência de delimitação/confinamento do objecto do recurso não significa que a Relação esteja impedida de vir a apreciar todas as provas, ou mesmo que todas as provas possam ser, no caso, as concretas provas, de acordo com o objecto do recurso definido pelo recorrente. 4. Só que, mesmo nestas situações em que o recorrente indica como concretas provas todas as provas – mas sempre com a exigência (ónus) de especificação – a segunda instância não as reaprecia na exacta medida em que o fez o juiz de julgamento, ou seja, não procede a um segundo julgamento. 5. E o recurso da matéria de facto não é um segundo julgamento, desde logo porque o objecto do recurso não coincide com o objecto da decisão do tribunal de julgamento – este decide sobre uma acusação, aquele decide sobre a (correcção da) sentença de facto. 6. Mas também não o é porque a segunda instância não se encontra na mesma posição do juiz de julgamento perante as provas – não dispõe de imediação total (embora tenha uma imediação parcial, relativamente a provas reais e à componente “voz” da prova pessoal) e está impedida de interagir com a prova (ou seja, de questionar). 7. Assim, à Relação só pode pedir-se que efectue um controlo do julgamento, e não que repita ou reproduza o julgamento. Os seus poderes de decisão de facto estão direccionados para a (sindicância da) sentença de facto, e sempre de acordo com a impugnação do recorrente. 8. É-lhe para tanto permitido proceder ao confronto e análise das concretas provas, na parte especificada por referência ao consignado na acta ou transcritas no recurso (sem prejuízo de oficiosamente se poder vir a socorrer de outras provas). 9. Esta exigência de especificação completa o enunciado das “concretas provas”. Concretas, não apenas ou essencialmente no sentido de uma(s) individualizada(s) no conjunto das restantes, mas concretas porque especificadas, e não apenas nomeadas ou indicadas. 10. Esta exigência é indispensável ao conhecimento amplo da matéria de facto em segunda instância pois visa possibilitar, ou permitir, a detecção do erro de facto. E indicia também que o recurso da matéria de facto não possa ser um segundo julgamento. 11. A admissibilidade do pedido que o recorrente formula, de reapreciação de todas as provas mas agora apenas de acordo com a sua convicção, implicaria um modelo de recurso da matéria de facto que não é o do Código de Processo Penal português. 12. Viabilizaria o segundo julgamento em segunda instância, opção que o legislador claramente não quis. 13. Assim, no caso, não tendo o recorrente procedido à especificação das concretas provas, como se impunha nos termos referidos, pretendendo tão só a substituição da convicção do juiz de julgamento pela sua, não pode o recurso da matéria de facto proceder.”.
[23] Neste sentido, cf. o acórdão da RP de 10/05/2006, relatado por Paulo Valério, in www.gde.mj.pt, processo 0315948, do qual citamos: “… Como se diz no Ac. Rel. Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ªinstância». Ou, consoante se escreveu no igualmente douto Ac. Rel Coimbra de 3-11-2004 (recurso penal n.° 1417/04) «... é evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha » (Cfr. no mesmo sentido, entre outros: Ac de 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03, todos da Relação de Coimbra).
É que o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação, e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. …”.
Ora, sendo os factos dados como provados na sentença conclusões lógicas da prova produzida produzidas em audiência e plausíveis face a essas provas, a convicção assim formada pelo julgador não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/09/2005 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 05A2007). Na verdade, refere o mesmo acórdão, «a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos ». Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe. “…”.
[24] “A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.” (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I, 5ª ed., 2008, p. 83 e 84).
Ou, como dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 356, “A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus de prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. Se a final da produção da prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória (D. 48.19,5: Satius enim esse impunitum relinqui facinus nocentis quam innocentem dainnare).”.
[25] Sobre as possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, ver o importante Ac. do STJ de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, do qual citamos: “…O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2, da CRP - , impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção – acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série, de 25-02-1999.
O princípio in dubio pro reo - fórmula condensada por Stubel - que estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.
A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas, como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal insindicável pelo STJ (por todos, acórdão de 18-12-1997, processo n.º 930/97, BMJ 472, 185), ou enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio texto da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão de facto – acórdão de 29-11-2006, processo n.º 2796/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 235 (239).
Contrariamente à posição de Figueiredo Dias, expressa in Direito Processual Penal, volume I, pág. 217, que defende que o princípio se assume como um princípio geral de processo penal, não forçosamente circunscrito a facetas factuais, podendo a sua violação conformar também uma autêntica questão de direito plenamente cabível dentro dos poderes de cognição do STJ, a jurisprudência maioritária tem repudiado a invocação do princípio em sede de interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias.
Para o acórdão de 06-04-1994, processo n.º 46092, BMJ 436, 248, o princípio não tem aplicação apenas quanto à matéria de facto, começando, logo, por poder ser aplicado na própria interpretação da matéria de direito, esclarecendo que “nada impede que, em via de recurso penal interposto para este Supremo Tribunal, os julgadores se socorram do princípio in dubio pro reo, quando, esgotados todos os meios de interpretação dos factos ou das disposições legais, surgirem dúvidas justificadas quanto ao sentido dos factos ou relativamente à norma aplicável”.
E de acordo com o acórdão de 11-02-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 210, o princípio in dubio pro reo é multifacetado e a sua força omnímoda e dinamismo podem e devem aplicar-se mesmo dentro dos processos lógicos que interessam à interpretação e integração da lei.
Este acórdão foi objecto de comentário na RPCC, 2003, ano 13, n.º 3, págs. 433 e ss., onde se diz que o STJ adoptou uma tese errónea em relação à aplicabilidade do princípio, defendendo-se que o alcance do in dubio pro reo restringe-se a dúvidas sobre a prova da matéria de facto e não tem aplicação na resolução de dúvidas quanto à interpretação de normas penais, cuja única solução correcta reside em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que se revele juridicamente mais exacto.
Em sentido oposto pronunciaram-se, i. a., os acórdãos de 06-12-2006, processo n.º 3520/06-3ª; de 20-12-2006, processo n.º 3105/06-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08, supra citado, onde se refere que «O princípio vale apenas em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito; aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto» e no acórdão de 30-04-2008, processo n.º 3331/07-3ª, diz-se que «O princípio in dubio pro reo não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance destas, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa».
A eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida pelo STJ quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida “patentemente insuperável” e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido, posto que saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista.
Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do artigo 127º do CPP, que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista – neste sentido acórdãos de 20-06-1990, BMJ 398, 431; de 04-07-1991, BMJ 409, 522; de 14-04-1994, processo n.º 46318, CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 265; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 06-03-1996, CJSTJ 1996, tomo 2 (sic), pág. 165;de 02-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 177; de 25-02-1999, BMJ 484, 288; de 15-06-2000, processo n.º 92/00-3ª, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 226 e BMJ 498, 148; de 02-05-2002, processo n.º 599/02-5ª; de 23-01-2003, processo n.º 4627/02-5ª; de 15-10-2003, processo n.º 1882/03-3ª; de 27-05-2004, processo n.º 766/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209 (a alegada violação do princípio só poderá ser sindicada se ela resultar claramente dos textos das decisões recorridas); de 21-10-2004, processo n.º 3247/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 198 (com recensão de jurisprudência sobre o tema e em concreto sobre a temática das conclusões que as instâncias retiram da matéria de facto e o recurso às presunções naturais); de 12-07-2005, processo n.º 2315/05-5ª; de 07-12-2005, processo n.º 2963/05-3ª; de16-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 182; de 20-02-2008, processo n.º 4553/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 210/08-3ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243; de 09-04-2008 processo n.º 429/08-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08-3ª; de 15-07-2008, processo n.º 1787/08-5ª.
Noutra perspectiva, o STJ poderá sindicar a aplicação do princípio, quando a dúvida resultar evidente do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal tendo ficado em estado de dúvida, decidiu contra o arguido – cfr. acórdãos de 30-10-2001, processo n.º 2630/01-3ª; de 06-12-2002, processo n.º 2707/02-5ª; de 08-07-2004, processo n.º 1121/04-5ª, SASTJ, n.º 83; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3137/06-5ª; de 18-01-2007, processo n.º 4465/06-5ª; de 21-06-2007, processo n.º 1581707-5ª; de 13-02-2008, processo n.º 4200/07-5ª; de 17-04-2008, processo n.º 823/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08-3ª; de 28-05-2008, processo n.º 1218/08-3ª; de 29-05-2008, processo n.º 827/08-5ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3ª; de 16-10-2008, processo n.º 4725/07-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª;de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5ª (A apreciação pelo Supremo da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio).
Na perspectiva, mais concreta - e que data de finais da década de 90 do século passado - de análise do princípio in dubio pro reo, como figura próxima do vício decisório - erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea c), do CPP - , e, pois, da sua sindicabilidade pelo Supremo Tribunal, podem ver-se os acórdãos de 15-04-1998, processo n.º 285/98-3ª, in BMJ 476, 82; de 22-04-1998, processo n.º 120/98-3ª, BMJ 476, 272; de 04-11-1998, processo n.º 1415/97-3ª, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 201 e BMJ 481, 265, com extensa informação acerca do princípio em causa e da livre apreciação da prova; de 27-01-1999, no processo nº 1369/98-3ª, in BMJ 483º, 140; de 24-03-1999, processo n.º 176/99-3ª, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, todos do mesmo relator, Exmo. Conselheiro Leonardo Dias, em que a tónica do entendimento sufragado nos citados arestos é o seguinte: “o erro na apreciação da prova só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. Nesta perspectiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, se extrair, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”; e ainda os acórdãos de 20-10-1999, processo n.º 1475/98 -3ª, in BMJ 490º, 64 (em que aquele relator intervém como adjunto); de 04-10-2006, processo n.º 812/2006-3ª; de 11-04-2007, processo n.º 3193/06-3ª.
Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, parece-nos que esta possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, por um lado, com o consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, operando de uma forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.
O que significa que, tal como ocorre na análise e exame de verificação dos vícios, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo (em ambos os casos diversamente do que ocorre com a avaliação de nulidades da sentença), há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo artigo 410º do CPP, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento. …”.
[26] De novo Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª edição, 2008, p. 77.
[27] Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no citado art.º 410.º/2 CPP.
[28] Assim, o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
[29] Na verdade, a matéria de facto pode ser posta em causa por duas vias, como se expõe, exemplarmente, no acórdão da RC de 26/10/2011, relatado por Heitor Gonçalves, in www.gde.mj.pt, processo 575/04-1: “… A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no citado art.º 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou, através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o subsequente artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos aludidos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do mencionado art.º 412.º).
Aliás, é nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º 4.
Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º]. …”.
A este propósito, ver também o acórdão da RL de 17/12/2014, relatado por Rui Gonçalves no proc. 432/08.6TASCR.L1-3, do qual citamos: “… É consabido que a chamada revista alargada configura uma impugnação restrita da matéria de facto, mas não é a verdadeira impugnação da matéria de facto conforme o disposto no art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
As recorrentes não podem confundir a invocação dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal com os requisitos da impugnação da matéria de facto a que se reporta o n.º 3 e respetivas alíneas e o n.º 4 do art. 412.º do referido Corpo de Leis: trata-se de institutos distintos com natureza e consequências distintas.
Na verdade, os vícios previstos no referido art. 410.º devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência e aí se ficam; a impugnação ampla da decisão da matéria de facto lavra fundo na apreciação da prova.
Ora, se é verdade que a existência de um dos vícios do referido art. 410.º nos espelha algo de errado da decisão da matéria de facto, o facto de se não verificar nenhum daqueles vícios, não garante que a matéria de facto haja sido bem julgada.
Com efeito, pode não existir nenhum dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal e no entanto a prova ter sido mal apreciada, ocorrer um verdadeiro erro de julgamento. Daí que na motivação recursória não possa existir confusão nem amálgama entre invocação dos referidos vícios e a impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
Podem coexistir a invocação dos vícios do n.º 2 do art. 410.º e a impugnação de acordo com o referido 412.º, n.º 3, e pode existir uma sem a outra. …”.
[30] A violação grosseira é “… uma violação de elementares deveres de condução, susceptível de traduzir o carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego, e para os bens jurídicos pessoais envolvidos. Em suma, exige-se um grau especial de violação de deveres (não podem ser punidas violações de pequena dimensão). …”, Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do CP”, tomo II, Coimbra Editor, 1999, págs.1.066/1.067.
“… Violação grosseira é, no apontado contexto, uma séria infraccção de uma norma tipicamente relevante para a condução. …”, M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, in “CP – com notas e comentários”, Almedina, 2ª ed., 2015, pág. 1.155.
Quanto a esta matéria, ver também o acórdão da RP de 06/03/2013, relatado por Eduarda Lobo, no proc. 192/10.0YASJM.P1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “… Tem-se considerado que constitui violação grosseira das regras de circulação rodoviária a violação objetiva de elementares deveres de condução no âmbito dessa circulação. De acordo com Paula Ribeiro Faria, para que se encontre violação grosseira de regras de condução é necessário que se esteja perante «uma violação de elementares deveres de condução, suscetível de traduzir o carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego, e para os bens jurídicos pessoais envolvidos. Em suma, exige-se um grau especial de violação de deveres».
Igualmente, Germano Marques da Silva[9], perante a formulação da norma anterior à Lei nº 77/2001 de 13/07, refere que «não se trata de violação das regras de trânsito, nem da violação que ocasione um perigo concreto, porque este é o evento da ação e a violação grosseira é a causa desse evento, mas de temeridade, de ousadia perante o perigo quase certo, previsto ou previsível atentas as circunstâncias. O condutor devia prever que naquelas circunstâncias a violação daquelas regras de trânsito era especialmente adequada a causar um perigo concreto para determinados bens jurídicos e, por isso, era mais forte o dever de evitar aquele comportamento».
Assim, este elenco de manobras [obedecendo à necessidade de tornar mais segura a interpretação do tipo de crime] consubstancia as mais graves violações das condições de segurança rodoviária, que são susceptíveis – elas mesmas só por si - de constituir violações grosseiras das regras de condução. …”.
[31] Nesse sentido, cf., por todos, Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, I, Almedina, 1971, pág. 287; e Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Português” II, Verbo, 2005, pág. 32, onde afirma: “Nos de perigo concreto, a realização do tipo exige a verificação, caso a caso, do perigo real …”, e M.J. Almeida e Costa, in “Estudo sobre os crimes de perigo. Os crimes de aptidão”, JusNet 42/2010, onde afirma: “Nos crimes de perigo concreto, o perigo faz parte do tipo; quer dizer, o tipo só se preenche quando o bem jurídico tenha sido concreta ou efectivamente posto em perigo. São exemplos a exposição ou abandono (138.º CP (…)) ou a condução perigosa de veículo rodoviário (291.º CP (…))”.
[32] Citado por Maia Gonçalves, in “CP Anot.”, Almedina, 11ª ed., 1997, pág. 810.
[33] Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense”, II, Coimbra Editora, 1999, pág. 1087.
[34] Vejam-se os seguintes acórdãos, que configuram situações de perigo concreto relevantes para o preenchimento deste tipo legal de crime:
Ac. da RP de 06/06/2001, relatado por Marques Salgueiro, in JusNet 3995/2001, do qual citamos: “…Pensa-se, com efeito, que efectuar as "habilidades" ali descritas - ultrapassagens não assinaladas perigosas e, bem assim, início e retoma da marca, fazendo "cavalinhos e arranques bruscos" - numa artéria de Valongo, na presença e junto de vários cidadãos, e, tudo isso, com um motociclo de reconhecida potência, com a inerente maior dificuldade de domínio eficaz, traduz seguramente uma situação de perigo concreto para essas pessoas, assim expostas às consequências danosas que de um tal tipo de condução, altamente perigosa, sobremodo propícia ao descontrolo do veículo e de todo vedada pelo Código da Estrada, lhes poderia advir; o que, de resto, essas pessoas bem sentiram, pois até ficaram amedrontadas.
E é claro que a acusação não tinha que identificar as pessoas postas em perigo, pois, como é evidente, não deixa de haver crime nas situações em que, por qualquer razão se não logra a identificação das pessoas molestadas. O que não significa que se não reconheça vantajoso que o tivesse feito, se possível; pelo menos, se mais não fosse, para efeitos de prova dos factos alegados. …”.
Ac. da RL de 14/10/2004, relatado por Margarida Vieira de Almeida, in JusNet 7498/2004, do qual citamos: “…É certo que o ilícito previsto no art° 291º do Código Penal é um crime de perigo concreto, como se pode concluir do facto de o preceito mencionar a necessidade de ".deste modo criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado..."
Só que o perigo concreto não resulta do facto de no veículo se fazer transportar uma outra pessoa mas antes do facto de o arguido ter adormecido ao volante, e ter entrado em despiste, não tendo conseguido fazer a curva e imobilizar o veículo antes de decorridos 9 metros.
Ao ter perdido o controlo do veículo por ter adormecido, e ao ter entrado em despiste, para mais, numa curva, o arguido colocou em perigo a vida e os bens de todos quantos circulavam naquele local à mesma hora.
O facto de haver um sinistrado, em resultado do despiste e perda de controlo do veículo, apenas reforça a situação de perigo concreto que o arguido criou. …”.
Ac. do STJ de 14/02/2007, relatado por Silva Flor, in www.gde.mj.pt, processo 06P4091, de cujo sumário citamos: “Estando demonstrado que: - o arguido, para além de conduzir pela metade esquerda da faixa de rodagem, após uma colisão causadora da ruptura do depósito de gasóleo do veículo TIR que conduzia, com derramamento contínuo de combustível na estrada, do que se apercebeu, prosseguiu a sua marcha, dando causa a outro acidente com um veículo cujo condutor perdeu o controlo do mesmo devido ao estado escorregadio ao piso; - momentos depois, em seguida a outro acidente de que resultou uma avaria do veículo que conduzia, o arguido abandonou o mesmo no meio da estrada, sem qualquer tipo de sinalização; - procedeu do modo descrito sabendo que poderia provocar graves acidentes, pondo em perigo a vida e a integridade física dos utentes da estrada, bem como dos veículos com que se cruzava; é de considerar que o arguido praticou actos de que podiam resultar, como aliás resultaram, desastres, criando perigo para a vida, a integridade física de outrem e bens patrimoniais de elevado valor, sendo, por isso, líquido que a sua conduta integra o crime p. e p. pelo art. 279.º, n.º 1, do CP82, ou pelo art. 290.º, n.º 1, al. d), do CP revisto, e não o crime p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, al. b), do CP revisto.”.
Ac. da RC de 16/06/2010, relatado por Esteves Marques, in JusNet 3520/2010, do qual citamos: “…Trata-se de um crime doloso de perigo concreto, bastando-se com esse perigo Ac STJ 97.06.12, BMJ 468, 124 (JusNet 4896/1997); Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, pág. 14; Maia Gonçalves, Obra citada, pág. 894..
Ora o arguido ao iniciar a manobra de ultrapassagem numa curva acentuada para a direita, sem condições de visibilidade, infringiu a norma contida no artº 41º nº 1 e) do Código da Estrada que estabelece que é proibida a ultrapassagem nas curvas de visibilidade reduzida.
Acresce que as manobras de ultrapassagem são das mais perigosas e, por isso, da sua execução de forma inconveniente ou imprópria resulta a larga percentagem de acidentes de trânsito.
Violação manifestamente grosseira das regras de trânsito susceptível de criar um risco de ocorrência de acidente para o veículo conduzido pelo queixoso.
E em concreto no caso em análise essa manobra foi feita no preciso momento em que se aproximava outra viatura em sentido contrário, obrigando a que o condutor do veículo ultrapassado, para evitar o embate iminente, se tenha visto forçado a desviar o seu veículo para a berma do lado direito, pondo desse modo em perigo a integridade física dos respectivos ocupantes das viaturas e ainda a integridade estrutural do veículo em que se faziam transportar.
E mais grave ainda quando o arguido sabia que com tal manobra punha em risco a integridade física dos ocupantes dessa viatura, o que revela a grande imprudência como exercia a condução, criando por isso um perigo concreto para os bens jurídicos individuais.”.
[35] Parecendo defender um conceito muito mais exigente de verificação do perigo concreto, veja-se o Ac. da RL de 31/10/2006, relatado por Filomena Lima, in JusNet 6872/2006, do qual citamos: “…Das várias formas de comportamentos descritas poderia, em abstracto, resultar um perigo concreto para a vida, integridade física ou para bens patrimoniais de valor elevado. Porém, não basta, a insegurança na condução ou a violação grosseira das regras de circulação rodoviária, tornando-se necessário que da análise as circunstâncias do caso concreto se deduza a ocorrência de um perigo concreto.
Mas será que se pode inferir que da actuação apurada resultou um perigo concreto? Colocado numa posição de apreciação ex ante, poderá o cidadão médio afirmar que da actuação do arguido, relativamente à forma como conduzia, em estado de embriaguez e violando a regra de circulação referente à mudança de direcção, conforme se descrevem um e outra nos autos, seria normal e legítimo esperar-se que estava a colocar real e concretamente em perigo os demais utentes da estrada, no momento dos factos.
Veja-se o que diz a este propósito o ac. R.L de 26.9.disponível em www.dgsi.pt, relatado pelo Desembargador José Adriano: "Os maiores problemas surgem, porém, quando se coloca a questão de saber como há-de configurar-se ou como deve comprovar-se esse resultado de perigo concreto, questão sobre a qual a jurisprudência nacional não se tem debruçado, sendo também pouco clara e escassa a doutrina que a tal respeita. Rebuscando, mais uma vez, na jurisprudência alemã, de que nos dá conta Roxin (…), diz-nos esta que o conceito de perigo escapa a uma "descrição científica exacta", e que o mesmo é "predominantemente de natureza fáctica e não jurídica", ou ainda que "o conceito de perigo concreto não se pode determinar com validade geral, senão apenas segundo as circunstâncias particulares do caso concreto". De todo o modo, ainda segundo o mesmo autor, daquela jurisprudência "podem extrair-se os pressupostos de um perigo concreto geralmente reconhecidos: em primeiro lugar, há-de existir um objecto de acção e ter este entrado no âmbito da acção de quem o põe em perigo e, em segundo lugar, a acção típica tem que ter criado um perigo iminente de lesão desse objecto da acção" (…).
Dando preferência à "teoria normativa do resultado de perigo", defende o mesmo ilustre penalista "que existe um perigo concreto quando o resultado lesivo não se produz só por casualidade", devendo entender-se esta "não como o inexplicável segundo as ciências naturais, mas sim como uma circunstância em cuja produção não se pode confiar". Assim, "todas aquelas causas salvadoras que se baseiam numa extraordinária destreza do ameaçado ou numa feliz e não dominável concatenação de outras circunstâncias, não excluem a responsabilidade pelo delito de perigo concreto". Na mesma linha de pensamento se situa o Supremo Tribunal Federal alemão, ao exigir um perigo "que indica que está iminente um acidente caso não haja uma mudança repentina, por exemplo porque o sujeito ameaçado adopte uma medida protectora em consequência de uma adivinhação ou percepção mais ou menos sensível ao perigo". Havendo ainda quem entenda o "perigo como crise aguda do bem jurídico", produzindo-se essa crise "quando for ultrapassado o momento em que poderia evitar-se um dano com segurança mediante medidas defensivas normais" (…)."
Analisado o presente caso à luz dos princípios atrás expostos, serão os factos da acusação suficientes para se considerar verificado o perigo exigido no art. 291.º, n.º 1, do CP?
Salvo o respeito devido por outros entendimentos, cremos que no caso em apreço, a matéria de facto tida por provada não permite concluir com segurança que seria razoável esperar que daquela condução se seguiria necessariamente, ou pelo menos muito provavelmente, um perigo concreto para os referido valores.
A descrição fáctica relativa à condução em estado de embriaguez, com TAS de 1,31 g/litro, não é suficiente, só por si, para a imputação de um perigo concreto, elemento do tipo de crime p.p. pelo art.º 291º CP.
Também relativamente à manobra de mudança de direcção efectivamente cometida, não se vê perante a forma como ela é descrita nos autos que constitua uma violação grosseira, ostensiva, temerária de regra de circulação donde se infira, só por si, a criação de um perigo concreto; antes traduz uma forma normal de ocorrência de violação das regras estradais que prevêem a manobra em causa.
A situação descrita nos autos demonstra uma manobra que constitui uma violação das regras de circulação rodoviária mas não é qualquer violação dessas regras, mesmo que grosseira, que permite concluir pelo preenchimento do crime.
Para que se preencha o tipo legal e se verifique o perigo concreto nele enunciado, deve a condução em concreto reflectir um elemento qualitativo adicional relativamente à mera violação de uma regra da estrada e a matéria de facto em apreço não fornece tal elemento.
Efectivamente, da descrição factual resulta que o arguido produziu um resultado danoso, ao ofender fisicamente um outro utente da via mas não resulta qualquer elemento de facto que permita considerar a manobra do arguido como concretamente criadora do perigo.
O facto de dela ter resultado um dano ou ofensa, se do ponto de vista naturalístico poderia levar à constatação da criação do perigo, não basta no entanto para excluir a necessidade de alegação e apuramento do referido elemento de facto nem dispensa a sua inclusão na matéria de facto, enquanto elemento de facto indispensável à integração do crime.
De todo o modo, mesmo para quem considerasse que bastaria a produção do resultado - no caso, a ofensa - para se presumir que a conduta do arguido era geradora do perigo concreto para a integridade física alheia, haveria que apurar da existência do elemento subjectivo integrador do tipo. …”.
Não concordamos com esta conclusão. Como dissemos no texto supra, sempre que se verificar a produção do resultado, há que concluir que existiu perigo concreto, salvo se o acidente se deveu a outras causas. E é isso mesmo que afirma Claus Roxin no texto citado neste acórdão: "… existe um perigo concreto quando o resultado lesivo não se produz só por casualidade".
Concordamos que é necessário alegar e provar a verificação desse perigo concreto, mas este resultará da conjugação dos factos dados como provados: a existência de uma ou mais das situações previstas nas alíneas a) e b) do art.º 291º do CP; o tipo de via em que circulava o veículo; as pessoas e veículos que se encontravam nessa via; as circunstâncias do acidente e o resultado produzido.