I-A transmissão a terceiro do imóvel locado, na pendência de ação em que se discute a denúncia do arrendamento por parte do proprietário/senhorio, não afeta a legitimidade deste como A. na causa nem impede o prosseguimento dos autos;
II-Tendo a A. enviado à Ré inquilina, em 19.12.2014, carta registada com aviso de receção, a denunciar o contrato com fundamento na demolição do imóvel respetivo, a comunicação opera ainda que a referida carta seja devolvida;
III-A antecedência a que alude o 1103, nº 1, do C.C., visa garantir ao arrendatário um prazo mínimo para poder organizar-se e proceder à entrega do locado, de modo que o senhorio não pode exigir ao inquilino a desocupação antes de 6 meses depois da competente comunicação, não se tornando a denúncia eficaz antes de decorrido esse prazo.
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Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de ....
I- Relatório:
...-Sociedade Imobiliária, S.A., veio propor, em 28.5.2015, contra Francisco ..., Lda, e Victor Manuel de ... ..., ação declarativa com processo comum, pedindo se declare válida a denúncia do contrato de arrendamento de um espaço, com cerca de 6 m2, do prédio urbano sito na Rua Áurea nºs 81 a 93, freguesia de São Julião, concelho de ..., com entrada pelo nº 87 do mesmo prédio, condenando-se a Ré a entregar o locado à A., livre e devoluto de pessoas e bens, devendo ainda ser os RR. solidariamente condenados a pagar uma indemnização por todos os danos que a A. vier a ter em caso de não entrega do locado até 30.6.2015, a liquidar em fase posterior à sentença. Alega, para tanto e em síntese, que encontrando-se o referido espaço arrendado à sociedade Ré, pretende a demolição do aludido prédio, já com projeto aprovado, pelo que denunciou o contrato de arrendamento para o dia 30.6.2015. Sucede que a Ré não aceita a referida denúncia, invocando o 2º R., enquanto sócio e gerente único da mesma, que tem 83 anos de idade e que a atividade desenvolvida no local é o seu único sustento.
Contestaram os RR., alegando não ser a denúncia eficaz por a A. não ter observado os prazos legais para o efeito, posto que pretendia a entrega do locado conforme fls. 9 junto com a p.i. e apenas remeteu a carta a denunciar o contrato em 5.1.2015, recebendo-a a Ré apenas em 7.1.2015. Concluem pela improcedência da causa.
Respondeu a A., afirmando que a referida carta foi efetivamente expedida em 19.12.2014 solicitando a devolução da loja para 30 de Junho de 2015 e que a mesma foi devolvida e depois reenviada à Ré. Junta documentos.
Realizou-se audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que conferiu a validade formal da instância, identificou o objeto do litígio e fixou o valor da causa em € 1.829,40.
Conclusos os autos, foi, em 16.5.2016, proferida sentença nos seguintes termos: “(...) julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, declaro válida a denúncia do contrato de arrendamento efectuada pelo Autor e condeno a primeira Ré a entregar o locado ao Autor, livre e devoluto, mediante o pagamento por este último de uma indemnização àquela de valor equivalente a um ano de renda.
No mais absolvo os Réus do pedido.
Custas por Autores e primeiro Réu, na proporção do vencimento, fixando-se esta em 3% para o primeiro e 70% para o segundo – art. 527º CPC.”
Inconformada, recorreu a Ré, Francisco ..., Lda, da sentença, culminando as alegações por si apresentadas com as conclusões a seguir transcritas:
“
I- O presente Recurso tem por objecto a Douta Sentença Judicial na parte em que declarou a validade da denúncia do contrato de arrendamento e condenou a recorrente Francisco ..., Lda. na entrega do locado livre e devoluto á recorrida “... Sociedade Imobiliária, Lda.
II- Na referida Sentença, o Tribunal “a quo”, condena a Recorrente, porquanto entende, que “verifica-se que o Autor enviou a carta para denúncia do contrato em 19/12/2014 mas que o réu apenas a recebeu em 07/01/2015, após o reenvio da mesma carta, pretendendo o Réu que, por tal facto, tal denúncia não pode produzir efeitos.
A inobservância da antecedência não obsta à produção do efeito extintivo do contrato a que a denúncia se dirige – embora o arrendatário fique constituído na obrigação de entrega do locado apenas passados seis meses da recepção da comunicação da denúncia.
No caso apreço, já tendo, na presente data, decorrido esse prazo, deve declarar-se válida a denúncia e condenar-se o Réu/arrendatário a efectuar a entrega. (…)”
III- No decorrer dos presentes autos a Recorrida deixou de ser proprietária do imóvel tendo ocultado tal facto quer do Tribunal quer da recorrente, tendo-se apresentado na Audiência Prévia, em 13/01/2016, sem qualquer legitimidade, quer processual, quer substantiva para o fazer.
IV- A recorrida quando deixou de ser proprietária do prédio, deixou de ter interesse em agir e de ser parte, direta ou indiretamente, com interesse no destino dos presentes autos. Tendo optado por ocultar tal facto que é absolutamente essencial para a estabilidade da instância.
V- A recorrida deu, o imóvel onde está instalado o estabelecimento comercial da recorrente, como dação em pagamento ao BCP, cujo registo a favor do BCP, operou pela Ap. 100 de 2016/01/07.
VI- Quando o tribunal a quo apreciou a matéria de facto e proferiu a douta Sentença de que ora se recorre, não aferiu da legitimidade das partes no momento da mesma e, provavelmente nem o teria de fazer, porém, a realidade é que a ora recorrida se apresentou numa posição processual que já não tinha uma vez que já não era proprietária do locado, não era senhoria da Ré e já não tinha qualquer interesse na lide por inutilidade superveniente da mesma. Pois não iria por em prática quaisquer obras de restauro profundo no imóvel, condição essencial à denúncia do contrato de arrendamento.
VII- Não foi requerido o respetivo incidente de habilitação, com vista à regularidade da instância.
VIII- Ao ocultar a transmissão da propriedade do imóvel a favor de terceiros, a Recorrida litiga com má-fé processual, devendo assim ser condenada, em valor a fixar por este douto tribunal, porém em valor nunca inferior a € 500,00 (quinhentos euros).
IX- A recorrente não se conforma com a Douta Sentença porquanto considera que a lei é taxativa, nos termos do nº 1 do artigo 1103º do CC, ao afirmar que “A denúncia pelo senhorio (…) é feita mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação (…)”
X- O tribunal a quo violou o sentido do artigo 1103º do C.C., pois atribui-lhe interpretação que não cabe no alcance da norma, que vai muito para além do que decorre da sua literalidade e enceta em si uma interpretação extensiva dissonante com o sentido efetivamente pretendido pelo legislador com este normativo legal.
XI- Não é o arrendatário que deve entregar o locado no prazo mínimo de 6 (seis) meses após a denúncia, mas o senhorio que deve comunicar a denúncia com a antecedência mínima de 6 (seis) meses da data pretendia para a desocupação. Prazo que não foi respeitado pela recorrida e como tal não pode produzir efeitos nos termos em que a sentença ordena.
XII- Da prova documental resulta que a carta de denúncia enviada pela senhoria, está efetivamente, datada de 19/12/2014, mas, apenas e só, foi apresentada nos serviços de correio em 05/01/2015.
XIII- A denúncia do contrato de arrendamento teve por base o facto do imóvel, onde está instalado o estabelecimento comercial da recorrente, ter sido objeto de projetos aprovados pela Câmara Municipal de ..., para demolição integral do prédio (com excepção apenas da fachada), e outro de posterior reconstrução do prédio.
XIV- Porém, com a dacção em pagamento ao BCP, do prédio objecto dos autos, a recorrida não dá, nem pode, dar ulterior prosseguimento aos fins que motivaram a denúncia do contrato de arrendamento visto ter deixado de ser proprietária do mesmo.
XV-A recorrida invocou facto substantivo do direito que se arroga, que sabia ter deixado de existir à data da realização da Audiência prévia, pondo em causa a validade de um contrato de arrendamento que, a não ser por esta enganadora circunstância, se manteria válido nos precisos termos em que tem vigorado nos últimos 50 anos.
XVI- Ainda que a recorrente se pudesse conformar com o teor da decisão recorrida, o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, no que à entrega do imóvel se ordena, nunca poderia a mesma ser cumprida nos exactos termos em que foi a recorrente condenada, atendendo a que a ora recorrida já não é proprietária do imóvel, o que consubstanciaria uma subversão dos princípios legais que motivaram o sentido da douta sentença ora recorrida.”
Pede a revogação da sentença e a absolvição da Ré, mantendo-se válido o contrato de arrendamento em questão. Junta um documento.
E contra-alegações, sustenta a apelada, concluindo nos seguintes termos:
“
A) A douta Sentença recorrida não merece qualquer censura.
B) A carta de denúncia do contrato de arrendamento foi enviada a 19/12/2014, ainda que só recebida em 07/01/2015, após reenvio da mesma carta.
C) A inobservância da antecedência não obsta à produção do efeito extintivo do contrato a que a denúncia se dirige, conforme a douta decisão recorrida bem entendeu, pois o prazo de 6 (seis) meses previsto na lei não é um prazo constitutivo do direito à denúncia, mas antes um prazo para efetivação da mesma.
D) A Recorrida nunca “ocultou” ao Tribunal a quo a transmissão do imóvel, prosseguindo legitimamente a lide, nos termos do art. 263º, nº 1 do CPC, que estipula que “No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa”.
E) Tal preceito tem só uma interpretação possível, reiterada pela Jurisprudência e Doutrina, que é que “A habilitação entre vivos não é condição necessária do prosseguimento da causa, enquanto tal não ocorrer, o transmitente continua a ter legitimidade para a demanda, até ao final do pleito”.
F) O facto de a ora Recorrida ter transmitido o prédio não invalida o fundamento apontado na notificação de denúncia, que se mantém, independentemente de ser a própria Recorrida ou terceiro a realizar as obras licenciadas.
G) Aliás, a Recorrida pediu ao Tribunal que declarasse a validade e licitude da denúncia do contrato de arrendamento relativo ao locado, a que procedeu enquanto proprietária do mesmo, pedido para o qual nunca deixaria de ser parte legítima, mesmo que não fosse atual proprietária do referido locado;
H) Não há, pois, litigância de má-fé senão da R., que pretende mais uma vez atrasar injustificadamente a desocupação do locado, procurando obrigar a Recorrida a pagar-lhe montantes elevados de dinheiro, a que sabe não ter direito.
I) É errónea a interpretação dada pela Recorrente do art. 1103º do CC, além de profunda e desproporcionalmente injusta e gravosa para a senhoria, caso se aplicasse – o que não se concebe nem concede e por mero dever de patrocínio se enuncia.
J) A A./Recorrida enviou a comunicação de denúncia com a antecedência devida de acordo com a data que aí indicou para a desocupação do locado (não estando sequer obrigada a indicar tal data, nos termos legais aplicáveis).
K) Foi o facto de a Recorrente não ter querido ou podido receber essa comunicação que obrigou ao reenvio da referida carta (que passou a indicar uma data já inferior ao prazo de seis meses).
L) Ainda assim, já passaram muitos meses desde que a comunicação foi enviada (19/12/2014) e reenviada (05/01/2015) e recebida pela Recorrente (07/01/2015) – que não se opôs, aliás, aos seus fundamentos, e assim os aceitou, ainda que persistindo em não desocupar o locado.
M) A transmissão do prédio em que se encontra sito o locado não impede “os fins que motivaram a denúncia do contrato de arrendamento”, que são a realização de obras licenciadas – e que se pretendem realizar.
N) A Recorrida parece querer carrear aos presentes autos um “facto futuro” – que é o da (eventual) não realização das obras licenciadas – mas só poderia invocar se esse facto efetivamente se concretizasse, o que é desde logo impossível se esta não desocupar o locado, como é sua obrigação.
O) A Recorrente deve, pois, (i) reconhecer a validade e licitude da denúncia realizada e (ii) desocupar o locado, conforme foi condenada, sendo totalmente injustificada a sua recusa, que se considera visar apenas pressionar e prejudicar a Recorrida de forma absolutamente reprovável.”
Pede a manutenção do decidido.
O recurso foi recebido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentos de Facto:
A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:
1) A Autora é proprietária e legítima possuidora do prédio urbano sito na Rua …………….., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ………… e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2193 da freguesia de ………., concelho de ..., adiante também designado apenas por «Prédio», conforme Certidão Predial e Caderneta Predial;
2) A Ré é actual arrendatária de um exíguo espaço do prédio, com cerca de 6 m2, correspondente ao vão de escada com entrada pelo nº 87 do Prédio (adiante também designado simplesmente por «Locado») onde detém um estabelecimento comercial de ourivesaria quase sem actividade, tendo adquirido o direito ao arrendamento por escritura de trespasse celebrada a 02/07/56 no Quarto Cartório Notarial de ...;
3) Actualmente, a renda mensal do locado é de € 60,98;
4) Foram apresentados na Câmara Municipal de ... (CML) dois projectos de obra, um de demolição integral do Prédio (com excepção apenas da fachada) e outro de posterior (re)construção do prédio, que deram lugar, respectivamente, aos processos 780/EDI/2009 e nº 55/IDI/2006 da CML, os quais vieram a ter deferimento por despachos proferido em 10/03/2011 pelo Senhor Vereador Manuel ..., conforme se comprova da notificação enviada à Autora pela CML datada de 11/11/2014;
5) Os referidos projectos abrangem dois prédios urbanos contíguos. O já acima referido e um outro com os nºs 95 a 107 da Rua da Áurea e nºs 99 a 103-A da Rua de São Nicolau, freguesia de São Julião, concelho de ..., descrito na conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 56/20040301, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2253 da freguesia de Santa Maria Maior, concelho de ...;
6) Isto porque, pese embora estruturalmente consubstanciarem um só imóvel, contudo, têm dois registos e duas descrições distintas na conservatória;
7) Ora, uma vez que o projecto aprovado implica a demolição do Locado, a Autora tentou chegar a acordo extrajudicial com a Ré com vista à cessação do contrato de arrendamento, tendo um representante da Autora abordado directamente a Ré, na pessoa do seu gerente, o Sr. Vítor ..., contudo, não foi possível qualquer acordo uma vez que a Ré exigiu a quantia mínima de € 100.000,00 para pôr fim ao contrato de arrendamento;
8) A 19 de Dezembro de 2014 a Autora enviou à Ré uma carta registada com aviso de recepção a denunciar o contrato, carta essa que foi devolvida e reenviada, tendo sido recebida pela Ré em 07/01/2015.
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III- Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Compulsadas as conclusões do recurso, cumpre apreciar:
- da remessa da carta para denúncia e seus efeitos;
- da propriedade do imóvel e da legitimidade da A.;
- da litigância de má-fé da A..
Por razões de ordem lógica, começaremos pela matéria da legitimidade da A. para a causa, deixando para final o primeiro ponto assinalado.
A) Da propriedade do imóvel e da legitimidade da A.:
Independentemente de qualquer análise sobre a oportunidade da junção pela apelante, com as alegações, do documento comprovativo da transmissão da propriedade do imóvel dos autos pela A. a um terceiro – e porque com ela não colide, como veremos – abordaremos, em primeiro lugar, a questão suscitada no recurso quanto à ilegitimidade da referida A. emergente dessa invocada transmissão.
A apelante diz que a A. carece de legitimidade para a causa porque deixou de ser proprietária do imóvel dado de arrendamento, facto de que não deu conhecimento ao tribunal, não tendo deduzido o respetivo incidente de habilitação.
A apelada opõe que a transmissão do imóvel não obsta à sua legitimidade para a causa, de acordo com o disposto no art. 263 do C.P.C..
Naturalmente, a questão não foi apreciada em 1ª instância, que não se confrontou então com a mesma, sendo certo que, muito embora o tribunal “ad quem” não possa conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido, deverá apreciar as que sejam de conhecimento oficioso, como a legitimidade (cfr. arts. 278, nº 1, al. d), 577, al. e), e 578, do C.P.C.).
Não assiste, todavia, neste tocante, qualquer razão à recorrente, como refere a recorrida.
Com efeito, a transmissão do imóvel locado não afeta a legitimidade da A. senhoria para a causa nem impede o prosseguimento dos autos.
Estabelece o art. 263 do C.P.C. (que reproduz, sem alterações, o art. 271 do C.P.C. de 1961): “1. No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo. 2. A substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária. 3. A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação.”
O nº 1 do preceito mantém, como se vê, a legitimidade do transmitente até que o adquirente seja julgado habilitado.
Na transmissão entre vivos a habilitação é facultativa (art. 356, nº 2), contra o que sucede na habilitação por morte ou extinção da parte (arts. 269, al. a), 270, e 276, nº 1, al. a)).
Conforme observam assertivamente Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, referindo-se ao então art. 271 do C.P.C. de 1961: “(…) A partir da transmissão, o transmitente, que já não é titular da situação jurídica transmitida, substitui processualmente o adquirente, seu actual titular, litigando em nome próprio, mas em prossecução dum interesse que só indirectamente é seu (…).”([1])
De resto, resulta do nº 2 do dito art. 263 do C.P.C. que a substituição não será forçosamente decretada, ainda que comprovada a trasmissão, se houver desacordo da contraparte e o tribunal entender que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição dessa parte contrária.
Por conseguinte, é óbvio que, mesmo tendo a A. transmitido a propriedade do imóvel locado na pendência da causa, mantém a mesma inteira legitimidade para nela se manter como demandante.
E não se diga que só a A. poderia ter requerido o incidente de habilitação do adquirente do imóvel, pois esta pode também ser promovida pelo próprio adquirente ou pela parte contrária, de acordo com o nº 2 do art. 356 do C.P.C..
Improcede, neste tocante, o recurso.
B) Da litigância de má-fé da A.:
Na sequência da arguida ilegitimidade da A., refere a apelante que aquela ocultou do tribunal a transmissão do imóvel a terceiro, litigando, por isso, com má fé processual, pelo que deve ser condenada em valor não inferior a € 500,00.
A apelada contesta, em contra-alegações, sustentando que é a Ré quem pretende injustificadamente atrasar a desocupação do locado.
É por demais evidente, também aqui, a sem razão da apelante.
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido outros relevantes para a decisão da causa, tiver praticado omissão grave do dever de cooperação ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (cfr. art. 542, nº 2, do C.P.C.).
O dever da boa-fé processual encontra-se, por outro lado, instituído como um princípio geral do processo civil, segundo o qual os litigantes devem agir como pessoas de bem, isto é, usando entre si de correção, honestidade e lealdade (cfr. arts. 7, 8 e 9 do C.P.C.). A violação desse dever implica a condenação do litigante respetivo em multa e ainda em indemnização à parte contrária, caso por esta seja pedida.
Na situação sub judice, e em face do que acima deixámos dito, não é possível surpreender qualquer conduta ilícita da A. à luz dos normativos citados.
Não só era facultativa, como vimos, a habilitação do adquirente, como também a Ré a poderia ter desencadeado nos autos.
Improcede, também aqui, forçosamente o recurso.
C) Da remessa da carta para denúncia e seus efeitos:
Apreciando, agora, da questão nuclear, verificamos que a recorrente contesta no recurso a interpretação seguida na sentença quanto ao prazo da denúncia previsto no art. 1103 do C.C., sustentando que o senhorio não lhe comunicou, com a antecedência mínima devida de 6 meses, que pretendia a desocupação para a data indicada.
A apelada sustenta, na resposta, o acerto do julgado.
Na sentença declarou-se válida a denúncia do contrato de arrendamento levada a cabo pela A., nos termos seguintes: “(…)No caso dos autos, verifica-se que o Autor enviou a carta para denúncia do contrato em 19/12/2014 mas que o Réu apenas a recebeu em 07/01/2015, após o reenvio da mesma carta, pretendendo o Réu que, por tal facto, tal denúncia não pode produzir efeitos.
A denúncia é causa de extinção do contrato de arrendamento.
Pode dizer-se que a denúncia consiste na declaração que um dos contraentes comunica ao outro que deseja por termo ao contrato.
A denúncia é, pois, uma declaração unilateral receptícia.
A antecedência exigida, serve, para que a parte, destinatária da declaração correspondente, se possa precaver para o facto de o vínculo contratual se extinguir em breve.
A inobservância da antecedência não obsta à produção do efeito extintivo do contrato a que a denúncia se dirige – embora o arrendatário fique constituído na obrigação de entrega do locado apenas passados seis meses da recepção da comunicação da denúncia.
No caso apreço, já tendo, na presente data, decorrido esse prazo, deve declarar-se válida a denúncia e condenar-se o Réu/arrendatário a efectuar a entrega. (…)”.
Analisando.
Ao caso é indiscutivelmente aplicável ao caso o NRAU (aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27.2, com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14.8).
Com efeito, de acordo com o nº 1 do art. 59 deste Diploma “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.” A regra é, por isso, a de que o NRAU se aplica imediatamente às relações contratuais mesmo constituídas antes da nova lei, ressalvado o regime transitório previsto.
Por seu turno, o art. 26 do NRAU estabelece o regime transitório aplicável aos contratos de arrendamento celebrados na vigência do RAU.
De acordo ainda com os arts. 27 e 28 do mesmo NRAU, com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14.8, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU e aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do DL nº 257/95, de 30.9, como é aqui o caso, são designadamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, o disposto no referido art. 26 com as especificidades constantes dos números 2 a 5 do art. 28 e dos arts. 30 a 37 e 50 a 54 daquele NRAU.
Por conseguinte, as normas indicadas que dispõem diretamente sobre o conteúdo da relação de arrendamento abrangem as relações já constituídas e são de aplicação imediata, ressalvadas as exceções contidas nos números 2 a 5 do referido art. 26. As referidas disposições do NRAU acompanham o disposto no art. 12 do C.C. quanto à aplicação das leis no tempo. A lei que dispõe sobre conteúdo da relação jurídica é a lei nova, mas a que rege sobre os efeitos de um facto é a que vigorar no momento em que tal facto ocorreu.
Por conseguinte, e no tocante às condições da denúncia do contrato de arrendamento, será sempre aplicável a lei nova.
De acordo com o disposto no art. 1101, nº 1, al. b), do C.C., o senhorio pode denunciar o contrato para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado.
Por seu turno, a denúncia pelo senhorio com tal fundamento “é feita mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação e da qual conste de forma expressa, sob pena de ineficácia, o fundamento da denúncia.” (art. 1103, nº 1, do C.C.).
Acresce que o DL nº 157/2006, de 8.8, estabelece o Regime Jurídico das Obras em Prédios arrendados, determinando o seu art. 47 que “Às comunicações entre senhorio e arrendatário previstas no presente decreto-lei aplica-se o disposto nos artigos 9.º a 12.º do NRAU.”
O desacordo da Ré apelante nos autos e no recurso circunscreve-se à questão da dita antecedência relativamente à data pretendida para a desocupação que, insiste, não terá sido respeitada.
Provou-se que a A. enviou à Ré, em 19 de Dezembro de 2014, carta registada com aviso de receção a denunciar o contrato, carta essa que foi devolvida e reenviada, tendo sido recebida depois pela Ré em 7.1.2015.
De acordo com o doc. de fls. 9 junto com a p.i., a fls. 54/55 dos autos, que não se mostra impugnado, o prazo indicado para a desocupação na referida carta seria o de “30 de Junho de 2014”, correspondendo o ano indicado, como não pode deixar de ser, a manifesto lapso material. Donde, só pode entender-se que a A. pretendia, obviamente, reportar-se à data de “30 de Junho de 2015”, como invoca na p.i..
Em qualquer caso, como bem observa a recorrida, afigura-se irrelevante a data em que a Ré recebeu efetivamente a referida carta.
De acordo com os arts. 9, nº 1, e 10, nº 1, al. a), do NRAU, aplicáveis ex vi do citado art. 47 do DL nº 157/2006, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção, devendo considerar-se realizada a comunicação ainda que a carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais.
Mas ainda que se entendesse apenas como válida para o efeito a receção daquela carta pela Ré em 7.1.2015, mesmo assim estaria assegurado o prazo de antecedência para a realização da desocupação.
Na verdade, a antecedência a que alude o 1103, nº 1, do C.C., visa garantir ao arrendatário um prazo mínimo, não inferior a 6 meses, para este poder organizar-se e proceder à entrega do locado. Jamais poderá, assim, o senhorio exigir ao inquilino a desocupação antes de decorrido um tal período depois da competente comunicação. Não se trata de qualquer prazo de renovação do contrato que cumpra respeitar.
Como assinala a recorrida, a lei não estipula, em rigor, que o senhorio indique, ao denunciar o contrato, uma data certa e específica para a restituição, apenas impondo que a comunicação respetiva seja feita com uma antecedência de 6 meses relativamente a essa restituição.
Ou seja, o que a lei garante, protegendo o inquilino, é que a denúncia não poderá operar antes de 6 meses sobre a comunicação devida, que não se tornará eficaz antes de decorrido esse prazo.
Mal se compreenderia, de resto, que feita a denúncia, mesmo que efetivada a 7.1.2015 como pretende a recorrente, esta se achasse autorizada a manter-se no locado depois de decorridos 6 meses sobre o efetivo conhecimento do teor daquela carta, tanto mais que não contesta os fundamentos da pretensão da senhoria.
A sentença que ordenou a entrega foi proferida em 16.5.2016, tendo a Ré beneficiado de extenso prazo, depois ainda alargado pelo recurso interposto, para proceder à desocupação solicitada.
O entendimento seguido pela Ré/apelante de que seria simplesmente inválida, para todos os efeitos, a comunicação de uma data para a desocupação que não respeitasse rigorosamente aquela antecedência, violaria os limites impostos pela boa fé, correspondendo a um verdadeiro abuso de direito (art. 334 do C.C.)([2]).
Com efeito, a ilegitimidade em que se traduz o abuso de direito não resulta da violação formal de qualquer preceito legal em concreto mas da utilização manifestamente anormal, excessiva, do direito, independentemente do animus ou da consciência que o seu titular tenha do carácter abusivo da sua conduta([3]). Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela:“(…) Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites. (…).”([4]).
Em síntese, a comunicação da A. operou muito antes da referida data de 7.1.2015 em que a Ré recebeu, de facto, a carta da denúncia, mas, ainda que assim não fosse, esta tornou-se necessariamente eficaz decorridos 6 meses sobre aquela data.
Finalmente, diz ainda a recorrente que nunca poderia a sentença ser cumprida nos exatos termos em que foi condenada, atendendo a que a recorrida já não é proprietária do imóvel.
A questão encontra-se acima já respondida, a propósito da legitimidade da A..
Se, como concluímos, apesar da transmissão do imóvel objeto do litígio, o transmitente mantém a legitimidade para a causa, substituindo processualmente o adquirente, não sendo, além do mais, obrigatória a habilitação processual desse mesmo adquirente, é evidente que nenhum reparo merece a decisão que ordenou a entrega do locado à A..
Por conseguinte, e sem necessidade de outras considerações, tem de confirmar-se a sentença recorrida que, declarando válida a denúncia do contrato de arrendamento efetuada, determinou a referida entrega do imóvel.
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IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e manter a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
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23.5.2017
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
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[1] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 1999, pág. 481.
[2] Dispõe o art. 334 do C.C. que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
[3] Cfr. “Dicionário Jurídico”, Ana Prata, 3ª ed., pág. 7.
[4] “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 298.