I – Tendo em consideração a previsão do art 177º/2 do CPC e o art 4º/1 do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola, deve concluir-se que as cartas rogatórias que para a mesma sejam expedidas devem ser endereçadas directamente à autoridade ou tribunal estrangeiro, pelo que, tendo a carta rogatória em causa nos autos sido dirigida directamente “às Justiças da República Popular de Angola”, foi devidamente endereçada.
II – Não obsta a essa conclusão a circunstância de terem sido utilizados os serviços da Direcção Geral da Administração da Justiça – Divisão de Cooperação Judiciária Internacional, pois essa utilização interna não afecta o cumprimento do referido Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola, destinando-se apenas a assegurar a segurança e eficácia do cumprimento das cartas rogatórias.
III – Com efeito, à Direcção de Serviços Jurídicos e Cooperação Judiciária Internacional, unidade orgânica da DGAJ, abreviadamente designada por DSJCJI, compete assegurar o encaminhamento e acompanhar a execução do expediente relativo ao cumprimento de cartas rogatórias e outros pedidos de cooperação, para citação e notificação, obtenção de provas e outros actos, processos ou procedimentos judiciais, nos termos dos instrumentos jurídicos internacionais em que a DGAJ seja autoridade central, entidade expedidora ou instituição intermediária e organismo ou autoridade de referência.
IV – Resulta “a contrario sensu” do art 178º CPC que a discussão e julgamento da causa podem ter lugar depois de ter findado o prazo do cumprimento da carta.
V – Por isso, tendo a carta rogatória sido expedida para cumprimento há mais de dois anos e, consequentemente, estando há muito ultrapassado o prazo de três meses para o seu cumprimento, bem andou o tribunal recorrido em designar dia para julgamento.
I - Na acção declarativa com processo comum que JM a JG, este, no seu requerimento probatório, indicou como testemunha AM com morada em Angola, tendo logo pedido que, devendo ser ouvido a «toda a matéria do tema da prova que vier a ser fixado», o fosse por carta rogatória a remeter às Justiças de Angola.
Na audiência prévia que veio a ter lugar e em que, entre o mais, se fixaram os temas de prova, foi admitido o referido requerimento de prova e de imediato designado dia para a audiência de julgamento.
Por despacho de 9/6/2014 foi dada sem efeito a designação de julgamento, por não se ter atentado no requerimento relativo à inquirição da referida testemunha por carta rogatória.
Sem que se tivesse designado novo dia para julgamento, ordenou-se a expedição de carta rogatória ao Tribunal Cível de Luanda – República de Angola.
Com data de 20/6/2014 foi remetida à Direcção Geral da Administração da Justiça – Divisão de Cooperação Judiciária Internacional a carta rogatória para inquirição da testemunha dirigida às Justiças da República Popular de Angola.
Em 4/6/2015 oficiou-se à referida DGAJ para informar o estado da carta rogatória remetida em 20/6/2014.
Com data de 17/6/2015 a DGAJ solicitou do Tribunal Supremo de Luanda a devolução, devidamente cumprida e com a máxima brevidade, da carta rogatória em apreço, indicando como assunto «Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola (Resolução da AR nº 11/97 de 4/3) - Insistência»
Em 19/2/2016 oficiou o Tribunal de novo à DGAJ para informar o estado da carta rogatória remetida em 20/6/2014.
Não tendo obtido resposta, de novo, agora em 15/9/2016, oficiou o Tribunal à DGAJ para informar o estado da carta rogatória remetida em 20/6/2014.
Esta entidade, com data de 22/9/2016, e indicando como assunto «Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola (Resolução da AR nº 11/97 de 4/3)» solicitou a devolução, devidamente cumprida e com brevidade, do pedido respeitante a AM «o qual foi enviado directamente a esse Tribunal através da comunicação cuja cópia se junta».
Em 22/9/2016 a DGAJ informou o tribunal de que se solicitara às competentes autoridades de Angola a devolução, devidamente cumprida e com brevidade, do pedido respeitante a AM
Em 18/11/2016 foi proferido o seguinte despacho:
«O prazo de cumprimento das cartas rogatórias é de três meses – art 176º/2 CPC.
Nos presentes autos foi remetida em 25/5/2014 carta registada às competentes instâncias da República de Angola para inquirição de testemunha arrolada pelo R.
Apesar das diversas insistências via DGAJ, não há qualquer notícia nos autos relativa ao seu cumprimento.
Assim e ao abrigo do disposto no art 178º/2ª parte do CPC, determino o prosseguimento dos autos para realização de audiência de discussão e julgamento.
Para realização desta última designo, sem prejuízo do disposto no nº 2 do art 155º CPC, o dia 22/2/2017 pelas 9,30 h, com a menção de que poderá eventualmente continuar pela parte da tarde.
Sem prejuízo, oficie a DGAJ para informar se entretanto há notícia do cumprimento da carta rogatória. Notifique.»
Em 25/11/2016 a DGAJ informou o tribunal de que se solicitara às competentes autoridades de Angola a devolução, devidamente cumprida e com brevidade, do pedido respeitante a AM.
II – É do despacho acima referido que a R. apelou, tendo concluído as respectivas alegações nos seguintes termos:
a) O envio da carta rogatória para inquirição da testemunha António Graça, residente em Angola, não obedeceu ao disposto nos arts 177º/2 do CPC e nº 1 do art 4º do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola, porquanto não foi enviada directamente pela secretaria da Comarca de Lisboa para o Tribunal Cível de Luanda conforme, aliás, determinado pelo despacho de 9 de Junho de 2014;
b) Os despachos de 6 e 9 de Junho de 2014 admitiram o depoimento daquela testemunha, a prestar por carta rogatória, e transitaram em julgado;
c) O não cumprimento da carta, endereçada erradamente como se referiu, não é imputável ao recorrente;
d) A lei não prevê qualquer sanção ou o que quer que seja quanto ao andamento dos autos, emergente do não cumprimento da carta rogatória no prazo previsto no artº 176º/2 do CPC quando, sobretudo, tal não é imputável à parte que ofereceu o respectivo meio de prova;
e) Haveria, pois, que acatar o decidido nos despachos transitados de 6 e 9 de Junho de 2014 determinando-se o necessário ao cumprimento da carta, em lugar de se ter designado dia para o julgamento;
f) Invoca-se, assim, como fundamento do presente recurso a violação do caso julgado formado pelas decisões aludidas na anterior alínea, bem como a errada interpretação e aplicação do preceituado nos arts 176º/ 2 e 177º/2 do CPC e do citado Acordo de Cooperação;
g) Deverá, consequentemente, ser concedido provimento à presente apelação, revogando-se o despacho recorrido com as legais consequências, nomeadamente a de que seja declarado sem efeito todo o processado dependente da não prestação de depoimento da indicada testemunha.
Não houve contra alegações.
III- A matéria de facto a ter em consideração para o conhecimento e decisão do presente recurso advém do acima relatado.
IV – As questões a apreciar, vistas as conclusões das alegações e a respectiva articulação com o teor do despacho recorrido, são as seguintes: se a carta rogatória expedida para as Justiças de Angola em 20/6/2014 foi endereçada erradamente; se não obstante o prazo para cumprimento da carta rogatória estar excedido em mais de dois anos, deveria o processo continuar a aguardar o cumprimento da referida carta, atento o facto de terem feito caso julgado os despachos em que se admitiu a expedição da carta rogatória.
Dispõe o art 172º/1 que «a prática de actos processuais que exijam intervenção dos serviços judiciários pode ser solicitada a outros tribunais ou autoridades por carta precatória ou rogatória, empregando-se a carta precatória quando a realização do acto seja solicitada a um tribunal ou a um cônsul português e a carta rogatória quando o seja a autoridade estrangeira».
Por sua vez refere o art 177º a respeito da “Expedição das cartas” no respectivo nº 2 : «As cartas rogatórias, seja qual for o acto a que se destinam, são expedidas pela secretaria e endereçadas directamente à autoridade ou tribunal estrangeiro, salvo tratado ou convenção em contrário». Acrescentando o respectivo nº 3: «A expedição faz-se pela via diplomática ou consular quando a rogatória se dirija a Estado que só por essa via receba cartas; se o Estado respectivo não receber cartas por via oficial, a rogatória é dirigida ao interessado». E o seu nº 4 refere: «Quando deva ser expedida por via diplomática ou consular, a carta é entregue ao Ministério Público, para a remeter pelas vias competentes».
Pela Resolução da Assembleia da Republica nº 11/97 de 11/10/1996, foi aprovado, para ratificação, o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola.
Nos termos do seu art 4º/1, sob a epígrafe “Actos Rogados”, diz-se: «Sem prejuízo do disposto no art 9º, a prática de actos judiciais será pedida directamente pelos tribunais de um dos Estados Contratantes aos tribunais do outro, mediante carta rogatória assinada e autenticada com o selo da autoridade requerente ou, sendo acto urgente, por telegrama».
Daqui se conclui, e tendo em conta a previsão do nº 2 do acima referido art 177º, que, no que se refere à República de Angola, as cartas rogatórias são expedidas pela secretaria e endereçadas directamente à autoridade ou tribunal estrangeiro.
Assim procedeu a Secção relativamente à carta rogatória em apreço nos autos, pois dirigiu-a directamente “às Justiças da República Popular de Angola”.
È certo que a Secção utilizou os serviços da Direcção Geral da Administração da Justiça – Divisão de Cooperação Judiciária Internacional, para o efeito da remessa da carta rogatória em causa, mas isso não afecta o cumprimento do dito Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola: tem apenas a ver com a actuação interna destinando-se tal utilização a aumentar a segurança e eficácia do cumprimento das cartas rogatórias.
Com efeito, vejam-se as competências da Direcção Geral da Administração da Justiça – Divisão de Cooperação Judiciária Internacional, na matéria em causa.
A Lei Orgânica da Direcção Geral da Administração da Justiça (DGAJ) contém-se no DL nº 165/2012 de 31/7, in DR 1ª Serie nº 147.
De acordo com o art 2º/1 desse diploma, «a DGAJ tem por missão assegurar o apoio ao funcionamento dos tribunais», e de acordo com a al l) do nº 2 desse art 2º, à DGAJ compete-lhe, entre outras atribuições, «assegurar a função de autoridade nacional nas convenções para as quais for determinado pelo Ministro da Justiça».
Por sua vez, em função da Portaria nº 67/2017 de 15/2 – que actualiza a Portaria nº 388/2012 de 29/11 - a Direcção de Serviços Jurídicos e Cooperação Judiciária Internacional constitui uma unidade orgânica da DGAJ e à mesma – abreviadamente designada por DSJCJI - compete, segundo o art 3º al f) da mencionada Portaria, «assegurar o desenvolvimento das acções necessárias ao exercício das atribuições da DGAJ no domínio da cooperação judiciária internacional em matéria civil e comercial».
Com maior concretude, verifica-se do Despacho nº 860/2013, in DR 2ª Serie, nº 11 de 16/1/2013, com a redacção dada pelo Despacho nº 4346/2014, DR 2ª Serie nº 59, de 15/3/2014, e hoje pelo Despacho nº 2924 /2017, in DR 2 ª Serie, nº 70, de 7/4/2017, que «a DSJCJI integra a Divisão de Cooperação Judiciária Internacional (DCJI), à qual compete, al a) «assegurar o encaminhamento e acompanhar a execução do expediente relativo ao cumprimento de cartas rogatórias e outros pedidos de cooperação, para citação e notificação, obtenção de provas e outros actos, processos ou procedimentos judiciais, nos termos dos instrumentos jurídicos internacionais em que a DGAJ seja autoridade central, entidade expedidora ou instituição intermediária e organismo ou autoridade de referência» – ponto 2.1 al a)
Donde se conclui que a carta rogatória foi devidamente endereçada e encaminhada.
Dispõe o art 176º sob a epigrafe “Prazo para cumprimento das cartas” , no seu nº 2 que, «quando a diligência deva realizar-se no estrangeiro, o prazo para o cumprimento da carta é de três meses».
Há que atentar também ao conteúdo do art 178º que dispõe, sob a epígrafe “A expedição da carta e a marcha do processo” que, «a expedição da carta não obsta a que se prossiga nos demais termos que não dependam absolutamente da diligência requisitada, mas a discussão e julgamento da causa não podem ter lugar senão depois de apresentada a carta ou depois de ter findado o prazo do seu cumprimento».
Resulta claro, ainda que “a contrario sensu”, desta última norma, que a discussão e julgamento da causa podem ter lugar depois de ter findado o prazo do cumprimento da carta.
Ora a carta em referência nos autos esteve expedida para cumprimento mais de dois anos. Durante esse prazo o tribunal insistiu – sempre, tanto quanto se conhece, oficiosamente e não a pedido de qualquer das partes no processo - com o cumprimento da mesma por três vezes, sem que nunca tivesse obtido resposta.
Como é evidente, o processo tem de prosseguir sem o cumprimento da carta em referência, e sem que, obviamente, a tanto possa obste a circunstância de anteriormente, fazendo o correspondente caso julgado, se ter ordenado a sua expedição.
Bem fez, pois, o despacho recorrido ao ter designado dia para julgamento.
O mais que pode suceder é que ao A. possa ser concedida a faculdade de substituir a testemunha em apreço, fazendo corresponder à situação de facto verificada, a «impossibilidade definitiva para depor» a que se reporta a al a) do nº 3 do art 508º CPC.
V – Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo apelante.
Lisboa, 22 de Junho de 2017
Maria Teresa Albuquerque
Jorge Vilaça
Vaz Gomes