CRÉDITO AO CONSUMO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

–Podendo deduzir-se com segurança dos factos concretos dos autos que o incumprimento dum contrato de crédito ao consumo nenhuma relação teve com a aplicação de qualquer cláusula desconhecida para o mutuário em função da não entrega de um exemplar do contrato, a invocação da nulidade decorrente da não entrega do exemplar constitui abuso de direito.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Parcial

Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da
Relação de Lisboa.

              
I.–Relatório:


A..., deduziu os presentes embargos à execução interposta por S... SA, peticionando a procedência dos mesmos e em consequência a extinção da instância executiva, com reconhecimento da excepção de prescrição, da ineptidão da petição inicial e, se assim não se entender, da inexistência de pacto de preenchimento, do preenchimento abusivo do titulo executivo e finalmente da nulidade do contrato. Mais peticiona que seja julgado que o valor em dívida seja o pagamento da diferença entre o valor do empréstimo, e o valor já pago, quer através das prestações efectuadas, quer da venda, com as legais consequências. Peticiona finalmente que se julgue improcedente e não provada a acção, e em consequência seja o Réu absolvido da instância.

Em síntese, alegou que foi citado em 2.7.2015, e que a acção executiva foi instaurada com base em livrança com vencimento em 14.7.2006; alegou ainda que o requerimento executivo é inepto, pois não indicou os factos em que se funda, designadamente o contrato, as condições e tipo de serviço prestado, não se depreendendo qual é a causa de pedir, nem o exequente juntou documento comprovativo do incumprimento ou de interpelação para pagamento; por outro lado, desconhece o embargante se foi firmado pacto de preenchimento, e caso exista afirma que existe preenchimento abusivo do mesmo. Porque a exequente é uma financeira, o contrato está submetido ao regime das cláusulas contratuais gerais, sendo que não foram explicadas as cláusulas ao réu nem lhe foi entregue cópia do contrato, devendo pois as cláusulas ter-se por excluídas e o contrato por nulo. Finalmente, não há vencimento antecipado de juros. Nega a existência de abuso de direito na invocação da nulidade, na medida em que o lapso de tempo necessário à formação da confiança na parte contrária no caso não existe, visto que a livrança foi emitida em 3.7.2006 e venceu-se em 24.7.2006. A nulidade do contrato importa na restituição de tudo o que foi prestado, devendo o autor restituir ao réu os juros estipulados para a remuneração do mútuo e o réu o dever de pagar ao autor o valor de capital mutuado e despesas, acrescido de juros civis à taxa de 4% desde a data da citação. Ainda por isto, o valor preenchido é muito superior ao devido, o que também importa preenchimento abusivo.

Admitida a oposição, foi a exequente notificada para contestar, o que fez, impugnando a matéria da oposição e pugnando pela sua improcedência. Pugnou pela improcedência da prescrição atenta a data de vencimento da livrança e a data da instauração da acção executiva, o que interrompeu a prescrição. Tendo sido apresentado como título executivo uma livrança, estava dispensada de alegar a relação material subjacente. A livrança dada à execução foi assinada em branco e que o embargante fez na qualidade de subscritor, com expressa aceitação do pacto de preenchimento, que também assinou. Para o efeito, alegou os termos do contrato celebrado e a garantia conferida, onde se insere a livrança, dada à execução.

Alegou ainda que foi paga apenas uma prestação e as seguintes foram incumpridas.

Nessa sequência remeteu cartas ao executado, para a morada indicada pelo mesmo, as quais não foram por ele recebidas.

À data do contrato o fornecedor do bem prestou todas as informações e esclarecimentos relativos ao contrato, o qual identifica. Não possui exclusividade com o mesmo, pelo que a escolha da exequente para o financiamento denota ter tomado conhecimento das cláusulas do contrato que assinou. Em todo o caso, refere que em 14.09.2005 remeteu a carta de boas vindas ao executado, com duplicado do contrato.

Concluiu que o executado sempre dispôs de um exemplar do contrato, nunca solicitou o seu reenvio nem protestou a sua falta. Alegou vários contactos com o executado. Pugnou pela comunicação das cláusulas e pela concordância do executado nas mesmas, pelo que não houve qualquer violação do dever de informação.

Acresce que o embargante não concretizou as cláusulas cujo conteúdo não percepcionou, em virtude de o mesmo não lhe ter sido cabalmente explicado, ao que o Tribunal não se pode substituir.

O executado beneficiou do veículo desde a data de celebração do contrato em 31.08.2005 a 13.06.2006, data em que procedeu à entrega do veículo. Este comportamento voluntário de entrega da viatura para redução do valor em dívida deve ser considerado, não sendo tolerável que agora alegue a nulidade por falta de entrega do exemplar.

Foi proferido despacho saneador, desde logo fixando à oposição o valor de €7.055,10, e julgando improcedentes as excepções de prescrição e de ineptidão alegadas. Foi fixado o objecto do litígio e identificados os temas da prova, estes sendo “Do contrato na base da livrança” e “Do preenchimento abusivo”.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento e foi seguidamente proferida sentença de cuja parte dispositiva consta:
“Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de facto e de direito supra mencionados, decide-se julgar os presentes embargos improcedentes, por não provados e, em consequência, determino o prosseguimento da execução.
Custas pelo executado”.

Inconformado, o embargante interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
A.–A Sentença a quo padece dum erro fundamental de incorreta subsunção dos factos ao Direito.
B.–O recorrente não se conforma com a fundamentação da decisão da causa.
C.–O tribunal a quo, considerou que devido a ausência de prova, não se conseguiu provar que o Autor entregou um exemplar ou o envio duma alegada carta de boas vindas.
D.–Pelo que concluiu que o contrato de crédito ao consumo era nulo.
E.–Nos termos do artigo 6.º e 7 do Decreto Lei n.º 359/91, de 21 de setembro.
F.–Mas, considerou ainda o tribunal a quo, existir abuso de direito, pelo simples facto de o réu ter pago 1 das 36 prestações acordadas e por o veículo ter sido entregue, desconhecendo-se nos autos quem entregou a referida viatura, pois nenhum documento consta de tal facto.
G.–Ora, um pagamento da prestação e a entrega do veículo, não impede a invocação da nulidade pelo réu, nem configura, só por si, abuso do direito (neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/09/2012, disponível em www.dgsi.pt).
H.–Refere ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/10/2001, não fora a atuação da autora, incompatível com a ponderação e salvaguarda dos direitos dos réus consumidores, não poderiam estes invocar a nulidade do contrato.
I.–Pelo que, sendo declarado nulo o contrato, tal facto determina as suas consequências.
J.–Dispõem o artigo 289.º do Código Civil que a declaração de nulidade tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
K.–As partes têm de ser repostas, nas situações anteriores a todo este processo negocial.
L.–O réu deverá restituir à autora a importância mutuada (5.500€, deduzida a prestação paga (€197,82) e o valor da venda do veiculo (€1100), ou seja, a quantia de €4.202,18 (quatro mil duzentos e dois euros e dezoito cêntimos).
M.–A esta quantia acresce juros de mora, à taxa legal de 4%, nos termos do artigo 559.º n.º 1 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 8 de abril, a contar desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
N.–Pelo que considera o recorrente que o tribunal a quo ao ter considerado nulo o contrato, não deveria ter decidido pela verificação da exceção perentória do abuso do direito, na modalidade venire contra factum proprium, previsto nos termos do artigo 334.º do CC.
O.–Assim, considerando os apontados vícios insanáveis da sentença recorrida, deverão (…) revogar a mesma, substituindo-a por outra que julgue nos termos da alínea L) das conclusões.

Contra-alegou a embargada, formulando a final as seguintes conclusões, que aqui transcrevemos na parte relevante:
n)-Em face do ónus probatório, mas não o tendo conseguido demonstrar cabalmente e destarte, apesar de considerar nulo o contrato de crédito celebrado, o meritíssimo juiz a quo entendeu não se justificar, em concreto, a protecção atribuída ao consumidor enquanto parte mais fraca. Isto porque:
ii)-Do abuso de direito reflectido na conduta do Recorrente:
o)-A arguição da nulidade do contrato, com fundamento na violação do disposto no n.º 1 do art.º 6º do DL 359/91 de 21 de Setembro, constitui uma derradeira tentativa do Recorrente se eximir das obrigações assumidas e como tal nunca poderia ser atendida.
p)-O Recorrente reconhece e ficou demonstrado ter celebrado o contrato (31.º E.E.) e assinado a livrança (24.º E.E.) que serviu de título à execução.
q)-O ora Recorrente celebrou com a Recorrida o contrato de crédito, junto aos autos, a 31.08.2005, tendo o mesmo por finalidade a aquisição, por parte do Recorrente/mutuário, de um automóvel, de marca NISSAN, modelo Vanette Cargo Combi, com a matrícula 3...-...2-....
r)-Não ficou demonstrado, que quer durante, quer depois na sua vigência, o Recorrente tenha solicitado qualquer esclarecimento adicional quanto ao envio do exemplar do contrato, alegando que o mesmo não lhe tenha sido entregue e socorrendo-se da ausência de envio para justificar o eventual desconhecimento dos termos contratuais a que se encontrava adstrito.
s)-Não obstante, ficou dado como provado, apenas a 13.06.2006 o executado entregou o veículo à exequente.
t)-Isto é, o executado usufruiu e teve em seu poder o veículo financiado até Junho de 2006, ou seja, durante cerca de 10 meses, jamais colocando em causa a validade do contrato de financiamento.
u)-Tendo pago exclusivamente apenas a 1ª prestação a que obrigou.
v)-Invoca o Recorrente que foi essa a única prestação liquidada e como tal inexiste uma actuação clamorosamente ofensiva da justiça.
w)-Porém, certamente olvida que à data da entrega – deveriam estar liquidadas 9 rendas - no pressuposto de que o contrato fosse pontualmente cumprido!
x)-Pelo que, bem andou a sentença em apreço subsumir que o comportamento do Executado constitui indubitavelmente abuso de direito na vertente de venire contra factum proprium, o facto de, volvidos cerca de 10 anos (!) sobre a data de celebração do contrato, vir o Recorrente arguir a nulidade do contrato que assinaram, por não lhes ter sido entregue na data da sua assinatura o duplicado.
y)-O Recorrente beneficiou dos efeitos do contrato, usufruindo das suas condições, tendo pago apenas uma prestação é certo, mas mantido a posse da viatura durante 10 meses, o que põe em causa o tal sentido jurídico dominante de que fala o Recorrente.
z)-Apenas quando a mutuante, no exercício do seu direito legítimo, executa a dívida decorrente desse mesmo incumprimento e exige coercivamente o seu pagamento, vem o mutuário arguir a nulidade do contrato, que já não lhe convém!
aa)-Disso é ainda demonstrativo o facto de em sede de alegações incorrer o Recorrente ainda na seguinte contradição (art. 50.º): pretende que seja declarada a nulidade do contrato com restituição da quantia mutuada, deduzida a prestação paga (€197.82€) e o valor da venda do veículo (€1100).
bb)-O sentido do alegado gera perplexidade, pois que, pretende fazer valer a nulidade do contrato (artigo 289º, nº. 1, do Código Civil), mas vem a sugerir afinal a imputação do veículo configurada a título de “dação pro solvendo” - embora o não diga expressamente -, da qual sempre só se pode socorrer o Recorrente, pressupondo a existência de um contrato válido entre as partes!
cc)-Como se salientou neste aspecto na contestação de E.E. (art. 147º) : (…) a Embargada foi confrontada com um comportamento voluntário do Embargante ao devolver a viatura para cuja aquisição serviu o contrato de crédito em apreço, acordando com a exequente em que o valor da venda fosse reduzido à dívida da sua responsabilidade.”
dd)-Pelo que, mal se compreende o comportamento contraditório adoptado ao recorrer ao regime da “dação pro solvendo”, uma das “causas de extinção das obrigações”, ainda que parcialmente, quando lançando mão da imputação do veículo, o mesmo mantém e defende que inexiste qualquer vínculo contratual que lhe dê suporte!
ee)-Nesse sentido, a sentença não carece de censura e acompanha a jurisprudência mais antiga:
-Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.07.2007: ”III - A nulidade do contrato de mútuo pode não ser reconhecida caso ocorra comportamento subsequente comprovativo de que comprador aceitou a sua validade, o que ocorre se o mutuário adquire o veículo e com ele circula durante vários meses ou anos, pagando parte das prestações acordadas, renegociando a dívida, através da entrega do automóvel à autora e reassumindo novo acordo de pagamento, sem nunca ter manifestado considerar tal contrato como lesivo dos seus interesses nem ter diligenciado no sentido de o revogar, a ele aderindo e aproveitando as vantagens dele emergentes, pois, nestes casos, que a sua invocação traduz um comportamento abusivo e contrário à boa fé - art. 334º do C. Civil.”
-Ac. Relação Lisboa datado de 09.05.2006: “O consumidor compra um veículo com o financiamento concedido, paga algumas das prestações acordadas e usa o veículo durante cerca de sete meses, sem nunca ter manifestado considerar tal contrato como lesivo dos seus interesses nem ter diligenciado no sentido de o revogar, a ele aderindo e aproveitando as vantagens dele emergentes, a invocação que fizer da referida nulidade traduz um comportamento abusivo e contrário ao direito e à boa fé, o que lhe é vedado pelo art. 334º do C. Civil, ou na modalidade das denominadas inalegabilidades formais, ou da proibição do “venire contra factum proprium”.”
ff)-Reflectindo ainda o entendimento da jurisprudência mais recente, conforme se transcrevem os recentes acórdãos:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.06.2016, em que foi relatora Maria Purificação Carvalho, cujo sumário é: “Abusa de direito, violando o princípio da boa fé e exercendo de modo disfuncional a sua posição jurídica, o mutuário que enquanto pagou, percebia o que dizia no contrato. Quando deixa de pagar, de uma cópia do contrato, que o contrato era nulo e que
abusivamente a embargada preencheu a garantia que para o efeito lhe tinha entregue.”
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.06.2016, em que foi relatora Maria de Deus Correia, cujo sumário é: “A invocação da nulidade do contrato por falta de entrega de um exemplar, ao fim de cinco anos de vigência do contrato, apenas quando foi chamado a honrar o compromisso assumido, constitui abuso de direito ( art.º 334.º do Código Civil e é, portanto, ilegítima.”
gg)-O Recorrente manifestou, durante um hiato temporal relevante, a sua concordância com o contrato, sem alegar a qualquer nulidade, usando o veículo, e, atenta a mora em que incorreu logo ao 2ª mês, propondo à Recorrida vias alternativas de solução (Cfr. art. 103.º ss da Contestação), passando pela cessão da sua posição contratual a terceiro ou ainda a venda directa do veículo terceiro com a autorização da mesma.
hh)-Pelo que, ainda que se mantenha em sede de recurso que o contrato é nulo, não deve a referida nulidade ser reconhecida por a sua invocação se traduzir num comportamento abusivo e contrário à boa fé, conforme disposto no art. 334º do C. Civil.
ii)-Pois não se mostra admissível enfim, que venha, o Recorrente, alegar a invalidade de um contrato, por preterição da obrigação de envio de uma cópia, quando o próprio aceitou e cumpriu parte desse mesmo contrato. Tal comportamento constitui um claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium (art. 334º CC).
jj)-Assim escreveu Abílio Neto: “O exercício de um direito (de um qualquer direito) deve ser excluído no caso de o titular ter protelado, contra a boa fé, esse exercício, que se traduziria, ao caso e ao resto, num “venire contra factum proprium”” (Cfr. Abílio Neto, Código Civil Anotado, 13.ª ed., 2001, EDIFORUM, Lisboa, pp. 258), sendo que “do regime do abuso de direito, na perspectiva “venire contra factum proprium”, pode resultar que, mesmo perante contrato nulo, se não tenha de restituir tudo quanto se recebera” (Cfr. Acórdão RL, 26-11-1987, CJ, 1987, 5.º-128), porque o Réu estaria a exercer um direito depois de criar a aparência à contraparte de que não o faria, causando-lhe essa legítima convicção.
kk)-“Efectivamente, segundo o artº 334º do Código Civil, é legítimo o exercício de um direito quando o titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Um dos casos em que tal se verifica é o de venire contra factum proprium, que consiste em alguém, tendo-se comportado de modo a criar na outra parte legítima convicção de que certo direito não seria exercido, vem depois exercê-lo”, In, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115, pág. 187.
ll)-Em suma, o Recorrente assumiu de facto, dois comportamentos, o segundo contraditório do primeiro: num primeiro momento, usou o veículo e pagou uma prestação a que estava vinculado e, em face do seu incumprimento gerador de interpelações pela Recorrida e dação pro solvendo, nada fizeram; apenas em sede da oposição vieram opor à Recorrida a alegada falta de entrega de cópia do contrato. Por força daquele primeiro comportamento (o factum proprium), a Recorrida encetou uma resolução extrajudicial e, na frustração desta, lançou mão dos expedientes apropriados, acreditando na validade e regularidade da declaração de vontades e em que o seu cumprimento estava validamente garantido pela Livrança subscrita pelo Executado…
mm)-Termos em que, atento todo o supra exposto não merece censura a douta sentença que julga improcedentes os Embargos de Executado, devendo a mesma ser mantida.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir:

II.–Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, as questões a decidir são saber se não ocorre abuso de direito na invocação da nulidade do contrato e saber se as consequências dessa nulidade são as pretendidas pelo recorrente na al. L das conclusões de recurso.
Repare-se, na verdade, que nas contra-alegações não se requer a ampliação subsidiária do objecto do recurso no sentido de se declarar que o exemplar do contrato ou a carta de boas vindas tinha sido entregue e que o contrato não era nulo – por essa razão transcrevemos apenas a parte relevante em termos de contradição ao argumento da inexistência de abuso de direito formulado pelo recorrente.

III.–Matéria de facto
A decisão do tribunal recorrido quanto à matéria de facto, que não vem posta em causa no presente recurso, é a seguinte:
“1.-Na execução comum para pagamento de quantia certa de que estes autos são um apenso, instaurada pela embargada, foi dada à execução a livrança n.º 500166773050469924, onde constam como subscritor o executado, no valor facial de 6.993,10€, com data de emissão de 03.07.2006 e de vencimento de 24.07.2006, com indicação “VCR 543000”, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado para os devidos efeitos, não paga integralmente na data de vencimento nem em momento ulterior.
2.-Em 31.08.2005, foi celebrado entre a Exequente e o executado um contrato de crédito, n.º 543000, no valor de € 5.500, para financiar a aquisição de um automóvel, de marca NISSAN, modelo Vanette Cargo Combi, com a matrícula 3...-...2-....
3.-E convencionado o pagamento em 36 prestações mensais e sucessivas no valor de € 197,82, cada uma, e a TAEG contratualizada foi de 16.42%, com uma entrada inicial de 1.500€, vencendo-se a primeira prestação em 08.10.2005.
4.-E foi subscrita pelos embargantes uma livrança como garantia do bom pagamento do montante financiado e convencionada reserva de propriedade.
5.-Consta do contrato que “os clientes declaram conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (…) sobre as quais foi/foram devidamente informado(s), tanto por lhe(s) sido dado a ler, como por lhe(s) ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura”.
6.-Consta da Cláusula 10ª das Condições Gerais do Contrato que “O Cliente e se aplicável o(s) Avalista(s) autoriza(m) a Sofinloc a preencher, qualquer garantia ou documento por si subscrito/avalizado e não integralmente preenchido, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo(s) Cliente(s) / Avalista(s) perante a Sofinloc por força do presente contrato, e em dívida na data do vencimento, acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos”.
7.-Foi paga a primeira prestação.
8.-Por carta datada de 12 de Janeiro de 2006, remetida pela exequente ao executado consta que se encontram vencidas as prestações de Novembro, Dezembro de 2005 e Janeiro de 2006, pelo que se concede um prazo suplementar de 8 dias para que proceda à liquidação dos valores em atraso.
9.-Por carta datada de 03.07.2006, remetida pela exequente ao executado consta que “completamos nesta data o preenchimento da livrança (…) que o valor da livrança é de 6.993,10€ e o seu vencimento ocorrerá aos 24.07.2006”.
10.-Estas cartas foram remetidas para a morada do executado e foram devolvidas.
11.-Em 13.06.2006, o executado entregou o veículo à exequente.
A demais factualidade resultou como não provada, nomeadamente a entrega do exemplar do contrato e sua explicação ao executado aquando da celebração e envio de carta de boas vindas com cópia do contrato.
A restante matéria alegada nos articulados constitui matéria de direito, de impugnação, conclusiva ou irrelevante para a decisão da causa, pelo que não se responde à mesma.
Para resposta à base instrutória da forma supra, o Tribunal tomou em consideração todas as provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento.
A matéria dada como provada resulta, fundamentalmente, dos documentos juntos aos autos e da matéria reconhecida e aceite nos articulados. Em audiência foi ouvido Luís J...G..., funcionário da exequente, a qual confirmou os termos do contrato celebrado com o executado e o seu desenvolvimento, nomeadamente o pagamento de apenas uma prestação, o incumprimento, a entrega do veículo e a resolução do contrato. No que concerne à entrega do contrato, esta testemunha nada sabia ou conhecia. O declarado resultou em suma da consulta dos elementos que constam do processo junto da exequente.
Foi assim por ausência de prova que se deu como não provada a entrega do exemplar e o seu envio com a alegada carta de boas vindas, a testemunha referiu-a, como procedimento habitual ou comum à data, mas não se apurou se esta ocorreu no caso em apreço. A testemunha referiu ainda referências a contactos com o cliente e o promotor”.

IV.–Apreciação.
A sentença recorrida, depois de discorrer sobre o título de crédito e a relação contratual subjacente e de concluir pela sujeição da mesma ao regime do contrato de crédito ao consumo, e, por via da não entrega de exemplar do contrato, pela nulidade do mesmo, passou a discorrer sobre o abuso de direito, considerando, e citamos:
“No caso dos autos, verifica-se que o título executivo (uma livrança) tem na sua base um contrato de financiamento para aquisição a crédito de bem de consumo, datado de 31.08.2005, sendo que da factualidade apurada foi paga apenas a primeira prestação. Resultou ainda apurado que em Junho seguinte, o executado entregou o veículo à exequente. Acresce que a exequente previamente remeteu cartas de interpelação ao executado e de comunicação da resolução do contrato e preenchimento da livrança.
Temos assim que o executado vem arguir a nulidade do contrato de financiamento outorgado, depois de até já ter entregue o veículo, o que só pode, à luz das regras de experiência comum, ser entendido para pagamento do valor em dívida.
Ora, por via quer do pagamento, quer da própria entrega do veículo, é evidente que a exequente tinha razões para se convencer de que o mutuário, ora executado, aceitou como válido o contrato de mútuo e jamais iria invocar qualquer nulidade que o afectasse.
Não foi invocado, nem dos autos resulta que em momento anterior à instauração da execução qualquer um dos executados tenha suscitado de uma forma expressa ou, pelo menos, de um modo tácito (artigo 217º, do CC) a não entrega de exemplar do contrato e a não comunicação das respectivas cláusulas contratuais.
Deste modo, a invocação da referida nulidade por parte dos executados, põe em crise o seu comportamento anterior e os princípios da confiança e da boa fé que também devem estar presente nos negócios jurídicos.
Integra, pois, paradigma de abuso do direito, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé (artigo 334º do CC), a invocação pelo devedor de vício formal de contrato quando tal invocação tem como único desiderato, o que é manifestamente o caso, livrar-se o outorgante da obrigação do pagamento das obrigações naquele assumidas (Acórdão do STJ de 11/2/2010, www.dgsi.pt).
Em todo o caso, estando perante a outorga de contrato de financiamento para aquisição de veículo automóvel, certo é que em sede de legislação proteccionista não considerou/tratou o legislador o aderente como pessoa inábil e incapaz de adoptar os cuidados que são inerentes à celebração de um tal contrato.
Assim, terá que se concluir que o comportamento dos executados configura uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, não lhes sendo já lícito invocarem a nulidade contrato de crédito nulo.
O instituto do abuso de direito constitui um último recurso, algo a que só se pode lançar mão, à falta de outro meio, com vista a evitar a produção de «situações clamorosamente injustas», o que no caso dos autos sucede. O comportamento dos executados impediu a entidade financiadora de reaver da vendedora o montante do financiamento, bem podendo suceder que já não possa fazê-lo. Não merecendo o banco qualquer especial protecção, a verdade é que a lei não deve ser aplicada por forma que possa conduzir à postergação de direitos, quando foram os executados que, pela sua inacção, impediram a declaração de nulidade do contrato, num prazo razoável.
Pelo exposto, improcede o alegado quanto à nulidade do contrato, mantendo-se válida a obrigação cartular dele resultante e ora em execução”. (fim de citação).
A fundamentação jurídica do abuso de direito previsto no artigo 334º do Código Civil é por demais conhecida.
Citamos o acórdão desta Relação de 9.3.2017: “Os normativos contidos nos artºs 334º e 762º do Código Civil referem-se à boa fé no segundo sentido referido por Jorge Coutinho de Abreu.
Mas, como refere Jorge Coutinho de Abreu, a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem vindo a estudar a boa fé no âmbito de várias figuras, das quais destacamos “a proibição de venire contra factum proprium, impedindo-se uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior do pretendente; aquilo que os alemães designam por Verwirkung, com que se veta o exercício de um direito subjectivo ou duma pretensão, quando o seu titular, por não os ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável).” (in Do Abuso de Direito, 1999, pág. 59/60).
Para Fernando Cunha de Sá, “O abuso do direito traduz-se, pois, num acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido. Não é, aliás, qualquer excesso a esses limites que confere ao exercício do respectivo direito carácter abusivo, mas somente o excesso que seja manifesto.” (in Abuso do Direito, 2005, pág. 103/104).
Retomemos e esclareçamos o conceito venire contra factum proprium referido por Coutinho de Abreu e atrás mencionado.
De acordo com António Menezes Cordeiro, “só se considera como venire contra factum proprium a contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor.”(in “Tratado de Direito Civil Português”, I – Parte Geral – tomo IV, 2005, pág. 280).
Mais adiante, o mesmo autor refere “… Von Craushaar atesta que ‘O comando de que ninguém deve colocar-se em contradição com o seu comportamento tem a sua origem, finalmente, na protecção da confiança’. Canaris, começando por apoiar a afirmação de Wieacker, …, formula uma construção desenvolvida do venire baseado na confiança. Luhmann, não obstante omitir referências expressas ao venire, associa a necessidade de identidade do comportamento próprio com a confiança. Erman/Sirp escrevem que ‘quando o titular através das suas declarações ou pelo seu comportamento, consciente ou inconsciente, tenha provocado que a outra parte se pudesse confiar em si e, também, que o tenha feito, então não deve esta ser desiludida. Atentaria contra a boa fé e minaria a confiança no tráfego jurídico que o titular se permitisse incorrer em contradição com as suas declarações ou comportamentos anteriores’” (pág. 286), bem como “a doutrina é uniforme em tomar a previsão de venire contra factum proprium por meramente objectiva: não se requer culpa, por parte do titular exercente, na ocorrência da contradição. Não se pode, contudo, ir tão longe nessa via que, ao factum proprium, se dê mais consistência do que ao próprio negócio jurídico: também este, afinal e por maioria de razão, suscita, no espaço jurídico, confiança digna de protecção e, não obstante, cede perante vectores que, em casos determinados, se apresentem com peso maior.” (pág. 287)”. (fim de citação).
O cuidado com que se deve apreciar a invocação de abuso de direito, em casos semelhantes ao dos autos, procede, nas palavras do mesmo acórdão e citando o Ac. do STJ de 7 de Janeiro de 2010, do facto de que “De qualquer modo, quer o regime da nulidade, quer o abuso do direito têm uma natureza de protecção de ordem pública, pelo que nenhuma pode ser usada como forma de inviabilizar a invocação da outra.
Note-se que a nulidade em causa tem uma natureza muito especial de protecção dos consumidores, pelo que permitir a neutralização da nulidade através da figura do abuso do direito, nos termos invocados, seria manter-se " o risco que o legislador pretende evitar e, portanto, ficaria praticamente sem campo de aplicação o normativo sancionatório em apreço”. (fim de citação).
E tal como refere ainda o mesmo acórdão do STJ de 7 de Janeiro de 2010, o abuso só ocorre quando a situação que o cria objectivamente se apresenta como ostensiva.

Como se refere no acórdão desta Relação de 21.4.2016:
“Existem decisões jurisprudenciais que têm concedido ao abuso de direito o efeito escamoteador das consequências da nulidade emergente da falta de entrega ao mutuário consumidor de um exemplar do respetivo contrato: refere-se, nesses casos, situações em que o mutuário deixou prolongar no tempo os efeitos do negócio, colhendo os frutos da utilização do bem adquirido, sem nunca ter questionado a validade do negócio ou invocado a falta do aludido exemplar negocial, só arguindo a nulidade quando se via judicialmente confrontado com o incumprimento do contrato (vide, v.g., acórdão da Relação do Porto, 09.10.2012, processo 5394/10.7TBSTS.P1; acórdão da Relação do Porto, de 29.4.2014, processo 16031/05.1YYPRT-A.P1; acórdão da Relação de Guimarães, de 26.6.2014, processo 209/10.9TBFAF-A.G1; acórdão da Relação de Guimarães, de 09.4.2015, processo 6718/07.0YYLSB-B.G1; acórdão da Relação de Lisboa, de 09.7.2015, processo 1391/13.9TJLSB.L1-7, todos consultáveis in www.dgsi.pt).

Porém, a jurisprudência não tem deixado de alertar para a excecionalidade da atuação do abuso de direito nesta sede e com o aludido sentido, afinal de proteção dos interesses do financiador (vide, v.g., acórdão do STJ, de 28.4.2009, processo 2/09.1YFLSB; acórdão da Relação de Évora, de 08.9.2011, processo 1277/09.1TBBJA; acórdão da Relação do Porto, de 28.3.2012, processo 3585/09.2TBPRD.P1; acórdão da Relação de Lisboa, de 06.02.2014, processo 574/11.0TJLSB.L1-2; acórdão da Relação de Coimbra, de 21.10.2014, processo 4334/10.8T2AGD-A.C1; acórdão da Relação de Lisboa, de 23.10.2014, processo 85/10.1TBMTJ-A.L1-8; acórdão da Relação de Lisboa, de 22.10.2015, processo 1129/13.0TJLSB.L1-2; acórdão da Relação de Coimbra, de 12.01.2016, processo 65879/14.3YIPRT.C1, todos consultáveis in www.dgsi.pt)”. (fim de citação)

Por princípio tendemos a alinhar numa jurisprudência mais cautelosa, que só excepcionalmente releve o abuso de direito, porém, a jurisprudência não se faz senão sobre a base de casos concretos e em face dos concretos factos apurados em cada caso.
Ora, no caso concreto, e em face da sentença recorrida e das contra-alegações, o argumento essencial é a conduta contraditória, a plausibilidade e aceitabilidade do decurso do tempo sem invocação da nulidade do contrato ter gerado na financeira a convicção de que a nulidade não seria invocada.

Vejamos:

Está provado que entre as partes foi celebrado, em Agosto de 2005, um contrato de crédito ao consumo com vista à aquisição de um veículo, que tal contrato permitiria o pagamento da quantia mutuada em 36 meses, que só a primeira prestação foi paga, que em Junho de 2006 o executado, ora embargante e recorrente, ele mesmo (contrariamente ao que afirma nas conclusões do recurso) entregou o veículo à exequente ora embargada e recorrida – não portanto à vendedora do veículo. Afirmou-se na contestação que tal entrega foi feita para o veículo ser vendido e o respectivo preço ser abatido ao montante de financiamento em dívida.

Com o devido respeito, não se vislumbra como é que a recorrida está ou pode vir a estar impossibilitada de reaver o montante financiado da vendedora, como se afirma na sentença recorrida, nem se percebe a referência às cartas de interpelação/ comunicação de preenchimento da livrança enquanto, parece, s.m.o, marcos de contagem inicial do tempo de inacção do embargante, já que as mesmas, como provado, não foram por ele recebidas. Igualmente não se secunda que o legislador proteccionista do consumo não tenha considerado o aderente como pessoa inábil de adoptar cuidados: - essa inabilidade não é reconhecida como pessoal, mas como consequência do efeito do próprio tipo e divulgação e recurso intensivo a contratos de adesão no consumidor. Isto é, reconhecendo-se a não entrega do exemplar do contrato, reconhecendo-se a não explicação do conteúdo das cláusulas contratuais, não pode, contra o legislador, imputar-se, de modo algum, a responsabilidade ao consumidor. 

Sustenta a recorrida que a conduta processual do recorrente é contraditória, ao pretender a imputação do valor da venda do veículo no montante que deve restituir, em função da declaração de nulidade e do seu efeito retroactivo. Se a nulidade for decretada, o efeito retroactivo implica a devolução de tudo o que tiver sido prestado em cumprimento do contrato, e portanto, como bem diz o recorrente, a recorrida terá de lhe devolver os juros, e ele terá de lhe devolver a quantia mutuada e as despesas. Ao pretender imputar o valor do veículo, assume o recorrente a dação pro solvendo e portanto o cumprimento de um contrato válido.

Esta implicação não é líquida, e menos ainda em face da ausência de fundamentação quer na petição de embargos quer no próprio recurso, sobre o título jurídico através do qual deveria ser feita a imputação, mas em todo o caso é irrelevante pois apenas se provou que o veículo foi entregue, não que foi entregue para ser vendido ou para o próprio uso e fruição da embargada, e portanto nunca poderia proceder a pretensão do recorrente em deduzir o valor à diferença entre prestações restitutivas.

Com os factos provados e acima resumidos, ocorre abuso de direito, ou seja, estamos em presença duma objectiva, ostensiva e clamorosa injustiça - no caso, de não se dar relevância à confiança criada pela recorrida a partir da inacção do recorrente - a que os tribunais se devam opor? Esta situação fere manifestamente o sentimento de justiça?

A regra basilar será a que facilita o próprio comércio jurídico: - a de que os contratos devem ser cumpridos – artigo 406º do Código Civil. Certo, devem ser pontualmente cumpridos os contratos em que ambas as partes se vincularam livre e esclarecidamente. Ora, é precisamente isto que o embargante vem dizer, ainda que por outras palavras: - não me entregaram cópia do contrato, eu não estava esclarecido. E portanto aqui a questão que primeiramente se deve abordar é a de saber se, dos factos provados, resultam indícios de que o embargante estava esclarecido do negócio que celebrara.

Do conteúdo essencial desse contrato, de saber que tinha pedido um financiamento para comprar um veículo, de saber que sendo-lhe concedido o mesmo, teria de o reembolsar, de saber inclusivamente que o reembolso seria feito em prestações, deste núcleo essencial, é claro que o embargante estava perfeitamente ciente. E se o não estava em face do contrato, teria de o estar em face do facto que o veículo que pretendia comprar lhe foi efectivamente entregue, tanto mais que o usou. E se portanto o usou, e se não despendeu dinheiro próprio na sua aquisição, pois inevitável é que soubesse que teria de pagar esse dinheiro, razão aliás pela qual terá pago a primeira prestação.

Por outro lado, tendo pago a primeira prestação mas não qualquer das subsequentes, até que em Junho do ano seguinte entregou o veículo adquirido com o financiamento contratado a quem o financiou, deduz-se, com toda a probabilidade, que a causa da entrega não teve ligação alguma com a aplicação de cláusulas contratuais de que o embargante não tivesse conhecimento e que o tivessem assim surpreendido, mas, muito linearmente, com a simples falta de meios para o pagamento pontual das prestações.

Deste modo, a entrega do veículo é seguramente perspectivada como um meio de pôr termo ao contrato, um meio de resolver a falta de fundos para o pagamento e cumprimento do contrato, um meio de afirmação do desinteresse na continuação do contrato: - “não usarei mais o veículo porque não tenho dinheiro para o pagar, então entrego-o”. Evidentemente, não falamos em termos jurídicos rigorosos, mas numa perspectivação que pode deduzir-se dos factos, que o embargante fez.

Ora, é a partir desta entrega, em 2006, e do modo como um declaratário normal percebe a comunicação tácita nesta entrega – “só pagou uma prestação, não conseguiu pagar as restantes, e meses depois entrega o carro e não cumprirá mais o contrato, porque não pode" – que se forma, logo então, o convencimento de que não são questões relacionadas com o clausulado contratual que estão na base do incumprimento do contrato e que tais questões – designadamente a nulidade por falta de entrega de exemplar do contrato – não serão levantadas.

É a nosso ver indiferente o tempo decorrido: se o embargante não recebeu as cartas de interpelação/incumprimento definitivo/preenchimento da livrança, e se só foi citado nove anos depois, nenhuma inércia se lhe pode apontar em não ter, durante estes nove anos, invocado a nulidade do contrato.
Mas a entrega do veículo, após o pagamento da primeira prestação e o não pagamento das prestações dos meses subsequentes, é suficiente, a nosso ver, para firmar o convencimento de que a nulidade do contrato, imputável é certo à recorrida, não seria invocada.

Repare-se, a divisão de jurisprudência, tal como acima citada, é mais aparente que real: todos concordam na prevalência da protecção do consumidor, enquanto assunto de interesse público, sobre o abuso de direito, enquanto ferramenta de reposição do sentimento de justiça, que é também assunto de interesse público, mas mais geral e insusceptível por isso de derrogar o específico e justificado e premente esforço proteccionista do legislador relativamente aos consumidores. O que sucede é que algumas decisões relevam o cumprimento do contrato enquanto fonte do convencimento da contraparte faltosa de que a falta não será suscitada, enquanto outras entendem que este mero cumprimento, ainda que por largo tempo, não é suficiente para derrogar a protecção ao consumidor. Porém, quando os factos concretos em cada processo autorizam ou ajudam a caracterizar o tipo de conduta daquele que mais tarde invoca a nulidade, vemos a tendência para negar a procedência do abuso de direito quando houve algum questionamento sobre a aplicação de cláusulas contratuais de que os consumidores não estavam cientes.

Ora, como dissemos, no caso dos autos, temos um elemento de facto que autoriza a concluir que não foi o desconhecimento das cláusulas contratuais que levou à entrega do veículo, e portanto pode afirmar-se que o incumprimento não procede de algum abuso por parte do contratante não consumidor. Assim sendo, parece mais próximo da realidade afirmar que o propósito de invocação da nulidade se conexiona com a simples vontade de não pagar a dívida.

Como se afirma no ponto I do sumário do Ac. do STJ de 25.11.2014: “Ocorre uma situação típica de abuso do direito, quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural, bem como da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante”.

Parece assim que estamos precisamente em face dum caso em que o exercício do direito é feito fora do seu objectivo natural e da sua razão justificativa.

Neste caso, o interesse do financiador, que efectivamente financiou e não foi totalmente embolsado, o interesse deste contratante, deve ser salvaguardado, em benefício do comércio jurídico, em benefício do princípio do pontual cumprimento dos contratos, em detrimento da invocação formal duma nulidade que nenhuma relação teve com o não cumprimento pontual.

Termos em que se entende que improcede o recurso, e se confirma a sentença recorrida. 

Tendo nele decaído, é o recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.

V.–Decisão.
Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso e em consequência confirmam a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.



Lisboa, 14 de Setembro de 2017



Eduardo Petersen Silva
Maria Manuela Gomes
Fátima Galante