TRIBUNAL ARBITRAL
MEDICAMENTOS
PROVA POR AMOSTRAGEM
ENRIQUECIMENTO POR INTERVENÇÃO
PATENTE
CONDENAÇÃO GENÉRICA
LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA
Sumário

I.–Uma vez que o tribunal arbitral analisou criticamente a prova por depoimentos de testemunhas qualificadas, documentos que corporizam estudos cruzados e incorporam prova por amostragem e ainda normas de entidades públicas que têm por base esses documentos, é-lhe perfeitamente admissível extrair fundadamente – como extraiu – que os medicamentos da demandada não devem, na falta de demonstração em contrário […] assumir-se como excepção absoluta relativamente ao comportamento da generalidade dos genéricos com o mesmo princípio activo.
II.–A prova por amostragem visa a demonstração de um universo de coisas ou situações tomando por base apenas parte desse universo.
III.–Quer isto dizer que, exigir-se-á algum cuidado na utilização da prova por amostragem, tendo de aferir-se sobre a confiabilidade da mesma prova e, eventualmente até, da aceitabilidade das técnicas utilizadas.
IV.–Seja como for, o juízo probatório não tem de ter por pressuposto um juízo de certeza absoluta nem assentar num mero exercício de lógica, cabendo nomeadamente a utilização de presunções como meio de prova, a partir de determinados indícios que as autorizam.
V.–Como a doutrina admite, a formulação geral do artigo 473º, nº 1, abarca uma larga diversidade estrutural entre as diversas categorias de enriquecimento, tendo os pressupostos do instituto cambiantes de sentido e relevo dogmático distinto em cada uma dessas categorias
VI.–No enriquecimento por intervenção, nem sempre a deslocação patrimonial está presente, visto que o que acontece é que o enriquecimento pode ocorrer através da obtenção de uma vantagem (que não deslocação patrimonial) que previamente pertencia ao empobrecido.
VII.–E é precisamente a expectativa jurídica de aquisição desse ganho que é frustrada pela intervenção do enriquecido.
VIII.–Portanto, não se trata de uma deslocação patrimonial, mas sim de um potencial de ganho não obtido.
IX.–Daí que a doutrina entenda não ser aceitável exigir a deslocação patrimonial como pressuposto do enriquecimento por intervenção.
X.–Mais, nem sequer é necessário que o fundamento do enriquecimento tenha de ser buscado em qualquer acção ilícita.
XI.–Do que verdadeiramente se trata é da demonstração de que houve afectação da vantagem ou utilidade destinada em exclusivo ao titular do direito.
XII.–No domínio da comercialização de medicamentos, sendo verdade que, de facto, o legislador tem de corresponder a vários equilíbrios que se situam na confluência de direitos com assento constitucional e legal, e envolvendo também a aplicação do direito comunitário (estamos no âmbito da protecção de uma patente europeia), não pode deixar de funcionar cada um dos sistemas normativos implicados sempre que com esse funcionamento não se rompa o equilíbrio visado pelo legislador.
XIII.–Por outras palavras, se apenas se visasse a protecção das empresas de medicamentos genéricos e dos utentes de medicamentos, defraudar-se-ia o compromisso com a protecção dos direitos dos titulares de patentes e a protecção que o sistema dispensa às empresas de medicamentos genéricos e aos utentes de medicamentos, que são também consumidores de medicamentos.
XIV.–Quer dizer, a protecção das empresas titulares de patentes tem de coexistir com o acesso amplo por parte do utente de medicamentos à informação sobre os preços de medicamentos e a optar, segundo os seus interesses, por medicamentos comercializados por empresas de medicamentos genéricos.
XV.–Todavia, neste caso, o sistema tem que corresponder de modo a que os interesses das empresas titulares de patentes não sejam defraudados com o funcionamento do sistema de compromisso encontrado pelo legislador.
XVI.–A jurisprudência dominante admite a condenação genérica em casos em que os danos já ocorreram.
XVII.–Como denominador comum, não se poderá lançar mão do incidente de liquidação quando, na ação declarativa, não tenha resultado provada a existência de danos.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.–Relatório:


1.–Pretensão sob recurso: revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que:
a)-Altere a decisão sobre a matéria de facto e de direito no sentido indicado no presente recurso;
b)-Revogue o acórdão recorrido e, em consequência, seja a recorrente absolvida de todo os pedidos.
c)-Condene as recorridas a suportar todos os custos e encargos decorrentes da presente ação arbitral, e ainda a reembolsar a recorrente das provisões por honorários dos árbitros e secretário e despesas administrativas, pagas pelas demandada, bem como os honorários dos mandatários da recorrente e outras despesas que estas tenham tido com o processo, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 533.° do CPC.

1.1.–Pedidos:
A.Condenação da Demandada a não fabricar, oferecer, armazenar, introduzir no mercado português e a não utilizar, importar ou estar na posse dos medicamentos de ... para os quais requereu as AIM’s em causa nestes autos dirigidos ao tratamento da dor, até à data de caducidade da EP09..;
B.Condenação da Demandada a não fabricar, oferecer, armazenar, introduzir no mercado português e a não utilizar, importar ou estar na posse de quaisquer medicamentos de ... dirigidos ao tratamento da dor até à data de caducidade da EP…;
C.Condenação da Demandada, e até à data de caducidade da E.., a não incluir no Resumo das Características, Folheto Informativo e Rotulagem dos seus medicamentos genéricos de ... qualquer referência, direta ou indireta, ao tratamento da dor;
D.Condenação da Demandada, e até à data de caducidade da EPO…, a não anunciar, publicitar ou incentivar, direta ou indiretamente, a exploração comercial dos seus medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor;
E.Condenação da Demandada no pagamento de uma compensação a título de enriquecimento sem causa, no valor correspondente a 72% do lucro obtido com as vendas dos seus medicamentos genéricos de ... até à presente data, acrescido do valor que venha a obter até à data de caducidade da EP.., a liquidar ulteriormente em incidente de liquidação; e, subsidiariamente em relação ao pedido formulado em E.;
F.Condenação da Demandada no pagamento de uma compensação a título de enriquecimento sem causa, no valor correspondente a 15% calculado sobre 72% das vendas dos seus medicamentos genéricos de ... até à presente data, acrescido do valor que venha a obter até à data de caducidade da EP.., a liquidar ulteriormente em incidente de liquidação;
E, cumulativamente com os demais pedidos,
G.Condenação da Demandada no pagamento dos honorários dos árbitros e demais encargos do processo arbitral, incluindo encargos administrativos, honorários de peritos, técnicos e advogados;
H.Condenação da Demandada, nos termos do artigo 829.º-A do Código Civil, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a € 48.000,00, por cada dia de atraso no cumprimento da sentença que vier a ser proferida nos termos do acima peticionado.

Para tanto, alegaram as demandantes, em síntese, que: a P. LIMITED é titular da patente EP.. que, desde 1.., protege a substância ativa ... para o tratamento da dor e que a WARNER-Lambert é a titular das autorizações de introdução no mercado do medicamento de referência – L.. - contendo aquela substância ativa para aquela específica finalidade terapêutica; a demandada requereu e viu concedidas em 9 de fevereiro de 20.. autorizações para introdução no mercado (AIM’s) de medicamentos genéricos à base da ... os quais, embora com indicação terapêutica para outras patologias, são suscetíveis de ser explorados comercialmente também para o tratamento da dor, por força dos mecanismos de prescrição e do seu custo reduzido.

A demandada contestou, alegando, em síntese, que: os medicamentos genéricos por si comercializados contendo ... se destinam ao tratamento adjuvante da epilepsia e da perturbação da ansiedade generalizada (PAG) e não têm qualquer indicação terapêutica dirigida ao tratamento da dor, nem ela promove ou pretende vir a promover a sua comercialização com essa finalidade; a demandante P.. patenteou a ... através da patente europeia PE 064… a qual lhe foi concedida em … para o tratamento da epilepsia e da PAG em adultos, a qual todavia caducou em 28/5/2013, tendo ainda requerido o certificado complementar de proteção n.º175 que estendeu o período de proteção da referida patente, certificado que todavia veio a caducar em 27/11/2014 por falta de pagamento de taxas; a eventual prescrição/utilização de genéricos de ... para o tratamento da dor não lhe pode ser imputada pois, a existir, resulta do incumprimento das normas legais e regulamentares, seja pelo médico prescritor seja pelo farmacêutico.
Por fim, impugnou os factos atinentes ao alegado enriquecimento e alega não haver fundamento legal para a aplicação de sanção pecuniária compulsória, pois só os tribunais estaduais têm competência para tal.

Foi proferida decisão do seguinte teor:Em face das respostas dadas às questões controvertidas 1) e 2), e com o preciso enquadramento aí referido, decide-se pela procedência dos pedidos A., B., C. e D. deduzidos pelas Demandantes no Requerimento Inicial deste processo, e, assim:
Condena-se a Demandada a não fabricar, oferecer, armazenar, introduzir no mercado português e a não utilizar, importar ou estar na posse dos medicamentos de ... para os quais requereu as AIMs em causa nestes autos dirigidos ao tratamento da dor, até à data de caducidade da EP…, ficando no entanto claro que esta condenação não implica a alteração do comportamento que a Demandada vem adotando na comercialização dos seus medicamentos genéricos de ..., conforme provado neste processo;
Condena-se a Demandada a não fabricar, oferecer, armazenar, introduzir no mercado português e a não utilizar, importar ou estar na posse de quaisquer medicamentos de ... dirigidos ao tratamento da dor, até à data de caducidade da EP…, ficando no entanto claro que esta condenação não implica a alteração do comportamento que a Demandada vem adotando na comercialização dos seus medicamentos genéricos de ..., conforme provado neste processo;
Condena-se a Demandada a não incluir no Resumo das características, Folhero Informativo e Rotulagem dos seus medicamentos genéricos de ... qualquer referência, direta ou indireta, ao tratamento da dor, até à data de caducidade da EP…; e
Condena-se a Demandada a não anunciar, publicitar ou incentivar, direta ou indiretamente, a exploração comercial dos seus medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor, até à data de caducidade da EP09….
Em face das respostas dadas às questões controvertidas 3) a 6), e com os fundamentos aí referidos, decide-se pela procedência parcial dos pedidos E. e F. deduzidos pelas Demandantes no Requerimento Inicial deste processo, e, assim:
Condena-se a Demandada no pagamento às Demandantes, a título de compensação com fundamento em enriquecimento sem causa, do montante que venha a ser liquidado, nos termos legais aplicáveis, como constituindo o menor dos seguintes montantes:
(i)O montante correspondente ao royalty que a Demandada deveria pagar à 1.ª Demandante para beneficiar, em condições normais, do direito à exploração comercial da ... para tratamento da dor aplicado sobre as vendas realizadas pela Demandada de medicamentos genéricos de ... para tratamento da dor, desde a data em que iniciou a comercialização destes medicamentos genéricos até à data de caducidade da Patente Europeia EP..; e,
(ii)Os lucros efetivamente obtidos pela Demandada nas vendas realizadas dos seus medicamentos genéricos de ... para tratamento da dor, desde a data em que iniciou a comercialização destes medicamentos genéricos até à data de caducidade da Patente Europeia E….
Remete-se para a seção seguinte (VII.) a decisão sobre o pedido deduzido sob a letra G.
Em face das respostas dadas às questões controvertidas 7) e 8), e com os fundamentos aí referidos, decide-se considerar integralmente improcedente o pedido H. deduzido pelas Demandantes no Requerimento Inicial deste processo, e, assim, fica a Demandada absolvida deste pedido.
VII.-Decisão final quanto a encargos do processo e custos com os Mandatários das Partes:
Entende o Tribunal que as duas Partes litigaram, na defesa dos seus interesses, a propósito de um litígio que suscita a discussão e a decisão de matérias, de facto e de direito, que não são, à partida, claras, assumindo uma posição de colaboração recíproca e com o Tribunal que foi evidenciando o empenho que ambas as Partes, em manifesta boa-fé material e processual, colocaram numa justa composição do litígio que as opunha.
Constatou ainda o Tribunal que, como a decisão final demonstra, nenhuma das Partes viu ser reconhecida a procedência integral da respetiva posição processual, assistindo-se antes a um saldo final que apresenta casos em que as pretensões das Demandantes são consideradas procedentes, em detrimento das pretensões da Demandada, e outros casos em que se regista exatamente o contrário.
O comportamento das Partes e este equilíbrio constatado na medida da procedência e do decaimento das respetivas posições justifica que os encargos do processo sejam repartidos em partes iguais pelas Partes e que cada uma das Partes deva suportar os custos com os respetivos Mandatários.”.

1.2.–Inconformada com aquela decisão, a demandada apelou, tendo formulado as seguintes conclusões:

1.–O presente recurso vem interposto do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral a quo que, por maioria, decidiu parcialmente procedentes os pedidos formulados pelas ora Recorridas e consequentemente, no que aqui releva, condenou a ora Recorrente:
a)-A não fabricar, oferecer, armazenar, introduzir no mercado português e a não utilizar, importar ou estar na posse dos medicamentos de ... para os quais requereu as AIMs em causa nestes autos dirigidos ao tratamento da dor, até à data de caducidade da EP…, ficando no entanto claro que esta condenação não implica a alteração do comportamento que a Demandada vem adotando na comercialização dos seus medicamentos genéricos de ..., conforme provado neste processo;
b)-A não fabricar, oferecer, armazenai; introduzir no mercado português e a não utilizar, importar ou estar na posse de quaisquer medicamentos de ... dirigidos ao tratamento da dor, até à data de caducidade da EP…, ficando no entanto claro que esta condenação não implica a alteração do comportamento que a Demandada vem adotando na comercialização dos seus medicamentos genéricos de ..., conforme provado neste processo;
c)-A não incluir no Resumo das Características, Folheto Informativo e Rotulagem dos seus medicamentos genéricos de ... qualquer referência, direta ou indireta, ao tratamento da dor, até à data de caducidade da EP…;
d)-A não anunciar, publicitar ou incentivar, direta ou indiretamente, a exploração comercial dos seus medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor, até à data de caducidade da EP0…;
e)-No pagamento às Demandantes, a titulo de compensação com fundamento em enriquecimento sem causa, do montante que venha a ser liquidado, nos termos legais aplicáveis, como constituindo o menor dos seguintes montantes:
(i)-O montante correspondente ao royalty que a Demandada deveria pagar à 1. Demandante para beneficiar, em condições normais, do direito à exploração comercial da ... para tratamento da dor aplicado sobre as vendas realizadas pela Demandada de medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor, desde a data em que iniciou a comercialização destes medicamentos genéricos até à data de caducidade da Patente Europeia EP…; e,
(ii)-Os lucros efetivamente obtidos pela Demandada nas vendas realizadas dos seus medicamentos genéricos de ... para tratamento da dor, desde a data em que iniciou a comercialização destes medicamentos genéricos até á data de caducidade da Patente Europeia E….
2.–O douto Tribunal a quo considerou, por maioria, estarem verificados in casu todos os pressupostos da aplicação do regime do enriquecimento sem causa, a abrigo do qual a Recorrente teria a obrigação de compensar as Recorridas. Em linha com o sentido do douto Voto de Vencido do ilustre Prof. Doutor M…, sempre ressalvado salvo o devido respeito, pela opinião que fez vencimento, a Recorrente considera que a Decisão Final ora recorrida se baseia numa incorreta apreciação de parte da prova produzida, bem como em erros de direito, que conduziram o Tribunal Arbitral a concluir incorretamente pela verificação no caso concreto de todos os pressupostos de aplicação do regime do enriquecimento sem causa.
3.–Em resposta à questão controvertida 3), o douto Tribunal a quo entendeu que a prova produzida permite concluir que (i) a venda de medicamentos genéricos de ... para tratamento da dor constitui uma prática relativamente difundida, cuja dimensão excede claramente o carácter residual que a prova de apenas um caso concreto de venda de medicamentos genéricos de ... da Demandada poderia em abstrato implicar; e ainda que (ii) entre os medicamentos genéricos de ... assim vendidos para o tratamento da dor incluir-se-ão, além de outros produzidos e comercializados por outras empresas, aqueles que são produzidos e comercializados pela Demandada.
4.–A primeira conclusão retirada, por maioria, pelo Tribunal Arbitral em resposta à questão controvertida 3) não se encontra autorizada pela prova produzida, porquanto os meios de prova constantes dos autos não possuem qualquer valia probatória quanto à alegada venda de medicamentos de ... em geral (L… e medicamentos genéricos) para o tratamento da dor. Por maioria de razão, não são igualmente aptos a demonstrar, nem a um nível mais básico de segurança e rigor, se se têm vindo a verificar vendas de medicamentos genéricos de ... da Recorrente para o tratamento da dor.
5.–Os documentos referidos especificamente pelo Tribunal Arbitral, na parte em que foram utilizados para sustentar a resposta à aludida questão controvertida, retratam e utilizam os resultados de um "estudo qualitativo" elaborado pela empresa IMS He.., estudo esse que consiste em inquéritos realizados a uma amostra de médicos no momento da prescrição. No entanto, pela mão do mesmo Tribunal a quo, a fiabilidade daquele estudo como meio de prova para quantificar a percentagem de medicamentos genéricos de ... que são comer-comercializados para o tratamento da dor resultou posta em crise.
6.–A fiabilidade do "estudo qualitativo" resultou posta em crise pela prova produzida, concretamente dos depoimentos das testemunhas TC, Parte 1, minutos 00:39:55 a 00:40:25, minutos 00:44:10 a 00:46:04 e minuto 00:47:02; LS, minutos 00:03:33 a 00:08:26, minutos 00:11:10 a 00:14:21, minutos 00:14:54 a 00:18:19 e 00:23:38 a 00:30:50; e Ludovina de Pina a Brito, minutos 00:06:53 a 00:07:47 e minutos 00:08:27 a 00:10:50.
7.–Deste modo, a prova produzida nos presentes autos impossibilita em absoluto qualquer conclusão minimamente segura sobre a quantidade de medicamentos genéricos putativamente vendidos para o tratamento da dor, como aliás não escapou ao Tribunal a quo - cfr. pág. 12 da Decisão Final.
8.–Em consequência, a total falta de fiabilidade do "estudo qualitativo" contagia necessariamente o cruzamento dos resultados daquele estudo com os dados de vendas totais do medicamento L… e dos medicamentos genéricos de ... recolhidos pela empresa IMS He… (dados sell in, tais como os refletidos nos documentos A-15, A-16 e A-28), e, mais concretamente, impossibilita que se atribua qualquer valor probatório aos documentos que expressam tal cruzamento — como os Docs. A-27, A-25 e A-29. Acresce ainda que resultou do depoimento da testemunha LS. que o cruzamento daqueles tipos de dados, atenta a natureza e periodicidade diferentes, não tem qualquer validade estatística — cfr. minutos 00:14:54 a 00:18:19 e 00:23:38 a 00:30:50.
9.–A fragilidade dos resultados do "estudo qualitativo" no qual assentam os documentos através dos quais as Recorridas procuraram demonstrar que uma determinada percentagem de medicamentos genéricos de ... seria efetivamente vendida para o tratamento da dor não escapou ao Tribunal Arbitral, o qual, na resposta à questão controvertida 4.c) concluiu que ser impossível determinar com o mínimo grau de solidez qual a percentagem dos lucros supostamente auferidos pela Recorrente com a putativa venda dos seus medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor.
10.–A conclusão retirada pelo Tribunal recorrido quanto à questão controvertida 3) de que a venda de medicamentos genéricos de ... para tratamento da dor constitui prática relativamente difundida, cuja dimensão excede claramente o carácter residual que a prova de apenas um caso concreto de venda de medicamentos genéricos de ... da Demandada poderia em abstrato demonstrar (destaque nosso) implica um juízo sobre a ordem de grandeza da venda de medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor que o próprio Tribunal rejeita mais adiante e diz ser impossível à luz da prova produzida.
11.–Assim, e contrariamente ao que é expressamente dito na Decisão Arbitral a págs. 13, último parágrafo, a diferente ponderação dada aos mesmos elementos de prova (nomeadamente os Documentos A-25 e A-29) nas respostas às questões controvertidas 3) e 4.c) resultam num erro de raciocínio que conduziu a respostas efetivamente contraditórias entre si.
12.–Ainda em sede de resposta à questão controvertida 3) o Tribunal Arbitral concluiu, por maioria, que os medicamentos genéricos de ... da Recorrente se encontram entre os medicamentos genéricos que são vendidos para o tratamento da dor numa prática relativamente difundida cuja dimensão excede claramente o carácter residual que a prova de apenas um caso concreto de venda de medicamentos genéricos de ... da Demandada poderia em abstrato implicar.
13.–O Tribunal Arbitral funda a sua convicção quanto àquela numa ilação natural que assenta no referido erro de raciocínio que levou ao impossível juízo quantitativo sobre a expressão percentual das vendas de medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor: ao assumir que a venda de medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor constitui prática relativamente difundida que excede claramente um carácter residual, o Tribunal Arbitrai retira uma ilação quanto ao volume dessas vendas que, conforme se viu supra, não está autorizada pela prova produzida e que o próprio Tribunal Arbitrai rejeita mais adiante em resposta à questão controvertida 4.c).
14.–Sobre essa falácia, e com base na prova da venda de uma única embalagem de medicamentos genéricos de ... da Recorrente para o tratamento da dor, o Tribunal Arbitral laborou num salto de raciocínio excessivo face à prova produzida, tendo concluído que seria razoavelmente provável que a venda dos medicamentos genéricos de ... da Recorrente também fosse prática relativamente difundida e em escala claramente superior ao carácter residual que a venda de uma só embalagem pudesse indiciar.
15.–A total falta de fiabilidade dos elementos de prova (documental) constantes nos autos quanto à real quantidade de medicamentos genéricos de ... que são vendidos para a dor impede que se retirem quaisquer conclusões sobre o volume de tais vendas. Em consequência, a prova produzida não autoriza o juízo de probabilidade razoável elaborado pelo Tribunal Arbitral no sentido de que os medicamentos genéricos de ... da Recorrente sejam vendidos para o tratamento da dor de forma relativamente difundida e não meramente residual.
16.–A prova da venda de apenas uma embalagem de medicamentos genéricos de ... da Recorrente para o tratamento da dor não é suficientemente representativa da realidade dos factos para que daí se possa retirar uma regra de experiência na qual o Tribunal possa assentar a presunção judicial (ilação natural) de que os medicamentos genéricos de ... da Recorrente são, à semelhança dos demais medicamentos genéricos de ... comercializados em Portugal, vendidos para o tratamento da dor numa prática relativamente difundida e não meramente residual.
17.–A mera verificação empírica pontual de um determinado fenômeno não poderá sustentar uma generalização válida para a formação de uma regra de experiência, pois tal generalização não refletirá de forma suficiente a realidade. Do mesmo modo, e por maioria de razão, a validade de uma regra de experiência não pode ser determinada com base em processos que não mostrem ter aptidão objetiva suficiente para permitir a produção de convicções verdadeiras.
18.–Da prova produzida não resultam fundamentos cognoscitivos bastantes dos quais se possa retirar urna regra de experiência válida para presumir que a venda de medicamentos de genéricos de ... da Recorrente é prática relativamente difundida, porquanto: (i) Nos presentes autos ficou demonstrada apenas a venda de urna única embalagem de medicamentos da Recorrente para o tratamento da dor, não sendo legítimo concluir pela generalização da venda de medicamentos da Recorrente para aquele fim terapêutico a partir da verificação de um caso isolado; (ii) a falta de fiabilidade da prova documental produzida — que foi aliás reconhecida pelo Tribunal Arbitral — obstou à concreta determinação da suposta percentagem de venda de medicamentos de ... (L…@ e medicamentos genéricos) para o tratamento da dor, o que por sua vez impossibilita qualquer observação empírica estatisticamente relevante sobre o comportamento das vendas de medicamentos de ... por patologia; (iii) a Recorrente vende os seus medicamentos genéricos para o tratamento da epilepsia e da ansiedade generalizada, detendo uma quota de mercado de 6,7% em fevereiro de 2.., inexistindo qualquer prova minimamente consistente sobre a percenta-percentagem de venda de medicamentos de ... para o tratamento destas patologias, à semelhança quanto à inexistência de prova sobre a dimensão da percentagem da venda dos medicamentos ... para o tratamento da dor.
19.–A presunção judicial levada a cabo pelo Tribunal a quo importou a aplicação de uma regra de experiência que se baseia num processo sem aptidão objetiva suficiente para permitir a produção de uma convicção verdadeira sobre a associação factual que pretendeu realizar e que, por isso, é uma regra de experiência inválida.
20.–Demonstrado que está que a prova produzida nos autos não autoriza a presunção judicial operada pelo Tribunal Arbitral e na ausência de outra prova, a resposta à questão controvertida 3) deverá ser alterada para "não provado", nos termos do disposto no artigo 662.°, n.° 1 do CPC.
21.–No presente caso não existe qualquer situação de enriquecimento sem causa da Recorrente, como pretende afirmar a decisão recorrida em resposta à questão controvertida 4.b), por ser gritante a falta de verificação dos pressupostos desse instituto.
22.–Em primeiro lugar, para que se constitua a obrigação de restituir é sempre necessário que se verifique um enriquecimento do obrigado, isto é, o seu locupletamento, que se traduz simplesmente numa melhoria da sua situação patrimonial a apurar segundo as circunstâncias. Importa por isso que na esfera patrimonial do enriquecido se encontre uma diferença que resulta da comparação entre a sua situação efetiva (situação real atual) e aquela em que se encontraria se a deslocação patrimonial se não houvesse verificado (situação hipotética).
23.–É o próprio Tribunal a quo a determinar em vários momentos da douta decisão recorrida que a Recorrente nada fez para promover a venda dos seus medicamentos genéricos para tratamento da dor, e que foi efetivamente surpreendida pela putativa venda dos seus medicamentos para esse uso patenteado, pelo que o conhecimento da falta de causa do enriquecimento da Recorrida só se reportaria ao momento da citação para constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo da Lei n.° 62/2011, de 11 de dezembro. E, na verdade, o Tribunal a quo admitiu, em resposta à questão controvertida 5.d), que os elementos em causa não são suficientes para determinar esse valor [do lucro obtido com medicamentos contendo ...] de modo definitivo, reconhecendo inclusivamente resultados negativos na contabilidade da Recorrente.
24.–Assim, deve concluir-se pela ausência da demonstração de enriquecimento do obrigado, pelo que a decisão condenatória genérica do Tribunal Arbitral viola o disposto no Art. 473.°, n.° 1 do Código de Civil, que exige o enriquecimento do obrigado como pressuposto da sua aplicação.
25.–Em segundo lugar, a obrigação de restituição a título de enriquecimento sem causa pressupõe que o enriquecido obtenha o seu enriquecimento à custa de outrem, vulgarmente chamado de empobrecido, embora rectius não se exija que o empobrecido tenha sofrido de facto algum empobrecimento economicamente verificável.
26.–Movendo-nos no âmbito do enriquecimento por intervenção, o suporte do enriquecimento por outrem pressupõe a obtenção de um lucro por intervenção não permitida.
27.–O Tribunal a quo foi longe demais na identificação das utilidades atribuídas às Recorridas em virtude da sua patente de segundo uso médico, pelo que importa compreender qual o alcance efetivo da proteção dessa patente de acordo com a teoria da afetação, de forma a perceber se há, de facto, intervenção da Recorrente na esfera de utilidades atribuídas às Recorridas.
28.–A correta conformação da esfera de utilidades em relação à qual as Recorridas podem fazer valer o seu direito de exclusão resultante da sua patente, deve ter em conta não só as permissões primárias contidas na legislação de propriedade industrial, mas também as ponderações laterais que o legislador entendeu por bem incluir no sistema de normas aplicáveis ao caso. Noutras palavras, além das disposições do CPI, há que atentar também à totalidade das normas sobre medicamentos, desde as disposições patentárias à regulação da prescrição e dispensa de medicamentos para descobrir quais as utilidades reservadas às Recorridas - nomeadamente os Art.s 120.° e 120.°-A do Decreto-Lei n.° 176/2006, de 30 de Agosto ("Estatuto do Medicamento") e a Portaria n.° 224/2015, de 27 de julho, referentes à prescrição de medicamentos, e a Portaria n.° 224/2015, que regula, nos números 1 e 2 do seu Art. 17.°, a dispensa de medicamentos pelas farmácias.
29.–Em face do quadro legal traçado, é, em teoria, admissível que existam medicamentos genéricos de ... prescritos e dispensados para tratamento da dor, numa aparente violação da patente das Recorridas. O que não é forçoso concluir é que tal seja ilícito ou não permitido, sendo que no limite se poderia até ter por querido pelo legislador. Com efeito, as normas acima descritas indicam que está em causa uma solução de compromisso encontrada pelo legislador para compatibilizar direitos fundamentais de titulares de patentes, de empresas de medicamentos genéricos e dos utentes de medicamentos.
30.–É de acordo com estes três vetores, de dignidade constitucional idêntica, que o Estado deve regular a prescrição e dispensa de medicamentos: tendo em atenção os direitos de propriedade industrial e os direitos de iniciativa económica de outras empresas que não a beneficiária da patente, concatenando-os com o direito à saúde.
31.–Deste modo, não existirá intervenção da Recorrente no espaço exclusivo das Recorridas. Este, bem entendido de acordo com a conformação de interesses operada pelo legislador, não exclui a disponibilização acidental de genéricos de ... para tratamento da dor. Embora tal aparente ser uma ingerência do direito de patente, trata-se, para o legislador, de um sacrifício necessário para acautelar outros direitos de natureza análoga a direitos fundamentais, estando em todo o caso respeitado o nível mínimo de proteção.
32.–Assim, fica por preencher o requisito de que o enriquecimento se tenha feito à custa de outrem, pois a conformação do direito de exclusivo das Recorridas não abrange a alegada intervenção da Recorrente. Isto é, os proventos alegadamente obtidos pela Recorrente provirão de vendas não desejadas de medicamentos genéricos contendo ... para tratamento da dor, cuja destinação não está afetada às Recorridas em exclusivo.
33.–Acresce ainda que falta qualquer relação entre o alegado lucro da Recorrente e o putativo empobrecimento das Recorridas, pois, não resultou provado nos autos que a diminuição de vendas do medicamento das Recorridas seja imputável à comercialização dos medicamentos genéricos de ... da Recorrente.
34.–No caso sub iudice há uma cadeia de atos jurídicos, reconhecida no acórdão recorrido a p. 19 que contribuem para o putativo enriquecimento da Recorrente, nomeadamente a prescrição e a dispensa de medicamentos, a legislação ao abrigo da qual estas são feitas, a atuação do Governo, do Ministério da Saúde, das farmácias, dos médicos e dos próprios doentes, pelo que não há um nexo claro entre o alegado empobrecimento das Recorridas e o alegado enriquecimento da Recorrente de forma a poder dizer-se com segurança que este último provoca aquele. Falha, também por esta via, a verificação do requisito do suporte do enriquecimento por outrem.
35.–Assim, a decisão condenatória genérica do Tribunal Arbitral viola o disposto no Art. 473.°, n.° 1 do Código Civil, na medida em que exige que o enriquecimento do obrigado seja obtido à custa de outrem.
36.–A causa iuris do enriquecimento é precisamente o tratamento dado pelo sistema jurídico à destinação das várias utilidades em jogo. Assim, o próprio requisito de ausência de causa justificativa confunde-se com o requisito do suporte do enriquecimento por outrem. Destarte, há que concluir forçosamente que, a existir qualquer enriquecimento por parte da Recorrente, este encontra a sua causa pelo menos nas normas de prescrição e dispensa de medicamentos, acima melhor descritas, que criam uma área de liberdade de utilização do direito de exclusivo das Recorridas.
37.–A decisão condenatória genérica do Tribunal Arbitral viola o disposto no Art.º 473.º, n.º 1 do Código de Civil, que exige o enriquecimento do obrigado seja obtido sem causa justificativa.
38.–Nos presentes autos falharia sempre a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa ainda por não se poder recorrer à sua aplicação exceto como ultima ratio, de acordo com o disposto no Art.º 474.º do CC.
39.–As Recorridas dispunham de meios alternativos para corrigirem a aparente injustiça que detetam na alocação das utilidades decorrentes da venda de medicamentos contendo ... para tratamento da dor, pelo que desde já se avança que pelo menos pela sua subsidiariedade não haveria que emergir no caso uma obrigação de restituição.
40.–Desde logo, as Recorridas podiam ter acionado o Estado em responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função político-legislativa, nos termos do Art. 15.° da Lei n.° 67/2007, de 31 de dezembro. As Recorridas poderiam ainda procurar por parte da Administração Pública, nomeadamente do Ministério da Saúde, uma atuação que melhor protegesse os seus interesses, o que aliás fizeram mediante a intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, Processo n.° .., que correu termos na 1.a Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (vide Doc. A-23 junto aos autos). Por fim, as Recorridas poderiam igualmente ter acionado, em sede de responsabilidade civil extracontratual por violação do seu direito de exclusivo, os agentes provocadores da hipotética violação, isto é, os médicos que não fazem uso da analogia de prescrição oferecida pela Circular Informativa Conjunta n.° 02/INFARMED/SPMS e as farmácias que dispensam genéricos de ... para tratamento da dor, tendo sido notificadas dessa mesma Circular.
41.–Pelo que, a decisão condenatória genérica do Tribunal Arbitral viola o disposto no Art.º 474.º do Código de Civil, que afasta a aplicação do regime do enriquecimento sem causa quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.
42.–A decisão condenatória genérica do Tribunal Arbitral viola o disposto no Art.º 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, consubstanciando uma sentença condenatória genérica ilícita uma vez que a falta de elementos para a liquidação do objeto e quantidade do dano resultam do fracasso da prova que cabia às Recorridas, impondo-se a sua revogação e absolvição da Recorrente.

As demandantes contra-alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões:

A.–As observações da Recorrente quanto à fiabilidade do estudo elaborado pela IMS He… – sobre o qual centra todas as suas alegações de recurso em matéria de facto - não só não têm qualquer sustentação na prova produzida como, de qualquer modo, ainda que houvessem de proceder – o que manifestamente não é o caso, sempre seriam insuscetíveis de alterar o sentido da decisão do Tribunal.
B.–A IMS He… é uma reputada empresa multinacional que elabora estudos de mercado na área da saúde, sendo uma referência para todo o mercado farmacêutico, inclusivamente para entidades públicas, como é o caso do Infarmed.
C.–O estudo médico da IMS H… é elaborado a nível central pelo seu statistical office, que revê todas as alterações e faz os ajustamentos necessários ao modelo, em função das especificidades de cada geografia, de forma a que a amostra de médicos utilizada seja representativa do universo que pretende representar e obedeça a critérios de composição de amostras para a produção de dados estatísticos [cfr. depoimento Dr. TC  min. 00:50:56 a 00:51:13, p. 25].
D.–Este estudo é uma prova por amostragem por se basear, em certa medida, numa recolha limitada de dados reais – as prescrições recolhidas da amostra de 685 médicos que constam do painel da IMS H.. e os números de vendas recolhidas junto de 97,5% dos armazenistas que operam em Portugal.
E.–Este tipo de prova é especialmente relevante para os casos em que a uma das partes é exigida prova sobre um universo de factos de tal modo abrangente que se torna impraticável a sua prova integral - como sucede nos presentes autos quanto ao número total de pacientes que utilizam ... para o tratamento da dor.
F.–Do Documento A-8 junto pelas Recorridas, que contém o cruzamento feito pela IMS He… entre os dados de vendas e os dados de prescrição de medicamentos, resulta que, pelo menos desde 2010, a ... tem sido sobretudo comercializada para o tratamento da dor – como confirmaram as testemunhas Dra. TC (que referiu que dali resulta que o medicamento L…® foi, nos últimos anos, e em particular entre 2009 e 2014, comercializado sobretudo para o tratamento da dor neuropática, numa média de 72% – min. 00:25:57 a 00:26:55, p. 17 e 18) e Dr. PT (min. 00:21:45 a 00:22:20, p.13).
G.–A preponderante importância da ... no tratamento da dor foi também confirmada por especialistas como o Professor PSB que, apresentando razões concretas e objetivas para sustentar as suas conclusões, confirmou que a ... é sobretudo utilizada para o tratamento da dor, numa percentagem que estimou em 90% [min. 00:38:50 a 00:39:02, p. 16, min. 00:29:17 e 00:29:41, p. 12].
H.–O Professor PSB referiu também que não existe nenhuma razão médico-científica para que a preponderância da ... no tratamento da dor se altere nos próximos anos [min. 00:35:53 a 00:36:49, p. 15], facto que foi também confirmado pela testemunha Dra. TG que, ao interpretar os dados IMS He… constantes do documento A-8, referiu que os números apontavam no sentido de uma estabilização da repartição de prescrições de ... para as várias indicações terapêuticas, mostrando uma preponderância inequívoca e constante para o tratamento da dor que a entrada no mercado de medicamentos genéricos de ... não é suscetível de alterar.
I.–Com a entrada dos medicamentos genéricos de ... no mercado Português - num cenário em que a ... vendida se manteve essencialmente inalterada e em que também se manteve inalterado o share de unidades vendidas para o tratamento da dor (cfr. documentos A-24 e A-28) – a quota de mercado do medicamento das Recorridas diminuiu para menos de metade, cifrando-se nos 47,9% em dezembro de 2015 e nos 43% em fevereiro de 2016.
J.–A conclusão é evidente: não se tendo alterado a representatividade do tratamento da dor, a ... que lhe era correspondente foi vendida por medicamentos genéricos, pelo que não existe qualquer erro de raciocínio do Tribunal Arbitral ao ter considerado que o estudo elaborado pela IMS H… demonstra existirem vendas de medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor pese embora, no seu entender, não se possa retirar deste estudo a exata percentagem de tais vendas.
K.–Também as testemunhas Dr. PPGB, Dra.IMR, Dra. MBGe Dra. ACP - todas profissionais de saúde com grande experiência em dor neuropática - contribuíram para sustentar a decisão do Tribunal Arbitral já que confirmaram conhecer inúmeros casos de médicos que continuam a prescrever genéricos de ... para o tratamento da dor, bem como pacientes com dor neuropática que trocam na farmácias prescrições do medicamento L…® por genéricos de ....
L.–Também as entidades públicas com responsabilidades no sector da saúde têm vindo a adotar medidas que visam impedir a comercialização de genéricos de ... para o tratamento da dor, medidas que, embora não tenham conseguido assegurar tal objetivo, têm a faculdade de demonstrar que a venda de medicamentos genéricos de ... é uma realidade difundida em Portugal.
M.–A Dra. RR, responsável pela farmacovigilância da Recorrente, confirmou que entre os três únicos casos de intolerância ao medicamento da Recorrente reportados ao Infarmed, um caso dizia respeito a um paciente que utilizava o medicamento para tratar uma dor neuropática, daqui se retirando que, mesmo numa amostra tão pequena – apenas três casos! –, é possível encontrar vendas de medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor.
N.–Embora o Tribunal Arbitral tenha decidido que não dispunha de todos os elementos para apurar exatamente qual a percentagem de medicamentos genéricos de ... vendidos para o tratamento da dor, estando em causa uma prática – e uma intrusão nos direitos de propriedade industrial das Recorridas - tão expressiva, não existem quaisquer dúvidas quanto ao facto de tais vendas ocorrerem de forma relativamente difundida e em prejuízo dos direitos de exclusivo das Recorridas, nada havendo a apontar à decisão do Tribunal Arbitral.
O.–Não há nenhuma razão para que dele o Tribunal Arbitral não pudesse inferir, por ilação natural, que também os medicamentos genéricos de ... da Recorrente são comercializados para o tratamento da dor.
P.–A Recorrente comercializa um medicamento genérico de ..., medicamento esse que, nos termos do Estatuto do Medicamento, é perfeitamente fungível com os outros genéricos da mesma substância ativa, não possuindo – nem podendo possuir – características que o diferenciem face aos restantes medicamentos genéricos da mesma substância ativa para um determinado uso terapêutico.
Q.–A visão apresentada pela Recorrente a propósito da prova por presunção judicial, cuja aplicação relega apenas para os casos em que existam “regras de experiência (…) tipicamente assente em experiências científicas ou em observações empíricas com expressão estatisticamente relevante”, é marcadamente parcelar e redutora, contrariando a melhor doutrina e jurisprudência sobre essa matéria.
R.–Ficou também demonstrado que a G…é, ainda hoje, o 3.º maior genérico de ... no mercado Português, com uma quota de mercado de 6.7% em fevereiro de 20.. (mas que chegou mesmo a atingir 19.4% em maio de 2015), acumulando vendas de 3.689.658 comprimidos em apenas 10 meses de comercialização –, pelo que desafiaria as mais elementares leis da lógica – já para não falar no bom senso - que, contrariamente ao que acontece com os restantes genéricos de ..., o medicamento da Recorrente não estivesse também a ser comercializado para o tratamento da dor.
S.–Acresce que, segundo resulta do documento R-28, junto pela própria Recorrente, esta terá vendido, pelo menos, (i) 87.761 comprimidos para a indicação dorsalgia; (ii) 5.725 comprimidos para a indicação outr. Mononeuropatias e (iii) 5472 comprimidos para outras polineuropatias, tudo indicações reconduzíveis a dor neuropática.
T.–O caso dos autos consubstancia um caso paradigmático de enriquecimento por intervenção, visto que estão em causa direitos de propriedade industrial, que são direitos absolutos, facto que a própria Recorrente o reconhece [cfr. p. 22 da alegação de recurso].
U.–No enriquecimento por intervenção, ocorre um desvio de vantagens destinadas ao empobrecido, a favor do interventor, ou seja, trata-se de situações em que alguém obtém um enriquecimento através de uma ingerência em bens jurídicos alheios, especialmente em virtude do uso, fruição, consumo ou disposição desses bens.
V.–No caso dos autos, estão preenchidos todos os requisitos do enriquecimento sem causa (enriquecimento, enriquecimento à custa do empobrecido, ausência de causa justificativa e natureza subsidiária da obrigação de restituição do enriquecimento ao empobrecido).
W.–Bem andou o Tribunal Arbitral ao reconhecê-lo, pelo que o Acórdão Arbitral se conforma, de pleno, com o regime jurídico do enriquecimento sem causa, devendo, consequentemente, essa decisão ser mantida e o recurso a que ora se responde ser julgado improcedente.
X.–Quanto ao primeiro requisito do enriquecimento sem causa (o do próprio enriquecimento), a partir do momento em que se prova que os medicamentos genéricos de ... da Recorrente são utilizados para tratamento da dor e que se assume que a sua comercialização gerou um ganho para a Recorrente, impõe-se concluir que a mesma Recorrente enriqueceu com a comercialização dos seus medicamentos genéricos de ... que viriam a ser utilizados para o tratamento da dor.
Y.–Mais: uma vez que o direito de patente é um direito oponível erga omnes, basta que haja um aproveitamento não autorizado por terceiros de alguma das vantagens nele compreendidas, para que se verifique uma situação de enriquecimento sem causa suscetível de ser reconduzido à categoria dogmática do enriquecimento por intervenção, independentemente do resultado, proveitoso ou não, de tal aproveitamento.
Z.–Em casos como o dos autos, o direito à restituição do enriquecimento sem causa realiza o conteúdo da destinação de um direito absoluto, constituindo como que a continuação do direito infringido.
AA.–A invocação de suposta boa-fé por parte da Recorrente é improcedente, seja porque essa boa-fé não existe, seja porque nunca impediria que se concluísse pela ocorrência do enriquecimento.
BB.–A boa-fé subjetiva é, entre nós, sempre ética: só pode invocar boa fé quem, sem culpa, desconheça certa ocorrência.
CC.–Desde logo, é patente que a Recorrente conhece as regras de prescrição e de dispensa do medicamento e sabe (não podendo, em qualquer caso, deixar de saber) que os seus medicamentos foram e estão a ser comercializados para o tratamento da dor.
DD.–Não se pode aceitar que quem comercializa medicamentos genéricos esteja de boa-fé até ao momento em que as titulares da patente vêm exercer jurisdicionalmente o seu direito, desde logo porque o ambiente fértil à violação da patente é criado pelo enquadramento vigente em matéria de prescrição e dispensa de medicamento.
EE.–A má-fé também é demonstrada pela circunstância de a Recorrente afirmar que nenhuma intervenção pretende assumir na comercialização do seu medicamento para o tratamento da dor (Cfr. Acórdão Arbitral, p. 6.), mesmo depois de saber quais são os efeitos da comercialização do seu medicamento na indicação protegida.
FF.–Ainda que a Demandada tivesse atuado de boa fé (o que, manifestamente, não aconteceu), teria, sempre, de restituir o equivalente pecuniário da vantagem de que indevidamente beneficiou, visto que a obrigação de restituir não está de forma alguma limitada aos casos em que o enriquecido tenha atuado de má-fé.
GG.–É incorreta a ideia sobre supostos resultados negativos da sua atividade que a Recorrente pretende inculcar, pelo que também é improcedente o argumento apresentado pela mesma Recorrente com invocação dessa pretensa realidade, na tentativa de sustentar uma alegada ausência de enriquecimento.
HH.–Quanto ao segundo e terceiro requisitos do enriquecimento sem causa (enriquecimento à custa do empobrecido e ausência de causa justificativa para o enriquecimento), é totalmente insustentável a argumentação da Recorrente, de acordo com a qual nenhum deles se verificaria porque, supostamente, os direitos de patente de segundo uso médico seriam, numa solução de pretenso compromisso, postergados pelo regime de prescrição e de dispensa de medicamentos.
II.–As próprias autoridades administrativas competentes – responsáveis pela aplicação das normas invocadas pela Recorrente – recusam que o regime da prescrição e da dispensa de medicamentos deva por efeito a postergação do direito de patente de segundo uso médico.
JJ.–A boa interpretação, nomeadamente no plano teleológico, impõe que se reconheça e conclua que a causa justificativa do enriquecimento não pode certamente encontrar-se na circunstância de as regras de prescrição e de dispensa do medicamento não permitirem assegurar que cada medicamento genérico disponibilizado a um utente vai servir apenas para atender a um dos fins terapêuticos que constam da AIM do medicamento genérico, que não incluem o tratamento da dor, porquanto esses regimes visam regular o mercado da comercialização de medicamentos, mas não proceder a uma modificação da ordem real de afetação e destinação de bens reconhecida pela ordem jurídica.
KK.–A mesma conclusão se impõe no plano sistemático, visto que os resumos das características dos medicamentos dos medicamentos genéricos, que devem conter apenas informação que permita uma utilização segura e eficaz de cada produto farmacêutico, o que deixa claro que estes não devem ser utilizados no âmbito de proteção daqueles mesmos direitos (cfr. artigos 18.º, n.º 4, e 18, do Estatuto do Medicamento.
LL.–A deslocação patrimonial relevante nos presentes autos é direta e imediata do património das Recorridas, desde logo porque os rendimentos obtidos por quem comercializa medicamentos genéricos de ... devem-se essencialmente às vantagens da própria substância ativa, abrangidas pelo direito de patente das Recorridas, sendo que, como esta relação de aptidão terapêutica é justamente o conteúdo daquele direito de propriedade industrial, é forçoso verificar que a obtenção do enriquecimento se deveu a uma ingerência no conteúdo da destinação daquele direito.
MM.–Porque estamos no âmbito do enriquecimento por intervenção, na falta de uma autorização específica para ingerência por parte de quem comercializa medicamentos genéricos na posição jurídica exclusiva das titulares da patente, está preenchido o tipo artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil.
NN.–No quadro do enriquecimento por intervenção, o requisito «à custa de outrem» baseia-se, apenas, na afetação do conteúdo da destinação de uma posição jurídica do empobrecido, e não na existência de um qualquer dano patrimonial, pelo que, efetuada essa demonstração da obtenção do enriquecimento «à custa de outrem», a «ausência de causa justificativa» torna-se requisito de verificação quase automática, uma vez que só em circunstâncias excecionais um enriquecimento obtido através do uso, fruição ou disposição de posições jurídicas alheias poderá ser conservado pelo enriquecido.
OO.–Quanto ao requisito da subsidiariedade, e tendo presente o significado do disposto no artigo 498.º, n.º 4, do Código Civil e a diferença de função entre a responsabilidade civil (indemnização do dano) e o enriquecimento sem causa (restituição do enriquecimento injusto), deve sublinhar-se que, no âmbito do enriquecimento por intervenção, as pretensões delituais e de enriquecimento sem causa podem concorrer uma com a outra, bastando para isso que a pretensão delitual efetue uma proteção da ordenação dos bens por forma inferior à que é conferida pela ação de enriquecimento.
PP.–A pretensa procedência da perspetiva da Recorrente quanto à suposta possibilidade de demandar terceiros, em sede de ação de responsabilidade civil, implicaria a consolidação na sua esfera jurídica dos resultados da comercialização de medicamentos genéricos de ... para tratamento da dor, pondo a cargo de terceiros o pagamento dos custos dessa apropriação injustificada, quando o ordenamento lhe veda a obtenção e a consolidação, no seu património, desses resultados – o que, naturalmente, não seria admissível.
QQ.–Em qualquer caso, a aplicação do requisito da subsidiariedade, o qual deve ser interpretado restritivamente, só tem sentido perante a possibilidade de o empobrecido lançar mão de outros meios contra o enriquecido (e não contra terceiro).
RR.–O objeto primário da restituição é o quid, imaterial, obtido em consequência da ingerência no património alheio, de tal modo que, a partir do momento em que o medicamento genérico de ... seja vendido para o tratamento da dor, a obrigação de restituição impõe-se, restando identificar o seu equivalente (artigo 479.º do Código Civil).

1.3.–Como é sabido, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes, importando, assim, decidir as questões nelas colocadas e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, nos termos dos artigos 608.º, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC.
Assim, considerando as conclusões da apelante, as questões essenciais a decidir no âmbito do presente recurso, consistem em saber se: (a) é de alterar a matéria de facto dada como provada sob a questão 3 (i) e se há contradição entre os pontos 3. (i) e 4.c); (b) estão reunidos os pressupostos do enriquecimento sem causa e, por fim, se (c) há fundamento para relegar o cálculo da quantia em causa para incidente de liquidação.

II.–Fundamentação.

II.1.–Dos Factos

Além do que consta do precedente relatório, importa considerar que, em primeira instância, foram dados como provados os seguintes factos:

1)-A 1.° Demandante é a titular da Patente Europeia EP…;
2)-A referida Patente Europeia EP… é válida e encontra-se em vigor (com referência à data da decisão do Tribunal Arbitral), caducando em 16 de julho de 2017;
3)-A mesma Patente Europeia EP0… apenas protege uma utilização terapêutica específica da ... — a saber, o tratamento da dor —, não beneficiando as Demandantes de qualquer exclusivo quanto à utilização da substância ativa ... para tratamento da epilepsia e da perturbação da ansiedade generalizada;
4)-Os medicamentos genéricos de ... comercializados pela Demandada não têm qualquer indicação terapêutica dirigida ao tratamento da dor;
5)-A Demandada não promoveu e não promove os seus medicamentos genéricos para o tratamento da dor, sob qualquer forma;
6)-De acordo com o respectivo Folheto Informativo, os medicamentos genéricos de ... comercializados pela Demandada têm como indicação terapêutica a epilepsia e a perturbação da ansiedade generalizada, que são patologias distintas da dor.
7)-Ocorreu um caso concreto de venda de medicamentos genéricos de ... da demandada para tratamento da dor (fls. 1510).
8)-A venda de medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor constitui uma prática relativamente difundida, cuja dimensão excede claramente o carácter residual que a prova de apenas um caso concreto da venda de medicamentos genéricos de ... da demandada poderia em abstracto implicar (fls. 1510).
9)-Entre os medicamentos genéricos de ... assim vendidos para o tratamento da dor incluir-se-ão, além de outros produzidos e comercializados por outras empresas, aqueles que são produzidos e comercializados pela demandada (fls. 1510).
10)-Entre Abril de 2015 e Junho de 2015, o total de medicamentos vendidos com a substância activa ... foi de 165.540  (fls. 1518).
11)-Entre Abril de 2015 e Junho de 2015, o total de medicamentos ... genéricos vendidos foi de 83.644 unidades (fls. 1518).
12)-Entre Abril de 2015 e Junho de 2015, a demandada vendeu 26.039 dessas unidades, o que corresponde a um valor de venda de € 436.938,00 (fls. 1518).
13)-Entre Abril de 2015 e Junho de 2015, a demandante vendeu 81.896 unidades do medicamento L… (fls. 1519).
14)-Não obstante algumas oscilações relevantes ao longo dos tempos, a entrada dos medicamentos genéricos a entrada da ... no mercado determinou um decréscimo substancial do volume de vendas da segunda demandante que, em alguns momentos, se aproxima dos 50%  (fls. 1519).

II.2.1.–Recurso de facto.

Quanto à questão do acerto da matéria considerada provada sob o ponto 8 do elenco dos factos provados

Importa, em primeiro lugar, deixar claro, como resulta das notas preambulares da decisão sob escrutínio, que as Demandantes não reclamam qualquer exclusividade na comercialização de medicamentos compostos pela substância activa ....
De resto, nem tal exclusividade lhes pertence nem à Demandada é imputado qualquer acto ou omissão causal da lesão dos direitos das Demandantes.
É precisamente essa a razão por que a causa de pedir se contém no enquadramento do enriquecimento sem causa.

O que acontece, segundo as Demandantes, é que o medicamento genérico comercializado pela Demandada para o tratamento da epilepsia e da ansiedade generalizada em adultos está a ser prescrito e dispensado para o tratamento de dor, invadindo assim a finalidade terapêutica consignada a um medicamento de referência, comercializado pelas Demandantes, com a denominação de “L…”.

E o Tribunal Arbitral deu como provada essa versão que fundamenta a condenação da demandada.
A convicção do Tribunal assentou na ponderação dos diversos meios de prova, que englobam depoimentos de testemunhas que: “(…) se apresentaram como profissionais de saúde que lidam frequentemente com a prescrição ou a dispensa de medicamentos de ... para o tratamento da dor, tendo confirmado, por conhecimento directo, […] de modo esclarecedor e convincente que, por razões várias, […], é comum a prescrição e, assim, a dispensa de medicamentos genéricos de ... para  tratamento da dor”.

O Tribunal ponderou também: “[…] diversa prova documental, com destaque para os documentos A-25, A-27, R-27 e R-28, que assentam na informação disponibilizada por uma entidade (a I. M. S.) que os operadores relevantes no mercado reconhecem como fiável e que evidenciam que os medicamentos genéricos de ... têm vindo a ser efectivamente utilizados para o tratamento da dor, independentemente das reservas que devam ser colocadas a propósito da concreta quantificação desses medicamentos que têm vindo a ser usados para este fim […].

O Tribunal considerou ainda: “[…] diversas intervenções das autoridades públicas que, através de […] alterações regulamentares devidamente descritas no processo, têm vindo a procurar ajustar as soluções destinadas a proteger os direitos de propriedade industrial das Demandantes, o que constitui indício claro de que também estas autoridades públicas, directamente envolvidas na matéria em causa, têm conhecimento de que os medicamentos genéricos de ... vêm sendo utilizados para tratamento da dor”.

Por fim, mas não menos importante, o Tribunal lança mão de “ilação natural” com base na qual acaba por emitir o seu juízo probatório, extraído da “ (…) probabilidade razoável e [com base] nas regras de prescrição e de dispensa aplicáveis aos medicamentos genéricos, segundo a qual, a partir do momento em que se dá por provado que os medicamentos genéricos de ... vêm sendo utilizados para o tratamento da dor, os medicamentos da Demandada não devem, na falta de demonstração em contrário (e especialmente quando se atenta na circunstância de se dar como provado um caso concreto de utilização do medicamento genérico de ... da Demandada para tratamento da dor, conforme depoimento [de testemunha], assumir-se como excepção absoluta relativamente ao comportamento da generalidade dos genéricos de ... [embora o Tribunal não tenha estendido a ilação a ponto de] assumir que o comportamento de todos os genéricos de ... é rigorosamente igual[1].

A Demandada tece várias críticas ao juízo probatório do Tribunal, dizendo em resumo que “(…) os meios de prova em que o mesmo se baseia não são aptos a demonstrar, nem ao nível mais básico de segurança e rigor [que], se têm vindo a verificar vendas de medicamentos genéricos de ... da recorrente para o tratamento da dor”.
         
Todavia, a nosso ver, sem qualquer razão.

Com efeito, a demandada tenta pôr em causa o estudo qualitativo elaborado pela empresa I. M. S. H…, estudo esse que consiste em inquéritos realizados a uma amostra de médicos no momento da prescrição.

Em síntese nossa podem alinhar-se assim os fundamentos da crítica:

–Quanto à fiabilidade desse estudo quantitativo, convoca os depoimentos das testemunhas TC, LS e LPB. Entende a Recorrente que a falta de fiabilidade do estudo quantitativo contagia o cruzamento dos resultados daquele estudo com os dados de vendas totais do medicamento “L…” e dos medicamentos genéricos de ..., recolhidos pela empresa I. M. S. H.. (reflectidos nos documentos A-15, A-16 e A-28), o que, segundo diz, “ (…) impossibilita que se atribua qualquer valor probatório aos documentos que expressam tal cruzamento – com os docs. A-27, A-25 e A-28”. Convoca também, a este respeito, o depoimento da testemunha LS, do qual extrai que “(…) o cruzamento daqueles tipos de dados, atenta a natureza e periodicidade diferentes, não tem qualquer validade estatística”.
–Entende ainda que haverá contradição no juízo probatório, visto que: “A venda de medicamentos genéricos de ... para tratamento da dor constitui prática relativamente difundida, cuja dimensão excede claramente o carácter residual que a prova de apenas um caso concreto de venda de medicamentos genéricos de ... da Demandada poderia em abstracto demonstrar […]. Estaria assim implicado um juízo sobre a ordem de grandeza da venda de medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor que o próprio Tribunal rejeita mais adiante e diz ser impossível à luz da prova produzida”.

Em jeito de síntese, a Demandada e ora Recorrente conclui que:
A total falta de fiabilidade dos elementos de prova (documental) constantes dos autos quanto à real quantidade de medicamentos genéricos de ... que são vendidos para a dor impede que se retirem quaisquer conclusões sobre o valor de tais vendas. Em consequência, a prova produzida não autoriza o juízo de probabilidade razoável elaborado pelo Tribunal Arbitral no sentido de que os medicamentos genéricos de ... da Recorrente sejam vendidos para o tratamento da dor de forma relativamente difundida e não meramente residual”. A mera verificação empírica pontual não reflecte de forma suficiente a realidade expressa na generalização extraída pelo Tribunal Arbitral.

Vejamos:

O percurso que nos é proposto pela Demandada com vista a infirmar o juízo probatório do Tribunal Arbitral, salvo o devido respeito, não se nos afigura convincente, inclusivamente quanto ao estudo da I. M. S. – o qual, segundo a demandada, constituirá o verdadeiro epicentro que contamina todo o restante material probatório

Com efeito,

Quanto à prova testemunhal

A testemunha da demandada LS, com Licenciatura, Mestrado e Doutoramento em Probabilidade Estatística e docente universitária, nas áreas da Bioquímica e Biologia Molecular (fls. 1366), ao longo do seu depoimento de teor interpretativo do estudo em causa, não aludiu à [in]validade estatística de tal estudo, antes fez afirmações que, de facto, corroboram as dificuldades em que, com base no mesmo estudo, sejam dadas como provadas as percentagens avançados pelas demandantes. A este propósito a testemunha efectuou leitura dos dados dos documentos R27, A27 e A29.
Sucede que esta questão não se discute, nesta sede, já que o Tribunal Arbitral relegou o cálculo dos valores para liquidação de sentença.
Nesta fase, do que se trata consiste tão só em aceitar a validade de tal estudo, enquanto meio probatório – entre outros – que aponta para o facto de a ... (enquanto medicamento genérico ser receitada para a dor por várias especialidades médicas).
Não estão, pois, em causa valores percentuais, matéria sobre a qual, aí sim, as dificuldades se colocam – a avaliar pelo depoimento da testemunha, nomeadamente aquando da instância  (fls. 1386 vº). Mais acrescentou, também, não dispor de informação que lhe permita concluir se houve trabalho científico para definição da amostra, tendo manifestado desconhecer as bases em que o estudo em causa (com recurso a um algoritmo), terá assentado (vide nomeadamente fls. 1387vº e seguintes).
 
Neste âmbito, e em sentido convergente de que a ... tem sido comercializada para o tratamento da dor, pronunciou-se também a testemunha TG [licenciada em ciências farmacêuticas, e à data em que foi ouvida – 16.02.2016 –(fls. 1408), – trabalhava nos laboratórios P… (fls. 1200 vº) e trabalhou na IMS (fls. 1205 e seguintes). Referiu que a IMS, até uma determinada altura, era a única empresa que tinha dados na área farmacêutica], reportando-se, além do mais, aos documento A-8 (fls. 1207vº) e A25 (fls. 1227 vº) e A24 (fls. 1231 e vº). Mencionou que dentro da base da IMS existiam dois tipos de informação: vendas puras e dados cruzados da base médica com a base farmacêutica (fls. 1291 vº), dados que eram utilizados em função de objectivos financeiros traçados a nível global e a nível europeu, mas sempre com base nas vendas internas (fls. 1203). Afirmou que em termos de grandes números e de tendências não aparecem diferenças entre os dados da IMS e as vendas internas. E as diferenças que se possam constar e que admitiu – prendem-se com os stocks e com alguma exportação, sobretudo para o Reino Unido (fls. 1203 e vº).
Explicou, aquando da instância, que as patologias para as quais era prescrito o medicamento em questão estavam identificadas por códigos (fls. 1221), sendo certo que os dados eram recebidos com certa periodicidade (fls. 1222 vº). Esses dados abrangiam designadamente os medicamentos e a posologia  (fls 1222vº e 1223). Segundo disse, não era possível, através dessa mesma base de dados, detectar o volume dos fornecimentos às farmácias pelos armazenistas, mas já era possível detectar o volume de vendas das farmácias (fls. 1225 vº e 1226). Concluiu que as vendas da IMS não andarão muito longe daquilo que é vendido depois pelas farmácias ao utente (fls. 1227).  
A testemunha PB [médico especialista em medicina física de reabilitação, com competências em geriatria, e Doutorado em medicina, sendo Professor Auxiliar da Faculdade das Ciências Médicas, … e consultor da P… na área da dor neuropática (fls. 1117)] identicamente confirmou que a ... é fundamentalmente utilizada para o tratamento da dor.
Relatou que, apesar das normas vigentes (documento A-20), os médicos não as respeitam nas prescrições, independentemente das restrições em matéria de propriedade industrial, assim receitando a ..., enquanto medicamento genérico, para tratamento da dor (fls. 1141 vº e 1142-1143).

Também BCL (anestesiologista), que liderou a equipa de especialistas que elaborou a norma n.º 043/2011 da …., confirmou a relevância da ... no tratamento da dor neuropática (fls. 1243, 1247 vº).
Em sentido convergente, depuseram também as testemunhas ACM (a qual dirige a Unidade da Dor no Centro Hospitalar de … – fls. 1147) – fls. 1155 e IS(farmacêutica – fls. 1161 vº), fls. 1167.

Importa ter em atenção – como lembram as recorridas - que os dados de tal estudo são também utilizados pelas “entidades públicas com responsabilidade regulatória no sector da saúde […] – como é, em particular, o caso do Infarmed” [Testemunha TC (gestor de conta da P… – fls. 1317), o qual aludiu a colaboração da IMS com o Infarmed (fls. 1318, 13121), PT  (gestor na P…– fls. 1173 vº e 1174) o qual aludiu ao Infarmed como entidade que utiliza dados da IMS (fls. 1177).

Quanto à prova documental

No caso em apreço, como se viu, a própria entidade pública com responsabilidades regulatórias no sector da saúde utilizou tal estudo.
Parece-nos, assim, estar fora de dúvida razoável a possibilidade de aceitação de tal estudo como elemento de prova válido para comprovar que a ..., enquanto medicamento genérico, é receitada e dispensada para o tratamento da dor 

Esta visão resulta inclusivamente da norma n.º 043/2011 da Direcção Geral de Saúde, onde figura a ... entre “a terapêutica farmacológica de primeira linha” para tratamento da dor neuropática (fls. 133 e segs.).

Acresce que os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde E. P. E. (S. P. M. S.) emitiram, em 13 de Março de 2015, uma circular informativa conjunta[2] no sentido de “apenas o medicamento L…, por razões de propriedade industrial, est[r] autorizado para (…)o tratamento da dor neuropática (fls. 564).

Feita esta clarificação, e como lembram as demandantes, poder-se-á ainda ter em consideração  que os dados da I. M. S. H… constituem prova por amostragem, isto é, aquela que consiste “(…) numa recolha limitada de dados reais – as prescrições recolhidas da amostra de 685 médicos que constam do painel da I. M. S. H… e os números de vendas recolhidas junto de 97,5% dos armazenistas que operam em Portugal” (Depoimento da testemunha NTC (fls. 1318 vº), o qual também explicou o modo como funciona a base de dados da IMS (fls. 1320 vº).

Ora, a prova por amostragem, não obstante a sua atipicidade face aos meios probatórios especificamente previstos pelo Código de Processo Civil, bem como as fragilidades que lhe possam ser apontadas, é admissível à luz do Direito Probatório Português.

Com efeito, no Direito Processual Civil Português, são previstos diversos meios de prova, como sejam a prova por documentos, por confissão, por declarações de parte, a prova pericial, por inspecção judicial e por testemunhas.

Todavia, sobre as provas atendíveis, o artigo 413.º do C. P. C. contém uma formulação genérica, considerando que: “(..) o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, não excluindo qualquer meio de prova, ainda que não expressamente previsto”.

Na verdade, estamos perante um domínio em que a prova é difícil e escapa à parte de quem a mesma é exigida.
A prova por amostragem visa a demonstração de um universo de coisas ou situações tomando por base apenas parte desse universo.
Quer isto dizer que, exigir-se-á algum cuidado na utilização da prova por amostragem, tendo de aferir-se sobre a confiabilidade da mesma prova e, eventualmente até, da aceitabilidade das técnicas utilizadas.

Seja como for, o juízo probatório não tem de ter por pressuposto um juízo de certeza absoluta nem assentar num mero exercício de lógica, cabendo nomeadamente a utilização de presunções como meio de prova, a partir de determinados indícios que as autorizam – como foi o caso. Diga-se de passagem que tal presunção não foi ilidida pela Recorrente.

Segundo o Manual for Complex Litigation[3], que é uma publicação oficial americana, é possível com razoável segurança, por recurso a métodos estatísticos, inferir determinadas características da população ou universo de eventos, transacções, opiniões, “(…) por meio da observação das características num segmento pequeno ou simples da população[4].
A prova por amostragem “(…) pode ser considerada uma variante da prova estatística” e “(…) relaciona-se com a prova indiciária”, e é justamente essa prova indiciária e a força que ela possa evidenciar que autoriza que, por raciocínio lógico a partir do facto conhecido (indício), se possam presumir os factos desconhecidos que têm a ver com o conjunto em que se inscreve a amostra.

São, portanto, juízos de lógica baseados na experiência que permitem a extrapolação operada pelo Tribunal e, em consonância com os padrões consentidos pelo Manual for Complex Litigation.

Michelle Taruffo trata das funções dos “conhecimentos científicos” quando se refere ao juízo prognóstico de factos futuros. As suas lições aplicam-se mutatis mutandis ao que ora se designa por prova por amostragem, para considerar que os esquemas “probabilísticos” são adaptados para munir o juiz de estruturas lógicas validamente utilizáveis, atribuindo um grau considerável de confiabilidade e probabilidade às suas previsões[5].

Por conseguinte, fica esvaziado o argumento de que jamais poderia ser atingida uma ordem de grandeza de relevo que permitisse dar como provado tal facto, visto que apenas um único caso de reacção adversa a um medicamento prescrito para a dor e comercializado pela Demandada foi reportado ao Infarmed.
Não é, pois, legítima a dedução da conclusão da Demandada, face ao universo dos aludidos meios de prova, nomeadamente à luz do documento A-8 (fls. 243 e segs.). Resulta, outrossim, que há efectivamente medicamentos genéricos de ... prescritos (por médicos) e dispensados (vendidos pelas farmácias) para o tratamento da dor.
Pensamos que, independentemente das proporções que possam estar em causa, não são apresentados pela Recorrente bases para dúvida razoável sobre a fiabilidade de tal estudo no sentido da ilação circunscrita que dele e dos demais meios probatórios retira o Tribunal Arbitral.

Fica, assim, resolvida a impugnação da matéria de facto relativamente ao ponto 8 dos factos (questão identificada pelo Tribunal Arbitral como questão controvertida n.º 3 – fls. 1510).

Quanto à assinalada contradição entre as respostas às questões controvertidas 3. e 4. c) (cfr. ponto 8 dos factos)

Importa ter presente que esta matéria respeita a que a venda de medicamentos genéricos de ... para tratamento da dor constitui uma prática relativamente difundida, cuja dimensão excede claramente o carácter residual que a prova de apenas um caso concreto de venda de medicamentos genéricos de ... da Demandada poderia em abstrato implicar e que é impossível determinar com o mínimo grau de solidez qual a percentagem dos lucros supostamente auferidos pela Recorrente com a putativa venda dos seus medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor (resposta do Tribunal Arbitral perante a questão 4-c).

A questão 4-c) foi identificada pelo Tribunal como a questão de saber se:
72% da totalidade dos lucros obtidos pela Demandada na venda dos seus medicamentos genéricos de ... podem considerar-se lucros obtidos pela Demandada na venda dos seus medicamentos genéricos de ... para tratamento da dor?”.

Sobre esta questão o Tribunal Arbitral concluiu ser impossível determinar com o mínimo grau de solidez qual a percentagem dos lucros supostamente auferidos pela Recorrente com a putativa venda dos seus medicamentos genéricos de ... para o tratamento da dor.

Vejamos,

Ao contrário da Recorrente, afigura-se-nos que não existe qualquer contradição.

Na verdade, a falta de prova de que 72% da totalidade dos lucros obtidos pela Demandada na venda dos seus medicamentos genéricos de ... não atenta contra a informação de que a mesma beneficiou de lucros pela venda efectiva do mesmo medicamento genérico com a finalidade terapêutica de tratamento da dor neuropática.

Na questão 3, dá-se como provada a comercialização pela Demandada de tal medicamento para o tratamento da dor, enquanto que na questão 4-C se ignora o quantum dessa comercialização, o que de modo algum colide com a primeira das afirmações.

Mais, as reservas do Tribunal Arbitral relativamente aos meios de prova alusivos à percentagem de medicamentos vendidos não se sobrepõe à apreciação dos meios de prova relativamente à efectiva venda do medicamento para tratamento da dor.
Portanto, não vemos, salvo o devido respeito, qualquer contradição nas aludidas respostas.

Note-se, a este respeito que, para o Tribunal Arbitral, a inconclusividade dos elementos de prova para a determinação das percentagens da comercialização da mesma substância para o tratamento da dor no quadro das demais finalidades terapêuticas, prende-se apenas com a escassez de prova “que as Demandantes carrearam para o processo [inclusive] da […] base de dados”.

A este respeito, o Tribunal Arbitral notou que não resulta, “por exemplo, quantas prescrições de ... foram consideradas no estudo que serviu de base ao apuramento dos dados reflectidos no documento A-29, uma vez que os próprios dados do documento A-27 são apresentados como «extrapolações» das prescrições médicas”.

Por esta razão, e baseando-se ainda nas “precauções que são recorrentemente transmitidas pela I. M. S. aos seus clientes quanto à utilização que devem dar à mesma base de dados e que alertam, precisamente, para as limitações da informação disponibilizada a respeito da sua correcção estatística”.

Vê-se, assim, que o Tribunal ponderou suficientemente, no seu juízo probatório, a fragilidade da fiabilidade da mesma base de dados enquanto meio de prova, ancorando-se neste âmbito na leitura que fez dos depoimentos das testemunhas LS, NTC, LP e CPB.

Mais, concluiu o Tribunal pela impossibilidade de dar como provado, a favor das Demandantes, que fosse idêntica a percentagem de medicamentos de ... comercializados pela Demandada relativamente às demais empresas que comercializam este medicamento, no âmbito do tratamento da dor neuropática.

Ora, não vem questionada no recurso esta reserva em relação ao material probatório de que o tribunal dispôs, não cumprindo, pois, qualquer pronunciamento sobre esta questão por não ter sido submetida no recurso.

II.2.2.–Apreciação Jurídica.

Quanto à questão da verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa da Recorrente

Do que se trata, agora, é de verificar se se podem dar como verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa que, do ponto de vista jurídico, enquadra o peticionado pelas Demandantes.

A Recorrente entende que, para que se constitua a obrigação de restituir, é necessário o enriquecimento envolvendo deslocação patrimonial da esfera do empobrecido, tendo concluído (à míngua de demonstração dos valores deslocados) pela ausência de demonstração do enriquecimento da sua parte à custa das Demandantes.

Mais entende a Recorrente que o enriquecimento supõe a obtenção do lucro por intervenção não permitida, sendo certo que, segundo também diz, a mesma observou inteiramente todas as normas aplicáveis em sede de comercialização de medicamentos genéricos de ....

Por fim, entende que as normas neste âmbito aplicáveis correspondem a uma solução de compromisso encontrada pelo legislador para compatibilizar direitos fundamentais de titulares de patentes, de empresas de medicamentos genéricos e dos utentes de medicamentos.
Daí que, ainda que possa ter havido prescrição ou dispensa do mesmo medicamento para o tratamento da dor, tratar-se-á de uma aparente ingerência do direito de patente, mas em que o legislador enquadra como sacrifício necessário para acautelar outros direitos de natureza análoga a direitos fundamentais, mas, ainda assim, com respeito pelo nível mínimo de protecção.
Desta premissa retira a Recorrente a conclusão da inobservância do requisito de que o “enriquecimento se tenha feito à custa de outrem”, por entender que “a conformação do direito de exclusivo das recorridas não abrange a alegada intervenção da recorrente”.

Retira, ainda, a ilação de que “falta qualquer relação entre o alegado lucro da recorrente e o putativo empobrecimento das recorridas”, por entender que “não ficou provado que a diminuição de vendas do medicamento das recorridas seja imputável à comercialização dos medicamentos genéricos de ... da recorrente”.

Afirma ainda que inexiste um “nexo claro entre o alegado empobrecimento das recorridas e o alegado enriquecimento da recorrente, de forma a poder dizer-se com segurança que este último provoca aquele”.
Acrescenta, enfim, que “falharia sempre a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa por não se poder recorrer à sua aplicação excepto como ultima ratio”, uma vez que “as recorridas poderiam igualmente ter accionado, em sede de responsabilidade civil extracontratual por violação do seu direito exclusivo, os agentes provocadores da hipotética violação […]”.

Não parece haver divergência nos autos de que a questão do enriquecimento sem causa aqui colocada deve, do ponto de vista dogmático, enquadrar-se no que a doutrina tem designado por enriquecimento por intervenção.

No sugestivo dizer do Professor Menezes Leitão[6], “a formulação unitária da cláusula geral do artigo 483º, nº 1, esconde uma profunda diversidade estrutural entre as diversas categorias de enriquecimento, tendo os pressupostos do instituto cambiantes de sentido e relevo dogmático distinto em cada uma dessas categorias. Para além disso, são claramente dissociadas as funções desempenhadas por cada uma das categorias do enriquecimento sem causa no sistema jurídico”.
“(…) não é possível vislumbrar um fundamento específico comum às diversas categorias de enriquecimento sem causa, a não ser como referência a uma ordenação geral de compensação e equilíbrio, o que implica identificar a proibição do enriquecimento com o princípio geral suum cuique tribuere”.
“(…) o que leva à conclusão de que a norma do artigo 473º, nº 1, não é de aplicação imediata, tendo o caso concreto que ser integrado previamente numa das categorias de enriquecimento sem causa. Cada uma delas possui problemas jurídicos específicos, o que justifica a sua autonomização tipológica.”.

O Professor Menezes Leitão retira, assim, a conclusão de que “a cláusula geral do artigo 473º, nº 1, do Código Civil, apresenta-se como aberta”, conclusão em que nos revemos inteiramente.

Seria de excluir a aplicação de tal cláusula na eventualidade de existir outra via de obter a restituição com base nos mesmos factos.

Feito este esclarecimento, vejamos então o que refere ao enriquecimento por intervenção.

No enriquecimento por intervenção, nem sempre a deslocação patrimonial está presente, visto que o que acontece é que o enriquecimento pode ocorrer através da obtenção de uma vantagem (que não deslocação patrimonial) que previamente pertencia ao empobrecido. E é precisamente a expectativa jurídica de aquisição desse ganho que é frustrada pela intervenção do enriquecido. Portanto, não se trata de uma deslocação patrimonial, mas sim de um potencial de ganho não obtido.
Daí que a doutrina entenda não ser aceitável exigir a deslocação patrimonial como pressuposto do enriquecimento por intervenção[7].
É precisamente isto que ocorre no caso dos autos, uma vez que as Demandantes deixaram de obter um determinado ganho que decorre da protecção da sua patente, a qual protege o exclusivo da comercialização da ... para tratamento da dor neuropática durante um certo período de tempo (artigo 101.º do C. P. I.).
Qual a medida desse ganho, o Tribunal Arbitral decidiu que deve ser apurada em incidente de liquidação, questão de que adiante nos ocuparemos.

É certo que nenhum comportamento ilícito se extrai da matéria de facto que possa ser imputável à Demandada e ora Recorrente.

Todavia, este é um domínio em que o fundamento do enriquecimento sem causa não pode ser buscado em qualquer acção ilícita, em virtude de o mesmo ser, como diz o Professor Menezes Leitão, “totalmente inadequado à função do instituto que é a de reprimir aquisições injustificadas, independentemente da qualificação da acção do interventor que as originou[8].
Mais, na visão do mesmo Ilustre Professor, a aplicação da teoria da ilicitude seria “contrária ao sistema jurídico, ao identificar a responsabilidade civil com o enriquecimento sem causa[9].
Do que verdadeiramente se trata é da demonstração de que houve afectação da vantagem ou utilidade destinada em exclusivo ao titular do direito[10].
Ora, é precisamente este o caso, na medida em que os direitos protegidos pela patente das Demandantes consistem na obtenção em exclusivo dos ganhos da comercialização da ... enquanto medicamento para tratamento da dor neuropática.
No sentido da dispensa da ilicitude, veja-se o parecer junto aos autos subscrito por Paula Costa e Silva e Nuno Trigo dos Reis[11].

A Recorrente traz ainda à colação o facto de estarmos em presença de um comportamento lícito e num quadro normativo que envolve uma solução de compromisso para compatibilizar direitos fundamentais de titulares de patentes, empresas de medicamentos genéricos e dos utentes de medicamentos.

Sendo verdade que, de facto, o legislador tem de corresponder a vários equilíbrios que se situam na confluência de direitos com assento constitucional e legal, e envolvendo também a aplicação do direito comunitário (estamos no âmbito da protecção de uma patente europeia), a verdade é que dentro desse equilíbrio não pode deixar de funcionar cada um dos sistemas normativos implicados sempre que com esse funcionamento não se rompa o equilíbrio visado pelo legislador.

Por outras palavras, se apenas se visasse a protecção das empresas de medicamentos genéricos e dos utentes de medicamentos, defraudar-se-ia o compromisso com a protecção dos direitos dos titulares de patentes, que obviamente têm de conviver com a protecção que o sistema dispensa às empresas de medicamentos genéricos e aos utentes de medicamentos, que são também consumidores de medicamentos[12].

Quer dizer, as empresas titulares de patentes têm de suportar que o utente de medicamentos tenha acesso amplo a informação sobre os preços de medicamentos e a optar, segundo os seus interesses, por medicamentos comercializados por empresas de medicamentos genéricos.

Todavia, neste caso, o sistema tem que corresponder de modo a que os interesses das empresas titulares de patentes não sejam defraudados com o funcionamento do sistema de compromisso encontrado pelo legislador.

Quanto à questão do cálculo remetido para incidente de liquidação.

Na formulação do petitório, as demandantes concretizam apenas o pedido de condenação da demandada no pagamento de sanção pecuniária compulsória, pedido este em que – sem reacção por parte delas – decaíram.
Quanto ao mais, limitaram-se a quantificar a percentagem que reclamam relativamente ao lucro obtido por parte da demandada com as vendas dos seus medicamentos genéricos de ... até à data da propositura da acção. Em tudo o mais (valor assim apurado e o valor o obtido até à data da caducidade da patente EP…), as demandantes remeteram o respectivo cálculo para incidente de liquidação.

De resto, não nos parece ter sido possível o cálculo das quantias em causa, em razão da causa de pedir, pois as mesmas têm por baliza temporal a data da caducidade da patente em causa, ocorrência que ainda não se tinha verificado à data da propositura da acção no tribunal arbitral.

Por isso, é perfeitamente compreensível o pedido ilíquido (genérico) e a sua liquidação ulterior no incidente próprio, admissível, como se sabe, em sede declarativa. 
Decalcando o anterior artigo 661º/2 do CPC o artigo 609/2 CPC estabelece que: “Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo na condenação imediata na parte que já seja liquida.”

Neste domínio a Jurisprudência tem vindo a alargar a sua visão e a admitir a liquidação onde precedentemente a inviabilizava, o que levava mesmo à absolvição do R..

O Ac STJ de 30.04.2014[13], citado aliás pelo tribunal recorrido, dá-nos conta da evolução jurisprudencial neste âmbito.

O mesmo exercício encontramos no Código de Processo Civil Anotado[14], de molde que se tem por jurisprudência dominante aquela que vai no sentido de a condenação genérica pode ter lugar em casos em que os danos já ocorreram.

De todo o modo, apesar da divergência jurisprudencial, dir-se-á que, como denominador comum, temos que  não se poderá lançar mão do incidente de liquidação quando, na ação declarativa, não tenha resultado provada a existência de danos.
Nesse caso, como se destaca em paráfrase no citado Acórdão do STJ, formou-se caso julgado material quanto à inexistência de danos, não podendo a questão voltar a ser discutida.

Ora, esse requisito é inegável existir no caso dos autos, sendo de notar que, à data da propositura da acção, ainda não eram conhecidos com exactidão sequer os factores do cálculo, por serem desconhecidos nomeadamente os lucros efectivos da demandada com a venda do seu medicamento genérico ....

Igualmente se desconhece a posição relativa dela (quota) no mercado desse medicamento genérico visto que existem outras empresas que o comercializam.

Portanto, perante a decisão recorrida, há um conjunto de dados cujo desconhecimento, a nosso ver, impedirá uma condenação num valor líquido mas que, a não virem ulteriormente a ser ponderados em incidente de liquidação, conduziriam a um resultado, quanto a nós, injusto.

Embora não determinante poder-se-á aduzir o argumento que parece emergir da citada doutrina no sentido de que, por efeito das alterações legislativas, a deslocação da liquidação da fase executiva para a fase declarativa – enquanto momento de definição do direito  - aponta no sentido da maior viabilidade de uma discussão alargada e não tão restrita como a que teria cabimento em sede de executiva.
Portanto, louvando-nos na citada jurisprudência e doutrina, parece-nos ser de confirmar a decisão recorrida.

III.DECISÃO.
Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, na improcedência da apelação, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela demandada.


Lisboa, 19 de Setembro de 2017


Maria Amélia Ribeiro
Dina Monteiro
Luis Espírito Santo


[1]Sublinhados acrescentados.
[2]N.º 02/INFARMED/SPMS.
[3]Referenciado, aliás, pelas demandantes nas contra-alegações.
[4](Manual for Complex Litigation, Fourth, § 11.493, p. 102 (Disponível em https://public.resource.org/scribd/8763868.pdf, consultado em 04.03.2012, 08h), apud http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-137/.
[5]Taruffo, Michelle. Sobre as Fronteras. Escritos sobre la Justicia Civil. Bogotá: Editorial Themis, 2006, p. 314-315, apud http://www.frediedidier.com.br/editorial-137/.
[6]Menezes Leitão, Luís Manuel Telles de, 2005, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Estudo Dogmático Sobre a Viabilidade da Configuração Unitária do Instituto face à Contraposição entre as Diferentes Categorias de Enriquecimento Sem Causa, Coimbra, Almedina, p. 963.
[7]Ob. Cit., p. 765.
[8]Ob. Cit., p. 785.
[9]Ob. Cit., p. 786.
[10]Ob. Cit, p. 788.
[11]P. 1090, v.
[12]Artigos 19.º, 120.º e 120.º-A do Estatuto do Medicamento, e artigo 14.º da Portaria n.º 137-A/2012, de 11.05.
[13]Relatado pelo Excelentíssimo Conselheiro Mário Morgado – publicado pelo IGFEJ.
[14]Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Vol. II, Coimbra, Almedina, 3ª Ed, pp. 715 a 718. e