Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
CONTRATO DE FORNECIMENTO
CONTRATO MISTO
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE
Sumário
I.–Contratos mistos são aqueles em que se reúnem elementos de dois mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei, dando-se a fusão num só negócio, de elementos contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do conteúdo deste. II.–Para que as diversas prestações a cargo de uma das partes façam parte de um só e mesmo contrato, e não de dois ou mais contratos, é necessário que eles integrem um processo unitário e autónomo de composição de interesses. III.–O contrato de fornecimento reconduz-se, em regra, a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respetivo preço. IV.–Apesar de o art. 395º, nº 1, do C.Com. dispor que «o empréstimo mercantil é sempre retribuído», nada impede que o credor prescinda dessa remuneração, pelo que pode haver contrato de empréstimo mercantil não retribuído, ou seja, sem vencer juros. V.–Nos arts. 312º a 317º do CC encontram-se previstas as chamadas presunções presuntivas, também conhecidas de curto prazo, que se fundam na presunção de cumprimento, a qual pode ser ilidida, ainda que apenas e só por via de confissão extrajudicial (caso em que só releva se for feita por escrito) ou judicial (caso em que tanto vale a confissão expressa como a tácita) do devedor. VI.–O efeito da prescrição presuntiva não é, propriamente, a extinção da obrigação, mas antes a inversão do ónus da prova, que deixa de onerar o devedor que, por isso, não tem de provar o pagamento, para ficar a cargo do credor, que terá de demonstrar o não pagamento, o que, como referido, apenas por confissão do devedor pode fazer. VII.–A razão de ser da prescrição de curto prazo prevista no art. 310º, al. g), do CC, está em evitar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, assim se protegendo o devedor de uma acumulação de mensalidades ou anuidades em dívida, que, enquanto dívida de capital, passível de exigência numa prestação única, seria passível de trazer a ruína ou, ao menos, uma onerosidade não calculada ao devedor. VIII.–As obrigações duradouras distinguem-se: -em prestações de execução continuada, aquelas cujo cumprimento se prolonga ininterruptamente no tempo; -em prestações reiteradas, periódicas ou com trato sucessivo, aquelas que se renovam em prestações singulares sucessivas por via de regra ao fim de períodos consecutivos. IX.–São obrigações fracionadas ou repartidas aquelas cujo cumprimento se protela no tempo, através de sucessivas prestações instantâneas, mas em que o objeto da prestação está previamente fixado, sem dependência da relação contratual. X.–A prescrição de 5 anos a que alude o art. 310º, al. g), do CC, vale apenas para as prestações duradouras de natureza reiterada ou periódica. XI.–As prestações fracionadas ou repartidas caem no âmbito da prescrição ordinária de 20 anos prevista no art. 309º do CC. XII.–São, em princípio, válidas (art. 344º, nº 1, do CC) as cláusulas contratuais que afastam a presunção legal de culpa do devedor, impondo, consequentemente, ao credor o ónus da prova da culpa do devedor, ainda que se traduzam, frequentemente, em autênticas cláusulas de irresponsabilidade, atenta a dificuldade prática do credor em fazer essa prova. XIII.–Tais cláusulas constituem uma forma de repor, por iniciativa das partes, as regras gerais sobre o ónus da prova (art. 342º), desfazendo a presunção legal consagrada no art. 799º, do CC. XIV.–Pelo mútuo, uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, obrigando-se esta a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade e, dada essa fungibilidade, a coisa emprestada confunde-se no património do mutuário; logo, a coisa mutuada torna-se, pelo facto da entrega do mutuante, propriedade do mutuário. XV.–Donde, o mutuário não ter de invocar a usucapião para justificar a propriedade do dinheiro recebido, o que não significa que se extinga a prestação a que se obrigou da sua restituição. XVI.–A fixação de uma cláusula de reserva de propriedade faz nascer na esfera jurídica do adquirente uma expectativa real de aquisição, a qual lhe permitirá gozar, em nome próprio, de todas as faculdades que assistem ao proprietário até ocorrer o tal evento futuro. XVII.–Nesse caso, a transferência da propriedade da coisa objeto do contrato fica sujeita a uma condição suspensiva ou a um termo inicial. XVIII.–Sempre que o evento futuro é o pagamento do preço, a condição é sui generis, tratando-se de uma condição potestativa a parte debitoris; no entanto, de uma condição. XIX.–O caráter sui generis de uma tal condição permite a afirmação de que o adquirente, ainda que conhecendo a reserva de propriedade, tem já o animus possidendi próprio do titular de um direito real
(Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº 3, do CPC)
Texto Integral
Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
1–RELATÓRIO:
JMV - José Maria ..., S.A., intentou a presente ação declarativa comum contra ... – Pastelarias, Geladarias e Pão, LDA.[1], Fernanda Maria da ... ... ... ..., Martinho ... ... ..., e Maria ... da ... ... ..., alegando, em suma, que por contrato celebrado no dia 6 de agosto de 1997, denominado “Contrato de Comércio 132/LX97/62[2], a ré sociedade ..., Lda. se comprometeu a adquirir-lhe 3.600 quilos de café de marca ... - Lote Moinho Imperial, em frações mínimas mensais de 60 quilos.
No âmbito do mesmo contrato, a autora:
- emprestou à sociedade ..., Lda., a título gratuito, a quantia de € 7.481,96, para investimento direto em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial, a qual, por sua vez, se obrigou a restituir-lhe tal quantia no termo final do contrato.
- vendeu à sociedade ..., Lda., uma máquina e dois moinhos de café e um termo de leite, no montante global de € 3.866,30, tendo reservado para si a propriedade de tais bens até ao seu integral pagamento;
Mais se convencionou nesse contrato que se a sociedade ..., Lda., por facto culposo da sua parte, não efetuasse compras de café durante três meses, ou não realizasse um mínimo trimestral de compras de 180 quilos de café (em dois tri...s seguidos ou interpolados), ou não pagasse duas quaisquer faturas vencidas no prazo de 8 dias a contar dos seus vencimentos, isso daria à autora o direito de:
- resolver o contrato;
- reclamar uma indemnização equivalente a 20% do valor do café prometido e não adquirido;
- exigir a restituição imediata e integral da quantia mutuada:
- exigir a restituição dos bens ou o pagamento do seu preço, como melhor lhe aprouvesse.
Ainda nesse contrato, os 2º a 4º réus declararam-se pessoal e solidariamente responsáveis pelo exato e fiel cumprimento das obrigações que dele decorressem para a sociedade ..., Lda..
Acontece que desde o início de vigência do contrato e até junho de 1998, a sociedade ..., Lda., apenas adquiriu à autora 120 quilos de café, sendo que, desde então, não mais lhe adquiriu qualquer quantidade daquele produto.
Mediante carta enviada aos réus com data de 27 de julho de 2015, a autora declarou resolvido o contrato.
Até ao presente, a autora não recebeu as quantias reclamadas naquela carta.
A autora conclui pedindo:
1)-que seja declarada a resolução do contrato;
2)-que os réus sejam condenados:
2.1)-a restituir-lhe a quantia que emprestou à ré, no montante de € 7.481,96;
2.2)-a pagar-lhe a quantia de € 3.866,30, correspondente ao preço dos bens que vendeu à sociedade ..., Lda.;
2.3)-a pagar-lhe a quantia de € 18.792,00, a título de indemnização pelo incumprimento contratual por parte da sociedade ..., Lda., abatida a bonificação de € 378,27, a que esta teve direito pelas compras de café efetuadas.
*
Os 2º a 4º réus contestaram, começando por invocar a exceção perentória de prescrição do direito que a autora pretende fazer valer através desta ação e, no mais, defendendo-se por impugnação.
Além disso, a ré Maria ... deduziu reconvenção contra a autora, alegando que adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade:
- sobre a quantia por esta mutuada à ré sociedade ..., Lda.;
- sobre os bens acima referidos.
Os réus concluem a contestação pugnando para que:
a)-sejam «considerados prescritos os peticionados créditos, quer quanto à Ré Sociedade, quer quanto aos Réus»; caso assim se não entenda,
b)-sejam os réus «absolvidos do pedido indemnizatório porquanto o incumprimento do contrato promessa de compra e venda não se deveu a culpa da Sociedade Ré, nem tal foi alegado»; caso também assim se não entenda,
c)-seja «reconhecido à ré MARIA ... DA ... ... ..., o direito de aquisição por usucapião da quantia de € 7.481,96 (sete mil quatrocentos e oitenta e um euros e noventa e seis cêntimos)»;
d)-seja ainda reconhecido à mesma ré «a aquisição por usucapião dos bens constantes da factura nº 18757 de 06 de Agosto e que são os seguintes: Uma Máquina de café ..., dois moinhos de café ... e um termo de leite de café ...) no valor global de € 3.866,30».
*
Notificada nos termos do despacho datado de 17 de novembro de 2016, com a Refª 360156426, para, em dez dias, exercer o direito ao contraditório relativamente:
- à matéria de exceção invocada pelos réus;
- à reconvenção deduzida pela ré Maria ...,
a autora nada disse.
*
Após a realização da audiência prévia teve lugar a audiência final, na sequência do que foi proferida sentença que:
1–Em sede de questão prévia declarou extinta a presente instância, nos termos do art. 277º, al. e), do CPC, relativamente à ré sociedade ..., Lda., por inutilidade superveniente da lide[3];
No mais:
2–Julgou improcedente a exceção perentória de prescrição invocada pelos réus, concluindo pela inaplicabilidade, ao caso concreto, do prazo prescricional de dois anos a que alude a al. b) do art. 317º do CC;
3–Julgou a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, em consequência do que:
3.1–Reconheceu que a autora operou validamente a resolução do contrato;
3.2–Condenou os réus Fernanda Maria ..., Martinho ... e Maria ..., a pagarem solidariamente à autora a quantia de € 29.761,99, acrescida de juros de mora à taxa supletiva comercial de 8%, contados desde as datas das respetivas citações, até efetivo e integral pagamento.
4–Julgou o pedido reconvencional deduzido pela ré Maria ... improcedente, por não provado, dele absolvendo a autora.
*
Inconformados com o assim decidido, os 2º a 4º réus interpuseram recurso de apelação, concluindo as respetivas alegações do seguinte modo:
«1.ª –Na cláusula 12ª do escrito que formalizou o contrato, foi convencionado:
“Se a representada da Segunda Outorgante – por facto culposo – não efectuar compras de café durante três meses, ou não realizar um mínimo trimestral de compras de cento e oitenta (180) quilos de café – em dois tri...s seguidos ou interpolados – ou não pagar quaisquer facturas vencidas no prazo de oito (8) dias, a contar dos vencimentos, poderá a Primeira Outorgante resolver o contrato, reclamar indemnização em montante equivalente a vinte por cento (20%) do valor do café prometido e não adquirido, restituição integral e imediata da quantia mutuada e restituição dos bens ou pagamento do seu preço como melhor aprouver à Primeira Outorgante, podendo também a Segunda Outorgante resolver o contrato em caso de incumprimento culposo da Primeira Outorgante”.
2.ª –Assim sendo só o incumprimento culposo por parte dos Réus poderia dar causa à resolução do contrato, incumprimento culposo que, de acordo com a cláusula do contrato livremente celebrado, tinha de ser especificadamente, alegado e justificado por parte da A., como causa de resolução do contrato, verificando-se, neste caso, a inversão do ónus da prova.
3.ª –Como se verifica no pedido e na factualidade dada como provada, a A. não alegou como causa de resolução do contrato o incumprimento CULPOSO, por parte da 1.ª Ré que, nos termos das cláusulas contratuais não se pode presumir.
4.ª –Quanto à prescrição do exercício do direito dá-se por reproduzido o alegado em I - nas als. A) a M) das presentes alegações que reproduzem a contestação dos Recorrentes no que à excepção da Prescrição diz respeito.
5.ª –A A. foi notificada, por despacho de 17.11.2011, para no prazo de dez dias responder às mencionadas excepções aduzidas pelos RR., ora Recorrentes, com a advertência de que, nada dizendo, terá o efeito cominatório previsto no art.º 587º do CPC.
6.ª –Preceitua o artigo 587.º do CPC que: 1- A falta de apresentação da réplica ou a falta de impugnação dos novos factos alegados pelos Réus têm o efeito previsto no artigo 574.º.
7.ª –Preceitua o artigo 574º /2 do CPC “ Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito, o que não é o caso.
8.ª –Assim sendo tem que ser dado como prescrito o direito que a Autora pretende fazer valer.
9.ª –Violando, neste aspecto, a sentença recorrida o preceituado nos art.ºs 587.º/ 2 e 574.º/2 do CPC.
Sem prejuízo do seguinte:
10.ª –Os Réus vieram invocar, em pedido reconvencional, a usucapião relativamente à quantia mutuada de € 7.481,96 euros que entraram no património da Ré, Maria ... da ... ... ..., através do endosso do cheque emitido pela Autora em nome da Sociedade ..., Lda., que lhe foi endossado pela Ré Fernanda, a seu pedido, tendo-o depositado na sua conta bancária, logo em Agosto de 1997. Porém, a referida importância não veio a ser usada no investimento e bens de equipamento no estabelecimento comercial mas sim usada em proveito próprio, dela Ré ..., que fez seus os referidos € 7.481,96, tendo usado a referida importância, como se dona fosse, nos gastos do seu dia-a-dia, alimentação, vestuário, despesas médicas, tendo sido com este dinheiro que, nomeadamente, pagou as viagens e despesas de instalação na Suíça, como o arrendamento da casa onde ficou, electricidade, água, alimentação.
11.ª –Nos termos do artigo 1299.º do CC a usucapião de coisas móveis não sujeitas a registo adquirem-se por usucapião, quando a posse, independentemente da boa-fé e independentemente de título tiver durado seis anos.
12.ª –A A. não impugnou estes factos que, nos termos do artigo 574º/2 do CC, têm de ser admitidos por acordo.
Acrescendo:
13.ª –Ter sido dado como provado, preto no branco, na sentença (22) que a quantia de €7.481,96 foi paga pela Autora à 1° Ré através de cheque bancário, o qual foi endossado pela 2° Ré Fernanda ... a favor da ré Maria ... Maria ..., que depositou aquela quantia na sua conta bancária (em Agosto de 1997), utilizando-a em proveito próprio.
14.ª –Violou aqui a sentença recorrida, o preceituado nos artigos 587.º/2 e 574.º/2 do CPC e 1287.º e 1299.º do CC.
15.ª –O mesmo acontece quanto aos bens constantes da factura 18757, a saber: Uma Máquina de café ..., dois moinhos de café ...e um termo de leite de café ..., relativamente aos quais, quando da cedência do estabelecimento a terceiros, a Ré ..., porquanto foi ela que acordou no negócio, informou o cessionário de que os bens não estavam pagos e que a A. tinha reserva de propriedade sobre os mesmos e que se pretendessem ficar com os mesmos teriam de pagar o preço à Autora. Como o cessionário recusou-se a ficar com os bens nessas condições, a Ré ... retirou-os do estabelecimento e levado para sua casa, notificando a A telefonicamente, através de um seu funcionário de nome Casimiro, que sempre agiu em nome da A. e em sua representação, de que os deveria vir buscar.
16.ª –A Autora não veio buscar os bens, embora instada para o efeito, presumindo a Ré ... que esta não os queria, razão pela qual os manteve na sua posse, como se dona fosse, considerando-os como seus, até ao Verão de 2012, em que, por se encontrarem totalmente deteriorados, porque enferrujados e inaptos para o fim a que se destinava, os deitou fora, na qualidade de dona.
17.ª –Pese embora a falta de impugnação por parte da A. seja causa de reconhecimento do pedido de usucapião deduzido pela Ré, também, quanto a estes factos foi dado como provado na sentença (13) que a 4° Ré informou os terceiros de que os bens “máquina de café de marca ..., dois moinhos de café de marca ... e um termo de leite ...” não se encontravam pagos à Autora, tendo aqueles se recusado a ficar com os objectos naquelas condições.
E que a 4° Ré retirou os mencionados objectos do estabelecimento comercial e levou-os para um armazém da propriedade de Paulo G..., informando telefonicamente a Autora, através de um funcionário de nome Casimiro, para os ir buscar. A Autora não foi buscar aqueles bens, tendo a ré Maria ... mantendo-os como se fossem seus até ao Verão de 2012, altura em que os deitou fora por se encontrarem deteriorados.
18.ª –Assim sendo deveria o tribunal ter considerado procedente o pedido de aquisição, baseado no direito de usucapião, sobre os referidos bens.
19.ª –Violando aqui, a sentença recorrida, o preceituado nos artigos 587.º/2 e 574.º/2, do CPC e 1287.º e 1299.º do CC.
Por outro lado:
20.ª –Os Réus e Recorrentes estão a ser demandados com base na fiança que prestaram em favor da 1.ª Ré, garantindo o bom cumprimento do sistema de três contratos alegados pela Autora, limitado o primeiro pedido à cláusula penal com o montante de 20% do preço do café prometido adquirir pela devedora principal, mas que o não contratou, nos termos e nos prazos do contrato-promessa.
21.ª –Ora, qualquer cláusula penal, e esta que foi subscrita pelos Réus, fiadores não foge à regra, pressupõe e tem de ter como base, para ser exigível, e perante o contrato-promessa celebrado entre Autora e 1.ª Ré que esta promitente, pelo facto da não realização dos contratos prometidos, tenha sofrido danos que lhe determinaram um prejuízo, cujo montante ficou prédefinido na dita cláusula penal.
22.ª –Contudo, a Autora não alegou, e por isso não provou, ter sofrido quaisquer danos, em virtude da 1.ª Ré não ter cumprido o contrato-promessa de aquisição de certas quantidades de café mensais.
23.ª –Lugar teórico este da aplicação do direito ao caso, cuja solução foi enviesada pelo erro do julgamento da matéria de facto que consistiu em ter sido dada como firme, e não somente prometida, a aquisição do café, pela 1.ª Ré.
24.ª –Mas, este item da matéria assente pode e deve ser corrigido, porque o texto do contrato-promessa é claro, no sentido que aqui se aponta, e nenhuma notícia há no processo, ou que tenha decorrido da discussão da causa, no sentido de Autora e 1.ª Ré não terem celebrado um contrato-promessa, mas um contrato firme, por ex., contrato programa de fornecimento de matérias primas do comércio da restauração.
25.ª –Por conseguinte, a cláusula penal, para além de não pode funcionar, por deficiente alegação da Autora, também, em si mesma, constitui um absurdo: a indemnização cujo limite estabelece não pode ser calculada a partir do preço do café não fornecido, porque, em boa verdade, não chegou e emergir na ordem jurídica o contrato prometido de aquisição do dito café.
26.ª –Nesta ordem de ideias, a cláusula, em si mesma, deveria ter sido dada como não escrita, circunstância que reconduz o problema jurídico da lide justamente a um puro e simples défice de alegação de prejuízos decorrentes do não cumprimento do contrato-promessa de aquisição da matéria-prima em causa, para o comércio da restauração.
27.ª –De qualquer forma, no sistema contratual alegado pela Autora não foi estabelecido um termo final para o conjunto das obrigações principais e, nestas circunstâncias, os art.ºs 640.º/b e 648.º/c/e do CC. (a primeira destas disposições legais invocadas, porque a 1.ª Ré foi excluída da lide, por dissolução intercalar), permitem a hegemonia da liberação dos fiadores.
28.ª –Nestes termos, na presente acção (e com toda a clareza, tanto através da impugnação do pedido por prescrição, quer através do pedido de reconvenção com base no usucapião do dinheiro e mercadoria em proveito da Ré Maria ...) os Réus fiadores apresentaram em juízo uma preensão liberatória.
29.ª –Assim, com base nas disposições legais citadas, em vez de terem sido condenados, deveriam ter sido absolvidos do pedido, por livres da fiança.
30ª –A exclusão da ré sociedade ..., Lda. da lide só foi reconhecida na sentença daí que, os Recorrentes estejam em tempo para arguir a extinção da fiança com base neste fundamento e correspondente preceito legal que o justifica.
31.ª –Não julgando sob este propósito, a sentença recorrida infringiu ainda os art.ºs 640.º/b e 648.º/c/e do CC.
32.ª –Neste contexto (ii desta minuta) e antes de mais, a pretensão da Autora nunca poderia ter vencimento quanto ao pedido de pagamento da cláusula penal, por não ter alegado que danos sofreu (e se os sofreu), em termos de poderem ser estimados, porque, para a procedência, o exigia o art.º 811.º/3 do CC, na red. dada pelo DL 262/83, de 16/06.
Termos em que:
I –Devem ser considerados prescritos os peticionados créditos, quer quanto à Ré Sociedade, quer quanto aos Réus.
II –Se assim não se entender devem os Réus ser absolvidos do pedido indemnizatório porquanto o incumprimento do contrato promessa de compra e venda não se deveu a culpa da Sociedade Ré, nem tal foi alegado.
III –Se ainda assim também não se entender, deve ser reconhecido à Ré Maria ... da ... ... ... o direito de aquisição por usucapião da quantia de € 7.481,96 (sete mil quatrocentos e oitenta e um euros e noventa e seis cêntimos).
IV –Bem como a aquisição por usucapião dos bens constantes da factura nº 18757 de 06 de Agosto e que são os seguintes: uma máquina de café ..., dois moinhos de café ... e um termo de leite de café ...) no valor global de € 3.866,30.
V –Ainda assim, os Réus devem ser tidos como libertos da fiança – base do pedido formulado pela Autora – nos termos do disposto nos art.ºs 640.º/b e 648.º/c/e do CC, encarada a solução como ínsita na lógica da defesa, por excepção e reconvenção, que apresentaram em tempo oportuno.
VI –De qualquer forma, os factos dados como provados não bastam para a condenação dos Réus, no que diz respeito ao pedido da Autora baseado na cláusula penal, adjacente ao sistema de contratos alegados na petição inicial, porque não foram alegados e, por isso, não ficaram provadas as circunstâncias de dano e prejuízo determinado pelo incumprimento do contrato-promessa de aquisição de café, por parte da 1.ª Ré, excluída da lide».
*
A autora apresentou contra-alegações as quais, conclui pugnando para que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
*
2 –ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio,é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do CPC) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, nº 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627º, nº1, 631, nº1 e 639º, do CPC).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, nº 3, do CPC) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608º, nº 2, do CPC, ex vi do art. 663º, nº 2, do mesmo diploma).
No caso sub judice, não constituindo, como se disse, o presente recurso, uma via jurisdicional para alcançar decisões novas, mas apenas, se disso for o caso, modificar a decisão recorrida, e não apreciar questões não decididas pelo tribunal a quo, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentado pelos apelantes que o objeto da presente apelação está circunscrito às seguintes questões:
2.1 –Da prescrição do direito que a autora/apelada pretende fazer valer através da presente ação;
2.2 –Da culpa da sociedade ..., Lda., quanto ao incumprimento do contrato que a ligava à autora, celebrado no dia 6 de agosto de 1997, intitulado «CONTRATO DE COMÉRCIO 132/LX97/62», cuja cópia de encontra a fls. 9-10 dos autos;
2.3 –Da aquisição por usucapião, a favor da apelante Maria ..., do direito de propriedade:
2.3.1 –sobre o dinheiro emprestado pela apelada à sociedade ..., Lda., nos termos das cláusulas 5ª a 7ª daquele contrato;
2.3.2. –sobre os equipamentos vendidos pela apelada à sociedade ..., Lda., nos termos das cláusulas 8ª a 10ª daquele contrato.
As demais questões suscitadas pelos apelantes nas conclusões da sua alegação de recurso, por constituírem matérias novas, não submetidas à apreciação do tribunal a quo, logo, pelo mesmo não decididas, não serão objeto de análise no âmbito do presente recurso.
*
3 –FUNDAMENTAÇÃO:
3.1 –Fundamentação de Facto:
Com relevância para a decisão das questões acima elencadas, são os seguintes os factos a considerar:
1. –A autora dedica-se à venda por grosso de cafés, bebidas espirituosas e outros produtos congéneres;
2. –A sociedade ..., Lda., era uma sociedade por quotas, que tinha por objeto a pastelaria, geladaria e venda de pão;
3. –Pela Insc. 2 – Ap. 7/20081119, foi registada na Conservatória do Registo Comercial a dissolução e encerramento da liquidação daquela sociedade;
4. –(...) e pela Insc. 3 – Ap. 7/20081119, foi registado cancelamento da sua matrícula;
5. –A sociedade ..., Lda., tinha como únicas sócias, a ré Fernanda Maria e a ré Maria ...;
6. –(...) sendo a sua gerência exercida pela ré Fernanda Maria[4];
7. –A ré Maria ... é mãe da ré Fernanda Maria;
8. –A ré Fernanda Maria aceitou ser sócia gerente da sociedade ..., Lda. a pedido da sua mãe;
9. –(...) sendo esta, no entanto, que quem estava à frente do negócio e gerência do estabelecimento;
10. –O réu Martinho ... e a ré Maria ... são casados um com o outro;
11. –No dia 6 de agosto de 1997, entre a autora e a sociedade ..., Lda., representada pela ré Fernanda Maria, foi realizado o acordo escrito cuja cópia se encontra a fls. 9-10, intitulado «CONTRATO DE COMÉRCIO 132/LX97/62»;
12. –A cláusula 1ª daquele acordo tem a seguinte redação: «A PO[5] promete vender à representada da SO[6] três mil e seiscentos (3.600) quilos de café “... – Lote Moinho Imperial”, em frações mensais mínimas de sessenta (60) quilos, aos preços de tabela às datas das vendas efectivas, sendo o preço de tal café, actualmente, de três mil seiscentos e cinquenta escudos (3.650$00) por quilo;
13. –A cláusula 5ª do contrato tem a seguinte redação: «A PO empresta à representada da SO, a título gratuito, a quantia de um milhão e quinhentos mil escudos (1.500.000$00[7]) para investimento directo, em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial sito na Est... N... nº ...9 – Nº ... - S... F... – Montijo»;
14. –A cláusula 6ª do contrato tem a seguinte redação: «A obrigação de restituição da quantia mutuada vencer-se-á na data do termo final deste contrato»;
15. –A cláusula 7ª do contrato tem a seguinte redação: «A SO aceita o mútuo nos termos exarados e declara ter recebido, para a sua representada, nesta data (6 de Agosto de 1997), a referida quantia de um milhão e quinhentos mil escudos (1.500.000$00)»;
16. –A cláusula 8ª do contrato tem a seguinte redação: «A PO vende à representada dos SO os bens mencionados na Factura número 18757 de 06 de Agosto d 1997 – da qual se apensa cópia que aqui fica dada por reproduzida – pelo preço global se setecentos e setenta e cinco mil cento e vinte e cinco escudos (775.125$00[8]) – com I.V.A. incluído – reservando para si a propriedade dos mesmos até ao seu integral pagamento»;
17. –Os bens mencionados naquela fatura são uma máquina de café de marca ..., modelo 95C7; dois moinhos de café de marca ... (modelo 60ª) e um termo de leite ... (6 LT. 17658);
18. –A clausula 9ª do contrato tem a seguinte redação: «A obrigação de pagamento do preço vencer-se-á na data do termo final deste contrato»;
19. –A cláusula 10ª do contrato tem a seguinte redação: «A SO declara comprar para a sua representada, os bens referidos no número 8 (...)»;
20. –A cláusula 12ª do contrato tem a seguinte redação: «Se a representada da Segunda Outorgante – por facto culposo – não efectuar compras de café durante três meses, ou não realizar um mínimo trimestral de compras de cento e oitenta (180) quilos de café – em dois tri...s seguidos ou interpolados – ou não pagar quaisquer facturas vencidas no prazo de oito (8) dias, a contar dos vencimentos, poderá a Primeira Outorgante resolver o contrato, reclamar indemnização em montante equivalente a vinte por cento (20%) do valor do café prometido e não adquirido, restituição integral e imediata da quantia mutuada e restituição dos bens ou pagamento do seu preço como melhor aprouver à Primeira Outorgante, podendo também a Segunda Outorgante resolver o contrato em caso de incumprimento culposo da Primeira Outorgante»;
21. –A cláusula 13ª do contrato tem a seguinte redação: «A representada da SO poderá obstar à resolução, se comprar – e pagar simultaneamente – o café prometido em venda e ainda não adquirido, no prazo de 30 dias, contado da data de comunicação resolutória»;
22. –A cláusula 15ª do contrato tem a seguinte redação: «A SO[9] e os TO[10] responderão – pessoal e solidariamente com a sua representada – pelo exacto e fiel cumprimento das obrigações por esta assumidas, quer derivem directamente do contrato ou na sua resolução»;
23. –A cláusula 16ª do contrato tem a seguinte redação: «Este contrato terá termo inicial no dia 06 de Agosto de 1997, e termo final quando a totalidade do café prometida em venda houver sido integralmente adquirida»;
24. –Entre agosto de 1997 e junho de 2008 a sociedade ..., Lda., comprou à autora 120 dos 3.600 que se havia comprometido a adquirir;
25. –A partir de julho de 1998, a sociedade ..., Lda., deixou de adquirir café à autora;
26. –No verão de 1998 foi ponderada pelo réu Martinho ... a cessão, a António J... e Ana C... F..., do estabelecimento comercial da sociedade ..., Lda., sito na Rua C... R..., Lote 1..., ...º Direito, na M...[11];
27. –A ré Maria ... informou os referidos António J... e Ana C... F... que a máquina de café de marca ..., os dois moinhos de café de marca ... e o termo de leite ..., não se encontravam pagos à autora;
28. –(...) por essa razão os referidos António J... e Ana C... F... recusaram ficar com aqueles objetos em seu poder;
29. –A ré Maria ... retirou os mencionados objetos do estabelecimento comercial referido em 26. e levou-os para um armazém propriedade de Paulo G...;
30. –(...) e informou telefonicamente a autora, através de um funcionário de nome Casimiro, para os ir buscar;
31. –A autora não foi buscar aqueles bens, pelo que a ré Maria ... os manteve em seu poder, como se fossem seus, até ao Verão de 2012;
32. –(...) altura em que os deitou fora por se encontrarem deteriorados;
33. –A autora enviou aos réus, registada e com aviso de receção, e datada de 27 de julho de 2015, a carta cuja cópia se encontra a fls. 13, da qual consta, além do mais, o seguinte:
«Assunto: Resolução de Contrato de comércio 132/LX97/62
(...)
Vimos, por este meio, em relação ao contrato de fornecimento de café nº 132/LX97/62, DE 6 DE Agosto De 1997, notifica-los de que o resolvemos/anulámos nos termos do disposto no seu número 12, com base no facto de desde, pelo menos, Junho de 1998 não ter efectuado compras de café ... nos termos acordados.
Queiram V. Exas., consequentemente:
1. –Proceder à restituição da quantia que lhe foi adiamantada no valor de € 7.481,96;
2. –Proceder ao pagamento dos bens que lhe foram vendidos no valor de € 3.866,30;
3. –Proceder ao pagamento da indemnização no valor de (3600 – 120) x € 27.00 x 20% = € 18.792,00 abatido da bonificação a que teve direito pelas compras de café efectuadas no valor de € 376,27;
4. –Tudo no montante global de (€ 7.481,96 + € 3.866,30 + € 18.792,00 – € 378,27 =) € 29.762,00;
Notificamos ainda v. Exas., de que poderão, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias contados da data de recepção, proceder à compra – e respectivo pagamento – de 3480 quilos de café, evitando, desse modo, os efeitos da resolução referenciados supra»;
34. –Os réus não responderam a tal carta nem pagaram as quantias nela reclamadas;
35. –O preço do quilo de café na data da celebração do contrato era de € 18,21;
36. –Atentas as oscilações do mercado de consumo, no ano de 2015 o preço do quilo de café era de € 27,00;
37. –A quantia de € 7.481,96 foi paga pela autora à sociedade ..., Lda., através de cheque bancário;
38. –Esse cheque foi endossado pela ré Fernanda Maria a favor da ré Maria ..., que depositou aquela quantia numa sua conta bancária, em Agosto de 1997, utilizando-a em proveito próprio.
*
3.2 –Fundamentação de direito:
Atentemos, antes de mais, na natureza do contrato sub judice, que as partes outorgantes denominaram como «Contrato de Comércio 132/LX97/62», sendo certo que, independentemente do nomen iuris que é dado aos contratos, na sua interpretação e qualificação, o que realmente conta é a vontade dos contratantes, expressa nas respetivas declarações negociais, entendidas estas com o sentido captável pelo declaratário normal, colocado no real circunstancialismo negocial. Dispõe o art. 405º, do CC:
«1.-Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.
2.-As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei».
Este artigo consagra, tal como resulta da sua epígrafe, o princípio da liberdade negocial ou da autonomia privada, de cujo afloramento prático se destaca, pela sua frequência, e dentro da categoria dos contratos atípicos, a possibilidade de as partes celebrarem contratos mistos.
Diz-se misto, de acordo com a lição de Antunes Varela, «o contrato no qual se reúnem elementos de dois mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei. Em lugar de realizarem um ou mais dos tipos ou modelos de convenção contratual incluídos no catálogo da lei (contratos típicosou nominados), as partes, porque os seus interesses o impõem a cada passo, celebram por vezes contratos com prestações de natureza diversa ou com articulação de prestações de diferentes da prevista na lei, mas encontrando-se ambas as prestações ou todas elas compreendidas em espécies típicas directamente reguladas na lei.»[12].
Nos contratos mistos, afirma o Autor, «há a fusão, num só negócio, de elementos contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do conteúdo deste.
O problema de maior delicadeza na qualificação jurídica e na fixação do regime destas espécies negociais de múltiplas prestações consiste em saber se nelas existem dois ou mais contratos (típicos ou atípicos), substancialmente correlacionados entre si, ou se há, pelo contrário, um só contrato atípico, de diversas prestações.
(...)
Para que as diversas prestações a cargo de uma das partes façam parte de um só e mesmo contrato, e não de dois ou mais contratos, é necessário que eles integrem um processo unitário e autónomo de composição de interesses.
Não são as partes que decidem, dentro ou fora das cláusulas do contrato, sobre a qualificação singular ou plural do acordo por elas estabelecido, à luz do pensamento sistemático denunciado na classificação e definição dos diferentes contratos típicos que as dúvidas na matéria hão-de ser solucionadas.»[13].
Ainda segundo Antunes Varela, «o primeiro passo a dar, na resolução de qualquer problema de regime suscitado por um contrato misto, consiste em saber se na lei há qualquer disposição que especialmente se lhe refira.[14]».
Na falta ou insuficiência de disposições especiais que especialmente se refiram ao contrato misto, o que sucede na grande generalidade da situações em que estão em causa contratos deste tipo, conclui Antunes Varela que «sempre que o contrato misto se traduza numa simples justaposição ou contraposição de elementos pertencentes a contratos distintos, deve aplicar-se a cada um dos elementos integrantes da espécie a disciplina que lhe corresponde dentro do respectivo contrato (típico).
(...)
Pode, todavia, suceder que os termos da convenção revelem que, em lugar de uma justaposição ou contraposição dos diversos elementos contratuais, existe entre eles um verdadeiro nexo de subordinação. O que as partes quiseram, fundamentalmente, foi celebrar determinado contrato (típico), ao qual juntaram, como cláusula puramente acessória ou secundária, um ou vários elementos próprios de uma outra espécie contratual. (...) Nesses casos (sobre os quais directamente se inspirou a teoria ou critério da absorção), o regime dos elementos acessórios ou secundários só será de observar na medida em que não colida com o regime da parte principal, fundamental ou preponderante do contrato. (...).
Nem sempre, no entanto, o contrato misto se traduz numa simples justaposição, contraposição ou sobreposição de elementos pertencentes a matrizes contratuais. Por vezes sucede que há antes uma verdadeira fusão desses elementos num todo orgânico, unitário, complexo que é substancialmente diferente da soma aritmética deles; e outras ainda em que há uma real assimilação de um dos contratos (compreendidos no negócio misto) pelo outro.
Saber quando qualquer dos fenómenos se verifica é problema que depende essencialmente da análise a causa do contrato misto, ou seja, da função económico-social que ele visa preencher, e do confronto dela com a causa dos contratos típicos ou nominados.»[15].
O convénio em análise neste recurso evidencia claramente um contrato misto, geminado, de natureza complexa, celebrado entre uma empresa cujo objeto social consiste na «venda por grosso de cafés, bebidas espirituosas e outros produtos congéneres», e uma sociedade, a ..., Lda., que, à data da sua celebração, tinha por objeto social «a pastelaria, geladaria e venda de pão», destinando-se o café a ser por esta revendido a clientes seus, num estabelecimento comercial que então explorava no âmbito daquele objeto.
Nesse contrato[16], mostram-se inequivocamente contratualizadas prestações bilaterais de natureza sinalagmática, nele se revelando elementos próprios:
- do contrato inominado de fornecimento de um determinado produto (café);
- do contrato de mútuo gratuito (arts. 394º e 395º, do Cód. Comercial e, 1142º e 1145º, nº 1, do CC);
- do contrato de compra e venda (arts. 463º, nº 1, do Cód. Comercial, e 874º e 879º, do CC).
O contrato, vista a sua cláusula 11ª («Pretende a PO[17], com o empréstimo e venda em apreço, e nisso os funda – promover e incrementar junto da representada da SO[18], a venda dos seus cafés, que comercializa sob a marca ...»), evidencia ainda que dele resultavam, para a autora e para a sociedade ..., Lda., vinculações obrigacionais típicas da publicidade comercial[19]-[20].
Sobre a temática ora em apreço, e com relevo para o presente recurso, é de todo o interesse atentar nos elucidativos dizeres vertidos no Ac. do S.T.J. de 04.06.2009, Proc. nº 257/09.1YFLSB (Cons. Salvador da ...), in www.dgsi.pt..
Afirma-se nesse aresto que «a lei expressa, sob a perspectiva da função económico-social típica do contrato de compra e venda, ser este o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (artigo 874º do Código Civil).
Trata-se, pois, de um contrato oneroso, bilateral, com recíprocas prestações e eficácia translativa, envolvendo a dupla e correlativa transmissão de duas prestações - o direito de propriedade ou de outro direito e o preço.
No que também concerne às respectivas vertentes estrutural e obrigacional, a lei estabelece como seus efeitos essenciais, a transmissão da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar aquela e a de pagar o preço (artigo 879º do Código Civil).
Em regra, o comprador adquire a propriedade da coisa logo que celebre o contrato; mas nem sempre assim é, como ocorre, por exemplo, com os contratos de compra e venda de coisas genéricas ou futuras.
Importa, ora, caracterizar aquilo que é designado por contrato de fornecimento, que, grosso modo, é o acto ou o efeito de fornecer alguma coisa. Daí que, em sentido não jurídico, se possa qualificá-lo como todo aquele que tenha por objecto essa coisa ou um serviço.
Essa designação também tem sido atribuída aos contratos geradores de obrigações duradouras em que o âmbito das prestações de cada uma das partes dependa do consumo efectivo de uma delas.
Mas o contrato que visa directamente a transmissão do direito de propriedade sobre essa coisa ou a prestação de algum serviço há-de traduzir-se em contrato de compra e venda ou de prestação de serviços, conforme os casos, ainda que se trate de contratos de execução continuada ou emparelhada, com a sua especificidade de não homogeneidade quantitativa de prestações.
O designado contrato de fornecimento reconduz-se, em regra, a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respectivo preço.».
No caso ora sujeito à apreciação deste tribunal, e socorrendo-nos da terminologia utilizada naquele acórdão, estamos perante declarações negociais que envolvem, por um lado, a promessa por parte da recorrida, no confronto da sociedade ..., Lda., de lhe vender, 3.600 quilos de café ..., lote Moinho Imperial, em frações mensais mínimas de 60 quilos, aos preços de tabela às datas das vendas efetivas, sendo que, na data da celebração do contrato, era de 3.650$00[21], o preço de cada quilo de café.
E, por outro lado, empréstimo gratuito da autora à sociedade ..., Lda., da quantia de 1.500.000$00[22], para investimento direto, por esta sociedade, em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial sito na Est... N..., nº 1... – Nº... – S... F..., Montijo, quantia que a segunda recebeu, da qual deu quitação e que comprometeu a restituir à segunda no termo final o contrato.
E, por outro lado ainda, a venda efetuada pela autora à sociedade ..., Lda., de uma máquina de café de marca ..., modelo 95C7, de dois moinhos de café de marca ... (modelo 60ª) e de um termo de leite ... (6 LT. 17658), pelo preço global de 775.125$00[23], com I.V.A. incluído, reservando a vendedora para si a propriedade desses bens ao seu integral pagamento[24].
Entre a data da celebração do contrato (6 de agosto de 1997) e junho de 1998, a sociedade ..., Lda. e a autora foram celebrando contratos de compra e venda de café, aquela na posição de compradora e esta na de vendedora, não tendo, no entanto, o produto comprado e vendido, ultrapassado os 120 quilos.
A partir de junho de 1998, a sociedade ..., Lda. deixou de adquirir café à autora.
Trata-se, pois, no presente caso, como naquele a que se reporta ao acórdão do S.T.J., de um complexo contrato de natureza comercial que envolve elementos próprios do contrato inominado de fornecimento, de compra e venda e de mútuo (gratuito) – arts. 2º, 13º, 394º, 395º, nº 1 e 463º, nº 1, do Código Comercial, e 874º, 879º, 1142º e 1145º, nº 1, do CC.
Aqui chegados, é necessário tecer algumas considerações relativamente aos elementos do contrato de mútuo, que é comercial, contidos no contrato dos autos, celebrado entre a autora e a sociedade ..., Lda..
Consta deste contrato:
- Cláusula 5ª: «A PO empresta à representada da SO, a título gratuito, a quantia de um milhão e quinhentos mil escudos (1.500.000$00[25]) para investimento directo, em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial sito na Est... N... nº 1... – Nº ... – S... F... – Montijo»;
- Cláusula 6ª: «A obrigação de restituição da quantia mutuada vencer-se-á na data do termo final deste contrato»;
- Cláusula 7ª: «A SO aceita o mútuo nos termos exarados e declara ter recebido, para a sua representada, nesta data (6 de Agosto de 1997), a referida quantia de um milhão e quinhentos mil escudos (1.500.000$00)».
Dispõe o art. 394º do Cód. Comercial que «para que o contrato de empréstimo seja havido por comercial é mister que a cousa cedida seja destinada a qualquer ato mercantil».
É questão isenta de dúvidas que os elementos do contrato de mútuo, contidos no contrato dos autos, celebrado entre a autora e a sociedade ..., Lda., em 6 de agosto de 1997, nos conduzem à figura do mútuo ou empréstimo comercial, pois que o dinheiro então emprestado por aquela a esta era destinado, inequivocamente, a atos comerciais ou mercantis[26]: o dinheiro destinava-se a ser diretamente investido pela mutuária, a sociedade ..., Lda., em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial sito na Est.... N... nº 1... – nº... – S... F... – Montijo.
No entanto, logo surge o elemento perturbador contido no nº 1 do art. 395º do Cód. Comercial: «O empréstimo mercantil é sempre retribuído».
Assim, a questão que se coloca é a seguinte: sendo gratuito o mútuo contido no contrato dos autos, como poderá ele, face ao teor desta norma, ser considerado mercantil?
Segundo Luiz Cunha Gonçalves, «sendo mercantil o empréstimo quando destinado a acto mercantil, isto é, a uma operação lucrativa, justo era que ele fosse também havido como acto naturalmente lucrativo ou oneroso, quando nada a tal respeito foi estipulado.»[27]. Portanto, para este autor, nada impede que a gratuitidade seja expressamente convencionada; consequentemente, podemos ter comodato mercantil e mútuo mercantil.
Afirma, por sua vez, Adriano Anthero: «Diz o código que o empréstimo mercantil é sempre retribuído; (...).
Não se segue, porém, daí que o credor esteja proíbido de prescindir dessa remuneração, e que, portanto, possa haver contracto de empréstimo mercantil, sem ser retribuído e, sequentemente, sem vencer juros.»[28].
No entender de Vaz Serra, «o artigo 395º do Código Comercial dispõe que o empréstimo «é sempre retribuído»; mas esta disposição não pode conter senão uma presunção, pois nada justifica que um tal empréstimo tivesse forçosamente de ser retribuído.»[29].
No Ac. da R.P. de 10.01.1967 decidiu-se que «embora o art. 395º do Cód. Com. prescreva que o empréstimo mercantil é sempre retribuído, o credor tem a faculdade de prescindir dessa remuneração e, portanto, pode haver contrato de empréstimo mercantil sem ser retribuído e, consequentemente, sem vencer juros.»[30].
Mais recentemente, no Ac. desta Relação, datado de 04.02.2010, Proc. nº. 5356/07.1TVLSB.L1-8 (Carla Mendes), in www.dgsi.pt, exarou-se que «o empréstimo mercantil é sempre retribuído – art. 395 Cód. Com. Atenta a redacção do art., o empréstimo mercantil nunca se presume gratuito, parece que não pode haver contrato de empréstimo mercantil sem ser retribuído e, consequentemente, sem vencer juros.
No entanto, entendemos que nada impede que a gratuitidade seja expressamente convencionada; e assim podemos ter comodato mercantil e mútuo mercantil.».
Em suma, pois, o contrato dos autos constitui (todo ele, obviamente), um ato de comércio, um contrato comercial.
3.2.1 –Da exceção perentória de prescrição:
Tal como acima mencionado, foi proferido o despacho datado de 17 de novembro de 2016, com a Refª 360156426, ordenando a notificação da autora para, em dez dias, exercer o direito ao contraditório relativamente:
- à matéria de exceção invocada pelos réus;
- à reconvenção deduzida pela ré Maria ....
A autora não respondeu à matéria da exceção, nem no prazo que naquele despacho lhe foi concedido, nem na audiência prévia, nos termos do art. 3º, nº 4, do CPC.
Por isso, consideram os réus, ora recorrentes, que nos termos dos arts. 587º, nº 1 e 574º, nº 2, do CPC, deve ser «dado como prescrito o direito que a Autora pretende fazer valer».
Nos termos do nº 1 do art. 587º, do CPC, «a falta de apresentação da réplica ou a falta de impugnação dos novos factos alegados pelo réu tem o efeito previsto no artigo 574º.».
Dispõe, por sua vez, o nº 2 do art. 574º do mesmo código que «consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.».
Como é sabido, no processo civil português vigora o princípio do cominatório semipleno, o que significa, com referência ao caso concreto, que apesar dos factos excetivos alegados pelos réus na sua contestação se considerarem admitidos por acordo, o juiz não deixa de estar liberto para julgar procedente ou improcedente a exceção conforme for de direito, cabendo-lhe sindicar da suficiência ou insuficiência da factualidade provada, em termos de preenchimento ou não da previsão normativa aplicável.
Por outras palavras, assentes os factos alegados pelos réus no que respeita à invocada exceção perentória de prescrição, daí não decorre uma incontornável e fatal procedência da exceção, antes cabendo ao juiz julgá-la como for de direito.
E a sentença recorrida julgou improcedente tal exceção!
Contra o assim decidido insurgem-se os recorrentes, começando por afirmar nas conclusões da alegação de recurso que dão «(...) por reproduzido o alegado em I – nas als. A) a M) das presentes alegações que reproduzem a contestação dos Recorrentes no que à excepção de prescrição diz respeito».
Não se vê que a alegação de recurso contenha qualquer ponto «I» ou alíneas «A) a M)», pelo que pretenderiam, seguramente, dar por reproduzido o vertido em 1. a 17. da alegação de recurso.
Seja como for, consideram os recorrentes que se encontra prescrito o direito da recorrida a haver deles a quantia de € 3.866,30, correspondente ao preço dos bens por esta vendidos à sociedade ..., Lda., identificados na fatura nº 18757, ou seja uma máquina de café de marca ..., modelo 95C7; dois moinhos de café de marca ... (modelo 60ª) e um termo de leite ... (6 LT. 17658).
Afirmam os recorrentes que «no que ao crédito resultante da venda dos bens de equipamento diz respeito, o contrato não tem natureza comercial, sim, este objectivo de promover e incrementar, através da actividade da 1.ª Ré, a venda dos cafés que a Autora comercializa sob a marca ..., ou seja, o contrato teve um intuito publicitário, pelo que o crédito de incumprimento prescreveu no prazo de 2 anos, a contar do termo de vigência do contrato, e que marca a exigibilidade da dívida, i.e., dia 06/08/2004,nos termos do art.º 317.º/2 do CC.. Prescrição que aos demais Réus assiste por direito e que, desde logo, invocaram».
Prazo prescricional de 2 anos que, à cautela, também vieram invocar com base na circunstância de «os objetos vendidos consubstanciarem bens de equipamento que não estavam diretamente afetados ao exercício do comércio da 1.ª Ré: não os destinava a revenda.
Aos recorrentes enquanto titulares de responsabilidade solidária assistia o direito de invocar a prescrição da obrigação do devedor principal, o que fizeram».
Dá-se aqui por integralmente reproduzido tudo quanto acima se expôs quanto à natureza comercial do contrato dos autos.
Trata-se de um contrato misto que constitui, inequivocamente, um ato de comércio[31] no seu todo, incluindo, portanto, como não poderia deixar de ser, a parte em contém elementos tipificadores do contrato de compra e venda comercial.
Veja-se até que, de acordo com o disposto no art. 99º do Cód. Comercial, mesmo nos casos em que o ato seja cindível e seja comercial (objetiva ou subjetivamente) para uma das partes e não para a outra, o regime aplicável é o comercial, ou seja, o ato de comércio misto é regido unitariamente como um só ato de comércio.
Assim, o contrato sub judice é, em toda a sua extensão, em relação a todas as suas cláusulas, um só ato de comércio.
É, por isso, evidente a falta de razão dos recorrentes na parte em que, depois de referirem que «o objetivo de promover e incrementar junto da Sociedade ..., a venda dos seus cafés que comercializa sob a marca ..., ou seja, um intuito publicitário», afirmam «pelo que o crédito pelo incumprimento, terá sempre prescrito no prazo de dois anos, a contar da data do vencimento do contrato, que é o da exigibilidade da dívida, ou seja no dia 06 de Agosto de 2004, nos termos do art. 317º, nº 2, do C.Civil».
O crédito da autora decorrente da venda à sociedade ..., Lda., de uma máquina de café ..., de dois moinhos de café ... e de um termo de leite de café ...) no valor global de € 3.866,30, não se encontra prescrito nos termos do art. 317º, al. b), do CC, sendo, para este efeito, irrelevante a questão de saber a data em que cessou a vigência do contrato.
Dispõe o art. 317º, al. b), do CC, que «prescrevem no prazo de dois anos (...) os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio (...)».
No caso concreto e, de certa forma na reiteração do que já antes se afirmou, é evidente que falamos do crédito de um comerciante por objetos vendidos a quem, à data da celebração do contrato, era[32] igualmente comerciante. Por outro lado:
- tendo a sociedade ..., Lda., por objeto social a pastelaria, geladaria e venda de pão;
- tendo o contrato como objeto principal, o fornecimento de café pela autora à sociedade ..., Lda.,
não tem cabimento a afirmação, pelos réus, de que a venda daqueles equipamentos «não eram, diretamente, afectos ao exercício do comércio» da sociedade ..., Lda..
É evidente que esta sociedade destinava aqueles bens ao exercício do seu comércio.
De qualquer forma, sempre seria sobre os réus/recorrentes que recaía o ónus da prova da afetação, pela sociedade ..., Lda., daqueles bens a uma finalidade não comercial[33].
E essa prova, manifestamente, não foi feita.
Mais afirmam os recorrentes que «também com os mesmos fundamentos já se encontrava prescrito, excedido o mesmo prazo de 2 anos, contado desde 06/08/2004, até ao vencimento da obrigação de pagar o preço, o crédito titulado pela factura n.º 187579, porquanto o A. desistiu do pedido quanto à sociedade Ré e os ora Réus não contraíram a dívida no exercício do seu comércio (prescrição fundada no art.º 317.º/2 do CC)».
Ainda que tal se afigure de todo irrelevante para a decisão da questão ora em análise, a verdade é que, uma vez mais, não lhes assiste razão, sendo evidente o equívoco em que laboram.
Não é verdade que a autora tenha desistido do pedido relativamente à sociedade ..., Lda..
O que sucedeu foi que mediante requerimento de fls. 36-37, entrado em juízo a 28 de março de 2016, com a Refª 22217258, e ante a informação trazida ao processo de que aquela sociedade se encontrava extinta, posto que a sua matrícula se encontrava cancelada[34] havia vários anos com referência à data da instauração da ação, veio a autora/recorrida requerer a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide quanto à sociedade ..., Lda., mais requerendo o prosseguimento da ação relativamente aos 2º a 4º réus, ora recorrentes.
Na sentença recorrida, em sede de questão prévia, a juíza a quo:
-declarou extinta a extinta a instância relativamente à sociedade ..., Lda., por inutilidade superveniente da lide[35];
- determinou o prosseguimento da ação quanto aos 2º a 4º réus, ora recorrentes.
Dispondo o art. 101º do Cód. Comercial que «todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante, será solidário com o respetivo afiançado», e tendo-se os réus Fernanda Maria, Martinho ... e Maria Adelaide, comprometido a responder pessoal e solidariamente com a sociedade ..., Lda., pelo exato e fiel cumprimento das obrigações por esta assumidas, derivadas «diretamente do contrato ou da sua resolução»[36], segue-se que a declaração de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide quanto à dita sociedade, em nada releva para efeitos de apreciação da questão da prescrição dos direitos que a autora neste ação pretende fazer valer contra aqueles réus.
No que respeita:
- à peticionada «quantia adiantada», ou seja, ao montante emprestado pela autora à sociedade ..., Lda.;
- à peticionada indemnização prevista na cláusula 12ª do contrato,
não tem, obviamente, aplicação ao caso o disposto na al. b) do art. 317º do CC, respeitante à prescrição dos créditos dos comerciantes «pelos objetos vendidos».
A tudo acresce que nos arts. 312º a 317º do CC encontram-se previstas as chamadas presunções presuntivas, também conhecidas de curto prazo, as quais se fundam na presunção de cumprimento, presunção esta que pode ser ilidida, ainda que apenas e só por via de confissão do devedor. Essa confissão pode ser extrajudicial, e nesse caso, só releva se for escrita, ou pode ser também judicial, caso em que tanto vale a confissão expressa como a tácita (arts. 313º e 314º do CC).
O efeito da prescrição presuntiva não é, propriamente, a extinção da obrigação, mas antes a inversão do ónus da prova, que deixa de onerar o devedor que, por isso, não tem de provar o pagamento, para ficar a cargo do credor, que terá de demonstrar o não pagamento, o que, como se referiu, apenas por confissão do devedor pode fazer.
Conforme se salienta no Ac. do S.T.J. de 08.05.2013, Proc. nº 199632/11.5YIPRT.L1.S1 (Cons. Moreira Alves), in www.dgsi.pt, «a razão de ser deste regime especial desenhado para este tipo de prescrições de curto prazo, assenta em considerações de ordem prática, colhidos da experiência comum e conexionadas com o tipo de relações contratuais (seus sujeitos e objecto) que estão em causa.
Como ensina Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica – II- 452), a lei “(...) estabeleceu curtos prazos para a prescrição dos créditos do merceeiro, do hoteleiro, do advogado, do procurador etc., etc., porque se trata de créditos que o credor adquire pelo exercício da sua profissão, da qual vive. Ao fim de um prazo relativamente curto o credor, em regra, exige o seu crédito, pois precisa do seu montante para viver. Por outro lado, o devedor, em regra, também paga estas dívidas dentro de curto prazo, porque são dívidas que contraiu para prover às suas necessidades mais urgentes.
Mesmo quando o devedor é pessoa de más contas, prefere não pagar outras dívidas e ir pagando estas, até porque de outra maneira acabaria por não ter quem o servisse.
Finalmente, o devedor em regra não cobra recibo destas dívidas, quando as paga; e se exige recibo não o conserva por muito tempo”.
Sendo assim, atenta a especial natureza deste tipo de prescrição, não basta invoca-la, sendo ainda necessário que, quem dela pretenda prevalecer-se, alegue o pagamento, ainda que não tenha de o provar, ou pelo menos, não pode alegar factualidade incompatível com a presunção de pagamento, sob pena de ilidir a presunção».
À luz destes considerandos, tendo em conta a postura assumida pelos réus na contestação, na qual:
-não alegam o pagamento; antes
-alegam factualidade incompatível com a presunção de pagamento,
nunca poderiam, no caso presente, pretender prevaler-se da prescrição a que alude a al. b) do art. 317º do CC. Ainda em sede de exceção perentória de prescrição:
No que ao crédito resultante da indemnização prevista na cláusula 12ª do contrato concretamente diz respeito, subsidiariamente, para a hipótese de não vingar a tese da prescrição presuntiva prevista na al. b) do art. 317º do CC, e porque estão em causa prestações periodicamente renováveis, consideram os apelantes que o mesmo se encontra prescrito nos termos da al. g) do art. 310º do CC.
Dispõe o art. 310º do CC:
«Prescrevem no prazo de cinco anos:
a)-As anuidades de rendas perpétuas ou vitalícias;
b)-As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos por uma só vez;
c)-Os foros;
d)-Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;
e)-As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros;
f)-As pensões alimentícias vencidas;
g)-Quaisquer outras prestações periodicamente renováveis».
A questão que agora se coloca consiste em saber se se encontra, ou não, prescrito o direito da autora à indemnização prevista na supra transcrita cláusula 12ª do contrato[37].
Tal como refere Pinto Monteiro[38], a cláusula penal depende do destino da obrigação cujo inadimplemento sanciona.
A lógica de um tal raciocínio é inatacável, pois não faz sentido que se concedesse a uma parte de um contrato um direito de distrate, quando, na realidade, as obrigações recíprocas já não existem, isto é, por qualquer motivo se extinguiram.
Ou seja, inválida a obrigação, por nula ou anulável, não há que falar em incumprimento imputável a uma das partes que ocasione resolução – seria uma contradição nos termos.
O mesmo sucede, como sublinha o referido Autor, se a obrigação principal se extingue por impossibilidade superveniente não imputável a qualquer das partes, ou por que lhe foi oposta a prescrição.
Não faria sentido que a prescrição pudesse ser oposta à obrigação principal, mas, por força tão só de uma leitura apertis verbis das normas, já não pudesse ser oposta (por prazo mais longo) a uma prestação que é, tão apenas, um sucedâneo ressarcitório da primeira.
Se a resolução é a destruição do contrato operada, justificadamente, por um ato posterior de uma das partes e visando a sua destruição ad nutum (art. 433º do CC), a prescrição invocada contra esses direitos ex contractu que se pretendem destruir antecede a resolução do contrato, isto é, antecede a sua destruição por invocação de uma causa relativa à execução contratual, seja na ordem jurídica, seja na pura lógica de raciocínio.
Por maioria de razão ainda, tal como salientado no acórdão desta Relação de 25.02.2010, Proc. nº 1591/08.3TVLSB.L1-6 (Márcia Portela), in www.dgsi.pt, se as penalidades indemnizatórias, integradoras da cláusula penal, são calculadas, como no caso dos presentes autos, em função das prestações/mensalidades em dívida.
Portanto, aquilo que se encontra em causa nestes autos, na parte que ora nos ocupa, o conhecimento da prescrição da obrigação de indemnização da autora, tal como pré-clausulada contratualmente, é apenas saber se o respetivo prazo prescricional é de 20 anos, nos termos do art. 309º, do CC, ou de 5 anos, nos termos do art. 310º, al. g), do mesmo código.
A razão de ser da prescrição de curto prazo prevista no art. 310º, al. g), do CC está em evitar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, assim se protegendo o devedor de uma acumulação de mensalidades ou anuidades em dívida, que, enquanto dívida de capital, passível de exigência numa prestação única, seria passível de trazer a ruína ou, ao menos, uma onerosidade não calculada ao devedor[39].
É conveniente porém, para a exegese do conceito de “prestações periodicamente renováveis”, nos aproximarmos das diferenças que a doutrina divisou, em matéria de realização no tempo das prestações contratuais.
Antunes Varela classifica as prestações como instantâneas, fracionadas ou repartidas, e duradouras.
Assim, segundo o Autor, «dizem-se instantâneas as prestações em que o comportamento exigível ao devedor se esgota num só momento ou num período de tempo de duração praticamente irrelevante (...).».
No que respeita às obrigações duradouras, o mesmo Civilista distingue «duas modalidades dentro delas: umas, as prestações de execução continuada, são aquelas cujo cumprimento se prolonga ininterruptamente no tempo (…); outras, as prestações reiteradas, periódicas ou com trato sucessivo, são as que se renovam em prestações singulares sucessivas por via de regra ao fim de períodos consecutivos (…).
Dentro das relações obrigacionais duradouras (...), surgem a cada passo obrigações de prestação instantânea (...) ao lado daquelas obrigações de prestação continuada ou periódica que imprimem carácter à relação global. (...).
Não se confundem com as obrigações duradouras as obrigações fraccionadas ou repartidas. Dizem-se fraccionadas ou repartidas as obrigações cujo cumprimento se protela no tempo, através de sucessivas prestações instantâneas, mas em que o objecto da prestação está previamente fixado, sem dependência da relação contratual (v.g., preço pago a prestações, fornecimento de certa quantidade de mercadorias ou de géneros, a efectuar em diversas partidas).
Nas obrigações duradouras, a prestação devida depende do factor tempo, quem tem uma influência decisiva na fixação do seu objecto; nas prestações fraccionadas, o tempo não influi na determinação do seu objecto, apenas se relacionando com o modo da sua execução.» [40].
Retornando ao caso concreto, tendo em conta a transcrita distinção doutrinal, importa apurar se o objeto da prestação era determinado, além do mais, em razão do respetivo tempo de duração (prestação duradoura, de execução continuada ou periódica), ou antes se era essencialmente determinado em função do valor do bem adquirido (prestação fraccionada).
Só para as prestações duradouras de natureza reiterada ou periódica valeria a prescrição de 5 anos a que se reporta o disposto na al. g) do art. 310º do CC.
Já as prestações fracionadas ou repartidas cairiam no âmbito da prescrição ordinária de 20 anos prevista no art. 309º do mesmo código.
Dentro das obrigações duradouras Menezes Cordeiro distingue ainda, «em função do seu objeto. (...):
- a relação de fornecimento, quando se traduza em sucessivas transferências de propriedade sobre coisas corpóreas;
- a relação de serviço, quando esteja em causa um facere prolongado;
- a relação-quadro, quando implique sucessivos actos jurídicos, no seu desenvolvimento.».
No Ac. da R.C. de 01.07.2008, C.J., III, 39 (Barateiro Martins) salienta-se o facto de as prestações contratuais que se desenvolvem dentro de um contrato-quadro (exemplificado, no caso do acórdão pelo contrato de concessão comercial) caírem fora da prescrição de 5 anos a que alude a citada al. g) do artº 310º do CC.
Regressando de novo ao caso dos autos, temos que a sociedade ..., Lda., se comprometeu para com a autora a adquirir-lhe 3.600 quilos de café “... – Lote Moinho Imperial”, em frações mensais mínimas de sessenta (60) quilos, aos preços de tabela às datas das vendas efetivas. No âmbito do mesmo contrato, a autora:
- comprometeu-se a conceder à sociedade ..., Lda. uma bonificação financeira de 2.275.125$00[41], quando se mostrassem adquiridos e integralmente pagos os 3.600 quilos de café;
- entregou à sociedade ..., Lda., a título de empréstimo gratuito, a quantia de 1.500.000$00[42] para esta investir diretamente em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial sito na Est... N... nº 1... – Nº ... – S... F... – Montijo;
- vendeu à sociedade ..., Lda., pelo preço global de 775.125$00[43],uma máquina de café de marca ..., modelo 95C7, de dois moinhos de café de marca ... (modelo 60ª) e de um termo de leite ... (6 LT. 17658), vencendo-se a obrigação de pagamento daquele preço apenas no final da execução do contrato, ou então com a resolução do contrato pelas partes, por força das vicissitudes que o contrato previa.
Significa isto que o crédito da autora se encontrava previamente fixado, embora competisse à sociedade ..., Lda., o pagamento à medida que as partidas de café fossem por si encomendadas e por aquela fornecidas.
Encontramo-nos, pois, perante um objeto prestacional global, previamente fixado, embora a poder ser solvido nas prestações correspondentes às encomendas de café, ao longo do tempo.
Estava em causa o valor total do café adquirido, apesar de tal valor poder ser entregue em prestações.
Tal valor global também se reflete na indemnização fixada no contrato em caso de resolução, e que agora vem peticionada pela autora nesta ação declarativa de condenação, fixada em percentagem da quantia em falta para atingir o valor final acordado.
Não estamos, assim, como se vê, perante prestações singulares sucessivas, correspondentes a períodos de tempo determinados – na visão da doutrina, não nos encontramos pois perante prestações determinadas, apenas e só, pelo fator tempo, mas antes por prestações previamente obtidas, ao menos no seu montante mínimo, de acordo com um valor global previamente fixado.
Na outra formulação doutrinal que acima se elencou, existe uma relação-quadro a que as prestações renováveis se reportam – um “quadro” que não se retira apenas do montante total fixado da prestação em dinheiro da sociedade ..., Lda., mas também se retira do investimento efetuado pela autora no negócio daquela sociedade e que implicava a pendência de empréstimos e de vendas com espera de preço, num determinado período de tempo.
Em suma, a onerosidade do contrato dos autos sempre poderia ser calculada, quer pela sociedade ..., Lda., quer pelos aqui réus garantes, não constituindo as mensalidades do preço uma surpresa ou uma exigência potencialmente demasiado pesada para o património dos réus, porque não passível de conhecimento prévio.
Integradas as prestações em causa num contrato-quadro e sendo de classificar tais prestações como fracionadas ou repartidas, em função do valor dos bens prometidos comprar (e não do tempo da duração do serviço ou do fornecimento), naturalmente que o prazo de prescrição das obrigações fixadas a cargo da sociedade ..., Lda., e dos aqui réus, enquanto garantes, no contrato invocado pela autora é o prazo regra de 20 anos aludido no art. 309º do CC[44].
Termos em que improcede a exceção perentória de prescrição invocada pelos réus.
*
3.2.2 –Da culpa da sociedade ..., Lda. quanto ao incumprimento do contrato:
Consideram os réus nas conclusões da sua alegação de recurso, que face ao teor da cláusula 12ª do contrato, «só o incumprimento culposo por parte dos Réus poderia dar causa à resolução o contrato, incumprimento culposo que, de acordo com a cláusula do contrato livremente celebrado, tinha de ser especificadamente, alegado e justificado por parte da A., como causa de resolução do contrato, verificando-se, neste caso, a inversão do ónus da prova.».
Acrescentam que, «como se verifica no pedido e na factualidade dada como provada, a A. não alegou como causa de resolução do contrato o incumprimento CULPOSO, por parte da 1.ª Ré que, nos termos das cláusulas contratuais não se pode presumir». Recordemos, uma vez mais, o teor da cláusula 12ª do contrato:
«Se a representada da Segunda Outorgante – por facto culposo – não efectuar compras de café durante três meses, ou não realizar um mínimo trimestral de compras de cento e oitenta (180) quilos de café – em dois tri...s seguidos ou interpolados – ou não pagar quaisquer facturas vencidas no prazo de oito (8) dias, a contar dos vencimentos, poderá a Primeira Outorgante resolver o contrato, reclamar indemnização em montante equivalente a vinte por cento (20%) do valor do café prometido e não adquirido, restituição integral e imediata da quantia mutuada e restituição dos bens ou pagamento do seu preço como melhor aprouver à Primeira Outorgante, podendo também a Segunda Outorgante resolver o contrato em caso de incumprimento culposo da Primeira Outorgante.».
Em termos simples, entendem os réus que esta cláusula opera uma inversão convencional do ónus da prova que destrói a inversão legal do mesmo ónus, consagrada no art. 799º, nº 1, do CC.
Será possível às partes afastarem a presunção de culpa que a lei, na responsabilidade contratual, faz recair sobre o devedor, nos termos do referido art. 799º, nº 1, do CC?
Pinto Monteiro afirma que «esta inversão do ónus probandi pode acarretar sérias dificuldades, porventura insuperáveis, ao credor, dado que normalmente é o devedor quem está em melhores condições de provar que não teve culpa, do que o credor para provar o contrário.
Daí que estas cláusulas, afastando a presunção legal de culpa do devedor – impondo, consequentemente, ao credor o ónus da prova da culpa do devedor –, acabem por traduzir-se frequentemente, em autênticas cláusulas de irresponsabilidade, atenta a dificuldade prática do credor em fazer essa prova.
Estas cláusulas, que são em princípio válidas (art. 344º, nº 1[45]), constituem, note-se, uma forma de repor, por iniciativa das partes, as regras gerais sobre o ónus da prova (art. 342º), desfazendo a presunção legal consagrada no art. 799.
Há assim uma inversão convencional que destrói a inversão legal – cabendo (a a pari, ou a fortiori) […] na ratio do art. 344º, nº 1 –, deixando essa convenção de ser válida, porém, quando de direito indisponível ou a inversão torne excessivamente difícil a uma das partes o exercício do direito (art. 345º, nº 1).»[46].
Importa, por isso, averiguar se com a inserção dessa cláusula no contrato, as partes contratantes pretenderam, efetivamente, como defendem os apelantes, mediante convenção, destruir a inversão legal do ónus da prova decorrente do art. 799º, nº 1, do CC.
O que impõe a interpretação da dita cláusula!
Dispõe o art. 236º, nº 1, que «a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele».
Segundo este preceito a interpretação deve fazer-se de acordo com a doutrina da impressão do destinatário, segundo a qual, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, mas sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
A redação do art. 236º, nº 1, do CC surge na esteira da solução do Anteprojecto de Rui de Alarcão, com a limitação final pugnada por Ferrer Correia[47].
Assim, «o declarante responde pelo sentido que a outra parte puder atribuir à sua declaração, enquanto esse seja o conteúdo que ele próprio devia considerar acessível à compreensão dela»; ou seja, na 1ª parte do nº 1 do art. 236º do CC tem «de figurar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento, diligência medianos, considerando as circunstâncias em que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição real do destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este concretamente conheceu e o modo como aquele concreto destinatário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo.»[48].
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, de acordo com a teoria da impressão do destinatário «o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.[49]».
Toma-se, assim, o declaratário efetivo, nas condições reais em que se encontra e presume-se ser ele uma pessoa normal e razoável, mediamente instruída e diligente, seja apela-se à figura do bonus pater familias.
Desta forma, o nº 1 art. 236º do CC assenta em três grandes linhas, que o fundamentam:
- a defesa do interesse do declaratário, inspirada pela tutela das expectativas, de confiança legítima;
- a segurança do comércio jurídico;
- a imposição ao declarante de um ónus de clareza.
Isto, em projeção da dinâmica dos princípios da autonomia privada, da confiança do destinatário e de segurança no tráfego jurídico, em pleno sistema aberto, não hierarquizado.
Tudo porque, sendo o Direito um sistema social aberto, é subsistema da sociedade global, recebendo desta os elementos que constituem os inputs que alimentam o sistema jurídico, devolvendo-lhe depois instrumentos de mudança, produtos do sistema jurídico, que em linguagem sistémica se chamam outputs. Inputs e outputs que se entrelaçam (feedback) numa relação de permanente interação.
Pretende-se através de uma justa ponderação de interesses encontrar a mais justa solução em cada situação.
Tal como referido no Ac. da R.L. de 01/27/2011, Proc. nº 25192/09.0-T2SNT.L1-2 (Teresa Albuquerque), in www.dgsi.pt, «é sabido que em função do disposto no nº 2 do art. 236º CC “o primeiro critério de interpretação (da declaração negocial) é a vontade subjectiva comum das partes, (…) sempre que haja convergência quanto ao sentido objectivo e quanto ao sentido subjectivo das declarações negociais. (…). “A regra contida no nº 2 do art. 236º, que exprime o principio ‘falsa demonstratio non nocet’, faz prevalecer o sentido subjectivo, quando seja comum, mesmo que o sentido objectivo seja divergente. Ainda que o sentido objectivo das declarações negociais não coincida com o seu sentido subjectivo, é de acordo com este – sentido subjectivo – que a declaração negocial deve valer, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante« (…). “Não é sequer exigido o acordo ou o consenso nesse sentido: basta que ele seja conhecido pelo declaratário”. (…). “A vontade real do declarante só poderá ser desconsiderada quando o sentido objectivo da declaração for diferente do seu sentido subjectivo e o declaratário não conhecer o seu real sentido subjectivo. Neste caso a declaração negocial será interpretada de acordo com o seu sentido objectivo, mas com uma limitação subjectiva: salvo se o declarante não puder razoavelmente contar com ele”; sendo que não se trata da determinação de qual foi de facto a expectativa do declarante em relação ao entendimento do declaratário, mas sim a expectativa que o mesmo declarante, posto na posição típica do declaratário, deveria ter tido razoavelmente perante aquela declaração, segundo os padrões éticos da regra de ouro e do imperativo categórico» (…). “O sentido objectivo da declaração é determinado pelo sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, possa deduzir do comportamento do declarante”. (…). Conclui o autor que se vem a citar que, “o que releva é o sentido típico que um declaratário típico teria tipicamente entendido naquela situação típica”. Tudo isto sem esquecer o facto de nos contratos, ambas as partes serem simultaneamente declarante e declaratário …»[50].
Dispõe o art. 238º, nº 1, do CC, que «nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.».
Orientados pelos considerandos que antecedem, vista e analisada a cláusula do contrato em questão, não temos dúvidas em afirmar que a mesma não desfaz a presunção legal consagrada no art. 799º, nº 1, do CC, repondo a regra geral sobre o ónus da prova vertida no art. 342º, nº 1, do CC.
Nada na letra da cláusula permite sequer indiciar que, com a sua inserção no contrato, foi intenção das partes contratantes desfazer a inversão do ónus da prova decorrente da presunção legal contida no art. 799º, nº 1, do CC.
Determinadas palavras ou expressões insertas numa cláusula de um contrato devem ser analisadas em conjugação, em articulação, com os demais vocábulos contidos na mesma cláusula e no restante texto do contrato.
No caso concreto está em causa a expressão «se a representada da Segunda Outorgante – por facto culposo – (...).».
O «facto culposo» a que este primeiro segmento da cláusula se refere, em função do qual, se a sociedade ..., Lda., deixasse de efetuar compras de café à autora durante três meses, ou a levasse a não realizar um mínimo trimestral de compras de 180 quilos de café – em dois tri...s seguidos ou interpolados – ou a não pagar quaisquer faturas vencidas no prazo de 8 dias, a contar dos vencimentos, assim permitindo à autora resolver o contrato, reclamar indemnização em montante equivalente a 20% do valor do café prometido e não adquirido, a restituição integral e imediata da quantia mutuada e a restituição dos bens ou pagamento do seu preço como melhor aprouvesse a esta, tem exatamente o mesmo significado que o seguinte segmento da mesma cláusula: «(...) em caso de incumprimento culposo da Primeira Outorgante»[51].
O que estas expressões pretendem significar é que, para que o incumprimento do contrato, por qualquer das partes, pudesse desencadear as consequências previstas na cláusula, seria necessário que a parte incumpridora tivesse agido com culpa, sendo que, conforme salienta Antunes Varela, «agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou reprovável. E o juízo de censura ou de reprovação da conduta do devedor só se pode apoiar no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o obrigado não só devia, como podia ter agido de outro modo.»[52].
A inserção, no texto da cláusula, das expressões «facto culposo» e «incumprimento culposo da Primeira Outorgante», representa um ato perfeitamente inútil das partes; ou seja, constarem ou não constaram, na cláusula, as citadas expressões, era exatamente a mesma coisa, pois a culpa, enquanto pressuposto indispensável para apuramento de responsabilidades decorrentes do incumprimento contratual sempre resultaria da simples leitura do art. 798º do CC: «O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.».
Assim, o que as partes fizeram, afinal de contas, foi simplesmente reproduzir na cláusula 12ª do contrato aquilo que limpidamente já decorria da lei, do citado art. 798º do CC: a necessidade de ocorrência de culpa no incumprimento do contrato para que, consequentemente, pudesse ser assacadas responsabilidades ao incumpridor.
Ora, isso não tem rigorosamente nada a ver com o ónus da prova da culpa ou com as regras da sua repartição, logo, óbvia e consequentemente com a presunção de culpa consagrada no art. 799º, nº 1, do CC.
Com explica ainda Antunes Varela, «o dever jurídico infringido está neste caso, de tal modo concretizado, individualizado ou personalizado, que que se justifica que seja o devedor a pessoa onerada com a alegação e prova das razões justificativas ou explicativas do não cumprimento.»[53].
Aliás, bastaria atentar na lógica das coisas, considerar as regras da experiência, daquilo que é normal ocorrer em contratos semelhantes àquele de que nos ocupamos, considerar o seu fim económico e social, para logo concluirmos não fazer sentido, ser até impensável, a aceitação pela autora, a primeira contratante, a fornecedora do café, de uma cláusula que pura e simplesmente destruidora da inversão legal do ónus da prova decorrente do art. 799º, nº 1, do CC.
É que isso deixá-la-ia, a ela, autora, muito provavelmente em sérias dificuldades, porventura insuperáveis, de provar a culpa da sociedade ..., Lda., no caso de esta incumprir contrato; ou seja, isso poderia acarretar uma situação de irresponsabilidade da sociedade ..., Lda., no caso de ser ela a incumprir o contrato
Não se vê que a autora, ou qualquer outra fornecedora de produtos, em contratos como os dos autos, ponderasse, sequer, a inserção no respetivo contrato, de uma cláusula destruidora da inversão do ónus da prova que resulta do art. 799º, nº 1, do CC.
No caso concreto, uma tal conclusão sai reforçada, se tivermos presente que além do fornecimento das acordadas quantidades de café, a autora:
- emprestou à sociedade ..., Lda., a título gratuito, a quantia de € 7.481,96, para investimento direto em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial, a qual, por sua vez, se obrigou a restituir-lhe tal quantia apenas no termo final do contrato;
- vendeu à sociedade ..., Lda. uma máquina e dois moinhos de café e um termo de leite, no montante global de € 3.866,30, tendo reservado para si a propriedade de tais bens até ao seu integral pagamento.
Perante um tal quadro negocial, não é razoável, carecendo de sentido, a afirmação de que as partes contratantes, nomeadamente a autora, através da cláusula 12ª do contrato, pretenderam, no caso concreto:
- afastar ou desfazer a presunção legal de culpa do devedor decorrente do art. 799º, nº 1, do CC:
- impor ao credor o ónus da prova da culpa do devedor;
- repor, relativamente à culpa, regra geral sobre o ónus da prova consagrado no art. 342º, nº 1, do CC.
Termos em que se conclui que a sociedade ..., Lda., incumpriu culposamente o contrato que a ligava à autora e a que se reportam os presentes autos, uma vez que não se mostra ilidida a presunção de culpa decorrente do art. 799º, nº 1, do CC.
*
3.2.3 –Da aquisição por usucapião, a favor da recorrida Maria ..., do direito de propriedade:
- sobre o dinheiro emprestado pela autora à sociedade ..., Lda.; e
- sobre os equipamentos vendidos pela autora à sociedade ..., Lda.
Considera a recorrida Maria ... que adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o dinheiro emprestado pela autora à sociedade ..., Lda., e ainda sobre os bens vendidos por aquela a esta, tudo no âmbito do contrato sub judice.
Com relevo para a decisão da questão agora em apreço, estão provados os seguintes factos:
A sociedade ..., Lda., tinha como únicas sócias, a ré Fernanda Maria e a ré Maria ..., sendo a sua gerência exercida pela ré Fernanda Maria;
A ré Maria ... é mãe da ré Fernanda Maria;
A ré Fernanda Maria aceitou ser sócia gerente da sociedade ..., Lda. a pedido da sua mãe, sendo esta, no entanto, que quem estava à frente do negócio e gerência do estabelecimento;
A cláusula 5ª do contrato tem a seguinte redação: «A PO empresta à representada da SO, a título gratuito, a quantia de um milhão e quinhentos mil escudos (1.500.000$00[54]) para investimento directo, em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial sito na Est... N... nº 1... – Nº ... – S... F... – Montijo»;
A cláusula 6ª do contrato tem a seguinte redação: «A obrigação de restituição da quantia mutuada vencer-se-á na data do termo final deste contrato»;
A cláusula 7ª do contrato tem a seguinte redação: «A SO aceita o mútuo nos termos exarados e declara ter recebido, para a sua representada, nesta data (6 de Agosto de 1997), a referida quantia de um milhão e quinhentos mil escudos (1.500.000$00)»;
A cláusula 8ª do contrato tem a seguinte redação: «A PO vende à representada dos SO os bens mencionados na Factura número 18757 de 06 de Agosto d 1997 – da qual se apensa cópia que aqui fica dada por reproduzida – pelo preço global se setecentos e setenta e cinco mil cento e vinte e cinco escudos (775.125$00[55]) – com I.V.A. incluído – reservando para si a propriedade dos mesmos até ao seu integral pagamento»;
Os bens mencionados naquela fatura são uma máquina de café de marca ..., modelo 95C7; dois moinhos de café de marca ... (modelo 60ª) e um termo de leite ... (6 LT. 17658);
No verão de 1998 foi ponderada pelo réu Martinho ... a cessão, a António J... e Ana C... F..., do estabelecimento comercial da sociedade ..., Lda., sito na Rua C... R..., Lote ..., ...º Direito, na M...[56];
A ré Maria ... informou os referidos António J... e Ana C... F... que a máquina de café de marca ..., os dois moinhos de café de marca ... e o termo de leite ..., não se encontravam pagos à autora, razão pela qual os referidos António J... e Ana C... F... recusaram ficar com aqueles objetos em seu poder;
A ré Maria ... retirou os mencionados objetos do estabelecimento comercial referido em 21. e levou-os para um armazém propriedade de Paulo G..., e informou telefonicamente a autora, através de um funcionário de nome Casimiro, para os ir buscar;
A autora não foi buscar aqueles bens, pelo que a ré Maria ... os manteve em seu poder, como se fossem seus, até ao Verão de 2012, altura em que os deitou fora por se encontrarem deteriorados;
A quantia de € 7.481,96 foi entregue[57] pela autora à sociedade ..., Lda., através de cheque bancário;
Esse cheque foi endossado pela ré Fernanda Maria a favor da ré Maria ..., que depositou aquela quantia numa sua conta bancária, em Agosto de 1997, utilizando-a em proveito próprio.
A usucapião vive de dois elementos nucleares: a posse e o decurso do tempo.
É isso mesmo que nos transmite o art. 1287º do CC, ao afirmar que «a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.».
Essa posse que a usucapião tem por base é uma posse formal.
Na verdade, tal como refere Galvão Telles, «a posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse casual, ou seja, a posse conforme com um direito que inquestionavelmente se tem e de que representa simples exteriorização. É a posse formal, correspondente a um direito que comprovadamente se não tem ou que poderá não se ter, mas cujos poderes se exercem como sendo um titular, posse vista com abstracção do direito possuído, algo com existência por si, suscetível de conduzir, pela via da usucapião, à aquisição do direito, caso não se seja já senhor dele».
No Ac. do S.T.J. de 15.02.2007, CJSTJ, XV, 1º, 78, decidiu-se que «por detrás da actuação do possuidor pode não haver qualquer direito que legitime ou justifique, traduzindo-se a posse numa simples situação de facto, a que a ordem jurídica, todavia, reconhece vários direitos, que podem consistir, quando a situação possessória se prolongue por certo período de tempo, na sua conversão ou transformação numa situação jurídica definitiva, pela via da usucapião. Fala-se, a tal respeito, em posse formal ou “ius possessionis”».
E essa mesma posse, para conduzir à usucapião, terá, necessariamente, de ser pública e pacífica – arts. 1293º, al. a), 1297º e 1300º, nº 1.
Os restantes caracteres que a posse pode revestir (ser de boa ou má fé, titulada ou não titulada e estar ou não inscrita do registo), mais não são do que simples fatores que influenciam no prazo necessário à aquisição por usucapião (arts. 1294º a 1296)[58].
Posse, segundo o art. 1251º do CC, «é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.»
Ora, esta posse resulta da combinação:
- de um elemento objetivo - o corpus; e
- de um elemento subjetivo - o animus.
O primeiro daqueles elementos manifesta-se quando alguém atua sobre uma coisa por forma correspondente ao exercício de determinado direito real. O corpus ou poder de facto, é o exercício, a prática ou possibilidade de prática, sobre a coisa, de atos materiais, externos, virados para o exterior, visíveis por toda a gente[59].
A propósito do corpus enquanto elemento objetivo da posse, afirma José Alberto C. ..., que «toda a gente está de acordo que noção de “corpus” possessório traduz uma situação de sujeição de uma coisa a uma pessoa, implicando um controlo material sobre ela.
(…).
No Direito português, os arts. 1252º e 1253º mencionam o possuidor como o que "exerce o poder de facto" sobre a coisa, enquanto o art. 1257º, em sede de conservação da posse, reporta-se à "atuação correspondente ao exercício do direito" ou à "possibilidade de a continuar". Todos estes preceitos têm em vista o corpus possessório. Deles parece resultar que o poder de facto acarreta a prática de atos que traduzem o exercício de um direito (real) ou, pelo menos, a possibilidade de prática desses atos.
Ora, a atuação material sobre a coisa ou a possibilidade dessa atuação supõe o controlo material dela ou, como alguns preferem dizer, o domínio da coisa. O corpus possessório projecta-se, por conseguinte, a um nível físico, significando que alguém pode praticar os atos de aproveitamento da coisa correspondentes ao direito que exterioriza.
Não pode haver sujeição física de uma coisa a um sujeito se terceiros, arrogando-se o mesmo direito ou um direito incompatível, actuam também sobre a coisa. Por isso, julgamos que o corpus possessório alude simplesmente ao estado de facto em que um sujeito tem o controlo material da coisa e pode actuar sobre ela nos termos de um direito.
(…)
O corpus possessório não requer uma ligação física constante do possuidor à coisa. Sem dúvida essa ligação é essencial no momento de aquisição da posse, mas a partir desse momento o corpus subsiste com a mera possibilidade de atuação material sobre a coisa. O art. 1257º, nº 1, deixa claro isto mesmo quando alude que a posse se mantém enquanto durar a possibilidade de atuação correspondente ao exercício do direito.
(…)
Tudo está em compreender que o corpus possessório, assentando no controlo material da coisa, se basta com a mera possibilidade, abstracta, de atuação, sem necessitar para existir de uma ligação física constante entre o possuidor e a coisa.
Deste modo, não se torna necessária a prática ininterrupta de atos possessórios para a manutenção da posse. A inércia do possuidor não afeta a sua subsistência, desde que a possibilidade de o possuidor renovar a sua atuação sobre a coisa não seja afetada pela intervenção de um terceiro que se erga em obstáculo a ela. Por maioria de razão, também uma prática descontínua de atos materiais não compromete o corpus possessório, desde que a descontinuidade não advenha de facto de um terceiro que impeça a atuação sobre a coisa.»[60].
Já Manuel Rodrigues, referia que «no sistema português o corpus não pode considerar-se como um simples poder físico.
(…) admitindo a lei a posse de direitos a investidura não implica sempre a detenção, porque há direitos que sem ela podem exercer-se.
(…)
A essência está pois na prática de atos de usufruição e transformação em harmonia com a natureza da coisa que se possui, ou na possibilidade de os praticar.
(…)
Em conclusão: no sistema do direito português a posse é a retenção ou fruição do direito de propriedade, dos direitos reais que impliquem retenção ou fruição e dos direitos pessoais que recaiem sobre as coisas e se exercem no interesse do seu titular:
E é constituída por dois elementos:
um material (o corpus) – retenção, fruição ou possibilidade de fruição de um daqueles direitos
(…).»[61].
A este propósito, refere também José Dias Marques, que «(…) a concepção do elemento material da posse, ao contrário do que, ante a imperfeição dos textos legais, à primeira vista eventualmente poderia parecer, encontra-se já muito longe do seu primitivo núcleo histórico. A concepção jurídico-positiva do corpus possessório está, no seu espírito, muito distante da ideia simples de um poder de facto sobre as coisas dotado de constante efetividade material.
Senão vejamos.
O corpus é, segundo a definição do art. 474º do Código Civil [de Seabra] a”retenção ou fruição de qualquer coisa ou direito”.
Refere-se este preceito legal a coisas e direitos, como que contrapondo ou distinguindo duas realidades diferentes, Mas a palavra coisa está aqui empregada, como já dissemos, para designar por metonímia o direito de propriedade. E por isso mesmo podemos afirmar, em uma formulação mais unitária e abstracta que a do Código, embora perfilhando de forma provisória, a sua terminologia, que o corpus consiste sempre na “retenção ou fruição” de direitos.
Ora, se o corpus pode ser, na própria expressão legal, a “fruição” de um direito, logo se depreende que esta fruição não haja necessariamente de traduzir-se em um poder que material e constantemente se exerça sobre coisas. A fruição é exercício do direito fruído. E este não supõe a constante a constante incidência de um poder físico sobre o seu objeto.
A configuração do corpus não é, pois, segundo o próprio conceito que basicamente o define, de ordem física e material, mas antes de ordem teleológica e funcional.
Esta configuração teleológica e funcional do corpus possessório, que dispensa o contacto material com a coisa, não resulta, aliás, tão-somente, da própria ideia de “fruição” ou exercício dos direitos consignada no art. 474º, sabido, como acabamos de ver, que nem todo o exercício de direitos se exerce através do contacto material com os seus objectos. Encontra ela ainda uma concludente explicitação em dois outros preceitos legais, que são o § 2º do art. 474 e o art. 531º. No primeiro daqueles textos diz-se que a posse se conserva enquanto dura a mesma “possibilidade de continuar a retenção ou fruição da coisa ou direito, o que supõe que o poder pode não ser material e efetivo mas tão-somente virtual; no segundo dispõe-se, quanto aos direitos que por sua natureza se exercem raramente, que podem ser prescritos pela forma e no prazo designado para a prescrição, provando-se que durante esse tempo foram exercidos sem oposição todas as vezes que foi necessário para o gozo normal e completo daquilo para que, conforme a sua natureza ou índole, a coisa prestava.
Em consequência do exposto, podemos, pois, concluir, que a essência do elemento material da posse, isto é, do corpus, está na prática de atos de utilização da coisa que sejam conformes com a finalidade económico-jurídica dos direitos que sobre eles se exercem, independentemente de um contacto material e constante com a mesma; ou, numa outra formulação de alcance idêntico, que o corpus terá a configuração que for exigida pela natureza do direito exercido e pela função económica da coisa que é seu objeto.»[62].
Os ensinamentos de Manuel Rodrigues e José Dias Marques, ainda que formulados à luz do Código Civil de 1867, elaborado pelo Visconde de Seabra, mantêm plena atualidade à luz do Código Civil de 1966.
Ainda a este propósito, ensina Henrique Mesquita, para quem «não basta, para adquirir a posse, que se exerçam poderes jurídicos sobre uma coisa. Só o exercício de poderes materiais (v. g., atos de uso, de fruição ou de transformação) é suscetível de traduzir inequivocamente a existência duma relação de facto. (...) Por isso se diz, no art. 1263º, al. a), que a posse se adquire pela prática de atos materiais.
Quanto à natureza e intensidade dos atos materiais necessários ao surgimento da relação possessória, isso depende da natureza do objeto (...) e do direito que sobre ele se pretende exercer. Aqueles atos hão de revestir uma natureza tal que, segundo o consenso público, traduzam o exercício do direito real correspondente à posse. Em regra, será necessária uma série de atos – a sua prática reiterada (art. 1263º, alínea a)) – mas poderá também um só ato evidenciar a posse (...). Essencial é que os atos aquisitivos se dirijam ao estabelecimento duma relação duradoura com a coisa, não bastando um contacto fugaz e passageiro (...).
Diga-se, por último, que os atos que originam o surgimento da relação de facto com a coisa hão de ser praticados com publicidade (art. 1263º, al. a)), isto é, de modo a poderem ser conhecidos dos interessados (...).»[63].
O segundo dos referidos elementos da posse, o subjetivo, correspondente ao animus, consiste na intenção de agir como titular do respetivo direito.
Isto porque o legislador português não aceitou a conceção objetiva da posse, segundo a qual a posse sobre uma coisa se adquire pela mera detenção do poder de facto sobre ela.
Muitas vezes acontece que os atos materiais em que se exterioriza a posse são equívocos porque correspondem simultaneamente ao exercício de direitos de tipo diferente e, então, é o animus que nos dirá exatamente a que direito corresponde a atuação de facto.
E esse elemento subjetivo da posse formal está intimamente relacionado com a forma da sua atuação ou investidura: se esta for derivada, o tipo de negócio jurídico de que resulta a posse, domina o animus de tal modo que ao ato jurídico, quando existir, se há-de recorrer sempre para averiguar qual o animus daquele que, em virtude dele, exerce a posse, sendo certo que contra a causa de que a posse deriva não é permitido alegar uma vontade concreta do detentor, salvo este tiver invertido o título; se a investidura é unilateral, o animus terá de ser muito mais marcado e a sua determinação resultará quer de toda a atuação do possuidor quer da prova direta da sua concreta intenção.
E daqui deriva já, ao que se pensa, que o elemento subjetivo da posse pode revelar-se através da própria estrutura do corpus, da natureza objetiva dos atos praticados, independentemente da averiguação direta da intenção do possuidor.
Ponto é que, neste caso, a conduta, a atuação objetiva do possuidor, não seja equívoca, porque compatível com o exercício de diversos direitos ou porque suscetível de se reduzir à mera detenção.
Como ensina Orlando de Carvalho, «a vontade de agir como titular de um direito real exprime-se (e «hoc sensu» emerge ou é inferível) em certa atuação de facto; daí que a intenção de domínio não tenha que explicitar-se, já que aquilo que importa é que ela se infira do próprio modo de atuação ou de utilização.»[64]
Nos termos do art. 1252º, nº 2, do CC, «em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (…).».
Decorre deste preceito que em caso de dúvida, a posse presume-se em quem exerce o poder de facto, isto é, presume-se o exercício do animus naquele que detém o corpus, presunção a que subjaz a dificuldade de provar o dito animus. Foi neste sentido o decidido pelo Acórdão do S.T.J. de 14.05.1996, que é de uniformização de jurisprudência, relatado pelo Cons. Amâncio Ferreira, e publicado no B.M.J. 457º, 55, e no DR II Série, de 24.06.1996.
Trata-se de uma presunção juris tantum, ilidível mediante prova em contrário.
À luz dos considerandos que antecedem, e tendo presente a factualidade provada, a solução que se impõe é, tal como fez a 1ª instância, julgar a reconvenção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição do autor do pedido reconvencional.
Afigura-se-nos, no entanto, que a 1ª instância labora nalguns equívocos na respetiva fundamentação.
Os réus não se intitulam titulares «no direito de lhes ser reconhecido o direito de aquisição por usucapião da quantia mutuada no valor de €7.481,96, bem como, dos objectos vendidos no valor global de €3.866,30, que se encontram na posse dos Réus desde Agosto de 1997.».
Conforme se verifica pelo teor da contestação/reconvenção, apenas a 4ª ré, Maria ..., se arroga titular:
- do dinheiro emprestado pela autora à sociedade ..., Lda.;
- dos bens vendidos com reserva de propriedade pela autora à sociedade ..., Lda.,
por, alegadamente os ter adquirido por usucapião.
Apenas a ré ... Maria pede que lhe seja reconhecido «o direito de aquisição por usucapião da quantia de € 7.481,96», bem como «a aquisição por usucapião dos bens constantes da factura nº 18757: Uma Máquina de café ..., dois moinhos de café ... e um termo de leite de café ...) no valor global de € 3.866,30».
Existe, pois, um evidente equívoco na sentença recorrida quando nela se afirma, em sede de fundamentação de direito, que «olhando para os factos apurados, dúvidas não existirão que os Réus exerceram sobre aqueles bens uma posse pública e pacífica, nos termos acima definidos e durante mais de dezoito anos ininterruptos até à propositura desta acção, já que a Autora, entregou-lhes a quantia de €7.481,96 para investimento directo em mercadorias e bens de equipamento, bem como, os objectos no valor global de €3.866,30, que os Réus utilizaram como sendo coisas suas, o que efectivamente veio a suceder desde Agosto de 1997.». Comecemos pelo dinheiro emprestado pela autora à sociedade ..., Lda..
Afirma-se na sentença recorrida: «Por sua vez, a quantia mutuada tinha como obrigação a sua restituição na data do termo do contrato, o que permite afirmar que o mutuário (Réus) não pudesse ser desconhecedor que aquela quantia que lhe havia sido entregue por via do contrato de comércio celebrado, tinha como obrigação ser restituída na data do termo final daquele contrato, não se podendo aceitar que os Réus ao receberem a quantia mutuada ficaram cientes que não estariam pois obrigados ao cumprimento e que se considerassem imediatamente donos da coisa».
Decorre do contexto da norma que define o mútuo - art. 1142º do Cód. Civil - que o mutuário fica obrigado a restituir a soma equivalente ao montante mutuado, acrescida das quantias estipuladas nas condições contratuais. E mesmo que resolvido o acordo, nem por isso o mutuante deixa de ter direito de receber a soma que mutuou.
Vejamos!
Dispõe o art. 1142º do CC, que «mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.».
Por sua vez, estatui o art. 1144º do mesmo código que «as coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega.».
Resulta destas disposições legais que pelo mútuo, uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, obrigando-se esta a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade e, dada essa fungibilidade, a coisa emprestada confunde-se no património do mutuário.
Logo, a coisa mutuada, a coisa emprestada, pelo facto da entrega, torna-se propriedade do mutuário.
Ou seja, sendo o contrato de mútuo, quanto aos seus efeitos, um contrato real, a entrega da coisa mutuada importa a transferência da propriedade da mesma, do mutuário para o mutuante.
Donde, o mutuário não ter de invocar a usucapião para justificar a propriedade do dinheiro recebido, mas isso não significa que se extinga a prestação a que se obrigou da sua restituição[65].
A quantia emprestada pela autora à sociedade ..., Lda. (€ 7.481,96) foi entregue por aquela a esta através de cheque bancário.
Assim, no momento da entrega do cheque, a sociedade ..., Lda. tornou-se proprietária da quantia em dinheiro nele titulada, ficando obrigada a restituir à autora o valor corresponde, ou seja, igual quantia, «na data do termo final do contrato».
A partir desse momento, a sociedade ..., Lda., não teria, em momento algum, que invocar perante a autora a figura da usucapião para justificar a propriedade desse dinheiro.
O que a sociedade ..., Lda., a partir do momento em que o dinheiro lhe foi entregue, ainda que através de cheque, fez com ele, é problema dela!
Se, em vez de o investir diretamente «em mercadorias e bens de equipamento no seu estabelecimento comercial sito na Est... N... nº 1... – Nº ... – S... F... – Montijo», conforme ficou estipulado na cláusula 5ª do contrato, o entregou à ré Maria ..., para que esta dele fizesse o que bem entendesse, é problema a que a autora é alheia, em nada afetando o seu direito de exigir da sociedade ..., Lda., o montante correspondente à quantia que a esta emprestou, ou então, dos aqui apelantes, posto que estes se comprometeram a responder pessoal e solidariamente pelo exato e fiel cumprimento das obrigações por aquela sociedade assumidas, diretamente derivadas do contrato ou da sua resolução (cláusula 15ª).
Em suma, se era injustificável a invocação, pela mutuária, a sociedade ..., Lda., perante autora, da aquisição, por usucapião, do dinheiro que esta lhe emprestou, injustificável é, por maioria de razão, tal invocação feita pela ré Maria ....
A pretensão deduzida pela ré Maria ... contra a autora, no sentido «lhe ser reconhecido o direito de aquisição por usucapião da quantia de € 7.481,96» (sic), assenta, assim, num manifesto equívoco. E quanto aos bens vendidos pela autora à sociedade ..., Lda., com reserva de propriedade a favor daquela.
Com relevo para a decisão da questão ora em apreço estão ainda provados os seguintes factos:
A cláusula 8ª do contrato tem a seguinte redação: «A PO vende à representada dos SO os bens mencionados na Factura número 18757 de 06 de Agosto d 1997 – da qual se apensa cópia que aqui fica dada por reproduzida – pelo preço global se setecentos e setenta e cinco mil cento e vinte e cinco escudos (775.125$00[66]) – com I.V.A. incluído – reservando para si a propriedade dos mesmos até ao seu integral pagamento»;
Os bens mencionados naquela fatura são uma máquina de café de marca ..., modelo 95C7; dois moinhos de café de marca ... (modelo 60ª) e um termo de leite ... (6 LT. 17658);
A cláusula 9ª do contrato tem a seguinte redação: «A obrigação de pagamento do preço vencer-se-á na data do termo final deste contrato»;
A cláusula 10ª do contrato tem a seguinte redação: «A SO declara comprar para a sua representada, os bens referidos no número 8 (...)»;
No verão de 1998 foi ponderada pelo réu Martinho ... a cessão, a António J... e Ana C... F..., do estabelecimento comercial da sociedade ..., Lda., sito na Rua C... R..., Lote ..., ...º Direito, na M...;
A ré Maria ... informou os referidos António J... e Ana C... F... que a máquina de café de marca ..., os dois moinhos de café de marca ... e o termo de leite ..., não se encontravam pagos à autora;
(...) por essa razão os referidos António J... e Ana C... F... recusaram ficar com aqueles objetos em seu poder;
A ré Maria ... retirou os mencionados objetos do estabelecimento comercial referido em 26. e levou-os para um armazém propriedade de Paulo G...;
(...) e informou telefonicamente a autora, através de um funcionário de nome Casimiro, para os ir buscar;
A autora não foi buscar aqueles bens, pelo que a ré Maria ... os manteve em seu poder, como se fossem seus, até ao Verão de 2012;
(...) altura em que os deitou fora por se encontrarem deteriorados.
Existe, reitera-se, um evidente equívoco na sentença recorrida quando nela se afirma, em sede de fundamentação de direito, que «(...) dúvidas não existirão que os Réus exerceram sobre aqueles bens uma posse pública e pacífica, nos termos acima definidos e durante mais de dezoito anos ininterruptos até à propositura desta acção, já que a Autora, entregou-lhes (...) os objectos no valor global de €3.866,30, que os Réus utilizaram como sendo coisas suas, o que efectivamente veio a suceder desde Agosto de 1997.».
Dispõe o art. 408º, nº 1, do CC, que «a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as exceções previstas na lei.».
Resulta deste preceito legal a atribuição, pela lei, de eficácia real aos contratos, para além da sua normal eficácia.
A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada decorre da vontade dos contraentes, traduzida nas suas declarações negociais, sem quaisquer outras exigências.
Em reforço da tutela dessa vontade, expressa no princípio da transferência consensual do domínio, é legalmente permitido que as partes contraentes façam depender de um acontecimento futuro o pleno efeito translativo do domínio da coisa objeto do contrato.
Nesse caso, o efeito translativo não se produz de imediato, mantendo-se a propriedade da coisa na titularidade do alienante.
É o que resulta do art. 409º, nº 1, do CC: «Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.».
O objetivo pretendido pelos contratantes com a estipulação de uma cláusula de reserva de propriedade é o de garantir a satisfação do crédito do vendedor ao preço.
A fixação de uma cláusula de reserva de propriedade faz nascer na esfera jurídica do adquirente uma expectativa real de aquisição, a qual lhe permitirá gozar, em nome próprio, de todas as faculdades que assistem ao proprietário até ocorrer o tal evento futuro.
O art. 409º, nº 1, do CC, traça assim o desenho do pactum reservati dominii: por força da cláusula de reserva de propriedade, a transferência da propriedade da coisa objeto do contrato fica sujeita a uma condição suspensiva ou a um termo inicial.
Sempre que o evento futuro é o pagamento do preço, a condição é sui generis, tratando-sede uma condição potestativa a parte debitoris; no entanto, de uma condição.
O caráter sui generis de uma tal condição permite a afirmação de que o adquirente, ainda que conhecendo a reserva de propriedade, tem já o animus possidendi próprio do titular de um direito real[67].
A este propósito refere Pedro Romano Martinez que «no caso de ter sido celebrado um contrato de compra e venda com reserva de propriedade, mesmo que tenha havido tradição da coisa, é discutível que se transfira a posse (...), concluindo, no entanto, no sentido de que lhe parece que a solução correta é aquela que aponta no sentido de se estar já perante uma verdadeira posse[68]
Acontece que, no caso concreto, quem vem invocar a aquisição dos bens acima identificados, por usucapião, com base na posse, não é a adquirente[69], mas a ré Maria ....
Ora, a matéria de facto provada não é reveladora, desde logo, da intenção da ré Maria ... em atuar relativamente àqueles bens como se fosse titular do direito de propriedade sobre os mesmos, pelo que não está demonstrado o elemento subjetivo da sua alegada posse sobre eles, ou seja, o animus possidendi.
Está provado que:
- «no verão de 1998 foi ponderada pelo réu Martinho ... a cessão, a António J... e Ana C... F..., do estabelecimento comercial da sociedade ..., Lda., sito na Rua C... R..., Lote ..., ...º Direito, na M...»;
- «a ré Maria ... informou os referidos António J... e Ana C... F... que a máquina de café de marca ..., os dois moinhos de café de marca ... e o termo de leite ..., não se encontravam pagos à autora»;
-por essa razão «os referidos António J... e Ana C... F... recusaram ficar com aqueles objetos em seu poder»;
-em consequência disso, a ré Maria ... retirou-os do estabelecimento comercial referido em 26. da fundamentação de facto da sentença e levou-os para «um armazém propriedade de Paulo G..., informando telefonicamente a autora, através de um funcionário de nome Casimiro, para os ir buscar».
No entanto, nem sequer se sabe se os ditos António J... e Ana C... F... adquiriram efetivamente o estabelecimento comercial referido em 26. da fundamentação de facto.
Assim como se desconhece a data em que a ré Maria ... retirou os bens daquele estabelecimento e os levou para o tal armazém pertença de Paulo G....
Sabe-se ainda que «a autora não foi buscar aqueles bens, pelo que a ré Maria ... os manteve em seu poder, como se fossem seus, até ao Verão de 2012, altura em que os deitou fora por se encontrarem deteriorados».
Além do que fica exposto, de concreto, rigorosamente nada mais se sabe, sendo que não basta, para configurar uma situação de posse da ré Maria ... relativamente àqueles bens, a afirmação vaga, genérica, desprovida de conteúdo factual, de que «os manteve em seu poder, como se fossem seus».
É que, bem vistas as coisas, nem sequer se sabe, concretamente, em que é que consistiu, em que é que se traduziu, a atuação da ré Maria ... sobre os bens desde a altura em que os levou para o armazém de um tal Paulo G... até ao momento em que, no verão de 2012, os deitou fora por se encontrarem deteriorados. Ou seja, desconhece-se que concretos atos materiais, virados para o exterior, visíveis por toda a gente, praticou a aquela sobre os bens durante aquele intervalo de tempo. Em suma, desconhece-se se a ré Maria ... atuou em relação àqueles bens de forma correspondente ao exercício do real de propriedade sobre os mesmos.
Não se sabe até se porventura, ao atuar como atuou, retirando, em data que se desconhece, os bens do estabelecimento referido em 26. da fundamentação de facto da sentença, e levando-os para o armazém do tal Paulo G..., não se limitou a atuar com simples «animus detenendi», em nome da pessoa que efetivamente então os possuía, a sociedade ... Lda..
Resulta de tudo quanto vem de ser exposto, que relativamente:
- ao dinheiro emprestado pela autora à sociedade ..., Lda., não faz sequer sentido, traduzindo-se num manifesto equívoco, a invocação da sua aquisição pela ré Maria ..., através da usucapião;
- aos bens vendidos pela autora à sociedade ..., Lda., com reserva de propriedade a seu favor, a ré Maria ... não logrou provar ter a posse dos mesmos, o que, obviamente, inviabiliza a sua aquisição por usucapião.
É, assim, ainda que com diferentes fundamentos, de manter a decisão da 1ª instância que julgou improcedente a reconvenção, com a consequente absolvição da autora do pedido reconvencional.
*
4 –DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
[1]Doravante, por uma questão se simplificação, identificada apenas por sociedade “Daniela, Lda.”. [2]Doravante referido apenas como “contrato”. [3]Sucede que, tal como decorre da certidão permanente que constitui o documento de 26-28, à data da instauração da presente ação, ia para oito anos que a sociedade Daniela, Lda., se encontrava extinta, em consequência do cancelamento da respetiva matrícula. Por isso, à data da instauração da presente ação, ia para oito anos que a dita sociedade não tinha personalidade jurídica, nem, consequentemente, personalidade judiciária.
Seria, portanto, caso de o tribunal a quo ter verificado a ocorrência da exceção dilatória consistente na falta de personalidade da ré Daniela, Lda., exceção de conhecimento oficioso, e tê-la absolvido da respetiva instância, nos termos dos arts. 11º, nºs 1 e 2, 278º, nº 1, al. c), 577º, al. c), e 578º do CPC, em vez ter julgado extinta a instância quanto a ela, por inutilidade superveniente da lide. Trata-se, no entanto, de uma questão que não constitui objeto do presente recurso, encontrando-se, por isso, tal decisão transitada em julgado. [4]Os enunciados de facto descritos em 2. a 6 foram introduzidos por este tribunal nos termos dos arts. 663º, nº 2 e 607º, nº 4, do CPC, e resultam da supra referida certidão permanente de teor da matrícula da sociedade Daniela, Lda., que constitui o documento de fls. 26-28. [5]“Primeira Outorgante”, a aqui autora. [6]“Segunda Outorgante”, a aqui 2ª ré, que naquele contrato outorgou como representante da sociedade Daniela, Lda.. [7]A que correspondem € 7.481,96. [8]A que correspondem € 3.866,30. [9]A sociedade Daniela, Lda. [10]Os 2º a 4º réus. [11]Dá-se por reproduzido o teor da nota 2.. [12]Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp. 279-280. [13]Idem, pp. 284-285. [14]Idem, p. 290. [15]Ob. Cit., pp. 292-294. [16]Contrato no qual os réus Fernanda Maria, Martinho Mestre e Maria Daniela se comprometeram a responder, pessoal e solidariamente com a sociedade Daniela, Lda., pelo exato e fiel cumprimento das obrigações por esta assumidas, diretamente derivadas do Contrato ou da sua resolução. [17]“Primeira Outorgante», ou seja, a autora, aqui recorrida. [18]A “SO” (“Segunda Outorgante”) no contrato é a ré Fernanda Maria, e a sua representada é a sociedade Daniela, Lda.. [19]Na terminologia do Ac. da R.E. de 27.04.2007, Proc. nº 146/14.8TBOLH.E1 (Tomé de Carvalho), in www.dgsi.pt. [20]A publicidade, independentemente das suas formas, é regulada pelo Código da Publicidade, aprovado pelo Decreto-Lei nº 330/90, de 23 de Outubro, com as alterações que lhe foram sendo sucessivamente introduzidas, e pelas normas de direito civil ou de direito comercial (artigos 1º e 2), e consubstancia-se em qualquer forma de comunicação feita no âmbito de uma atividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o objetivo direto ou indireto de promover, com vista à sua comercialização ou alienação, quaisquer bens ou serviços, ou de promover ideias, princípios, iniciativas ou instituições (artigo 3º, nº 1). [21]A que correspondem € 18,21. [22]A que correspondem € 7.481,96. [23]A que correspondem € 3.866,30. [24]A sociedade Daniela, Lda., através da sua representante, a ré Fernanda Maria, declarou comprar aqueles bens à autora, no estado de novos, em bom estado de funcionamento e defeitos aparentes, comprometendo-se a proceder ao pagamento do respetivo preço na data do termo final do contrato. [25]A que correspondem € 7.481,96. [26]Dispõe o art. 2º do Cód. Comercial que «serão considerados atos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código, e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar».
Estatui, por sua vez, o art. 13º do mesmo código:
«São comerciantes:
1.º As pessoas, que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão;
2.º As sociedades comerciais. [27]Comentário ao Código Comercial Português, Vol. II, p. 458. [28]Comentario ao Codigo Commercial Portuguez, Vol. II, 2ª Ed., Companhia Portuguesa Editora, Lda. Porto, p. 377. [29]R.L.J., Ano 110º, nº 3586, p. 16. [30]JR, 13º, p. 16. [31]Conforme refere Jorge Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, Vol. I, 6ª Ed., 2006, p. 44, «os “actos” de comércio são sobretudo contratos.». [32]A sociedade Daniela, Lda., foi extinta em 19 de novembro de 2008. [33]Neste sentido, veja-se a anotação de Brandão Proença ao art. 317º do CC, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Edição da Universidade Católica, Facultada de Direito, 2014, p. 765. [34]Certamente por lapso, naquele requerimento a autora/recorrente alude à dissolução e liquidação da sociedade Daniela, Lda., quando é sabido que isso não implica a extinção da sociedade, o que só ocorre com o registo do cancelamento da sua matrícula. No caso concreto, a dissolução e liquidação, e o cancelamento da matrícula daquela sociedade, ocorreram na mesma data. [35]Conforme acima referido, tendo a extinção da sociedade Daniela, Lda., ocorrido vários anos antes da instauração da ação, a solução correta seria ter-se julgado verificada a exceção dilatória consistente na falta de personalidade judiciária daquela sociedade, com a sua consequente absolvição da instância. [36]Cfr. cláusula 15ª do contrato. [37]“Se a representada da Segunda Outorgante – por facto culposo – não efectuar compras de café durante três meses, ou não realizar um mínimo trimestral de compras de cento e oitenta (180) quilos de café – em dois trimestres seguidos ou interpolados – ou não pagar quaisquer facturas vencidas no prazo de oito (8) dias, a contar dos vencimentos, poderá a Primeira Outorgante resolver o contrato, reclamar indemnização em montante equivalente a vinte por cento (20%) do valor do café prometido e não adquirido, restituição integral e imediata da quantia mutuada e restituição dos bens ou pagamento do seu preço como melhor aprouver à Primeira Outorgante, podendo também a Segunda Outorgante resolver o contrato em caso de incumprimento culposo da Primeira Outorgante”. [38]Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, pp. 88-89. [39]Neste sentido, Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 7ª Reimp., Almedina, 1987, p. 452, e Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, in B.M.J. 107º, 285. [40]Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações cit., pp. 92-97. [41]A que correspondem € 11.348.28. [42]A que correspondem € 7.481,96. [43]A que correspondem € 3.866,30. [44]Consigna-se que relativamente à questão da prescrição prevista na al. g) do artº 310º do CC, se seguiu de perto o Ac. da R.P. de 15.10.2013, Proc. nº 3992/12.3TBPERD.P1 (Vieira e Cunha), in www.dgsi.pt, o qual, em várias passagens, se deixou transcrito. [45]Dispõe o art. 344º, nº 1, do Código Civil, que «as regras dos artigos anteriores invertem-se, quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.». [46]Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina, 2003, p. 111. [47]Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, Almedina, pp. 185 e segs., 194 e segs. e 201, ao aproximar-se criticamente de Larenz. [48]Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Almedina, 1995, p. 208. [49]Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, p. 223. [50]O autor referido é Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Ed., pp. 503 ss. [51]Ou seja, da autora. [52]Das Obrigações cit., pp. 96-97. [53]Idem, p. 101. [54]A que correspondem € 7.481,96. [55]A que correspondem € 3.866,30. [56]Dá-se por reproduzido o teor da nota 2. [57]Na sentença recorrida escreveu-se «foi paga». [58]Cfr. Ac. da R.C. de 02.05.1989, B.M.J. 387º, 671 e cit. Ac. do S.T.J.; na doutrina, cfr. por todos, Henrique Mesquita, in Direitos Reais, Coimbra, 1967, pp. 112-113. [59]Cfr. cit. Ac. do S.T.J.. [60]Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pp. 546 a 549. [61]A Posse, Coimbra Editora, Ed. de 1924, pp. 107 e 108. [62]Prescrição Aquisitiva, Volume I, Lisboa, 1960, pp. 26 a 30, [63]Direitos Reais cit., p. 96. [64]Introdução à Posse, in R.L.J., Ano 122º, pp. 68 e 69 e 105, [65]Cfr. Ac. do S.T.J. de 24.07.1986, Proc. nº 073888 (Cons. Gomes dos Santos), in www.dgsi.pt. [66]A que correspondem € 3.866,30. [67]Cfr. Ramos Faria, A Reserva de propriedade constituída a favor de terceiro financiador, in Revista Julgar, Edição da ASJP, nº 16, 2012, pp. 14-17. [68]Direito das Obrigações (Parte Especial) – Contratos, Almedina, 2000, p. 40, nota, nota 2, onde, após citar alguma doutrina, refere: «De facto, admitindo-se que o promitente comprador, havendo, havendo tradição da coisa, te posse sobre a mesma, por maioria de razão, o comprador com reserva de propriedade, tendo-lhe sido entregue a coisa, adquire a posse.». [69]Nem poderia ser, pois a adquirente, a sociedade Daniela, Lda., foi extinta vários anos antes da instauração desta ação.