I - Os crimes de extorsão e de abuso de confiança são crimes contra o património em geral;
II - No crime de extorsão a vítima é levada a fazer uma disposição patrimonial na sequência de violência ou ameaça de mal importante. Isto é, a coisa é entregue uti dominus ao agente;
III - No crime de abuso de confiança a vítima entrega a coisa móvel uti alieno, isto é, com a obrigatoriedade de a restituir. Só num segundo momento há a inversão do título de posse;
IV - Em ambos há um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima);
V - No crime de extorsão a apropriação consuma-se com a entrega da coisa;
-VI - Ao invés, no crime de abuso de confiança, a apropriação só pode ter lugar depois do recebimento da coisa;
VII - No crime de extorsão a intenção de enriquecimento ilegítimo intervém como elemento subjectivo do tipo;
VIII - No crime de abuso de confiança a apropriação intervém como elemento objectivo do ilícito e traduz-se sempre na inversão do título de posse ou detenção.
IX - Não basta, para haver extorsão, a lesão da liberdade de disposição patrimonial. Se apenas for lesada esta liberdade, haverá crime de coacção, mas não crime de extorsão. Eis o que acontece, no caso do constrangimento (mediante violência ou ameaça com mal importante) ao pagamento de uma dívida. Para haver extorsão é necessário - como crime contra o património que é - que a disposição patrimonial constitua um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima da coacção ou para terceiro). …”.
O Assistente António , disse que conheceu a "A" há mais de 10 anos por intermédio da testemunha Filomena ..., e negou ter tido qualquer relacionamento amoroso com a "A".
Admitiu ter tido relacionamento sexual com a arguida "B", a qual disse conhecer por “Isabel”, mas referiu que, em todas as saídas que tiveram juntos, os pares eram ele com a "B", o Magalhães com a "A" e a "C" com o Vieira.
Descreveu os diversos encontros que tiveram, nomeadamente jantares e passeios na quinta em Fafe da família do Jorge..., e uma estadia na Estalagem Zende em Esposende.
Disse que em determinada altura, por finais de Julho de 1999, a "C" lhe ligou e lhe disse para dizer ao Vieira que estava grávida, e, posteriormente, no restaurante da "C", numa reunião em que estava ele, o Magalhães, a "C" e a "A", lhes foi exibido um teste de gravidez positivo, dizendo que era da "C", a qual dizia que por problemas de saúde não podia engravidar e que iria matar o Jorge ... e a família toda, dizendo que ela morria de qualquer maneira, mas que não morreria só.
Descreveu as posteriores ameaças de morte recebidas pelo telefone e disse que foi a "A" quem liderou todo o processo.
Disse ainda que numa reunião, alguns dias mais tarde, no café Tuxo, em que estava ele, mais o Vieira, mais o Magalhães, mais a "A" mais a “Isabel” (que era a arguida "B"), após uma conversa telefónica com a "C" em que a "C" fez de novo diversas ameaças pelo telefone, ficou combinado depositarem 30.000.000$00 na conta da "A", sem que esta lhe mexesse, mas só enquanto ia tentar arranjar uma solução com a "C" e até esta acalmar.
Questionado porque é que não foi o Jorge ... a arranjar e depositar o dinheiro pois que era ele o autor da suposta gravidez, disse que ele não tinha dinheiro e, portanto, o Araújo se prontificou a emprestá-lo até a situação se resolver.
Acrescentou ainda que foi ele próprio a passar o cheque e a depositá-lo na conta da "A", razão pela qual autorizou o seu Banco a pagar o cheque quando o seu gerente de conta lhe telefonou, sempre convencido que o dinheiro respectivo não era para levantar.
Disse ainda que, passados uns dias a "A" lhe telefonou a dizer que afinal tinha levantado o dinheiro para o mostrar à "C" pois ela não acreditava no talão de depósito, e só então começou a ficar desconfiado passando a exigir à "A" a devolução do dinheiro, indo com ela um dia ao apartamento da "B".
Descreveu esse episódio dizendo que foi lá porque a "A" lhe disse que o dinheiro (os 30.000.000$00) estavam guardados no apartamento da "B", num saco, acedendo a ir lá buscá-lo com a "A", indo para lá no seu carro e a "A" no dela, e, quando lá chegaram, a "A" disse-lhe que não tinha a chave, pelo que, a conselho dela, foram no carro dela buscar o Zé Puto, indivíduo especialista em abrir fechaduras de portas, o qual veio e abriu a porta, e, logo que entraram, procuraram e não encontraram o dinheiro e a "A" disse que a "B" tinha fugido com o mesmo, pelo que no dia seguinte apresentou queixa na P.S.P.
Negou qualquer envolvimento sexual com a "A", negou que lhe tenha dado prendas (relógios, ouro, etc.) e disse que, embora não tenha se tenha sentido directamente pressionado ou coagido pela "A", disponibilizou o dinheiro (os 30.000.000$00) de que nesse momento podia dispor, porque sentiu o medo do seu amigo Jorge e o receio que ele tinha de sofrer ele e a sua família, as consequências das atitudes a tomar pela "C", tudo no intuito de evitar o divórcio do seu amigo ou mesmo mortes.
O Assistente Jorge disse que conheceu as arguidas todas ao mesmo tempo por intermédio do Araújo, cerca de Julho de 1999, iniciando uma amizade que culminou em diversas relações sexuais entre si e a "C".
Disse que os pares eram ele e a "C", o Magalhães e a "A" e o Araújo com a "B", a qual conheciam por Isabel.
Descreveu os encontros que tiveram na quinta da sua família em Fafe, e em restaurantes, e disse que, em determinada altura, a "C" apareceu a dizer que estava grávida, referindo que foi a "A" quem lhe telefonou a dizer isso, situando esse telefonema numa altura em que estava em Moncorvo com o Magalhães num fim-de-semana de caça.
Disse que foi convocado para uma reunião no café Tuxo pela "A" em que esteve ele, o Magalhães, o Araújo e a "A", no decurso da qual a "C" telefonou com ameaças e exigências pelo telefone, ameaçando ir à casa dele contar tudo à família e ameaçando matar toda a sua família, pelo que decidiram arranjar uma verba para ela não realizar as ameaças, verba essa que ela exigiu pelo telefone serem 30.000.000$00, a qual, como ele não tinha, foi disponibilizada pelo Araújo.
Confirmou que a "A" se disponibilizou para ficar guardiã desse dinheiro até a "C" acalmar, e descreveu o modo como foi o Araújo depositar um cheque dele na conta da "A".
Disse ainda que passados alguns dias o Araújo quis saber do dinheiro pelo que, como a "A" disse que o dinheiro estava na casa da "B", foram lá os quatro (Araújo, Magalhães, Vieira e "A"), mas a "A" depois foi com o Araújo buscar o Zé Puto, que abriu a porta da casa e, depois, entraram, vendo que o dinheiro não estava lá e dizendo a "A" que a "B" tinha fugido e levado o dinheiro, pelo que no dia imediato foram fazer queixa à PSP.
Disse ainda que se sentiu muito pressionado e ameaçado, com muito medo de ter consequências graves para si e para a sua família e que o Araújo disponibilizou esse dinheiro apenas para o ajudar a resolver a situação.
O Magalhães disse que conheceu as arguidas através do António Araújo, tendo ido jantar juntos e depois a uma quinta pertença do Vieira em Fafe, iniciando um relacionamento íntimo entre eles, sendo pares ele próprio com a "A", o Vieira com a "C" e o Araújo com a "B", a qual conheciam por Isabel, descrevendo depois outros jantares e saídas entre todos.
Referiu um jantar com dormida na Estalagem Zende em Esposende, ficando ele com a "A" num quarto e o Araújo com a "B" noutro quarto.
Referiu o fim-de-semana de caça em Trás-os-Montes já referido pelo Vieira, embora o situe em data diferente, dizendo também que a "A" lhe telefonou a ele referindo-lhe a gravidez da "C", e, por isso ficou combinado um encontro em que esteve ele, o Araújo, o Vieira, a "B" e a "A" acertando-se então o montante de 30.000.000$00, após telefonemas com ameaças e exigências da "C", montante esse que o Araújo disponibilizou, e que seria apenas para “segurar” a "C" de cumprir as ameaças que fizera, e nunca para levantar.
Confirmou também a ida posterior ao apartamento da "B" para ir buscar o dinheiro pois a "A" dissera que o mesmo estava lá, confirmando a presença lá de um indivíduo para abrir a porta, e, verificando que nem a "B" nem o dinheiro lá estavam, a "A" disse que a "B" tinha fugido, e, quando eles disseram que iam à PSP apresentar queixa, pela "A" foi dito não era preciso pois polícia era ela.
Referiu também que no dia seguinte a esses factos foram à PSP apresentar queixa e a partir daí, durante alguns dias receberam telefonemas ameaçadores de outras pessoas.
Guilherme disse ter conhecido a "A" em Novembro de 1999, apresentada por um amigo comum, a testemunha Firmino ..., a pretexto de ela comprar uma pedra de mármore para uma mesa, na empresa dele, e a partir daí, foram tomar café, iniciando um relacionamento no qual, em 15 dias tiveram relações sexuais duas vezes.
Disse ainda que depois esteve para o estrangeiro, e, quando regressou, em Janeiro de 2000, encontrando-se de novo com a "A" esta disse-lhe que se sentia mal e estava à espera de uns resultados, acabando por lhe ligar passados uns dias dizendo-lhe que estava grávida.
Como era casado com uma mulher muito ciumenta e não pretendia assumir a paternidade da criança, tentou convencê-la a fazer um aborto, chegando a dar-lhe cerca de 150.000$00 para esse efeito, mas ela não o fez, dizendo-lhe que tinha um cancro da pele no baixo-ventre e não podia ser operada.
Contou depois um encontro no Restaurante Augusta, na estrada para a Póvoa de Lanhoso, durante o qual a "A", de modo muito subtil lhe foi dando a entender que iria fazer com que a mulher dele soubesse, pelo que, aceitou “negociar” o silêncio dela começando por lhe oferecer 1.000.000$00, subindo as ofertas, acabando por acordar com ela o montante de 10.000.000$00 que lhe entregou, acrescentando que nunca se sentiu coagido, mas fazendo-o por acreditar que a "A" estaria realmente grávida e não queria de modo nenhum que a sua mulher soubesse.
Disse ainda que, algum tempo depois, quando foi contactado pelo Inspector ... da P.J., lhe contou a versão de que esse montante era um empréstimo para a "C", versão que foi mantendo de acordo com as arguidas "A" e "C", até que, em Novembro de 2000 a sua esposa recebeu um postal da P.J. para prestar declarações, pelo que percebeu que a sua estratégia não tinha dado resultado, acabando por contar toda a verdade à sua mulher e depois na P.J.
O Inspector ... descreveu toda a investigação efectuada e que conduziu à acusação.
Maria ..., disse que foi ela quem apresentou o Araújo à "A" em 1994 ou 1995, sabendo que os mesmos eram amigos, mas desligou-se dela em 1995 nada sabendo sobre as relações entre ambos.
Carolina ..., à parte dizer que conhecia a "B" por Isabel por trabalhar com ela num bar de alterne à noite, nada mais disse de relevante.
José ... (O Zé Puto), disse que a "A" a foi buscar, com um indivíduo, numa noite, indo a um apartamento dizendo-lhe que a casa era dela e que se esquecera da chave, e, como a conhecia de agente da ..., abriu a fechadura da porta, não se recordando de ter lá visto mais ninguém para além deles dois.
Adriano ... e António ..., funcionários da Estalagem Zende não trouxeram ao tribunal qualquer esclarecimento sobre como se compunham os casais que lá dormiram (se eram Araújo/"B" e "A"/Magalhães ou se eram "A"/Araújo e "B"/Magalhães).
Maria Isabel ... nada disse que esclarecesse o tribunal sobre os factos em apreciação.
Graça ... teve um depoimento confuso e contraditório que não serviu para ajudar o tribunal a formar a sua convicção.
Eduardo ..., irmão do assistente Vieira, depôs sobre o estado de tensão e ansiedade do seu irmão aquando dos factos e descreveu algumas ameaças telefónicas, via telemóvel, dirigidas ao seu irmão.
Fernanda ..., disse que, embora fosse o seu número de telefone que apareceu na chamada telefónica efectuada para o telemóvel do João quando este estava a depor na P.J., e referida pelo inspector ..., a chamada não foi feita de sua casa e a mesma não apareceu na sua factura telefónica pelo que terá sido alguém a servir-se das linhas telefónicas clandestinamente.
António ...a, não prestou depoimento atento o facto de ser o actual companheiro da "A".
Manuel ..., agente da ... e colega da arguida "A" disse que nada sabia sobre os factos para além de verificar que a arguida "A" fazia uma vida superior à que poderia fazer atento o salário de cerca de 150.000$00 por mês que tinha na altura, mas nada sabendo sobre o modo como ela obtinha dinheiro para os gastos que fazia.
Ana ..., de 52 anos de idade, Mãe da arguida "B" disse que foi ela quem lhe emprestou o dinheiro para comprar o Daewoo Lanos novo que ela adquiriu em 31/08/1999, em dinheiro vivo, o que é contraditório com o facto de ela ser doméstica, o seu marido funcionário público na Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, terem 7 filhos, tendo os 4 mais novos ainda 12, 18, 20 e 22 anos de idade, portanto em fase de fazerem muitas despesas aos pais, e viverem numa casa de um bairro social, entretanto adquirida por eles por 1.400 contos, portanto pouco compatível com essa disponibilidade económica.
Firmino ... confirmou que foi ele quem vendeu o Daewoo Lanos à "B", a dinheiro vivo, o que não é usual, tendo-lhe ela pedido para o carro ficar em nome da mãe dela.
António ..., agente da PSP, Rosa ..., ...Araújo, Salomé ..., Maria ... Natividade..., e Daniel ..., nada disseram que tivesse interesse para os factos.
Das testemunhas de defesa, Dianne ... disse que era muito íntima da "C", a quem ajudava no restaurante tendo dito que a "A" ia muito para lá com um senhor baixo que identificou como o ...Araújo, talvez no início de 1998, vendo-os lá no restaurante 3 ou 4 dias por semana, numa convivência muito íntima, autênticos namorados, a beijarem-se, sabendo depois, pela "A" que o Araújo lhe tinha dado dinheiro para comprar uma casa.
Quanto aos ofendidos Magalhães e Vieira, disse que não os conhecia pois nunca os tinha visto por lá.
Manuel ..., Alcino ..., agentes da ..., Alcinda ... Vítor ..., depuseram sobre o bom comportamento da arguida "A", assim como Alberto ... para a "B" e António ... para a "C".
Antónia ..., embora tivesse dito que trabalhou no restaurante da "C" e viu o Araújo lá com a "A" por diversas vezes, dizendo até que pensava que eram namorados ou casados, acabou por dizer que só ia lá fazer limpezas de fundo, duas vezes por semana, o que, quanto a nós é incompatível com a presença de clientes nessas alturas no restaurante, e, esclarecendo depois que, depois de 1997, só lá ia quando a chamavam e era precisa, o que retira credibilidade ao seu depoimento.
Ora, atento o modo como os assistentes e a testemunha depuseram, e ainda a clareza da versão trazida para o processo pelo ofendido Guilherme ..., que, no fundo, acaba por confirmar o mesmo “modus operandi” da "A", o tribunal ficou convencido que os factos se passaram do modo como a acusação refere.
Efectivamente, não é normal que um indivíduo casado, empresário, faça uma doação em dinheiro de tão avultada quantia (30.000.000$00) para a amante comprar um apartamento, quando é sabido que na cidade de Braga há apartamentos muito mais baratos, e, o normal, é serem eles próprios a comprar o apartamento, embora depois possa ser registado em nome da amante.
Não é também lógico que dure tantos anos um relacionamento amoroso (pelo menos desde 1996, na versão da "A") e, sendo o dinheiro depositado em 3/08/1999, seja de imediato levantado em 9/08/1999, logo após terem passado os dias normalmente utilizados pelos bancos para que o dinheiro fique disponível, no dia 10/08 ou 11/08 se passe o episódio da ida a casa da "B" com o Zé Puto, e no dia 12/08/1999 pelas 11 da manhã os ofendidos apresentem queixa contra as arguidas.
Entre o depósito do dinheiro e a zanga, é rápido demais para que haja tempo para uma zanga entre os amantes Araújo e "A", zanga essa tão grande de molde a o Araújo ir logo exigir a devolução do dinheiro que, voluntariamente, na versão da "A", lhe tinha dado
A versão das arguidas é demasiado ilógica para, face à experiência da vida, se poder aceitar como verosímil.
Por outro lado, é demasiado azar a "A" ter escondido o dinheiro debaixo de um colchão sendo um incêndio, logo nesse quarto, que vai consumir a mobília do quarto e, consequentemente, o dinheiro.
Embora tenha havido algumas contradições nos depoimentos sobretudo do João ...e do Magalhães, essas contradições foram em pormenores quase insignificantes, que não abalaram a credibilidade dos mesmos.
Diga-se, em abono da verdade, que é no mínimo estranho que, homens feitos, casados e com filhos, empresários e com experiência da vida, tenham sido tão facilmente enganados pelas arguidas.
Mas, esse comportamento dos ofendidos/assistentes é tão ingénuo, essa credulidade tão inacreditável, que, se calhar, é por isso que as arguidas sustentam essas versão até ao fim, mesmo em julgamento.
Assim, e pelas razões atrás expostas, o tribunal colectivo formou a convicção de que as arguidas praticaram os factos do modo acima descrito”.
Consabidamente, as conclusões da motivação balizam o objecto do recurso.
As arguidas, por um lado, impugnam a matéria de facto.
Dizem que foram incorrectamente julgados os factos narrados nas als. l) a ccc) da relação dos factos provados, designadamente no que toca aos pares formados pelas Arguidos e pelos Ofendidos; à invocação da falsa gravidez da Arguida "C" e do respectivo teste; às ameaças sobre os Ofendidos; à razão invocada para a entrega dos 30.000 contos; à entrega pelo Ofendido GUILHERME de 10.000 contos à Arguida "C"; à falsidade da gravidez da Arguida "A" e do subsequente aborto.
Defendem que deve ser dada como provada a versão que as Arguidas apresentaram em Tribunal, designadamente que a Arguida "A" e o Assistente ARAÚJO mantinham há anos, um relacionamento íntimo; que os 30.000 contos foram oferecidos e entregues em cumprimento duma promessa antiga, para aquisição duma casa; que, poucos dias depois dessa entrega, a "A" e o ARAÚJO zangaram-se e este exigiu a restituição dos 30.000 contos, que aquela se recusou a fazer; que o ofendido GUILHERME emprestou os 10.000 contos à Arguida "C"; que este não agiu induzido em erro por qualquer falsa gravidez da "A".
Alicerçam a sua pretensão no facto de o tribunal haver acolhido apenas as declarações dos Ofendidos, preterindo quer as declarações das Arguidas, quer as de algumas testemunhas, não obstante reconhecer que essas declarações estão contaminadas por contradições e que a respectiva versão é, “no mínimo, estranha”.
Ora, o depoimento dos Ofendidos ARAÚJO, VIEIRA e MAGALHÃES é profundamente contraditório nos seus elementos estruturantes: contraria dados objectivos indesmentíveis, entre os quais o simples calendário do ano de 1999 e os documentos juntos aos autos (em especial os talões de depósito e de levantamento dos 30.000 contos, e a factura de pernoita na estalagem Zende); colide com o conteúdo da queixa; não coincide sequer com os factos descritos na sentença.
Ao invés, a versão apresentada pelas Arguidas para explicar o recebimento dos 30.000 contos é coerente e lógica, tem consistência interna, não contraria as regras da experiência, é compatível com os elementos de prova disponíveis, em especial os de natureza documental, e foi confirmada, numa parte muito importante, pelo depoimento das testemunhas DIANNE ...e ANTÓNIA ....
Nenhuma prova se produziu de onde seja lícito concluir que a Arguida "A" invocou uma falsa gravidez, induzindo em erro o Ofendido GUILHERME e determinando-o, por tal motivo, à entrega os 10.000 contos.
Pelo contrário, o depoimento do Ofendido GUILHERME impõe a conclusão inversa pelo que também quanto aos factos descritos nas alíneas qq), yy) e zz) da decisão da matéria de facto, o douto acórdão incorreu em erro de julgamento.
Mesmo que assim se não entenda, as arguidas teriam cometido o crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º, nº 1, al. b), CP, incorrendo em pena de prisão de 1 a 8 anos, devendo ser alterada a medida concreta da pena.
Vejamos:
1. Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do n.º 1 do art.º 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito.
Cumprido que se mostra o ónus do n.º 3 do art.º 412º do CPP, importa conhecer da matéria de facto.
As Recorrentes alegam que não pode ser dada como provada a matéria de facto no que toca aos pares formados pelas Arguidos e pelos Ofendidos; à invocação da falsa gravidez da Arguida "C" e do respectivo teste; às ameaças sobre os Ofendidos; à razão invocada para a entrega dos 30.000 contos; à entrega pelo Ofendido GUILHERME de 10.000 contos à Arguida "C"; à falsidade da gravidez da Arguida "A" e do subsequente aborto.
Ao invés, defendem que deve ser dada como provada a versão das arguidas, isto é, que a Arguida "A" e o Assistente ARAÚJO mantinham há anos, um relacionamento íntimo; que os 30.000 contos foram oferecidos e entregues em cumprimento duma promessa antiga, para aquisição duma casa; que, poucos dias depois dessa entrega, a "A" e o ARAÚJO zangaram-se e este exigiu a restituição dos 30.000 contos, que aquela se recusou a fazer; que o ofendido GUILHERME emprestou os 10.000 contos à Arguida "C"; que este não agiu induzido em erro por qualquer falsa gravidez da "A".
Para tanto partem de contradições que, na realidade, existem nos depoimentos dos ofendidos para concluírem que os mesmos não são credíveis.
Manifestamente assim não é.
Como se afirma com muita lucidez no Ac. da Relação do Porto tirado no recurso n.º 99/20001 “a actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre questões num determinado sentido para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso a actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores que tem a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio cultural, a linguagem gestual e até saber interpretar as pausas e o silêncio dos depoentes para poder perceber e aquilatar quem estará a falar linguagem da verdade e até que ponto e que consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes não intencionalmente”.
É sabido que a comunicação verbal é a comunicação efectuada através das palavras. No entanto, este método é propenso a erros, que envolvem a antecipação, as expectativas, erros no discurso ou distorção na transmissão. Todos ou alguns destes problemas, podem ocorrer quando se fala depressa ou quando se usa a fraseologia incorrecta.
A comunicação verbal é complementada e interpretada pela comunicação não verbal.
Esta é uma forma de comunicação metafórica, simbólica e afectiva, baseando-se em sinais que têm uma relação imediata com o seu significado simbólico e/ou de semelhança.
Os principais métodos não verbais de comunicação e de estabelecimento de relações são o olhar, a expressão facial, o toque, a postura e orientação corporal, os movimentos corporais (mãos, cabeça) e a separação física (espacial). Outras informações podem ser transmitidas também pela maneira de falar (tom de voz, velocidade, pausas, etc.). A velocidade da fala e o seu tom podem denotar ansiedade, mas outro aspecto importante de qualquer conversa é a facilidade com que o emissor pode mudar. Assim, as interrupções, a facilidade de exposição, o à vontade com que fala, são bons indicadores da segurança no discurso.
A expressão facial é muito importante para a comunicação de estados emocionais: felicidade, medo, raiva, desgosto, alegria, tristeza, interesse, desprezo, etc.
Balançar a perna, bater os dedos e encolher os ombros indica frustração, desacordo e tensão.
A tristeza e a raiva, bem como todas as expressões faciais podem ser disfarçadas.
Em julgamento, o Juiz deve manter-se constantemente atento à comunicação verbal, e também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser surpreendida pelo tribunal de recurso, fica este impossibilitado de recorrer à segunda para complementar e interpretar aquela.
Com todas as consequências que daí advêm.
Por isso, a decisão do Juiz quanto à matéria de facto só deve ser alterada quando seja evidente que as provas a que se faz referência na fundamentação não conduzem à mesma decisão.
Mas nunca quando haja duas versões sobre os factos e o Juiz, legitimamente, opta por uma delas, em obediência ao disposto no art.º 127º do CPP.
É que, recorde-se, só o Juiz na 1ª Instância beneficia da imediação e, por isso, só ele teve acesso à comunicação não verbal, sabendo-se que não é fácil “transmitir esta ao papel”. O Juiz deve manter-se constantemente atento a tudo isso, o que só é possível dispondo-se da imediação.
Do que vem de ser dito se conclui que não é pelo facto de as arguidas dizerem que o depoimento dos ofendidos não tem credibilidade que o tribunal ad quem há-de chegar a essa conclusão.
As contradições destes, que o tribunal colectivo ponderou, e considerou serem em “pormenores quase insignificantes”, não existem quanto ao essencial da questão: relacionamento amoroso dos pares (sejam eles quais forem, mas sempre das três arguidas com os três ofendidos, independentemente de ser "A"/Araújo ou "A"/Magalhães – se bem que nesta parte não haja contradição dos ofendidos), simulação da gravidez da "C", exigência dos 30.000 contos sob ameaça de revelação do dito relacionamento ou até de morte dos familiares do Vieira, autor da suposta gravidez).
Como bem refere o Ex.mo PGA, as contradições não são equivalentes a falta de verdade. A existência de demasiadas coincidências é que pode significar actuação concertação, orientada para certo fim.
Ora, o tribunal colectivo considerou credíveis, no essencial, os depoimentos dos ofendidos e não os das arguidas.
E considerou-os credíveis porque, repete-se, “o modo como os assistentes e a testemunha depuseram, e ainda a clareza da versão trazida para o processo pelo ofendido Guilherme ..., que, no fundo, acaba por confirmar o mesmo “modus operandi” da "A", o tribunal ficou convencido que os factos se passaram do modo como a acusação refere.
Efectivamente, não é normal que um indivíduo casado, empresário, faça uma doação em dinheiro de tão avultada quantia (30.000.000$00) para a amante comprar um apartamento, quando é sabido que na cidade de Braga há apartamentos muito mais baratos, e, o normal, é serem eles próprios a comprar o apartamento, embora depois possa ser registado em nome da amante.
Não é também lógico que dure tantos anos um relacionamento amoroso (pelo menos desde 1996, na versão da "A") e, sendo o dinheiro depositado em 3/08/1999, seja de imediato levantado em 9/08/1999, logo após terem passado os dias normalmente utilizados pelos bancos para que o dinheiro fique disponível, no dia 10/08 ou 11/08 se passe o episódio da ida a casa da "B" com o Zé Puto, e no dia 12/08/1999 pelas 11 da manhã os ofendidos apresentem queixa contra as arguidas.
Entre o depósito do dinheiro e a zanga, é rápido demais para que haja tempo para uma zanga entre os amantes Araújo e "A", zanga essa tão grande de molde a o Araújo ir logo exigir a devolução do dinheiro que, voluntariamente, na versão da "A", lhe tinha dado.
…
Embora tenha havido algumas contradições nos depoimentos sobretudo do João e do Magalhães, essas contradições foram em pormenores quase insignificantes, que não abalaram a credibilidade dos mesmos.
Diga-se, em abono da verdade, que é no mínimo estranho que, homens feitos, casados e com filhos, empresários e com experiência da vida, tenham sido tão facilmente enganados pelas arguidas.
Mas, esse comportamento dos ofendidos/assistentes é tão ingénuo, essa credulidade tão inacreditável, que, se calhar, é por isso que as arguidas sustentam essa versão até ao fim, mesmo em julgamento”.
E acrescenta: “a versão das arguidas é demasiado ilógica para, face à experiência da vida, se poder aceitar como verosímil.
Por outro lado, é demasiado azar a "A" ter escondido o dinheiro debaixo de um colchão sendo um incêndio, logo nesse quarto, que vai consumir a mobília do quarto e, consequentemente, o dinheiro”.
Considerada de credível a versão dos ofendidos e não credível a versão das arguidas, o tribunal a quo, naturalmente, optou pela versão daqueles.
Essa versão conforma-se com as regras da experiência comum, pese o muito e douto esforço feito pelas arguidas para tentar demonstrar o contrário, e não assentou em meios de prova proibidos.
Consequentemente, é insindicável por este tribunal – art.º 127º do CPP.
A matéria de facto provada está alicerçada, no essencial – e só este interessa – naqueles depoimentos.
Ao contrário do alegado, a versão dos arguidos não é contraditória nos seus elementos estruturantes.
Antes, quanto a estes – encontros amorosos, simulação de gravidez da "C", ameaça desta de divulgação do relacionamento ou até de morte dos familiares do Vieira - são coincidentes. Considerados credíveis, implica a prova dos factos pelos ofendidos referidos.
As arguidas fazem cavalo de batalha da data de 2 de Agosto de 1999 em que foi noticiada a gravidez.
Para a decisão da causa é irrelevante que seja essa a data ou uma outra data entre fins de Julho e 3 de Agosto porque, na realidade, assim ocorreu, ao menos, entre esses dias.
O tribunal colectivo conclui por essa data atendendo ao depósito e à pressa colocada pela "A" (tenho de a segurar a "C" para que não saia de pistola em punho) no depósito, bem como às datas genericamente e com imprecisões aventadas pelos ofendidos.
E parece ter concluído bem, embora seja irrelevante para a decisão final que a data seja 2 de Agosto, 31 de Julho ou 29 de Julho.
Uma coisa é certa: é sempre entre meados de Julho e 3 de Agosto de 1999.
Como fazem cavalo de batalha dos pares formados.
E quanto a estes compreende-se o porquê: a versão das arguidas só faria sentido se a "A" tivesse relacionamento amoroso como o Araújo.
Todavia, e quanto aos pares, a versão dos ofendidos, considerada de credível, é no sentido de que o Magalhães andaria com a "A" e o Araújo com a "B".
Neste particular há total coincidência nos depoimentos dos arguidos, como se constata pela simples leitura dos seus depoimentos, transcritos.
Considerados credíveis, há que considerar assente o facto.
Da leitura da queixa não se enxerga onde possa existir contradição com aquilo a que as arguidas chamam de elementos estruturantes.
E, na realidade, volta a não existir qualquer contradição com aquilo a que nós chamamos de elementos essenciais.
E o mesmo sucede quanto aos talões de depósito e à factura de pernoita na estalagem.
Do que vem de ser dito se conclui que não se pode retirar a credibilidade, que o tribunal colectivo considerou existir, aos depoimentos dos ofendidos, pretendida pelas Recorrentes.
Por isso, não há que alterar a matéria de facto.
No que toca ao crime em que é ofendido o Guilherme, categoricamente se afirma que a matéria de facto apurada está em total consonância com o depoimento deste.
A leitura do depoimento prestado em julgamento – que o Ex.mo PGA transcreve no seu parecer para demonstrar a total concordância com a matéria de facto – basta para extrair aquela conclusão.
Sem tibiezas, o Guilherme explica como inicialmente apresenta uma versão e depois a altera.
Homem “ingénuo”, para não usar qualificativo diferente, e quiçá mais apropriado, que se cegou por “umas saias”, como diz o povo.
Sendo considerado de credível o seu depoimento, e porque a matéria de facto provada está em total concordância com ele, nada há a alterar pois que as declarações da arguida "A", únicas a contrariá-lo, não foram consideradas credíveis.
Do que vem de ser dito, e porque não foram alegados, nem se verificam, os vícios do n.º 2 do art.º 410º do CPP, tem-se por definitivamente assente a matéria de facto provada.
2. Da incriminação
As arguidas foram condenadas pela prática de um crime de extorsão p. e p. pelo art.º 223º, n.ºs 1 e 3 do C. Penal.
Defendem que, quanto ao ilícito em que é vítima o Araújo e amigos, deveriam ter sido condenadas pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º, n.º 1, alínea b) do C. Penal já que, e em resumo, o dinheiro foi entregue à "A" a título não translativo de propriedade, tendo havido inversão do título.
Dispõe o art.º 223º do C. Penal, sob a epígrafe “Extorsão”:
1. Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até 5 anos.
2. Se a ameaça consistir na revelação, por meio da comunicação social, de factos que possam lesar gravemente a reputação da vítima ou de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
3. Se se verificarem os requisitos referidos:
a) Nas alíneas a), f) ou g) do n.º 2 do artigo 204º, ou na alínea a) do n.º 2 do artigo 210º, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos;
b) No n.º 3 do artigo 210º, o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
4. O agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias se obtiver, como garantia de dívida e abusando da situação de necessidade de outra pessoa, documento que possa dar causa a procedimento criminal.
Escreve o Dr. Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo 2, pg. 338 e segs:
A extorsão é um crime de grande importância prática, dada a sua frequente e crescente verificação. Por outro lado, trata-se de um crime cuja descrição típica é muito complexa, tomando-se, por vezes, difícil a decisão sobre a qualificação jurídica de uma conduta como crime de extorsão ou de roubo. …
A Revisão de 1995 fez várias alterações na descrição típica do verdadeiro crime de extorsão (n.ºs 1, 2 e 3). As penas foram substancialmente agravadas, facto que se verificou em relação a quase todos os crimes. Quanto aos meios de coacção, foi eliminada «a colocação da vítima na impossibilidade de resistir». Relativamente às circunstâncias qualificativo-agravantes, há a destacar a substituição da referência ao resultado suicídio ou tentativa de suicídio (CP de 1982, art.º 317º-4: «Se a vítima da extorsão ou a pessoa que haja de sofrer o mal ameaçado se suicidar ou tentar suicidar-se, sendo esta circunstância previsível pelo agente») pela referência ao resultado morte (após a Revisão de 1995, o art. 222º-3 b) - agora, após a Revisão de 1998, art. 223º-3 b) remete para o art. 210º-3 que estabelece a agravação da pena «Se do facto resultar a morte de outra pessoa»). Esta alteração levanta a questão de se o suicídio derivado da extorsão ainda continua a constituir circunstância agravante. Quanto à tentativa de suicídio é inequívoco que deixou de ser suficiente para a agravação.
A extorsão tem muitos elementos comuns a vários outros tipos de crime, nomeadamente aos de coacção (art.º 154º), roubo (art. 210º) e burla (art. 217º) (e abuso de confiança, acrescentamos nós – art.º 205º). Estruturalmente, as maiores afinidades são com o crime de coacção, pois que todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação ao crime de coacção, apenas pela exigência de a conduta coagida se traduzir num injusto prejuízo para o sujeito passivo (a vítima da coacção ou outra pessoa) e num enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro. Por isto, o tipo de crime de extorsão e, rigorosamente, uma lex specialis face ao tipo de crime de coacção. …
Relativamente ao crime de burla, pode dizer-se que, apesar de os pontos de contacto serem vários, a distinção é nítida. Há afinidades ou mesmo identidade nos seguintes aspectos: os crimes de extorsão e de burla são crimes contra o património em geral; ambos pressupõem uma certa cooperação da vítima, uma vez que as condutas, de que resultam o prejuízo patrimonial da vítima (o extorquido e o burlado) e o enriquecimento ilegítimo do agente (o extorsionário e o burlão) ou de terceiro, são realizadas pela própria vítima ou por um terceiro; tanto a extorsão como a burla, além de serem crimes directamente contra o património, lesam também o bem jurídico liberdade de decisão e de acção, pois que, sendo isto evidente no caso de extorsão, não deixa de ocorrer também no crime de burla, uma vez que a liberdade no processo de decisão sobre o acto de disposição patrimonial foi afectada pelo erro ou engano provocados pelo burlão. Mas, apesar destas coincidências, o crime de extorsão e o crime de burla distinguem-se, claramente, entre si por força dos meios utilizados: na extorsão, violência ou ameaça com mal importante (violência ou chantagem), já na burla, erro ou engano. E a grande diferença da gravidade dos meios utilizados, em si mesmo considerados (e não em função da maior ou menor eficácia na obtenção do acto de disposição patrimonial, pois que, em muitos casos, o engano poderá ser mais eficaz do que a ameaça), o que determina, justificadamente, a diferença nas penas aplicáveis, que são mais severas no crime de extorsão.
Dificuldades maiores existem, por vezes, na distinção entre o crime de extorsão e o crime de roubo. Ambos são crimes contra o património; tanto num quanto no outro os meios de execução são a violência ou a ameaça, o que significa que ambos lesam também a liberdade de disposição patrimonial; acresce, ainda, que, diferentemente de outros códigos …, o nosso C.P., art. 210º-1, refere, no crime de roubo, não apenas a acção de subtracção («Quem ... subtrair») mas também a acção de coacção ao acto de entrega («Quem... subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue»). Face ao nosso CP, esta última circunstância invalida a peremptória afirmação de NÉLSON HUNGRIA, transcrita por LEAL-HENRIQUES / SIMAS SANTOS, art. 222º, correspondente ao actual art. 223º: «não há que sair daqui: a infalível distinção entre a extorsão e o roubo é que neste o agente toma por si mesmo, enquanto naquela faz com que se lhe entregue, ou se ponha à sua disposição, ou se renuncie a seu favor». A mesma circunstância também enfraquece a tese daqueles (p. ex., CARLO FIORE, EncG "Património" 3; "Estorsione" 3) que vêem na cooperação da vítima, cooperação «voluntária» posto que sob coacção (ou sob engano, no caso da burla), o traço distintivo do crime de extorsão (e do crime de burla) face ao crime de roubo, em que tal «cooperação» não existiria. …
O art. 223º visa garantir a liberdade de disposição patrimonial. Objectivo directo da extorsão é a obtenção de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo do extorquido. Esta a razão da inclusão sistemática do crime de extorsão nos crimes contra o património. Portanto, a extorsão é, em primeiro lugar, um crime contra o bem jurídico património. Acresce, porem, a tutela do bem jurídico liberdade de decisão e de acção, cuja lesão é conatural à extorsão, o que fundamenta uma agravação das penas relativamente às aplicáveis aos crimes que lesam exclusivamente o património, como é o caso, p. ex., do crime de furto ou de dano. …
O crime de extorsão é um crime comum, pois agente desta infracção pode ser toda e qualquer pessoa - «Quem».
Sujeito passivo deste crime (o extorquido) é o titular do interesse patrimonial prejudicado. Geralmente, o sujeito passivo coincidirá com a pessoa vítima da acção de coacção; mas não tem de ser, necessariamente, assim, pois pode o agente exercer a violência ou a ameaça de mal importante sobre uma terceira pessoa como meio de constranger o sujeito passivo à disposição patrimonial. …
Quer o meio de constrangimento seja a violência quer a chantagem (a ameaça), é necessário que entre ele (recaia a violência ou a ameaça com mal importante sobre a pessoa que haja de realizar a disposição patrimonial ou uma outra pessoa que pertença ao «círculo existencial» daquela) e o acto de disposição patrimonial haja uma relação de adequação. Sobre o critério de imputação objectiva do efeito do constrangimento (a prática da disposição patrimonial prejudicial) à acção de coacção (violência ou ameaça) nada há acrescentar ao que se disse a propósito do crime de coacção - cf. art. 154, § 9 ss.
O crime de extorsão é um crime de processo típico, no sentido de os meios para a sua realização estão taxativamente referidos na lei: «por meio de violência ou de ameaça com mal importante». A caracterização destes meios coincide com a caracterização dos meios do crime de coacção - art. 154º §9 ss. …
Objecto do crime de extorsão é o acto de disposição patrimonial. «Quem constranger.. a uma disposição patrimonial). Esta disposição patrimonial tanto pode consistir numa acção como numa omissão. A acção (acto positivo) pode, por sua vez, traduzir-se num dare (p. ex., uma determinada quantia em dinheiro ou determinado objecto) ou num facere (p. ex., vender ou doar um bem, rescindir um contrato). A omissão (acto negativo) pode consistir na, não exigência de um crédito, na não proposição de uma acção judicial, na não apresentação de uma queixa-crime, etc. O acto de disposição patrimonial (assuma a forma de acção, de omissão ou de tolerância) pode ter por objecto um qualquer elemento do património, trate-se de direitos reais (sejam sobre coisas imóveis ou móveis), de direitos de crédito ou mesmo de expectativas jurídicas (p. ex., há extorsão, se A constrange B a renunciar à herança, para se tornar único herdeiro, ou para que o seu quinhão hereditário seja maior), pois que também estas têm valor patrimonial.
Não basta, para haver extorsão, a lesão da liberdade de disposição patrimonial. Se apenas for lesada esta liberdade, haverá crime de coacção, mas não crime de extorsão. Eis o que acontece, no caso do constrangimento (mediante violência ou ameaça com mal importante) ao pagamento de uma dívida. Para haver extorsão é necessário - como crime contra o património que é - que a disposição patrimonial constitua um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima da coacção ou para terceiro). …”.
Visto o crime de extorsão e feita sobre ele tão profunda análise que em circunstância alguma carece de ser complementada, vejamos agora o crime de abuso de confiança.
Estatui o art.º 205º do C. Penal sob a epígrafe “Abuso de confiança”
1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
4. Se a coisa referida no n.º 1 for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5. Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Escreve o Prof. Figueiredo Dias, local citado, pg. 94 e segs.
“Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma (cf. em todo o caso infra § 4 s.), violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, «apropriação indevida»). Daqui resulta que o crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade; tem como objecto de acção, tal como o furto, uma coisa móvel alheia; e, ainda como o furto, revela-se por um acto que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação.
Pese às identidades que ficam anotadas, o crime de abuso de confiança ganha autonomia e especificidade perante o crime de furto logo na contemplação do bem jurídico protegido, que é aqui exclusivamente a propriedade. Com efeito, no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela. Diferentemente, no abuso de confiança só a propriedade como tal é objecto de tutela e constitui assim integralmente o bem jurídico protegido. Dito com as palavras sugestivas de MAIWALD, diferentemente do que sucede com o ladrão, «ao abusador de confiança poupa-se o esforço de ter de 'subtrair' a coisa» (M / S / MAIWALD 1 §34 1).
A partir desta conclusão não falta quem sublinhe que o perigo para a propriedade resultante do abuso de confiança é mais pesado e grave que o resultante do furto. O argumento que a propósito se esgrime nas literaturas jurídico-penais alemã e italiana é o de que esse maior peso e gravidade deriva da circunstância de o proprietário da coisa furtada poder exigi-la de terceiro adquirente de boa fé, o que já não sucede com o proprietário da coisa apropriada através de abuso de confiança. Este argumento não vale porém perante o direito civil português, sabido como é que a aquisição a non domino, mesmo de boa fé, não é por princípio protegida em qualquer dos casos (…). Em todo o caso a conclusão apontada não deixará porventura, também entre nós, de ter o seu valor não em função de uma consideração jurídica, mas prática: a de que a posição jurídico-processual da vítima de abuso de confiança será em geral mais difícil e gravosa do que a da vítima de furto, por ser mais custoso provar a «inversão do título de posse» - que, como se dirá infra § 20, constitui a essência típica da conduta abusiva da confiança - do que a «subtracção» que se viu ser elemento essencial da tipicidade do furto.
Face a esta essencialidade, de resto, não tem hoje sentido, mesmo só em perspectiva formal - sistemática, integrar o crime de abuso de confiança nos «furtos», seja como «furto impróprio» (assim CARLOS ALEGRE, «Crimes contra o Património», Cadernos da RMP 3 1988 77 ss.), seja como «furto especial» (assim J. A. BARREIROS, Crimes contra o Património 1996 82): uma tal integração representaria, salvo melhor opinião, o retrocesso de mais de um século na elaboração dogmática dos crimes contra o património (a propriedade).
Por quanto fica já exposto não deixa de ser em alguma medida equívoca a redução da essência do abuso de confiança à apropriação de coisa móvel alheia, sem quebra de posse ou detenção (supra § 1; e sobre a questão que se segue, entre nós e por último, PEDROSA MACHADO, RPCC 1997 495 ss.). Sendo isto em si exacto, toma-se em todo o caso indispensável que o agente tenha detido a coisa (que a coisa «lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade», como claramente se exprime o art. 205º-1). Assim, entra na própria conformação do bem jurídico um elemento novo, que serve inclusivamente para contrapor o abuso de confiança à mera apropriação indevida. Depara-se aqui com uma linha de pensamento e uma orientação legislativas de segura tradição francesa. Com efeito, já o C.P. napoleónico de 1810 (art. 408º) era muito claro no sentido de que a apropriação só poderia ter lugar depois do recebimento da coisa (realce nosso). …
Em função do que fica exposto toma-se agora seguro determinar em que consiste concretamente o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido: a apropriação. Não deve aqui repetir-se pura e simplesmente o que ficou dito sobre o mesmo elemento - a apropriação - no contexto do crime de furto: cf. supra art. 203º § 27 s.: no furto a apropriação intervém como elemento do tipo subjectivo de ilícito (como «intenção de apropriação»), no abuso de confiança, diferentemente, na sua estrutura de apropriação qua tale, isto é, na sua veste objectiva de elemento do tipo objectivo de ilícito (realce nosso). Por isso ensinava já EDUARDO CORREIA, RLJ 90º 36, com plena pertinência e seguindo a lição de SCHRODER, que a apropriação no abuso de confiança «não pode ser... um puro fenómeno interior - até porque cogitationis poenam nemo patitur - mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, atra-vés de um comportamento que o releve e execute» (doutrina que a jurispru-dência portuguesa assumiu de forma absolutamente dominante). E a teoria, que não pode deixar de ser acolhida, do acto manifesto de apropriação e que tem relevo, entre outros, para efeitos de consumação (infra § 34).
A apropriação traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção. Dito por outras palavras (como sempre ensinou EDUARDO CORREIA, p. ex. RLJ 90º 35 ss., a propósito da interpretação a conferir às expressões «desencaminhar ou dissipar» que constavam do art.º 453º do CP de 1886; e também CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito e Justiça IV 243): o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a «inversão do título de posse ou detenção» e é nela que se traduz e se consuma a apropriação. …
Crê-se que, também neste caso, nada há a acrescentar para a correcta interpretação do tipo.
Se bem apreendemos a lição dos Ilustres Mestres citados, e fazendo uma análise comparativa dos ilícitos, temos, no que ao recurso interessa:
- Os crimes de extorsão e de abuso de confiança são crimes contra o património em geral;
- No crime de extorsão a vítima é levada a fazer uma disposição patrimonial na sequência de violência ou ameaça de mal importante. Isto é, a coisa é entregue uti dominus ao agente;
- No crime de abuso de confiança a vítima entrega a coisa móvel uti alieno, isto é, com a obrigatoriedade de a restituir. Só num segundo momento há a inversão do título de posse;
- Em ambos há um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima);
- No crime de extorsão a apropriação consuma-se com a entrega da coisa;
- Ao invés, no crime de abuso de confiança, a apropriação só pode ter lugar depois do recebimento da coisa;
- No crime de extorsão a intenção de enriquecimento ilegítimo intervém como elemento subjectivo do tipo;
- No crime de abuso de confiança a apropriação intervém como elemento objectivo do ilícito e traduz-se sempre na inversão do título de posse ou detenção.
Como se vê, são enormes as semelhanças entre ambos os tipos de crimes e pequenas as diferenças.
Mas uma destas – diferença - é fundamental para a resolução da questão jurídica colocada: a intenção de enriquecimento.
Esta intervém, repete-se, como elemento subjectivo do ilícito, no crime de extorsão; e como elemento objectivo no crime de abuso de confiança.
Compulsada a matéria de facto, logo se vê que as arguidas cometeram um crime de extorsão e não um crime de abuso de confiança.
Com efeito, foi sua intenção “forçarem” os ofendidos a entregar-lhes determinada quantia em dinheiro, que fizeram sua.
Para tanto simularam uma gravidez da "C", que até credibilizaram com teste à urina positivo, e, sob o pretexto de esta transmitir tal facto à esposa do Vieira (pseudo autor da gravidez), ou até de o matar a ele, à mulher e aos filhos, conseguiram que lhes fosse entregue 30.000 contos.
É certo que o Araújo apenas depositou o dinheiro na conta da "A" sob a promessa de esta lho devolver logo que tudo estivesse acalmado.
Só que esta promessa é falsa já que as arguidas pretendiam, ab initio, obter uma vantagem patrimonial.
A mesma tem de ser interpretada como mais um ardil utilizado para credibilizar a tese, e ainda para fazer com que os ofendidos, com mais facilidade, depositassem o dinheiro na conta da "A".
Ou, como se diz na alínea cc) dos factos provados, “para maior ser a confiança nela depositada”.
Os ofendidos, como bem refere o Colectivo, pessoas adultas, maduras e conhecedoras da vida, caíram no logro com tanta facilidade. Santa ingenuidade!!!
Ou seja, da parte das arguidas (e o dolo é aferido pelo agente, que não pelos ofendidos) havia já a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo.
Jamais as arguidas quiseram receber o dinheiro a título não translativo, mas antes uti domini.
Não interessa a intenção com que o Araújo e companheiros lho entregaram (o “dolo” – passe a expressão, juridicamente incorrecta, mas significativa – destes é irrelevante), mas tão-só conta a intenção com que as arguidas obtiveram os 30.000 contos. E esta é inequívoca.
Não poderia, pois, do ponto de vista das arguidas ter havido inversão de título já que o dinheiro foi logo feito coisa sua, entrou imediatamente na sua esfera jurídica.
Bem condenadas foram, pois, pela prática do crime de extorsão.
Improcedem, pois, todas as conclusões da motivação.
DECISÃO:
Termos em que se nega provimento aos recursos, mantendo e confirmando o douto acórdão recorrido.
Fixa-se em 8 Ucs a tributação a pagar por cada uma das Recorrentes.
Guimarães,