ABUSO DE CONFIANÇA
EXTORSÃO
Sumário

I - Os crimes de extorsão e de abuso de confiança são crimes contra o património em geral;
II - No crime de extorsão a vítima é levada a fazer uma disposição patrimonial na sequência de violência ou ameaça de mal importante. Isto é, a coisa é entregue uti dominus ao agente;
III - No crime de abuso de confiança a vítima entrega a coisa móvel uti alieno, isto é, com a obrigatoriedade de a restituir. Só num segundo momento há a inversão do título de posse;
IV - Em ambos há um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima);
V - No crime de extorsão a apropriação consuma-se com a entrega da coisa;
-VI - Ao invés, no crime de abuso de confiança, a apropriação só pode ter lugar depois do recebimento da coisa;
VII - No crime de extorsão a intenção de enriquecimento ilegítimo intervém como elemento subjectivo do tipo;
VIII - No crime de abuso de confiança a apropriação intervém como elemento objectivo do ilícito e traduz-se sempre na inversão do título de posse ou detenção.
IX - Não basta, para haver extorsão, a lesão da liberdade de disposição patrimonial. Se apenas for lesada esta liberdade, haverá crime de coacção, mas não crime de extorsão. Eis o que acontece, no caso do constrangimento (mediante violência ou ameaça com mal importante) ao pagamento de uma dívida. Para haver extorsão é necessário - como crime contra o património que é - que a disposição patrimonial constitua um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima da coacção ou para terceiro). …”.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Nos autos de processo comum colectivo n.º 98/99, da Vara Mista de Braga, as arguidas:
1. "A", divorciada, agente da ..., nascida em 26.07.961, filha de Eurico... e de Maria ..., natural de Ponte de Lima, e residente na Rua ..., Ponte de Lima,
2. "B", “Isabel”, casada, vendedora (vende porta a porta), nascida em 20.12.970, filha de Domingos ... e de Ana ..., natural da Póvoa do Varzim, e residente na Alameda ... - Braga,
3. "C", solteira, comerciante, nascida em 24.07.968, filha de João ... e de Maria ..., natural de ... - Amares, residente na Praça ..., Braga,
Foram acusadas pelo M.º P.º da prática, em co-autoria material, de um crime de extorsão, p. e p. pelo art. 223º n.º 1 e 3 al. a), por referência ao art. 204 n.º 2 al. a) do C. Penal; e a "A", ainda, em autoria material e concurso efectivo de infracções, de outro crime de extorsão, p. e p. pelo art.º 223º n.º 1 e 3 al. a) do C. Penal (caso do ofendido Guilherme).
O Assistente Jorge ... deduziu pedido de indemnização cível em que pede a condenação das arguidas a pagarem-lhe solidariamente a quantia de €2.500 e juros legais desde a citação até integral pagamento. O Assistente António ... deduziu pedido de indemnização cível em que pede a condenação das arguidas a pagarem-lhe solidariamente a quantia de €149.639,37, acrescida de juros moratórios à taxa legal de 7% ao ano, desde a notificação do pedido cível até efectivo pagamento:

Efectuado o julgamento, foi proferido acórdão, que assim decidiu:
a) Condenou as arguidas "B" e "C", pelo crime de extorsão do art. 223 n.º 1 e n.º 3 do C. Penal, numa pena de 3 (três) anos e meio de prisão para cada uma; e a arguida "A" numa pena de 5 (cinco) anos de prisão pela prática do mesmo crime.
b) Condenou a arguida "A" pela prática de um crime consumado de burla agravada p. e p. pela alínea a) do n.º 2 do art. 218 do C. Penal, atenta a alteração constante da acta de julgamento, numa pena de 3 (três) anos de prisão;
c) Em cúmulo jurídico das penas acima referidas, nos termos do art. 77 do C. penal, foi a arguida "A" condenada na pena única de prisão de 6 (seis) anos e meio de prisão.
d) Condenou todas as arguidas, solidariamente, a pagar ao assistente António ... a título de indemnização pelos danos patrimoniais acima referidos, o montante de €149.639,37 Euros (Esc. 30.000.000$00) acrescido dos juros desde a notificação do pedido cível até integral pagamento, todos à taxa de 7% ao ano até 30 de Abril de 2003 e à taxa de 4% ao ano a partir daí (Portaria n.º 291/2003 de 8 de Abril).
e) Condenou todas as arguidas, solidariamente, a pagar ao assistente Jorge ... por esses danos não patrimoniais acima referidos, em bloco, o montante de € 2.500 Euros (Esc. 500.000$00), acrescidos dos juros desde a notificação do pedido cível até integral pagamento, todos à taxa de 7% ao ano todos à taxa de 7% ao ano até 30 de Abril de 2003 e à taxa de 4% ao ano a partir daí (Portaria n.º 291/2003 de 8 de Abril).

Inconformadas, interpuseram recurso as arguidas, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões.
1. Foram incorrectamente julgados os factos narrados nas als. l) a ccc) da relação dos factos provados, em suma, porque não corresponde à verdade e não é compatível com a prova produzida a descrição que neles se consagra:
§ Dos pares formados pelas Arguidos e pelos Ofendidos;
§ Da invocação da falsa gravidez da Arguida "C" e do respectivo teste;
§ Das ameaças sobre os Ofendidos;
§ Da razão invocada para a entrega dos 30.000 contos;
§ Da entrega pelo Ofendido GUILHERME de 10.000 contos à Arguida "C";
§ Da falsidade da gravidez da Arguida "A" e do subsequente aborto, logo da motivação desta última entrega de dinheiro.
2. Isto é, foi mal decidida a matéria de facto em tudo quanto contraria a versão que as Arguidas apresentaram em Tribunal e que, também de modo sucinto, consiste na afirmação de que:
· A Arguida "A" e o Assistente ARAÚJO mantinham há anos, um relacionamento íntimo;
· Os 30.000 contos foram oferecidos e entregues em cumprimento duma promessa antiga, para aquisição duma casa;
· Poucos dias depois dessa entrega, a "A" e o ARAÚJO zangaram-se e este exigiu a restituição dos 30.000 contos, que aquela se recusou a fazer;
· O Ofendido GUILHERME emprestou os 10.000 contos à Arguida "C";
· O Ofendido GUILHERME não agiu induzido em erro por qualquer falsa gravidez da "A".
3. Como se verifica através da simples leitura da fundamentação da sentença, o Tribunal determinou-se, para julgar provados os factos, apenas nas declarações dos Ofendidos, que, no essencial, acolheu, preterindo quer as declarações das Arguidas, quer as de algumas testemunhas, não obstante reconhecer que essas declarações estão contaminadas por contradições e que a respectiva versão é, “no mínimo, estranha”.
4. Ora, o depoimento dos Ofendidos ARAÚJO, VIEIRA e MAGALHÃES (que está gravado nos locais que ficaram assinalados no texto desta motivação e, no essencial, tem o conteúdo que ficou transcrito):
· É profundamente contraditório, não em “pormenores quase insignificantes”, como se afirma da douta decisão, mas nos seus elementos estruturantes;
· Contraria dados objectivos indesmentíveis, entre os quais o simples calendário do ano de 1999 e os documentos juntos aos autos (em especial os talões de depósito e de levantamento dos 30.000 contos, e a factura de pernoita na estalagem Zende);
· Colide com o conteúdo da queixa;
· E, afinal, não coincide sequer com os factos descritos na sentença.
5. Por esses motivos, não pode tal depoimento servir como elemento de prova (muito menos, exclusivo) para se considerar provados aqueles factos.
6. Pelo contrário, a versão apresentada pelas Arguidas para explicar o recebimento dos 30.000 contos é coerente e lógica, tem consistência interna, não contraria as regras da experiência, é compatível com os elementos de prova disponíveis, em especial os de natureza documental, e foi confirmada, numa parte muito importante, pelo depoimento das testemunhas DIANNE... e ANTÓNIA ....
7. Nenhuma prova se produziu, por outro lado, nem o acórdão a menciona, de onde seja lícito concluir que a Arguida "A" invocou uma falsa gravidez, induzindo em erro o Ofendido GUILHERME e determinando-o, por tal motivo, à entrega os 10.000 contos.
8. Pelo contrário, o depoimento do Ofendido GUILHERME impõe a conclusão inversa,
9. Pelo que também quanto aos factos descritos nas alíneas qq), yy) e zz) da decisão da matéria de facto, o douto acórdão incorreu em erro de julgamento,
10. Ao decidir de forma diversa, o Tribunal ofendeu, além do mais, o disposto no art.º 127º CPP.
11. Ainda que assim não fosse, e na hipótese (que se considera absurda) de vir a manter-se a matéria de facto com o conteúdo descrito no douto acórdão, sempre seria certo que não estão preenchidos os requisitos do tipo legal do crime de extorsão.
12. Nessa rejeitada hipótese, o Ofendido ARAÚJO teria entregue 30.000 contos à Arguida "A", a título devolutivo e por poucos dias.
13. Ao inverter o título da posse precária em que foi investida, a Arguida "A" teria cometido o crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º, nº 1, al. b), CP, incorrendo em pena de prisão de 1 a 8 anos,
14. Pelo que a pena que foi aplicada às Arguidas teria de ser reduzida para valores que não podem exceder metade da pena que lhes foi imposta.
15. Ao decidir de modo diferente, o douto acórdão sempre teria violado o disposto nos art.ºs 205º, nº 1, al. b), e 223º, nº 3, al. a), do Código Penal.

Apenas respondeu o M.º P.º com as seguintes conclusões:
1. As contradições que resultam dos depoimentos dos ofendidos António ..., Jorge ... e Manuel ... apenas demonstram que estes ofendidos prestaram depoimentos isentos, não tendo a preocupação de recordar datas exactas e são perfeitamente justificáveis atendendo ao tempo já decorrido desde a data da prática dos factos.
2. Trata-se de contradições em pormenores pouco relevantes que não abalam a credibilidade desses depoimentos.
3. Todos os depoimentos coincidem em relação aos factos essenciais, nomeadamente em relação aos factos que foram dados como provados nas alíneas w) a bb) da matéria de facto provada no Acórdão.
4. Se existir alguma dúvida em relação ao que consta da matéria de facto provada na alínea u), tal dúvida existe apenas em relação à data da comunicação da falsa gravidez, sendo certo que resulta de todos aqueles depoimentos que tal comunicação ocorreu antes do encontro no café “Tuxo”.
5. Não há incongruências nos depoimentos desses ofendidos, apesar de se reconhecer que foram enganados com facilidade e demonstraram bastante ingenuidade que não pode deixar de considerar-se imprópria de homens da sua idade, condição social e experiência de vida.
6. A versão apresentada pelas arguidas para justificar as entregas das quantias de 30.000$00 e de 10.000$00 e sobre o desaparecimento da primeira, é muito mais inverosímil e contraria todas as regras da experiência comum.
7. Compreende-se facilmente a razão da primeira versão dos factos apresentada pelo ofendido Guilherme Mortágua, mas não existe qualquer razão para duvidar das suas declarações prestadas em audiência de julgamento, atendendo ao desinteresse deste ofendido em reaver o dinheiro perdido.
8. Os factos provados nas alíneas qq), rr), yy) e zz) resultam do depoimento do mesmo ofendido e da reiteração do mesmo “modus operandi” em relação aos outros ofendidos.
9. É irrelevante, para a configuração do crime de extorsão, a circunstância de o ofendido Araújo apenas ter sido coagido a depositar o dinheiro com a promessa de devolução, verificando-se todos os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de coacção.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos e efectuada a audiência com inteira observância do legal formalismo, cumpre apreciar e decidir.

O Tribunal Colectivo considerou provada a seguinte factualidade:
a) A arguida "A" é agente da ..., exercendo actualmente funções no Comando Distrital de Braga.
b) A arguida "B" não tem actividade profissional estável e com carácter regular, dedicando-se fundamentalmente à venda ambulante de porta em porta de artigos têxteis.
c) A arguida "C", na altura dos factos, explorava um estabelecimento de restauração, sito na Rua ..., nesta cidade, denominado “... da cidade”.
d) As arguidas apesar de se terem conhecido entre si pelo menos desde 1998, rapidamente forjaram entre si uma amizade e cumplicidade, que quase pareciam amigas de infância.
e) Nessa medida, durante os períodos de descanso, saíam muitas vezes em conjunto, frequentando juntas cafés, bares, salões de beleza, cabeleireiros e festas.
f) Quando a arguida "A" foi colocada no Comando da ... desta cidade (por volta do ano de 1994/5), conheceu através da testemunha Filomena ... o ofendido António ..., pessoa com a qual manteve até à ocorrência dos factos aqui em apreço, um relacionamento normal.
g) No ano de 1999, por altura do início do Verão, a arguida "A" num dos contactos com o ofendido Araújo (que sabia que saía muitas vezes acompanhado dos ofendidos Jorge ... e Manuel ...), sugeriu-lhe que tinha umas “amigas” e que seria óptimo saírem todos juntos para se divertirem (referindo-se às co-arguidas "C" e "B").
h) Rapidamente se combinou o primeiro encontro o qual veio a ocorrer em dia não suficientemente determinado do mês de Julho de 1999.
i) Os assistentes António ... e Jorge ...e o ofendido Manuel ..., eram todos casados, com vida familiar estável, e homens de sólida condição sócio-económica, tendo apesar disso, aceitado a perspectiva de uns encontros “amorosos” ocasionais com as arguidas.
j) Tal como havia combinado com o ofendido Araújo, em dia não suficientemente apurado do início do mês de Julho de 1999, a arguida "A", acompanhada das amigas e aqui co-arguidas "B" e "C", à hora estipulada compareceu junto do Club de ... (nas traseiras do estádio 1º de Maio, nesta cidade), onde já as aguardavam os ofendidos Araújo, Vieira e Magalhães, e tal como haviam acordado dirigiram-se para Guimarães, nos carros do Araújo e do Vieira.
k) Jantaram num restaurante não identificado, situado perto daquela cidade, e depois de comidos e bebidos, dirigiram-se para a quinta do Vieira, sita em Souto, Taipas, Guimarães.
l) Aí chegados separaram-se uns dos outros e cada qual divertiu-se com a sua parceira da forma que muito bem entendeu e conseguiu, sendo certo que os pares assentavam na relação Araújo/"B", Vieira/"C" e Magalhães/"A".
m) Este foi o início de um relacionamento sexual envolvendo todos eles, respeitando os pares originalmente formados, e que apesar dos muitos encontros ocorridos, teve uma duração curta, porque precipitada pelos acontecimentos aqui em questão.
n) Posteriormente, em meados do mês de Julho de 1999, voltaram as arguidas e os ofendidos a encontrar-se, (os pares Araújo/"B" Magalhães/"A"), jantando todos juntos em casa da arguida "B", tendo-se relacionado de novo segundo os pares já referidos.
o) Novamente se juntaram, agora só o Araújo/"B" e o Magalhães/"A", os quais na noite de 28 para 29 de Julho de 1999, jantaram e dormiram nas instalações da Estalagem Zende, em Esposende, onde ocuparam os quartos 104 e 105.
p) Alguns outros encontros ocorreram entretanto, alguns deles sem a presença do ofendido Araújo, mas nos quais estiveram o Vieira e o Magalhães com as suas parceiras acima referidas.
q) De todo este relacionamento retiraram as arguidas a certeza de que estavam a lidar com gente de dinheiro, pois eram eles que pagavam sempre as contas de bons restaurantes que frequentavam, hotéis e tudo o mais, sem nunca regatearem despesas, passeando-se em bons automóveis e nunca lhes faltando dinheiro na carteira.
r) Era um “namoro” de onde todas elas projectaram tirar proveito, para além dos “favores” de índole sexual e gastronómica.
s) Assim, se tão depressa o pensaram mais lestamente decidiram planear uma forma segundo a qual lhes sacariam uma avultada soma em dinheiro.
t) Partindo do relacionamento Vieira/"C", forjaram uma hipotética gravidez desta, a qual para além do mais, se fez passar por muito doente, e com fortes probabilidades de vir a falecer, tanto se tivesse a criança como se recorresse à prática da interrupção da gravidez.
u) Para que tudo parecesse real, fabricaram um teste positivo de gravidez em nome da "C" para ser exibido aos ofendidos.
v) No dia 2 de Agosto de 1999, as arguidas através da "A" contactam os ofendidos, noticiando a (falsa) gravidez da "C", e a falta de condições de saúde daquela pelo que poderia morrer se tivesse o filho, referindo que ela ao saber de tudo isto tinha dito “...posso morrer mas não morro sozinha...! Eu mato-o (ao Vieira) à mulher e filhos...”.
w) Tudo isto visava criar um clima de inquietação e de culpa nos ofendidos, particularmente no Vieira, que proporcionasse uma intervenção posterior no sentido de se conseguir dinheiro, tendo então sido decidido promover um encontro entre todos num café situado nas redondezas do café “Tuxo”, junto da Universidade, nesta cidade, para se tratar este assunto.
x) A arguida "C" não esteve presente neste encontro, mas a arguida "A", que sempre se portou como líder, ligou-lhe informando-a que estavam todos reunidos e que dissesse o que precisava para que tudo ficasse resolvido.
y) Neste telefonema, depois de muitas peripécias, foi estabelecida uma quantia em dinheiro de Esc. 30.000.000$00, que teria de ser entregue para evitar que a "C" fizesse uma asneira (eventualmente pôr a mulher ao corrente do seu relacionamento sexual com ela ou, em última análise, matá-los a todos, mulher e filhos).
z) Estava assim criado o almejado clima de pressão sobre os ofendidos, que receavam, em primeiro lugar, que as arguidas revelassem tudo às respectivas mulheres, e na pior das hipóteses, que a "C" executasse a ameaça de morte.
aa) Temendo o pior, o Vieira logo ali referiu que só podia arranjar cerca de 5.000.000$00, tendo a arguida "A" insistido que a "C" só sossegaria com os 30.000 contos.
bb) Nesse momento o Vieira voltou-se para o Araújo e perguntou-lhe se ele não o conseguiria desenrascar, dizendo-lhe este que sim, na condição de o dinheiro ficar à guarda da arguida "A", pessoa que logo ali tentou conquistar a confiança do ofendido Araújo, retorquindo perante os presentes “...Ó Araújo confias ou não em mim...”, ao que ele respondeu afirmativamente.
cc) Verificando a "A" que a sua estratégia começava a dar fruto, e para maior ser a confiança nela depositada, logo ali disse ao Araújo que, logo que tudo acalmasse lhe devolvia o dinheiro.
dd) Marcaram novo encontro para o dia seguinte, 3 de Agosto de 1999, e nesse mesmo dia 3 de Agosto, a arguida "A" telefonou ao Araújo informando-o de que estava a segurar consigo a "C", impedindo-a de sair de pistola em punho para a Póvoa de Lanhoso (onde residiam os ofendidos), tendo consigo a chave do carro daquela.
ee) Mais retorquiu a arguida "A" que se deviam despachar a trazer os 30.000 contos, para ser efectuado o depósito como haviam acordado.
ff) Por volta das 14.30 h daquele dia 3 de Agosto de 1999, depois de se terem encontrado com a arguida "B" no restaurante da "C", onde lhes foi entregue a caderneta da CGD pertencente à arguida "A", os ofendidos Araújo e Vieira deslocaram-se à agência central da CGD na Av. Central, nesta cidade, e o Araújo passou um cheque pessoal (cheque n.º 1013216670, sacado sobre o BPSM da Póvoa de Lanhoso, no montante de trinta milhões de escudos, cfr. fls. 31), o qual foi depositado na conta da arguida "A", sendo o recibo de tal depósito entregue para ser exibido à arguida "C".
gg) Mais tarde a arguida "A" ligou ao Araújo descansando-o e referindo-lhe que não levantaria o dinheiro, entregando-lho de volta logo que fosse oportuno, isto é, logo que tudo se acalmasse.
hh) No dia 9 de Agosto de 1999, através de 6 cheques da arguida "A" com os nºs. 555733504, 655733505, 955733508, 355733502, 855733507 e 755733506, sacados sobre a sua conta 171-151397-900 da CGD de Braga, todos no montante de 5.000 contos, foi levantada a importância ali depositada, a qual foi repartida e teve destino que não foi possível apurar com segurança.
ii) Nesse mesmo dia, a arguida "A" deu conhecimento ao Araújo do levantamento do dinheiro, assegurando-lhe porém que o tinha feito para mostrar à "C" que era verdadeiro o depósito, pois aquela não acreditava no talão que lhe fora exibido, e que tal quantia ficaria por si guardada, num cofre da ....
jj) Perante este facto novo e porque nada disto correspondia ao acordo feito, o Araújo desconfiado, pediu a devolução do dinheiro à arguida "A".
kk) Apesar das diligências e encontros encetados com as arguidas nos dias seguintes 10 e 11 de Agosto de 1999, nunca mais os ofendidos viram o dinheiro, ameaçando que se iriam queixar às autoridades se o mesmo não aparecesse.
ll) Perante a reacção inesperada dos ofendidos, a arguida "A" ameaçou de que se eles dessem conhecimento à polícia destes factos “...que estavam fodidos, pois conhecia gente da pior espécie que lhes faria a folha...”.
mm) Contudo no dia 12 de Agosto de 1999, perante a atitude assumida pelas arguidas, essencialmente a "A", os ofendidos Araújo, Vieira e Magalhães denunciaram estes factos à PSP.
nn) E na sequência de tudo, a partir daí começaram a ser sondados pelos conhecidos “Eduardo ...”, “Berto ...” e “Fernando ...”, indivíduos com passado criminal de certa forma intimidatório, para que tudo se resolvesse a bem (isto é, os ofendidos calar-se-iam, e em troca receberiam o dinheiro de volta, pagando aos intervenientes alguma compensação monetária).
oo) No final do ano de 1999, a arguida "A" que havia conhecido o ofendido Guilherme na sua fábrica de mármores, sita no lugar da Gregória, S. Lázaro, nesta cidade, por causa de uma encomenda de uma mesa de mármore, foi cimentando com o mesmo uma crescente confiança e amizade, a qual culminou num relacionamento sexual entre ambos.
pp) Tais contactos ocorreram pelo menos duas vezes em datas que não foi possível determinar, no apartamento pertença da arguida "B", junto do cemitério municipal de Monte d’Arcos.
qq) Depois deste envolvimento, a arguida "A" telefonou ao ofendido Guilherme, comunicando-lhe que estava grávida dele, tendo-lhe este sugerido que interrompesse voluntariamente tal gravidez, pois ele tinha família estável e não pretendia assumir tal paternidade.
rr) A arguida, que só alegadamente se encontrava grávida, com o objectivo de preparar o caminho para lhe arrancar o dinheiro que almejava, foi-lhe dizendo que não podia abortar pois tinha sido operada a um cancro de pele e o médico disse-lhe ser um grande risco.
ss) Vendo que não convencia a arguida "A", marcou novo encontro com ela, junto ao restaurante “Augusta” na estrada para a Póvoa de Lanhoso, onde aquela compareceu acompanhada da arguida "C".
tt) Ao fim de algum tempo de diálogo e exigências da "A", o ofendido Guilherme começou por oferecer 1.000 contos, acabando por aceitar dar àquela 10.000 contos, no intuito de ela se calar e com o objectivo de ela não lhe dar cabo da sua vida familiar.
uu) Assim, no dia 18 de Janeiro do ano 2000, através do cheque n.º 65536576, sacado sobre o BES de Braga, levantou das suas poupanças 10.000.000$00 em dinheiro, que levou consigo e entregou à arguida.
vv) Toda a acção decorreu enquanto as arguidas, actuando concertada e conjuntamente (no caso dos ofendidos Araújo, Vieira e Magalhães) convenciam os ofendidos, através de ameaças sérias de revelação de factos atentatórios da estabilidade da vida familiar daqueles ou ainda ameaçando atentar contra a vida dos mesmos, a praticarem factos que significavam o seu avultado prejuízo patrimonial, com o consequente enriquecimento ilegítimo por parte das mesmas.
ww) Condições que a par da manifesta indiferença com que as arguidas lidavam com estes problemas, atemorizaram os ofendidos de tal forma que os determinaram a não se oporem à conduta daquelas.
xx) Agiram as arguidas sempre de vontade livre e conscientemente, bem sabendo serem ilícitas as suas condutas e, não obstante tal consciência, não se coibiram de as levar a cabo, alcançando os correspectivos resultados delituosos.
yy) Agiu a arguida "A", no caso do ofendido Guilherme, de forma livre, deliberada e consciente, com o objectivo de obter ganhos patrimoniais ilegítimos à custa do ofendido aproveitando-se da relação de confiança e intimidade que com ele estabelecera, para convencer o ofendido que estava grávida e com perfeito conhecimento de que, agindo da forma descrita, como quis e fez, praticava actos ilícitos e punidos criminalmente.
zz) Com tal ardil a arguida obteve a entrega dos 10.000 contos referidos, sem sequer estar grávida, enriquecendo, desta forma, o seu património e empobrecendo o do ofendido no mesmo montante.
aaa) Pretenderam, com as descritas condutas, atemorizar os ofendidos constrangendo-os através de violência psíquica e ameaças contra a sua integridade física e dos familiares, a entregar-lhes valores, com que aumentavam ilicitamente o seu património, com o inevitável prejuízo pessoal dos ofendidos.
bbb) Devido à conduta das arguidas, o Assistente Jorge esteve durante vários meses sob o espectro da revelação de toda a situação à família, sofreu ameaças e violências psíquicas esteve várias noites sem dormir, daí resultando que emagreceu e sofreu perturbações sérias na sua actividade profissional.
ccc) O Assistente António Araújo, devido à conduta das arguidas foi coagido a abrir mão da referida quantia tendo empobrecido o seu património nessa medida e sendo enriquecido o património das arguidas nesse montante, tendo sofrido ameaças e violências psíquicas.

E considerou não provado que:
1. Para que tudo parecesse real, as arguidas tenham recorrido a uma análise de gravidez em que foi utilizada urina de pessoa grávida para fabricaram um teste positivo de gravidez em nome da "C" para ser exibido aos ofendidos.
2. Os ofendidos bem sabiam que a "C" andava sempre com uma arma de fogo na carteira, e que a mesma várias vezes a tenha exibido àqueles.
3. Nas circunstâncias referidas em tt) dos factos provados, o ofendido Guilherme tenha entrado em pânico com as ameaças da arguida.

O Tribunal Colectivo assim fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto:
“A arguida "A" negou as acusações que lhe são imputadas.
Quanto aos factos que dizem respeito ao ofendido Araújo disse que o conheceu em 1996, e, a partir daí, teve um relacionamento íntimo com ele o qual durou até 1999, tendo frequentes encontros com relações sexuais, e que, nessa altura, o referido Araújo resolveu, de livre vontade, dar-lhe uma quantia para ela comprar uma casa para eles se encontrarem, sendo por isso que ele lhe depositou os referidos 30.000.000$00 na sua conta bancária, no dia 3/08/1999.
Disse ainda que depois disso tiveram uma zanga e ele começou a exigir-lhe a devolução do dinheiro com diversas ameaças, pelo que, como considerava que não tinha de devolver o dinheiro por lhe ter sido dado, no dia 9/08/1999, se dirigiu ao Banco e levantou os 30.000.000$00 os quais escondeu debaixo do colchão de uma cama da sua casa em Ponte do Lima, onde esteve até 16/05/2001, data em que ali ocorreu um incêndio, ardendo precisamente o quarto em que se encontrava a referida cama e colchão e, consequentemente, o dinheiro.
Para demonstrar esse acontecimento, juntou, em audiência de julgamento, uma fotocópia de um Relatório de Ocorrência do Serviço Nacional de Bombeiros, em que se refere um alerta de incêndio pelas 21h.30 minutos do dia 16/05/2001, no qual os Bombeiros de Ponte do Lima se deslocaram, às 21h.30 e regressaram às 22h.30, a uma residência na Rua Norton de Matos, em Ponte do Lima, referindo um Fogo Urbano em que ardeu a mobília de um quarto.
A arguida "A" confirmou os encontros com os restantes ofendidos, dizendo que os pares assentavam nos casais "A"/Araújo, Magalhães/"B" e "C"/Vieira.
Disse ainda que, durante a relação entre ambos, o Araújo lhe deu diversas prendas nomeadamente dinheiro, ouro, relógios, etc.
Negou ter falsificado qualquer análise de urina para enganar e coagir os ofendidos.
Quanto ao episódio em que foram ao apartamento da "B", na véspera do dia em que foi apresentada a queixa na PSP pelos ofendidos, disse que, como as relações entre ambos estavam tensas, foi com o Araújo para fazerem as pazes e para terem relações sexuais no apartamento da "B", tendo chamado o Zé Puto (a testemunha José ...) para abrir a porta pois se tinha esquecido da chave, o que ele fez, e só então se apercebeu da presença do Magalhães e do Vieira, percebendo que lhe tinha sido montada uma cilada, e, tendo ficado assustada, disse aos três que estava lá dentro do apartamento o dinheiro, o que não era verdade.
Quanto ao ofendido Guilherme, disse que o procurou para lhe comprar uma pedra de mármore para tampo de uma mesa, da fábrica dele, iniciando então uma amizade muito forte, tendo relações sexuais entre eles, e, como a "C" estava com muitas dificuldades económicas na altura, pediu-lhe para pedir um empréstimo de 10.000.000$00 ao Guilherme, o que fez, quantia que ele lhe entregou em dinheiro e ela entregou à "C", sabendo que ela já lhe devolveu 2.500.000$00, faltando devolver o restante.
A arguida "B" negou as acusações que lhe são feitas quanto à extorsão e à fabricação da análise de gravidez falsa, e disse que na altura dos factos vendia roupas de porta em porta, confirmou a versão da "A" de que os pares eram "B"/Magalhães, "C"/Vieira e "A"/Araújo, disse que foi ela quem entregou a caderneta da "A" para eles fazerem o depósito do dinheiro na conta dela, dinheiro esse que, pelo que sabia, era destinado a comprar uma habitação para a "A" e o Araújo se encontrarem, confirmou que comprou em 31/08/1999 um Daewoo Lanos novo, o qual foi pago em dinheiro, sendo registado em nome da sua mãe porque foi ela quem lhe emprestou o dinheiro para o mesmo, disse que trabalhava numa casa de alterne à noite onde era conhecida pela “ISABEL” e disse que o Vieira lhe foi apresentado pela "A" e pelo Araújo.
A arguida "C" disse que à parte os jantares e as saídas com os ofendidos, o resto era tudo mentira.
Confirmou a versão da "A" quanto aos pares, mas disse nada saber sobre o teste de gravidez, negou ter feito qualquer ameaça, disse que só soube do dinheiro porque a "A" lhe contou que o Araújo lho tinha dado, negou qualquer envolvimento na situação, admitiu ter ido com a "A" levantar o dinheiro à C.G.D., o que foi feito em 6 cheques de 5.000.000$00 cada, admitiu que passaram ela mais os filhos, a "A" mais os filhos e o namorado (Januário) e a "B" mais a filha, todos, 14 dias de férias em Benidorm em fins de Agosto de 1999, mas negou que tivesse sido com o dinheiro do Araújo acima referido, pois pagou ela a despesa dela e dos seus filhos, e, quanto ao Guilherme Salgado disse que efectivamente a "A" lhe pediu 10.000.000$00 para si, dos quais já pagou 2.500.000$00, e, embora estivesse combinado pagar tudo até ao fim do ano de 2000 ainda mais nada pagou, tendo-se destinado esse dinheiro a pagar a difícil situação económica em que ficou após fechar o seu restaurante “... da Cidade”.
Questionada porque é que a "A", atentas as relações de amizade que mantinha com a mesma, não lhe emprestou os 10.000.000$00 de que precisava, quantia que ela sabia de que a "A" dispunha, dados pelo Araújo nos termos descritos, respondeu que lhe pediu mas que a "A" lhe disse que não emprestava pois não queria mexer nesse dinheiro.

O Assistente António , disse que conheceu a "A" há mais de 10 anos por intermédio da testemunha Filomena ..., e negou ter tido qualquer relacionamento amoroso com a "A".

Admitiu ter tido relacionamento sexual com a arguida "B", a qual disse conhecer por “Isabel”, mas referiu que, em todas as saídas que tiveram juntos, os pares eram ele com a "B", o Magalhães com a "A" e a "C" com o Vieira.

Descreveu os diversos encontros que tiveram, nomeadamente jantares e passeios na quinta em Fafe da família do Jorge..., e uma estadia na Estalagem Zende em Esposende.
Disse que em determinada altura, por finais de Julho de 1999, a "C" lhe ligou e lhe disse para dizer ao Vieira que estava grávida, e, posteriormente, no restaurante da "C", numa reunião em que estava ele, o Magalhães, a "C" e a "A", lhes foi exibido um teste de gravidez positivo, dizendo que era da "C", a qual dizia que por problemas de saúde não podia engravidar e que iria matar o Jorge ... e a família toda, dizendo que ela morria de qualquer maneira, mas que não morreria só.
Descreveu as posteriores ameaças de morte recebidas pelo telefone e disse que foi a "A" quem liderou todo o processo.
Disse ainda que numa reunião, alguns dias mais tarde, no café Tuxo, em que estava ele, mais o Vieira, mais o Magalhães, mais a "A" mais a “Isabel” (que era a arguida "B"), após uma conversa telefónica com a "C" em que a "C" fez de novo diversas ameaças pelo telefone, ficou combinado depositarem 30.000.000$00 na conta da "A", sem que esta lhe mexesse, mas só enquanto ia tentar arranjar uma solução com a "C" e até esta acalmar.
Questionado porque é que não foi o Jorge ... a arranjar e depositar o dinheiro pois que era ele o autor da suposta gravidez, disse que ele não tinha dinheiro e, portanto, o Araújo se prontificou a emprestá-lo até a situação se resolver.
Acrescentou ainda que foi ele próprio a passar o cheque e a depositá-lo na conta da "A", razão pela qual autorizou o seu Banco a pagar o cheque quando o seu gerente de conta lhe telefonou, sempre convencido que o dinheiro respectivo não era para levantar.
Disse ainda que, passados uns dias a "A" lhe telefonou a dizer que afinal tinha levantado o dinheiro para o mostrar à "C" pois ela não acreditava no talão de depósito, e só então começou a ficar desconfiado passando a exigir à "A" a devolução do dinheiro, indo com ela um dia ao apartamento da "B".
Descreveu esse episódio dizendo que foi lá porque a "A" lhe disse que o dinheiro (os 30.000.000$00) estavam guardados no apartamento da "B", num saco, acedendo a ir lá buscá-lo com a "A", indo para lá no seu carro e a "A" no dela, e, quando lá chegaram, a "A" disse-lhe que não tinha a chave, pelo que, a conselho dela, foram no carro dela buscar o Zé Puto, indivíduo especialista em abrir fechaduras de portas, o qual veio e abriu a porta, e, logo que entraram, procuraram e não encontraram o dinheiro e a "A" disse que a "B" tinha fugido com o mesmo, pelo que no dia seguinte apresentou queixa na P.S.P.
Negou qualquer envolvimento sexual com a "A", negou que lhe tenha dado prendas (relógios, ouro, etc.) e disse que, embora não tenha se tenha sentido directamente pressionado ou coagido pela "A", disponibilizou o dinheiro (os 30.000.000$00) de que nesse momento podia dispor, porque sentiu o medo do seu amigo Jorge e o receio que ele tinha de sofrer ele e a sua família, as consequências das atitudes a tomar pela "C", tudo no intuito de evitar o divórcio do seu amigo ou mesmo mortes.

O Assistente Jorge disse que conheceu as arguidas todas ao mesmo tempo por intermédio do Araújo, cerca de Julho de 1999, iniciando uma amizade que culminou em diversas relações sexuais entre si e a "C".
Disse que os pares eram ele e a "C", o Magalhães e a "A" e o Araújo com a "B", a qual conheciam por Isabel.
Descreveu os encontros que tiveram na quinta da sua família em Fafe, e em restaurantes, e disse que, em determinada altura, a "C" apareceu a dizer que estava grávida, referindo que foi a "A" quem lhe telefonou a dizer isso, situando esse telefonema numa altura em que estava em Moncorvo com o Magalhães num fim-de-semana de caça.
Disse que foi convocado para uma reunião no café Tuxo pela "A" em que esteve ele, o Magalhães, o Araújo e a "A", no decurso da qual a "C" telefonou com ameaças e exigências pelo telefone, ameaçando ir à casa dele contar tudo à família e ameaçando matar toda a sua família, pelo que decidiram arranjar uma verba para ela não realizar as ameaças, verba essa que ela exigiu pelo telefone serem 30.000.000$00, a qual, como ele não tinha, foi disponibilizada pelo Araújo.
Confirmou que a "A" se disponibilizou para ficar guardiã desse dinheiro até a "C" acalmar, e descreveu o modo como foi o Araújo depositar um cheque dele na conta da "A".
Disse ainda que passados alguns dias o Araújo quis saber do dinheiro pelo que, como a "A" disse que o dinheiro estava na casa da "B", foram lá os quatro (Araújo, Magalhães, Vieira e "A"), mas a "A" depois foi com o Araújo buscar o Zé Puto, que abriu a porta da casa e, depois, entraram, vendo que o dinheiro não estava lá e dizendo a "A" que a "B" tinha fugido e levado o dinheiro, pelo que no dia imediato foram fazer queixa à PSP.
Disse ainda que se sentiu muito pressionado e ameaçado, com muito medo de ter consequências graves para si e para a sua família e que o Araújo disponibilizou esse dinheiro apenas para o ajudar a resolver a situação.
O Magalhães disse que conheceu as arguidas através do António Araújo, tendo ido jantar juntos e depois a uma quinta pertença do Vieira em Fafe, iniciando um relacionamento íntimo entre eles, sendo pares ele próprio com a "A", o Vieira com a "C" e o Araújo com a "B", a qual conheciam por Isabel, descrevendo depois outros jantares e saídas entre todos.
Referiu um jantar com dormida na Estalagem Zende em Esposende, ficando ele com a "A" num quarto e o Araújo com a "B" noutro quarto.
Referiu o fim-de-semana de caça em Trás-os-Montes já referido pelo Vieira, embora o situe em data diferente, dizendo também que a "A" lhe telefonou a ele referindo-lhe a gravidez da "C", e, por isso ficou combinado um encontro em que esteve ele, o Araújo, o Vieira, a "B" e a "A" acertando-se então o montante de 30.000.000$00, após telefonemas com ameaças e exigências da "C", montante esse que o Araújo disponibilizou, e que seria apenas para “segurar” a "C" de cumprir as ameaças que fizera, e nunca para levantar.
Confirmou também a ida posterior ao apartamento da "B" para ir buscar o dinheiro pois a "A" dissera que o mesmo estava lá, confirmando a presença lá de um indivíduo para abrir a porta, e, verificando que nem a "B" nem o dinheiro lá estavam, a "A" disse que a "B" tinha fugido, e, quando eles disseram que iam à PSP apresentar queixa, pela "A" foi dito não era preciso pois polícia era ela.
Referiu também que no dia seguinte a esses factos foram à PSP apresentar queixa e a partir daí, durante alguns dias receberam telefonemas ameaçadores de outras pessoas.
Guilherme disse ter conhecido a "A" em Novembro de 1999, apresentada por um amigo comum, a testemunha Firmino ..., a pretexto de ela comprar uma pedra de mármore para uma mesa, na empresa dele, e a partir daí, foram tomar café, iniciando um relacionamento no qual, em 15 dias tiveram relações sexuais duas vezes.
Disse ainda que depois esteve para o estrangeiro, e, quando regressou, em Janeiro de 2000, encontrando-se de novo com a "A" esta disse-lhe que se sentia mal e estava à espera de uns resultados, acabando por lhe ligar passados uns dias dizendo-lhe que estava grávida.
Como era casado com uma mulher muito ciumenta e não pretendia assumir a paternidade da criança, tentou convencê-la a fazer um aborto, chegando a dar-lhe cerca de 150.000$00 para esse efeito, mas ela não o fez, dizendo-lhe que tinha um cancro da pele no baixo-ventre e não podia ser operada.
Contou depois um encontro no Restaurante Augusta, na estrada para a Póvoa de Lanhoso, durante o qual a "A", de modo muito subtil lhe foi dando a entender que iria fazer com que a mulher dele soubesse, pelo que, aceitou “negociar” o silêncio dela começando por lhe oferecer 1.000.000$00, subindo as ofertas, acabando por acordar com ela o montante de 10.000.000$00 que lhe entregou, acrescentando que nunca se sentiu coagido, mas fazendo-o por acreditar que a "A" estaria realmente grávida e não queria de modo nenhum que a sua mulher soubesse.
Disse ainda que, algum tempo depois, quando foi contactado pelo Inspector ... da P.J., lhe contou a versão de que esse montante era um empréstimo para a "C", versão que foi mantendo de acordo com as arguidas "A" e "C", até que, em Novembro de 2000 a sua esposa recebeu um postal da P.J. para prestar declarações, pelo que percebeu que a sua estratégia não tinha dado resultado, acabando por contar toda a verdade à sua mulher e depois na P.J.
O Inspector ... descreveu toda a investigação efectuada e que conduziu à acusação.
Maria ..., disse que foi ela quem apresentou o Araújo à "A" em 1994 ou 1995, sabendo que os mesmos eram amigos, mas desligou-se dela em 1995 nada sabendo sobre as relações entre ambos.
Carolina ..., à parte dizer que conhecia a "B" por Isabel por trabalhar com ela num bar de alterne à noite, nada mais disse de relevante.
José ... (O Zé Puto), disse que a "A" a foi buscar, com um indivíduo, numa noite, indo a um apartamento dizendo-lhe que a casa era dela e que se esquecera da chave, e, como a conhecia de agente da ..., abriu a fechadura da porta, não se recordando de ter lá visto mais ninguém para além deles dois.
Adriano ... e António ..., funcionários da Estalagem Zende não trouxeram ao tribunal qualquer esclarecimento sobre como se compunham os casais que lá dormiram (se eram Araújo/"B" e "A"/Magalhães ou se eram "A"/Araújo e "B"/Magalhães).
Maria Isabel ... nada disse que esclarecesse o tribunal sobre os factos em apreciação.
Graça ... teve um depoimento confuso e contraditório que não serviu para ajudar o tribunal a formar a sua convicção.
Eduardo ..., irmão do assistente Vieira, depôs sobre o estado de tensão e ansiedade do seu irmão aquando dos factos e descreveu algumas ameaças telefónicas, via telemóvel, dirigidas ao seu irmão.
Fernanda ..., disse que, embora fosse o seu número de telefone que apareceu na chamada telefónica efectuada para o telemóvel do João quando este estava a depor na P.J., e referida pelo inspector ..., a chamada não foi feita de sua casa e a mesma não apareceu na sua factura telefónica pelo que terá sido alguém a servir-se das linhas telefónicas clandestinamente.
António ...a, não prestou depoimento atento o facto de ser o actual companheiro da "A".
Manuel ..., agente da ... e colega da arguida "A" disse que nada sabia sobre os factos para além de verificar que a arguida "A" fazia uma vida superior à que poderia fazer atento o salário de cerca de 150.000$00 por mês que tinha na altura, mas nada sabendo sobre o modo como ela obtinha dinheiro para os gastos que fazia.
Ana ..., de 52 anos de idade, Mãe da arguida "B" disse que foi ela quem lhe emprestou o dinheiro para comprar o Daewoo Lanos novo que ela adquiriu em 31/08/1999, em dinheiro vivo, o que é contraditório com o facto de ela ser doméstica, o seu marido funcionário público na Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, terem 7 filhos, tendo os 4 mais novos ainda 12, 18, 20 e 22 anos de idade, portanto em fase de fazerem muitas despesas aos pais, e viverem numa casa de um bairro social, entretanto adquirida por eles por 1.400 contos, portanto pouco compatível com essa disponibilidade económica.
Firmino ... confirmou que foi ele quem vendeu o Daewoo Lanos à "B", a dinheiro vivo, o que não é usual, tendo-lhe ela pedido para o carro ficar em nome da mãe dela.
António ..., agente da PSP, Rosa ..., ...Araújo, Salomé ..., Maria ... Natividade..., e Daniel ..., nada disseram que tivesse interesse para os factos.
Das testemunhas de defesa, Dianne ... disse que era muito íntima da "C", a quem ajudava no restaurante tendo dito que a "A" ia muito para lá com um senhor baixo que identificou como o ...Araújo, talvez no início de 1998, vendo-os lá no restaurante 3 ou 4 dias por semana, numa convivência muito íntima, autênticos namorados, a beijarem-se, sabendo depois, pela "A" que o Araújo lhe tinha dado dinheiro para comprar uma casa.
Quanto aos ofendidos Magalhães e Vieira, disse que não os conhecia pois nunca os tinha visto por lá.
Manuel ..., Alcino ..., agentes da ..., Alcinda ... Vítor ..., depuseram sobre o bom comportamento da arguida "A", assim como Alberto ... para a "B" e António ... para a "C".
Antónia ..., embora tivesse dito que trabalhou no restaurante da "C" e viu o Araújo lá com a "A" por diversas vezes, dizendo até que pensava que eram namorados ou casados, acabou por dizer que só ia lá fazer limpezas de fundo, duas vezes por semana, o que, quanto a nós é incompatível com a presença de clientes nessas alturas no restaurante, e, esclarecendo depois que, depois de 1997, só lá ia quando a chamavam e era precisa, o que retira credibilidade ao seu depoimento.
Ora, atento o modo como os assistentes e a testemunha depuseram, e ainda a clareza da versão trazida para o processo pelo ofendido Guilherme ..., que, no fundo, acaba por confirmar o mesmo “modus operandi” da "A", o tribunal ficou convencido que os factos se passaram do modo como a acusação refere.
Efectivamente, não é normal que um indivíduo casado, empresário, faça uma doação em dinheiro de tão avultada quantia (30.000.000$00) para a amante comprar um apartamento, quando é sabido que na cidade de Braga há apartamentos muito mais baratos, e, o normal, é serem eles próprios a comprar o apartamento, embora depois possa ser registado em nome da amante.
Não é também lógico que dure tantos anos um relacionamento amoroso (pelo menos desde 1996, na versão da "A") e, sendo o dinheiro depositado em 3/08/1999, seja de imediato levantado em 9/08/1999, logo após terem passado os dias normalmente utilizados pelos bancos para que o dinheiro fique disponível, no dia 10/08 ou 11/08 se passe o episódio da ida a casa da "B" com o Zé Puto, e no dia 12/08/1999 pelas 11 da manhã os ofendidos apresentem queixa contra as arguidas.
Entre o depósito do dinheiro e a zanga, é rápido demais para que haja tempo para uma zanga entre os amantes Araújo e "A", zanga essa tão grande de molde a o Araújo ir logo exigir a devolução do dinheiro que, voluntariamente, na versão da "A", lhe tinha dado
A versão das arguidas é demasiado ilógica para, face à experiência da vida, se poder aceitar como verosímil.
Por outro lado, é demasiado azar a "A" ter escondido o dinheiro debaixo de um colchão sendo um incêndio, logo nesse quarto, que vai consumir a mobília do quarto e, consequentemente, o dinheiro.
Embora tenha havido algumas contradições nos depoimentos sobretudo do João ...e do Magalhães, essas contradições foram em pormenores quase insignificantes, que não abalaram a credibilidade dos mesmos.
Diga-se, em abono da verdade, que é no mínimo estranho que, homens feitos, casados e com filhos, empresários e com experiência da vida, tenham sido tão facilmente enganados pelas arguidas.
Mas, esse comportamento dos ofendidos/assistentes é tão ingénuo, essa credulidade tão inacreditável, que, se calhar, é por isso que as arguidas sustentam essas versão até ao fim, mesmo em julgamento.
Assim, e pelas razões atrás expostas, o tribunal colectivo formou a convicção de que as arguidas praticaram os factos do modo acima descrito”.

Consabidamente, as conclusões da motivação balizam o objecto do recurso.
As arguidas, por um lado, impugnam a matéria de facto.
Dizem que foram incorrectamente julgados os factos narrados nas als. l) a ccc) da relação dos factos provados, designadamente no que toca aos pares formados pelas Arguidos e pelos Ofendidos; à invocação da falsa gravidez da Arguida "C" e do respectivo teste; às ameaças sobre os Ofendidos; à razão invocada para a entrega dos 30.000 contos; à entrega pelo Ofendido GUILHERME de 10.000 contos à Arguida "C"; à falsidade da gravidez da Arguida "A" e do subsequente aborto.
Defendem que deve ser dada como provada a versão que as Arguidas apresentaram em Tribunal, designadamente que a Arguida "A" e o Assistente ARAÚJO mantinham há anos, um relacionamento íntimo; que os 30.000 contos foram oferecidos e entregues em cumprimento duma promessa antiga, para aquisição duma casa; que, poucos dias depois dessa entrega, a "A" e o ARAÚJO zangaram-se e este exigiu a restituição dos 30.000 contos, que aquela se recusou a fazer; que o ofendido GUILHERME emprestou os 10.000 contos à Arguida "C"; que este não agiu induzido em erro por qualquer falsa gravidez da "A".
Alicerçam a sua pretensão no facto de o tribunal haver acolhido apenas as declarações dos Ofendidos, preterindo quer as declarações das Arguidas, quer as de algumas testemunhas, não obstante reconhecer que essas declarações estão contaminadas por contradições e que a respectiva versão é, “no mínimo, estranha”.
Ora, o depoimento dos Ofendidos ARAÚJO, VIEIRA e MAGALHÃES é profundamente contraditório nos seus elementos estruturantes: contraria dados objectivos indesmentíveis, entre os quais o simples calendário do ano de 1999 e os documentos juntos aos autos (em especial os talões de depósito e de levantamento dos 30.000 contos, e a factura de pernoita na estalagem Zende); colide com o conteúdo da queixa; não coincide sequer com os factos descritos na sentença.
Ao invés, a versão apresentada pelas Arguidas para explicar o recebimento dos 30.000 contos é coerente e lógica, tem consistência interna, não contraria as regras da experiência, é compatível com os elementos de prova disponíveis, em especial os de natureza documental, e foi confirmada, numa parte muito importante, pelo depoimento das testemunhas DIANNE ...e ANTÓNIA ....
Nenhuma prova se produziu de onde seja lícito concluir que a Arguida "A" invocou uma falsa gravidez, induzindo em erro o Ofendido GUILHERME e determinando-o, por tal motivo, à entrega os 10.000 contos.
Pelo contrário, o depoimento do Ofendido GUILHERME impõe a conclusão inversa pelo que também quanto aos factos descritos nas alíneas qq), yy) e zz) da decisão da matéria de facto, o douto acórdão incorreu em erro de julgamento.
Mesmo que assim se não entenda, as arguidas teriam cometido o crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º, nº 1, al. b), CP, incorrendo em pena de prisão de 1 a 8 anos, devendo ser alterada a medida concreta da pena.

Vejamos:
1. Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do n.º 1 do art.º 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito.
Cumprido que se mostra o ónus do n.º 3 do art.º 412º do CPP, importa conhecer da matéria de facto.
As Recorrentes alegam que não pode ser dada como provada a matéria de facto no que toca aos pares formados pelas Arguidos e pelos Ofendidos; à invocação da falsa gravidez da Arguida "C" e do respectivo teste; às ameaças sobre os Ofendidos; à razão invocada para a entrega dos 30.000 contos; à entrega pelo Ofendido GUILHERME de 10.000 contos à Arguida "C"; à falsidade da gravidez da Arguida "A" e do subsequente aborto.
Ao invés, defendem que deve ser dada como provada a versão das arguidas, isto é, que a Arguida "A" e o Assistente ARAÚJO mantinham há anos, um relacionamento íntimo; que os 30.000 contos foram oferecidos e entregues em cumprimento duma promessa antiga, para aquisição duma casa; que, poucos dias depois dessa entrega, a "A" e o ARAÚJO zangaram-se e este exigiu a restituição dos 30.000 contos, que aquela se recusou a fazer; que o ofendido GUILHERME emprestou os 10.000 contos à Arguida "C"; que este não agiu induzido em erro por qualquer falsa gravidez da "A".
Para tanto partem de contradições que, na realidade, existem nos depoimentos dos ofendidos para concluírem que os mesmos não são credíveis.
Manifestamente assim não é.
Como se afirma com muita lucidez no Ac. da Relação do Porto tirado no recurso n.º 99/20001 “a actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre questões num determinado sentido para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso a actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores que tem a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio cultural, a linguagem gestual e até saber interpretar as pausas e o silêncio dos depoentes para poder perceber e aquilatar quem estará a falar linguagem da verdade e até que ponto e que consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes não intencionalmente”.
É sabido que a comunicação verbal é a comunicação efectuada através das palavras. No entanto, este método é propenso a erros, que envolvem a antecipação, as expectativas, erros no discurso ou distorção na transmissão. Todos ou alguns destes problemas, podem ocorrer quando se fala depressa ou quando se usa a fraseologia incorrecta.
A comunicação verbal é complementada e interpretada pela comunicação não verbal.
Esta é uma forma de comunicação metafórica, simbólica e afectiva, baseando-se em sinais que têm uma relação imediata com o seu significado simbólico e/ou de semelhança.
Os principais métodos não verbais de comunicação e de estabelecimento de relações são o olhar, a expressão facial, o toque, a postura e orientação corporal, os movimentos corporais (mãos, cabeça) e a separação física (espacial). Outras informações podem ser transmitidas também pela maneira de falar (tom de voz, velocidade, pausas, etc.). A velocidade da fala e o seu tom podem denotar ansiedade, mas outro aspecto importante de qualquer conversa é a facilidade com que o emissor pode mudar. Assim, as interrupções, a facilidade de exposição, o à vontade com que fala, são bons indicadores da segurança no discurso.
A expressão facial é muito importante para a comunicação de estados emocionais: felicidade, medo, raiva, desgosto, alegria, tristeza, interesse, desprezo, etc.
Balançar a perna, bater os dedos e encolher os ombros indica frustração, desacordo e tensão.
A tristeza e a raiva, bem como todas as expressões faciais podem ser disfarçadas.
Em julgamento, o Juiz deve manter-se constantemente atento à comunicação verbal, e também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser surpreendida pelo tribunal de recurso, fica este impossibilitado de recorrer à segunda para complementar e interpretar aquela.
Com todas as consequências que daí advêm.
Por isso, a decisão do Juiz quanto à matéria de facto só deve ser alterada quando seja evidente que as provas a que se faz referência na fundamentação não conduzem à mesma decisão.
Mas nunca quando haja duas versões sobre os factos e o Juiz, legitimamente, opta por uma delas, em obediência ao disposto no art.º 127º do CPP.
É que, recorde-se, só o Juiz na 1ª Instância beneficia da imediação e, por isso, só ele teve acesso à comunicação não verbal, sabendo-se que não é fácil “transmitir esta ao papel”. O Juiz deve manter-se constantemente atento a tudo isso, o que só é possível dispondo-se da imediação.
Do que vem de ser dito se conclui que não é pelo facto de as arguidas dizerem que o depoimento dos ofendidos não tem credibilidade que o tribunal ad quem há-de chegar a essa conclusão.
As contradições destes, que o tribunal colectivo ponderou, e considerou serem em “pormenores quase insignificantes”, não existem quanto ao essencial da questão: relacionamento amoroso dos pares (sejam eles quais forem, mas sempre das três arguidas com os três ofendidos, independentemente de ser "A"/Araújo ou "A"/Magalhães – se bem que nesta parte não haja contradição dos ofendidos), simulação da gravidez da "C", exigência dos 30.000 contos sob ameaça de revelação do dito relacionamento ou até de morte dos familiares do Vieira, autor da suposta gravidez).
Como bem refere o Ex.mo PGA, as contradições não são equivalentes a falta de verdade. A existência de demasiadas coincidências é que pode significar actuação concertação, orientada para certo fim.
Ora, o tribunal colectivo considerou credíveis, no essencial, os depoimentos dos ofendidos e não os das arguidas.
E considerou-os credíveis porque, repete-se, “o modo como os assistentes e a testemunha depuseram, e ainda a clareza da versão trazida para o processo pelo ofendido Guilherme ..., que, no fundo, acaba por confirmar o mesmo “modus operandi” da "A", o tribunal ficou convencido que os factos se passaram do modo como a acusação refere.
Efectivamente, não é normal que um indivíduo casado, empresário, faça uma doação em dinheiro de tão avultada quantia (30.000.000$00) para a amante comprar um apartamento, quando é sabido que na cidade de Braga há apartamentos muito mais baratos, e, o normal, é serem eles próprios a comprar o apartamento, embora depois possa ser registado em nome da amante.
Não é também lógico que dure tantos anos um relacionamento amoroso (pelo menos desde 1996, na versão da "A") e, sendo o dinheiro depositado em 3/08/1999, seja de imediato levantado em 9/08/1999, logo após terem passado os dias normalmente utilizados pelos bancos para que o dinheiro fique disponível, no dia 10/08 ou 11/08 se passe o episódio da ida a casa da "B" com o Zé Puto, e no dia 12/08/1999 pelas 11 da manhã os ofendidos apresentem queixa contra as arguidas.
Entre o depósito do dinheiro e a zanga, é rápido demais para que haja tempo para uma zanga entre os amantes Araújo e "A", zanga essa tão grande de molde a o Araújo ir logo exigir a devolução do dinheiro que, voluntariamente, na versão da "A", lhe tinha dado.

Embora tenha havido algumas contradições nos depoimentos sobretudo do João e do Magalhães, essas contradições foram em pormenores quase insignificantes, que não abalaram a credibilidade dos mesmos.
Diga-se, em abono da verdade, que é no mínimo estranho que, homens feitos, casados e com filhos, empresários e com experiência da vida, tenham sido tão facilmente enganados pelas arguidas.
Mas, esse comportamento dos ofendidos/assistentes é tão ingénuo, essa credulidade tão inacreditável, que, se calhar, é por isso que as arguidas sustentam essa versão até ao fim, mesmo em julgamento”.
E acrescenta: “a versão das arguidas é demasiado ilógica para, face à experiência da vida, se poder aceitar como verosímil.
Por outro lado, é demasiado azar a "A" ter escondido o dinheiro debaixo de um colchão sendo um incêndio, logo nesse quarto, que vai consumir a mobília do quarto e, consequentemente, o dinheiro”.
Considerada de credível a versão dos ofendidos e não credível a versão das arguidas, o tribunal a quo, naturalmente, optou pela versão daqueles.
Essa versão conforma-se com as regras da experiência comum, pese o muito e douto esforço feito pelas arguidas para tentar demonstrar o contrário, e não assentou em meios de prova proibidos.
Consequentemente, é insindicável por este tribunal – art.º 127º do CPP.
A matéria de facto provada está alicerçada, no essencial – e só este interessa – naqueles depoimentos.
Ao contrário do alegado, a versão dos arguidos não é contraditória nos seus elementos estruturantes.
Antes, quanto a estes – encontros amorosos, simulação de gravidez da "C", ameaça desta de divulgação do relacionamento ou até de morte dos familiares do Vieira - são coincidentes. Considerados credíveis, implica a prova dos factos pelos ofendidos referidos.
As arguidas fazem cavalo de batalha da data de 2 de Agosto de 1999 em que foi noticiada a gravidez.
Para a decisão da causa é irrelevante que seja essa a data ou uma outra data entre fins de Julho e 3 de Agosto porque, na realidade, assim ocorreu, ao menos, entre esses dias.
O tribunal colectivo conclui por essa data atendendo ao depósito e à pressa colocada pela "A" (tenho de a segurar a "C" para que não saia de pistola em punho) no depósito, bem como às datas genericamente e com imprecisões aventadas pelos ofendidos.
E parece ter concluído bem, embora seja irrelevante para a decisão final que a data seja 2 de Agosto, 31 de Julho ou 29 de Julho.
Uma coisa é certa: é sempre entre meados de Julho e 3 de Agosto de 1999.
Como fazem cavalo de batalha dos pares formados.
E quanto a estes compreende-se o porquê: a versão das arguidas só faria sentido se a "A" tivesse relacionamento amoroso como o Araújo.
Todavia, e quanto aos pares, a versão dos ofendidos, considerada de credível, é no sentido de que o Magalhães andaria com a "A" e o Araújo com a "B".
Neste particular há total coincidência nos depoimentos dos arguidos, como se constata pela simples leitura dos seus depoimentos, transcritos.
Considerados credíveis, há que considerar assente o facto.
Da leitura da queixa não se enxerga onde possa existir contradição com aquilo a que as arguidas chamam de elementos estruturantes.
E, na realidade, volta a não existir qualquer contradição com aquilo a que nós chamamos de elementos essenciais.
E o mesmo sucede quanto aos talões de depósito e à factura de pernoita na estalagem.
Do que vem de ser dito se conclui que não se pode retirar a credibilidade, que o tribunal colectivo considerou existir, aos depoimentos dos ofendidos, pretendida pelas Recorrentes.
Por isso, não há que alterar a matéria de facto.
No que toca ao crime em que é ofendido o Guilherme, categoricamente se afirma que a matéria de facto apurada está em total consonância com o depoimento deste.
A leitura do depoimento prestado em julgamento – que o Ex.mo PGA transcreve no seu parecer para demonstrar a total concordância com a matéria de facto – basta para extrair aquela conclusão.
Sem tibiezas, o Guilherme explica como inicialmente apresenta uma versão e depois a altera.
Homem “ingénuo”, para não usar qualificativo diferente, e quiçá mais apropriado, que se cegou por “umas saias”, como diz o povo.
Sendo considerado de credível o seu depoimento, e porque a matéria de facto provada está em total concordância com ele, nada há a alterar pois que as declarações da arguida "A", únicas a contrariá-lo, não foram consideradas credíveis.

Do que vem de ser dito, e porque não foram alegados, nem se verificam, os vícios do n.º 2 do art.º 410º do CPP, tem-se por definitivamente assente a matéria de facto provada.

2. Da incriminação
As arguidas foram condenadas pela prática de um crime de extorsão p. e p. pelo art.º 223º, n.ºs 1 e 3 do C. Penal.
Defendem que, quanto ao ilícito em que é vítima o Araújo e amigos, deveriam ter sido condenadas pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º, n.º 1, alínea b) do C. Penal já que, e em resumo, o dinheiro foi entregue à "A" a título não translativo de propriedade, tendo havido inversão do título.
Dispõe o art.º 223º do C. Penal, sob a epígrafe “Extorsão”:
1. Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até 5 anos.
2. Se a ameaça consistir na revelação, por meio da comunicação social, de factos que possam lesar gravemente a reputação da vítima ou de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
3. Se se verificarem os requisitos referidos:
a) Nas alíneas a), f) ou g) do n.º 2 do artigo 204º, ou na alínea a) do n.º 2 do artigo 210º, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos;
b) No n.º 3 do artigo 210º, o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
4. O agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias se obtiver, como garantia de dívida e abusando da situação de necessidade de outra pessoa, documento que possa dar causa a procedimento criminal.
Escreve o Dr. Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo 2, pg. 338 e segs:
A extorsão é um crime de grande importância prática, dada a sua frequente e crescente verificação. Por outro lado, trata-se de um crime cuja descrição típica é muito complexa, tomando-se, por vezes, difícil a decisão sobre a qualificação jurídica de uma conduta como crime de extorsão ou de roubo. …
A Revisão de 1995 fez várias alterações na descrição típica do verdadeiro crime de extorsão (n.ºs 1, 2 e 3). As penas foram substancialmente agravadas, facto que se verificou em relação a quase todos os crimes. Quanto aos meios de coacção, foi eliminada «a colocação da vítima na impossibilidade de resistir». Relativamente às circunstâncias qualificativo-agravantes, há a destacar a substituição da referência ao resultado suicídio ou tentativa de suicídio (CP de 1982, art.º 317º-4: «Se a vítima da extorsão ou a pessoa que haja de sofrer o mal ameaçado se suicidar ou tentar suicidar-se, sendo esta circunstância previsível pelo agente») pela referência ao resultado morte (após a Revisão de 1995, o art. 222º-3 b) - agora, após a Revisão de 1998, art. 223º-3 b) remete para o art. 210º-3 que estabelece a agravação da pena «Se do facto resultar a morte de outra pessoa»). Esta alteração levanta a questão de se o suicídio derivado da extorsão ainda continua a constituir circunstância agravante. Quanto à tentativa de suicídio é inequívoco que deixou de ser suficiente para a agravação.
A extorsão tem muitos elementos comuns a vários outros tipos de crime, nomeadamente aos de coacção (art.º 154º), roubo (art. 210º) e burla (art. 217º) (e abuso de confiança, acrescentamos nós – art.º 205º). Estruturalmente, as maiores afinidades são com o crime de coacção, pois que todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação ao crime de coacção, apenas pela exigência de a conduta coagida se traduzir num injusto prejuízo para o sujeito passivo (a vítima da coacção ou outra pessoa) e num enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro. Por isto, o tipo de crime de extorsão e, rigorosamente, uma lex specialis face ao tipo de crime de coacção. …
Relativamente ao crime de burla, pode dizer-se que, apesar de os pontos de contacto serem vários, a distinção é nítida. Há afinidades ou mesmo identidade nos seguintes aspectos: os crimes de extorsão e de burla são crimes contra o património em geral; ambos pressupõem uma certa cooperação da vítima, uma vez que as condutas, de que resultam o prejuízo patrimonial da vítima (o extorquido e o burlado) e o enriquecimento ilegítimo do agente (o extorsionário e o burlão) ou de terceiro, são realizadas pela própria vítima ou por um terceiro; tanto a extorsão como a burla, além de serem crimes directamente contra o património, lesam também o bem jurídico liberdade de decisão e de acção, pois que, sendo isto evidente no caso de extorsão, não deixa de ocorrer também no crime de burla, uma vez que a liberdade no processo de decisão sobre o acto de disposição patrimonial foi afectada pelo erro ou engano provocados pelo burlão. Mas, apesar destas coincidências, o crime de extorsão e o crime de burla distinguem-se, claramente, entre si por força dos meios utilizados: na extorsão, violência ou ameaça com mal importante (violência ou chantagem), já na burla, erro ou engano. E a grande diferença da gravidade dos meios utilizados, em si mesmo considerados (e não em função da maior ou menor eficácia na obtenção do acto de disposição patrimonial, pois que, em muitos casos, o engano poderá ser mais eficaz do que a ameaça), o que determina, justificadamente, a diferença nas penas aplicáveis, que são mais severas no crime de extorsão.
Dificuldades maiores existem, por vezes, na distinção entre o crime de extorsão e o crime de roubo. Ambos são crimes contra o património; tanto num quanto no outro os meios de execução são a violência ou a ameaça, o que significa que ambos lesam também a liberdade de disposição patrimonial; acresce, ainda, que, diferentemente de outros códigos …, o nosso C.P., art. 210º-1, refere, no crime de roubo, não apenas a acção de subtracção («Quem ... subtrair») mas também a acção de coacção ao acto de entrega («Quem... subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue»). Face ao nosso CP, esta última circunstância invalida a peremptória afirmação de NÉLSON HUNGRIA, transcrita por LEAL-HENRIQUES / SIMAS SANTOS, art. 222º, correspondente ao actual art. 223º: «não há que sair daqui: a infalível distinção entre a extorsão e o roubo é que neste o agente toma por si mesmo, enquanto naquela faz com que se lhe entregue, ou se ponha à sua disposição, ou se renuncie a seu favor». A mesma circunstância também enfraquece a tese daqueles (p. ex., CARLO FIORE, EncG "Património" 3; "Estorsione" 3) que vêem na cooperação da vítima, cooperação «voluntária» posto que sob coacção (ou sob engano, no caso da burla), o traço distintivo do crime de extorsão (e do crime de burla) face ao crime de roubo, em que tal «cooperação» não existiria. …
O art. 223º visa garantir a liberdade de disposição patrimonial. Objectivo directo da extorsão é a obtenção de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo do extorquido. Esta a razão da inclusão sistemática do crime de extorsão nos crimes contra o património. Portanto, a extorsão é, em primeiro lugar, um crime contra o bem jurídico património. Acresce, porem, a tutela do bem jurídico liberdade de decisão e de acção, cuja lesão é conatural à extorsão, o que fundamenta uma agravação das penas relativamente às aplicáveis aos crimes que lesam exclusivamente o património, como é o caso, p. ex., do crime de furto ou de dano. …
O crime de extorsão é um crime comum, pois agente desta infracção pode ser toda e qualquer pessoa - «Quem».
Sujeito passivo deste crime (o extorquido) é o titular do interesse patrimonial prejudicado. Geralmente, o sujeito passivo coincidirá com a pessoa vítima da acção de coacção; mas não tem de ser, necessariamente, assim, pois pode o agente exercer a violência ou a ameaça de mal importante sobre uma terceira pessoa como meio de constranger o sujeito passivo à disposição patrimonial. …
Quer o meio de constrangimento seja a violência quer a chantagem (a ameaça), é necessário que entre ele (recaia a violência ou a ameaça com mal importante sobre a pessoa que haja de realizar a disposição patrimonial ou uma outra pessoa que pertença ao «círculo existencial» daquela) e o acto de disposição patrimonial haja uma relação de adequação. Sobre o critério de imputação objectiva do efeito do constrangimento (a prática da disposição patrimonial prejudicial) à acção de coacção (violência ou ameaça) nada há acrescentar ao que se disse a propósito do crime de coacção - cf. art. 154, § 9 ss.
O crime de extorsão é um crime de processo típico, no sentido de os meios para a sua realização estão taxativamente referidos na lei: «por meio de violência ou de ameaça com mal importante». A caracterização destes meios coincide com a caracterização dos meios do crime de coacção - art. 154º §9 ss. …
Objecto do crime de extorsão é o acto de disposição patrimonial. «Quem constranger.. a uma disposição patrimonial). Esta disposição patrimonial tanto pode consistir numa acção como numa omissão. A acção (acto positivo) pode, por sua vez, traduzir-se num dare (p. ex., uma determinada quantia em dinheiro ou determinado objecto) ou num facere (p. ex., vender ou doar um bem, rescindir um contrato). A omissão (acto negativo) pode consistir na, não exigência de um crédito, na não proposição de uma acção judicial, na não apresentação de uma queixa-crime, etc. O acto de disposição patrimonial (assuma a forma de acção, de omissão ou de tolerância) pode ter por objecto um qualquer elemento do património, trate-se de direitos reais (sejam sobre coisas imóveis ou móveis), de direitos de crédito ou mesmo de expectativas jurídicas (p. ex., há extorsão, se A constrange B a renunciar à herança, para se tornar único herdeiro, ou para que o seu quinhão hereditário seja maior), pois que também estas têm valor patrimonial.
Não basta, para haver extorsão, a lesão da liberdade de disposição patrimonial. Se apenas for lesada esta liberdade, haverá crime de coacção, mas não crime de extorsão. Eis o que acontece, no caso do constrangimento (mediante violência ou ameaça com mal importante) ao pagamento de uma dívida. Para haver extorsão é necessário - como crime contra o património que é - que a disposição patrimonial constitua um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima da coacção ou para terceiro). …”.
Visto o crime de extorsão e feita sobre ele tão profunda análise que em circunstância alguma carece de ser complementada, vejamos agora o crime de abuso de confiança.
Estatui o art.º 205º do C. Penal sob a epígrafe “Abuso de confiança”
1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
4. Se a coisa referida no n.º 1 for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5. Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Escreve o Prof. Figueiredo Dias, local citado, pg. 94 e segs.
“Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma (cf. em todo o caso infra § 4 s.), violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, «apropriação indevida»). Daqui resulta que o crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade; tem como objecto de acção, tal como o furto, uma coisa móvel alheia; e, ainda como o furto, revela-se por um acto que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação.
Pese às identidades que ficam anotadas, o crime de abuso de confiança ganha autonomia e especificidade perante o crime de furto logo na contemplação do bem jurídico protegido, que é aqui exclusivamente a propriedade. Com efeito, no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela. Diferentemente, no abuso de confiança só a propriedade como tal é objecto de tutela e constitui assim integralmente o bem jurídico protegido. Dito com as palavras sugestivas de MAIWALD, diferentemente do que sucede com o ladrão, «ao abusador de confiança poupa-se o esforço de ter de 'subtrair' a coisa» (M / S / MAIWALD 1 §34 1).
A partir desta conclusão não falta quem sublinhe que o perigo para a propriedade resultante do abuso de confiança é mais pesado e grave que o resultante do furto. O argumento que a propósito se esgrime nas literaturas jurídico-penais alemã e italiana é o de que esse maior peso e gravidade deriva da circunstância de o proprietário da coisa furtada poder exigi-la de terceiro adquirente de boa fé, o que já não sucede com o proprietário da coisa apropriada através de abuso de confiança. Este argumento não vale porém perante o direito civil português, sabido como é que a aquisição a non domino, mesmo de boa fé, não é por princípio protegida em qualquer dos casos (…). Em todo o caso a conclusão apontada não deixará porventura, também entre nós, de ter o seu valor não em função de uma consideração jurídica, mas prática: a de que a posição jurídico-processual da vítima de abuso de confiança será em geral mais difícil e gravosa do que a da vítima de furto, por ser mais custoso provar a «inversão do título de posse» - que, como se dirá infra § 20, constitui a essência típica da conduta abusiva da confiança - do que a «subtracção» que se viu ser elemento essencial da tipicidade do furto.
Face a esta essencialidade, de resto, não tem hoje sentido, mesmo só em perspectiva formal - sistemática, integrar o crime de abuso de confiança nos «furtos», seja como «furto impróprio» (assim CARLOS ALEGRE, «Crimes contra o Património», Cadernos da RMP 3 1988 77 ss.), seja como «furto especial» (assim J. A. BARREIROS, Crimes contra o Património 1996 82): uma tal integração representaria, salvo melhor opinião, o retrocesso de mais de um século na elaboração dogmática dos crimes contra o património (a propriedade).
Por quanto fica já exposto não deixa de ser em alguma medida equívoca a redução da essência do abuso de confiança à apropriação de coisa móvel alheia, sem quebra de posse ou detenção (supra § 1; e sobre a questão que se segue, entre nós e por último, PEDROSA MACHADO, RPCC 1997 495 ss.). Sendo isto em si exacto, toma-se em todo o caso indispensável que o agente tenha detido a coisa (que a coisa «lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade», como claramente se exprime o art. 205º-1). Assim, entra na própria conformação do bem jurídico um elemento novo, que serve inclusivamente para contrapor o abuso de confiança à mera apropriação indevida. Depara-se aqui com uma linha de pensamento e uma orientação legislativas de segura tradição francesa. Com efeito, já o C.P. napoleónico de 1810 (art. 408º) era muito claro no sentido de que a apropriação só poderia ter lugar depois do recebimento da coisa (realce nosso). …
Em função do que fica exposto toma-se agora seguro determinar em que consiste concretamente o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido: a apropriação. Não deve aqui repetir-se pura e simplesmente o que ficou dito sobre o mesmo elemento - a apropriação - no contexto do crime de furto: cf. supra art. 203º § 27 s.: no furto a apropriação intervém como elemento do tipo subjectivo de ilícito (como «intenção de apropriação»), no abuso de confiança, diferentemente, na sua estrutura de apropriação qua tale, isto é, na sua veste objectiva de elemento do tipo objectivo de ilícito (realce nosso). Por isso ensinava já EDUARDO CORREIA, RLJ 90º 36, com plena pertinência e seguindo a lição de SCHRODER, que a apropriação no abuso de confiança «não pode ser... um puro fenómeno interior - até porque cogitationis poenam nemo patitur - mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, atra-vés de um comportamento que o releve e execute» (doutrina que a jurispru-dência portuguesa assumiu de forma absolutamente dominante). E a teoria, que não pode deixar de ser acolhida, do acto manifesto de apropriação e que tem relevo, entre outros, para efeitos de consumação (infra § 34).
A apropriação traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção. Dito por outras palavras (como sempre ensinou EDUARDO CORREIA, p. ex. RLJ 90º 35 ss., a propósito da interpretação a conferir às expressões «desencaminhar ou dissipar» que constavam do art.º 453º do CP de 1886; e também CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito e Justiça IV 243): o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a «inversão do título de posse ou detenção» e é nela que se traduz e se consuma a apropriação. …
Crê-se que, também neste caso, nada há a acrescentar para a correcta interpretação do tipo.
Se bem apreendemos a lição dos Ilustres Mestres citados, e fazendo uma análise comparativa dos ilícitos, temos, no que ao recurso interessa:
- Os crimes de extorsão e de abuso de confiança são crimes contra o património em geral;
- No crime de extorsão a vítima é levada a fazer uma disposição patrimonial na sequência de violência ou ameaça de mal importante. Isto é, a coisa é entregue uti dominus ao agente;
- No crime de abuso de confiança a vítima entrega a coisa móvel uti alieno, isto é, com a obrigatoriedade de a restituir. Só num segundo momento há a inversão do título de posse;
- Em ambos há um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima);
- No crime de extorsão a apropriação consuma-se com a entrega da coisa;
- Ao invés, no crime de abuso de confiança, a apropriação só pode ter lugar depois do recebimento da coisa;
- No crime de extorsão a intenção de enriquecimento ilegítimo intervém como elemento subjectivo do tipo;
- No crime de abuso de confiança a apropriação intervém como elemento objectivo do ilícito e traduz-se sempre na inversão do título de posse ou detenção.
Como se vê, são enormes as semelhanças entre ambos os tipos de crimes e pequenas as diferenças.
Mas uma destas – diferença - é fundamental para a resolução da questão jurídica colocada: a intenção de enriquecimento.
Esta intervém, repete-se, como elemento subjectivo do ilícito, no crime de extorsão; e como elemento objectivo no crime de abuso de confiança.
Compulsada a matéria de facto, logo se vê que as arguidas cometeram um crime de extorsão e não um crime de abuso de confiança.
Com efeito, foi sua intenção “forçarem” os ofendidos a entregar-lhes determinada quantia em dinheiro, que fizeram sua.
Para tanto simularam uma gravidez da "C", que até credibilizaram com teste à urina positivo, e, sob o pretexto de esta transmitir tal facto à esposa do Vieira (pseudo autor da gravidez), ou até de o matar a ele, à mulher e aos filhos, conseguiram que lhes fosse entregue 30.000 contos.
É certo que o Araújo apenas depositou o dinheiro na conta da "A" sob a promessa de esta lho devolver logo que tudo estivesse acalmado.
Só que esta promessa é falsa já que as arguidas pretendiam, ab initio, obter uma vantagem patrimonial.
A mesma tem de ser interpretada como mais um ardil utilizado para credibilizar a tese, e ainda para fazer com que os ofendidos, com mais facilidade, depositassem o dinheiro na conta da "A".
Ou, como se diz na alínea cc) dos factos provados, “para maior ser a confiança nela depositada”.
Os ofendidos, como bem refere o Colectivo, pessoas adultas, maduras e conhecedoras da vida, caíram no logro com tanta facilidade. Santa ingenuidade!!!
Ou seja, da parte das arguidas (e o dolo é aferido pelo agente, que não pelos ofendidos) havia já a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo.
Jamais as arguidas quiseram receber o dinheiro a título não translativo, mas antes uti domini.
Não interessa a intenção com que o Araújo e companheiros lho entregaram (o “dolo” – passe a expressão, juridicamente incorrecta, mas significativa – destes é irrelevante), mas tão-só conta a intenção com que as arguidas obtiveram os 30.000 contos. E esta é inequívoca.
Não poderia, pois, do ponto de vista das arguidas ter havido inversão de título já que o dinheiro foi logo feito coisa sua, entrou imediatamente na sua esfera jurídica.
Bem condenadas foram, pois, pela prática do crime de extorsão.

Improcedem, pois, todas as conclusões da motivação.

DECISÃO:
Termos em que se nega provimento aos recursos, mantendo e confirmando o douto acórdão recorrido.
Fixa-se em 8 Ucs a tributação a pagar por cada uma das Recorrentes.
Guimarães,