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ERRO SOBRE A ILICITUDE
Sumário
I – Figueiredo Dias, a pág. 341-342 da obra “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal “, resumiu nestes termos o critério pessoal – objectivo de não censurabilidade da falta da consciência da ilicitude a que a sua investigação conduziu: “ A - Se lograr comprovar-se que a falta de consciência de ilicitude ficou a dever-se, directa e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, aquela deverá sem mais considerar-se censurável. B. Se, pelo contrário, não se logrou tal comprovação, a falta de consciência da ilicitude deverá continuar a reputar-se censurável, salvo se se verificar a manutenção no agente, apesar daquela falta, de uma consciência ético-jurídica, fundada em uma atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de valor juridicamente relevante. C. São, por seu turno, requisitos daquela rectitude e da respectiva atitude: 1) Que a questão da licitude concreta (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida; e isto, não porque nos outros casos se pretenda reverter à velha ideia jusnaturaiista do inatismo e evidência de certas valorações, mas a questão há-de ser uma daquelas em que se conflituem diversos pontos de vista de estratégica ou oportunidade, estas também juridicamente relevantes. 2) Que a solução dada pelo agente à questão da ilicitude corresponda a um ponto de vista de valor juridicamente reconhecido, por forma a poder dizer-se que ele conduziria à ilicitude da conduta se não fosse a situação de conflito anteriormente aludida. 3) Que tenha sido o propósito de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante ou, quando não o propósito consciente, pelo menos o produto de um esforço ou desejo continuado de corresponder às exigências do direito, para prova do qual se poderá lançar mão dos indícios fornecidos pelo conhecimento do seu modo-de-ser ético-jurídico adquirido o fundamento da falta de consciência da ilicitude”. II – In casu: 1. Não está demonstrado que os Recorrentes ignorassem que os factos eram subsumíveis a um tipo legal devido a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante das suas personalidades (a ignorância tout court é irrelevante); 2. A ilicitude dos factos não é questão discutida nem controvertida. Antes, resulta de opção consciente do legislador, ninguém pondo em crise que a não entrega do IVA cobrado, verificado o elemento subjectivo, seja facto punível pela lei penal; 3. Nenhuma corrente doutrinária ou jurisprudencial faz interpretação diferenciada do tipo, a ponto de se poder dizer que a não entrega do IVA poderá, quando servir para pagamento de salários ou aos fornecedores, ser considerada não punível. Antes, é unanimemente entendido que se trata de facto ilícito típico. III – Porque assim, se erro houvesse por parte dos Recorrentes – e tal não está demonstrado (a ignorância da lei, se é que a houve ..., não aproveita a ninguém) o mesmo seria censurável nos termos do n.° 2 do art.° 17° do C. Penal. IV – De resto, diz a Jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal que a consciência da ilicitude fica implícita no próprio facto, desde que seja do conhecimento gerai que ele é proibido e punível – Ac. De 14 de Outubro de 1992, tirado no processo 42.918, da Secção. V – Teresa Beleza in “Direito Penal”, 2.° vol., escreve: Na problemática do erro sobre a ilicitude, “o que está em causa é saber-se se, numa situação concreta, a pessoa tinha a obrigação de suspeitar que aquele acto realmente fosse ilícito ou lícito e, em consequência disso, intentar verificar se assim era ou não” (...), concretamente, informar-se (...). E isto porque (...) “haverá que evitar o «amolecimento ósseo» do Direito Criminal”. Por isso, “o agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe uma consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume. E quando o facto, para além de ser uma infracção do Direito, constitui também uma violação da ordem moral e ética, o erro é normalmente evitável, já que a valoração normativa pode surgir do próprio sentimento jurídico com um maior ou menor esforço da consciência” – ( mesma Autora in “Problemática do erro sobre a ilicitude”, a pg. 71 ). VI – Ora, por um lado, é do conhecimento geral que a cobrança de IVA e não entrega à Administração Fiscal é proibido e punido por lei. Por outro lado, se é verdade que os arguidos alegam falta de consciência da ilicitude, não menos verdade é que nem sequer escreveram uma linha a dizer que se tentaram informar do carácter ilícito (em termos penais) da sua conduta. E muito menos o demonstraram. Aliás, um dos Recorrentes tenta inverter as situações quando afirma que ninguém o informou que era crime, quando tal pedido de informação teria de partir dele próprio. VII – Mas, ainda por outro lado, é o próprio arguido, ouvido em julgamento, que diz que sabia que tinha a obrigação de entregar o IVA às Finanças. O que vale por dizer que tinha a “consciência da ilicitude material” que, quanto ao arguido que não foi ouvido, “se presume” (palavras da Dra. Teresa Beleza). VIII – Acresce que, como é sabido, os Estados só podem satisfazer as necessidades essenciais das suas populações se cobrarem os impostos, pelo que a satisfação das obrigações fiscais, é destarte, de todo e cada um dos cidadãos, acreditando-se, pois, que os impostos se destinam a servir o interesse público. IX – Do que vem de ser dito sempre o erro (a existir, e não existe no caso em análise) seria censurável o que, naturalmente, importa a condenação dos arguidos já que estão verificados todos os elementos do tipo.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
Nos autos de processo comum colectivo com o n.º 9/01.7TAPTB, do Tribunal Judicial de Ponte de Barca, acusados pelo Ministério Público, foram submetidos a julgamento:
1. "A" (Lda.), sedeada que foi na rua C..., Ponte da Barca;
2. "B", nascido a 9 de Dezembro de 1931 em ..., Ponte de Lima, filho de Manuel P... e de Joaquina M..., casado, encarregado geral de obras públicas reformado, residente em ..., Vila Flor, e
3. "C", nascido a 1 de Maio de 1965 em ..., Zimbabwe, filho de Manuel T... e de Maria I..., casado, engenheiro técnico, residente em ..., Ponte da Barca.
O 2º e 3º arguidos pela prática, em co-autoria material, de dezasseis crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 24º, nº 1 e n.º 5, 6º e 7º, n.º 3, do DL 20-A/90, de 15.1, e actualmente p. e p. pelo art.º 105º, nº 1 e n.º 5, 6º e 7º, n.º 3, RGIT, pelos quais também é responsável a 1ª arguida, nos termos dos art.ºs 6º e 7º do DL 20-A/90 e actual RGIT.
Efectuado o julgamento, foi proferido acórdão, que assim decidiu:
a) Condenou a arguida “A”, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105º, nº 1, RGIT, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de €5,00, o que perfaz a multa de €750,00 (setecentos e cinquenta euros);
b) Condenou os arguidos "B" e "C", pela prática, em co-autoria material, de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105º, n.º 1, RGIT, cada um, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €2,00 para o primeiro e de €2,50 para o segundo, o que perfaz, respectivamente, as multas de €200,00 (duzentos euros) e de €250,00 (duzentos e cinquenta euros).
Inconformados, os arguidos "C" e "B" interpuseram recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões:
1. O, aliás, douto acórdão em recurso enferma de erro na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, concretamente quanto à inclusão na matéria fáctica provada de que os ora Recorrentes sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei.
2. Com efeito, os MM. Juízes recorridos formaram a sua convicção para tal resposta sem ter em devida conta o depoimento do arguido "B" e das testemunhas com conhecimento directo dos factos (funcionários do escritório) - o arguido "C" requereu a dispensa da sua comparência em audiência de julgamento - que impunham resposta diversa da que foi proferida.
3. Pelo que essa resposta a tal facto deve ser alterada em função da prova produzida e, em consequência, integrar os “factos não provados”.
4. Com a consequente absolvição dos Recorrentes "B" e "C" do crime de que foram condenados e demais sanções acessórias.
5. Uma vez que a sua conduta não se subsume ao dolo, já que lhe falta o elemento intelectual ou moral: os arguidos desconheciam que, à data dos factos, a sua conduta era proibida e punida por lei, como o demonstra a audição da prova gravada em audiência de julgamento.
6. Ao decidir de modo diverso, os MM. Juízes recorridos violaram o disposto nos art.º 105º, n.º 1 do RGIT e no art.º 71º do Código Penal.
7. Pelo que se requer a Vossas Excelências se dignem revogar a decisão de que ora se recorre e substitui-la por outra que absolva os Recorrentes, com as legais consequências.
Sem formular conclusões, respondeu o M.º P.º pugnando pela manutenção do julgado.
Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
O Tribunal Colectivo considerou provada a seguinte factualidade:
1. A 1ª arguida, sociedade comercial, tinha por objecto o estudo, concepção e execução de obras de construção civil, compra e venda e gestão de imóveis e execução de obras públicas, e esteve inscrita com o CAE ..., na actividade de construção e engenharia civil, ficando enquadrada no regime normal de periodicidade mensal para efeitos do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA).
2. Os arguidos "B" e "C" foram, desde a constituição daquela sociedade, e nomeadamente no período entre Julho de 1997 e Dezembro de 1998, sócios-gerentes da mesma.
3. Nesse período, a arguida cobrou aos seus clientes quantias correspondentes a IVA, que estava obrigada a declarar e a entregar mensalmente ao Estado, facto que apenas foi omitido nas declarações relativas aos meses de Abril e Junho de 1998, em que não se registaram valores em dívida a entregar aos serviços do Estado.
4. Os arguidos, pelo menos no período em que se verificam os factos relatados, não organizaram extractos de conta corrente quanto aos pagamentos dos diversos clientes.
5. Dos valores liquidados e recebidos a título de IVA, os arguidos não entregaram nos cofres do Estado as quantias indicadas na tabela seguinte, no valor total de 24 139 057$00 (hoje, € 120.405,11):
MÊS
IVA COBRADO
E EM FALTA
DATAS LIMITE DA APRESENTAÇÃO
DAS DECLARAÇÕES PERIÓDICAS E DA
ENTREGA DAS QUANTIAS
Jul.97
1 896 734$00
22.09.97
Ag.97
1 715 509$00
10.10.97
Set.97
2 245 345$00
10.11.97
Out.97
1 879 385$00
10.12.97
Nov.97
3 566 078$00
12.01.98
Dez.97
2 574 021$00
10.02.98
Jan.98
1 637 285$00
10.03.98
Fev.98
832 751$00
13.04.98
Mar.98
1 950 471$00
11.05.98
Mai.98
836 772$00
10.07.98
Jul.98
2 387 639$00
10.09.98
Ag.98
198 427$00
12.10.98
Set.98
516 076$00
10.11.98
Out.98
533 261$00
10.12.98
Nov.98
900 674$00
11.01.99
Dez.98
468 629$00
10.02.99
6. Os arguidos integraram tais quantias no património da arguida, pagando salários e acorrendo aos custos imediatos da laboração, não obstante saberem que aquelas não lhes pertenciam e que não as podiam utilizar para esses fins. Os arguidos "B" e "C" agiram em nome e no interesse da arguida, em conjugação de esforços e de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as condutas acima descritas eram proibidas e punidas por lei, com a intenção de obter, como obtiveram, vantagens patrimoniais em detrimento do Estado Português.
7. A partir de 1995, começaram as dificuldades financeiras da arguida, com a diminuição de obras e atrasos nos pagamentos pelos seus clientes, o que levou à acumulação de dívidas para com a banca, os fornecedores e, por vezes, os trabalhadores. Quando deixou de cumprir com os pagamentos junto dos Bancos, a arguida não mais conseguiu ter acesso ao crédito por essa via.
8. A falência da arguida foi decretada nos autos n.º 73/98, do Tribunal de Ponte da Barca, por sentença de 9 de Abril de 1999, não se encontrando efectuado o registo da sua liquidação.
9. O arguido "B", que tinha trabalhado vários anos no estrangeiro, perdeu todos os seus bens, inclusive a casa onde morava, na tentativa de recuperar a arguida; actualmente, tem cerca de €200,00 de reforma mensal, vive em casa de familiares e sua mulher ganha pouco mais de €500,00 por mês.
10. O arguido "C" está a trabalhar em Angola, no ramo da construção civil.
11. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
E considerou não provado que:
a) A arguida tenha ficado a dever aos seus fornecedores mais de 100.000.000$00;
b) Os arguidos não recebessem os respectivos salários durante anos;
c) Os arguidos e seus cônjuges tenham sido declarados falidos;
d) A mulher do arguido "C" seja funcionária bancária, e que o casal tenha dois filhos menores a cargo.
O Tribunal fundamentou assim a sua decisão quanto à matéria de facto:
“O tribunal assentou a sua convicção nos documentos juntos aos autos – fls. 3 a 12, 40, 61, 82, 103, 124, 166, 187, 208, 230, 248 a 257, 266 a 289, 305 a 312, 313 a 767, 815 e 817, 822 a 847 – e nas testemunhas ouvidas, sendo João S... inspector tributário que fez a investigação do caso, Maria J... a instrutora do processo nas Finanças e Sónia F... a técnica que apreciou nos autos os indícios de crime para remessa dos mesmos para o Ministério Público. O arguido "B" admitiu a prática dos factos e o conhecimento de que estava a agir contra a lei; quanto aos condicionalismos económicos da arguida nessa altura (bem como relativamente à actual situação financeira dos arguidos), valeram, além das declarações daquele, os depoimentos de Martinha C... (empregada de escritório na arguida desde 1996 até à declaração de falência), Manuel R...s (cunhado do arguido "B" que trabalhou na empresa como encarregado geral entre 1993 e 1997), Maria I... (respectivamente, mulher e mãe dos arguidos "B" e "C") e Maria C... (irmã do arguido "B", a quem este chegou a pedir dinheiro emprestado para empatar na arguida).
Serviram ainda os certificados de registo criminal de fls. 866 e 867”.
As conclusões da motivação balizam o objecto do recurso.
Defendem os arguidos que o facto provado “os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei” deve ser dado como não provado, o que é imposto pelo depoimento do arguido "B" e das testemunhas com conhecimento directo dos factos (funcionários do escritório).
Consequentemente, devem ser absolvidos da acusação que sobre eles impendia já que a sua conduta não é dolosa pois que desconheciam, à data dos factos, que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Nos termos do n.º 1 do art.º 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito.
No caso subjudice a prova está documentada e, por isso, a decisão proferida sobre a matéria de facto pode ser amplamente impugnada.
Para atento, e conforme se estatui no n.º 3 do art.º 412º do CPP, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
E acrescenta o n.º 4:
Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referências aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Os Recorrentes cumpriram os ónus impostos pelo transcrito preceito legal e, por isso, importa que se conheça amplamente da matéria de facto dada como provada.
No ponto 6. da matéria de facto provada, o Tribunal Colectivo considera assente que os arguidos sabiam que as condutas acima descritas eram proibidas e punidas por lei.
Contra tal se insurgem os arguidos já que, em seu entender, tal facto deve ser considerado não provado.
Dizem que tal impõe o depoimento do arguido "B" e das “testemunhas que depuseram em audiência de julgamento com conhecimento de facto sobre o funcionamento da sociedade arguida e das suas crónicas dificuldades económicas, a saber, Martinha C... e Maria I..., foram unânimes em afirmar precisamente o contrário…”.
Vejamos, então, o que consta dos seus depoimentos:
1. "B"
“Eu estava de boa-fé ... nunca me passou pela ideia que fosse crime eu não retribuir IVA ao Estado ... sabia que era contra a lei, mas nunca me disseram que era crime...”.
O que está dado como provado é que os arguidos sabiam que as condutas acima descritas eram proibidas e punidas por lei.
Diz o "B": sabia que era contra a lei.
Ou seja, precisamente o que está provado.
Alega em sede de recurso: o meu depoimento impõe decisão diversa da recorrida!...
Crê-se que dizer mais seja o que for … é fazer chover no molhado.
2. Martinha C...
“No início pagou-se sempre, era a primeira preocupação ... depois não havia mesmo (dinheiro) ... eles queriam pagar ... pensavam pagar os impostos (em falta) com juros e multas ... eu acho que eles não sabiam (que era crime) ... eu também não fazia a mínima ideia que era crime não pagar ... sabiam que tinham que o pagar e que iam pagá-lo e por isso é que pediram a recuperação de empresa para conseguir para a dívida tanto ao Estado, como aos fornecedores ... se soubessem que era crime teriam acabado com a empresa mais cedo, antes que acumulassem as dívidas ... quando vissem que não tinham dinheiro para pagar IVA, acabavam...”.
A testemunha textualmente diz: “sabiam que tinham que o pagar e que iam pagá-lo e por isso é que pediram a recuperação de empresa para conseguir para a dívida tanto ao Estado”.
Ora, sabendo que tinham de pagar o IVA é porque havia obrigação legal que a tal os sujeitasse.
Logo, o seu depoimento alicerça a decisão recorrida e nunca impõe decisão diversa.
Recorde-se que uma coisa é saber se é crime (e lá iremos), outra é saber se a sua conduta é contra a lei.
3. Maria I...
“A firma não pagou IVA ao Estado porque o dinheiro não chegava ... era preciso pagar juros aos bancos ... cada vez que vinha um cheque ... (tinha-se que) dar (o seu valor) ... o banco já não libertava (o dinheiro) ... muitas vezes ficava com o que lhe era devido ... nós não sabíamos que não entregar o dinheiro ao Estado era crime... sabiam que tinham que pagar juros daquilo e que a situação ficava legalizada ... nunca lhes passou pela cabeça, nem também a mim, que era crime...”.
Mais uma vez se vê que a testemunha diz que era conhecido que tinham de entregar o IVA ao Estado.
Só que nunca lhes passou pela cabeça que fosse crime.
Como se vê a matéria de facto está bem decidida e, por isso, e ainda porque não se verificam os vícios do n.º 2 do art.º 410º do CPP, considera-se definitivamente fixada.
A verdadeira questão levantada no recurso é a de apurar se os Recorrentes agiram sem consciência da ilicitude (jurídico-penal) do facto.
Em seu entender há essa falta de ilicitude e, porque o crime é doloso, não podem ser condenados.
Pois bem:
Que os factos são subsumíveis ao tipo por que foram condenados é verdade insofismável, que nem os arguidos se atrevem a por em crise.
Por isso, só no domínio do erro se pode falar em falta de consciência da ilicitude.
Estatui o art.º 17º do C. Penal sobre a epígrafe: “Erro sobre a ilicitude”:
1. Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2. Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.
Escreve o Dr. Maia Gonçalves in “Código Penal Português, anotado e comentado”, 13ª edição, pg. 122:
“O Prof. Figueiredo Dias, local citado no n.º 1, sintetizou os momentos essenciais da sua indagação (falta de consciência da ilicitude não censurável) que lhe permitiram formular um quadro de situações de típica falta de consciência da ilicitude não censurável.
Está assim arredada a orientação, perfilhada pelo C.P. de 1886, de que o erro de direito não era susceptível de afastar inteiramente culpa.
Aquele Professor, a pág. 341-342 da citada obra, resumiu nestes termos o critério pessoal - objectivo de não censurabilidade da falta da consciência da ilicitude a que a sua investigação conduziu:
A. Se lograr comprovar-se que a falta de consciência de ilicitude ficou a dever-se, directa e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, aquela deverá sem mais considerar-se censurável.
B. Se, pelo contrário, não se logrou tal comprovação, a falta de consciência da ilicitude deverá continuar a reputar-se censurável, salvo se se verificar a manutenção no agente, apesar daquela falta, de uma consciência ético-jurídica, fundada em uma atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de valor juridicamente relevante.
C. São, por seu turno, requisitos daquela rectitude e da respectiva atitude:
1) Que a questão da licitude concreta (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida; e isto, não porque nos outros casos se pretenda reverter à velha ideia jusnaturalista do inatismo e evidência de certas valorações, mas porque a questão há-de ser uma daquelas em que se conflituem diversos pontos de vista de estratégica ou oportunidade, estas também juridicamente relevantes.
2) Que a solução dada pelo agente à questão da ilicitude corresponda a um ponto de vista de valor juridicamente reconhecido, por forma a poder dizer-se que ele conduziria à ilicitude da conduta se não fosse a situação de conflito anteriormente aludida.
3) Que tenha sido o propósito de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante ou, quando não o propósito consciente, pelo menos o produto de um esforço ou desejo continuado de corresponder às exigências do direito, para prova do qual se poderá lançar mão dos indícios fornecidos pelo conhecimento do seu modo-de-ser ético-jurídico adquirido o fundamento da falta de consciência da ilicitude”.
In casu:
1. Não está demonstrado que os Recorrentes ignorassem que os factos eram subsumíveis a um tipo legal devido a uma qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante das suas personalidades (a ignorância tout court é irrelevante);
2. A ilicitude dos factos não é questão discutida nem controvertida. Antes, resulta de opção consciente do legislador. Ninguém põe em crise que a não entrega do IVA cobrado, verificado o elemento subjectivo, seja facto punível pela lei penal;
3. Nenhuma corrente doutrinária ou jurisprudencial faz interpretação diferenciada do tipo, a ponto de se poder dizer que a não entrega do IVA poderá, quando servir para pagamento de salários ou aos fornecedores, ser considerada não punível. Antes, é unanimemente entendido que se trata de facto ilícito típico.
Porque assim, se erro houvesse por parte dos Recorrentes – e tal não está demonstrado (a ignorância da lei, se é que a houve …, não aproveita a ninguém) – o mesmo seria censurável nos termos do n.º 2 do art.º 17º do C. Penal.
De resto, diz a Jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal que a consciência da ilicitude fica implícita no próprio facto, desde que seja do conhecimento geral que ele é proibido e punível – Ac. de 14 de Outubro de 1992, tirado no processo 42.918, da 3ª Secção.
Também a doutrina, aliás citada pelo Magistrado do M.º P.º na 1ª Instância, alinha pelo mesmo diapasão.
Teresa Beleza in “Direito Penal”, 2.º vol., escreve:
Na problemática do erro sobre a ilicitude, “o que está em causa é saber-se se, numa situação concreta, a pessoa tinha a obrigação de suspeitar que aquele acto realmente fosse ilícito ou lícito e, em consequência disso, intentar verificar se assim era ou não” (...), concretamente, informar-se (...). E isto porque (...) “haverá que evitar o «amolecimento ósseo» do Direito Criminal”.
Por isso, “o agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe uma consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume. E quando o facto, para além de ser uma infracção do Direito, constitui também uma violação da ordem moral e ética, o erro é normalmente evitável, já que a valoração normativa pode surgir do próprio sentimento jurídico com um maior ou menor esforço da consciência” – mesma Autora in “Problemática do erro sobre a ilicitude”, a pg. 71)”.
Ora, por um lado, é do conhecimento geral que a cobrança de IVA e não entrega à Administração Fiscal é proibido e punido por lei.
Por outro lado, se é verdade que os arguidos alegam falta de consciência da ilicitude, não menos verdade é que nem sequer escreveram uma linha a dizer que se tentaram informar do carácter ilícito (em termos penais) da sua conduta. E muito menos o demonstraram.
Aliás, o Recorrente "B" tenta inverter as situações quando afirma que ninguém o informou que era crime. Tal pedido de informação teria de partir dele próprio.
Mas, ainda por outro lado, é o próprio arguido ouvido em julgamento que diz que sabia que tinha a obrigação de entregar o IVA às Finanças.
O que vale por dizer que tinha a “consciência da ilicitude material” que, quanto ao arguido que não foi ouvido, “se presume” (palavras da Dra. Teresa Beleza).
Acresce que, como é sabido, os Estados só podem satisfazer as necessidades essenciais das suas populações se cobrarem os impostos.
A satisfação das obrigações fiscais, é destarte, de todo e cada um dos cidadãos.
Os impostos destinam-se a servir o interesse público – assim se crê!
A violação dessas obrigações constitui “uma violação da ordem moral e ética”.
Do que vem de ser dito sempre o erro (a existir, e não existe no caso em análise) seria censurável o que, naturalmente, importa a condenação dos arguidos já que estão verificados todos os elementos do tipo.
Improcedem, pois, todas as conclusões da motivação.
DECISÃO:
Termos em que, na improcedência do recurso, se mantém e confirma o douto acórdão recorrido.
Fixa-se em 6 Ucs a tributação a pagar por cada um dos Recorrentes.
Guimarães,