EVASÃO
NATUREZA DA INFRACÇÃO
Sumário

I – O crime de evasão é um delito de estado.
II – Com efeito, o crime de evasão consuma-se logo que o sujeito fica fora do alcance da entidade que lhe limita a liberdade.

Texto Integral

Acordam, no Tribunal da Relação de Guimarães

I

1. Por sentença proferida em 2004/05/19, no processo comum n.º 395/97.1TAOER, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, foi o arguido "A", com os demais sinais dos autos, condenado pela prática de um crime de evasão, previsto e punido pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dez meses de prisão.

2. Inconformado o arguido interpôs recurso dessa decisão.

Rematou a motivação que apresentou com a formulação das seguintes conclusões:

« I – O arguido foi condenado pela pratica de um crime de evasão, cometido em 09.03.1997, numa pena de dez meses de prisão;
« II - Nos termos do art. 10/1 da Lei 29/99, de 12.05, "as infracções praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, é perdoado um ano de todas as penas de prisão... "
« III - O tribunal "a quo" não aplicou, no caso "sub judice", a Lei 29/99, de 12/05;
« IV - A Lei 29/99 deveria ter sido aplicada nos presentes autos e, consequentemente, deveria ter sido declarada totalmente extinta a pena do arguido - dez meses de prisão:
« V - A decisão recorrida violou a Lei 29/99, de 12.05 e os artigos 1270 e 1280 do CP.»
Terminou a pedir a revogação da sentença recorrida e, em consequência, a declaração da extinção da pena do arguido.

2. Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou resposta no sentido de lhe ser negado provimento.

3. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que o recurso merece provimento.

4. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, o recorrente não respondeu.

5. Efectuado exame preliminar e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso.

II

Cumpre decidir:

1. O recurso é apenas sobre matéria de direito e a única questão nele posta é se o crime pelo qual o arguido foi condenado beneficia do perdão de um ano, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio. Questão esta cuja resposta depende da que se der àqueloutra, de saber em que momento se consuma o crime de evasão.

2. São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida:

« 2.1. O arguido foi julgado e condenado no processo n.º 44/95.2TCSNT do 1.º Juízo do Tribunal de Círculo de Sintra, por Acórdão de 24 de Julho de 1995, transitado em julgado, na pena única de quinze anos de prisão, que englobou a pena aplicada no processo n.º 294 da 1ª Secção da 2ª Vara Criminal de Lisboa.
« 2.2. O termo dessa pena estava previsto para o dia 30 de Novembro de 2006.
« 2.3 Em cumprimento da mesma pena, o arguido fora transferido para o Hospital Prisional de São João de Deus, em Caxias, no dia 16 de Outubro de 1996.
« 2.4. No dia 9 de Março de 1997 o arguido foi autorizado a deslocar-se a Braga para visitar um familiar que se encontrava doente.
« 2.5. Efectuou a viagem, ao princípio da manhã daquele dia, num veículo dos serviços prisionais, sendo acompanhado por dois guardas com funções de vigilância.
« 2.6. Uma vez chegados à residência do arguido, na Rua da Boavista, em Braga, encontravam-se ali mais de dez familiares deste, tendo todos entrado em conversa.
« 2.7. Os guardas ficaram de vigilância no interior da residência do arguido.
« 2.8. Nessas circunstâncias o pai do arguido sentiu-se mal, mostrando-se ele perturbado com o estado de saúde do pai, foi na companhia de outros familiares levá-lo a sua casa, seguidos dos guardas prisionais.
« 2.9. Quando lá chegaram, os guardas ficaram de vigilância no exterior da residência do pai do arguido, a cerca de cinquenta metros da porta de entrada.
« 2.10. A dada altura, aperceberam-se de um grande alarido e viram vários familiares do arguido a entrarem para viaturas automóveis que se encontravam ali estacionadas, arrancando logo a grande velocidade.
« 2.11. Tendo sido informados por familiares do arguido, que este se tinha dirigido para uma clínica em Braga, em virtude de o seu pai se ter sentido mal, os guardas prisionais dirigiram-se para tal clínica.
« 2.12. Ali chegados os guardas prisionais não localizaram o arguido, tendo indagado junto dos familiares onde este se encontrava, foram informados que tinha saído da clínica por se encontrar desvairado.
« 2.13. Apesar de terem procurado o arguido por vários locais, designadamente na sua residência e na do seu pai, os guardas prisionais não o voltaram a localizar.
« 2.14. Ao actuar da forma descrita o arguido subtraiu-se ao controlo das autoridades prisionais e só veio a ser recapturado no dia 05 de Setembro de 2002 em Vila Real.
« 2.15. Agiu de forma livre e consciente, com o propósito de se subtrair ao cumprimento da pena de prisão em que se encontrava condenado.
« 2.16. Sabia que não lhe ser permitida tal conduta e que a mesma era punida por lei.
« 2.17. O arguido sofre de claustrofobia caracterizada por crises de pânico e estados crepusculares de agressividade indeterminada.
« 2.18. Não sofreu outras condenações para além das supra referidas.»
Temos, assim, que o arguido se evadiu em 9 de Março de 1997 e esteve evadido até 05 de Setembro de 2002, data em que foi recapturado.

Defende o M.º P.º, em 1.ª instância, que «o crime de evasão é um crime de natureza permanente: “o estado violador da lei prolonga-se sem intervalos, numa duração, digamos assim, sem colapsos e sem limites, e a qualquer momento está sendo cometido o crime, porque esse ininterrupto estado anti jurídico é que é, exactamente, o crime" (Carvalho Filho, citado por Leal Henriques e Simas Santos, in O Código Penal de 1982, Vol. 1, p. 589)”.»

Da natureza permanente do crime decorre, nesta visão do M.º P.º, «que a consumação perdura enquanto durar a lesão do bem protegido por aquela incriminação que é custódia estatal sobre o condenado e só termina se e no momento em que esta for restablecida.»

Tais deverão ter sido as razões pela qual o Ex.mo Juiz a quo não aplicou o perdão em causa, já que a sentença recorrida nada diz sobre a questão. Apenas no despacho de 2002/09/23, de expressão de concordância com a “liquidação da pena” pelo M.º P.º, se diz que «o arguido não beneficia do perdão previsto na Lei n.º 29/99, de 12/05» (cfr. fls. 332).

Porém, o Ex.mo Procurador Geral-Adjunto nesta Relação, no seu douto parecer, veio dar outro enfoque à questão.

Assim, segundo ele:

« « (...) o crime em causa - crime de evasão -, é de consumação instantânea, mas com efeitos permanentes, não sendo, por natureza, um crime permanente.
« Com feito, segundo Eduardo Correia in Direito Criminal, I, p. 309, na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases:
« a) uma, que se analisa na produção de um estado antijurídico, que não tem, aliás, nada de característico em relação a qualquer outro crime,
« b) e, outra, esta propriamente típica, que corresponde a permanência ou, vistas as coisas de outro lado, à manutenção desse evento, e que para alguns autores consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção pelo agente dessa compressão de bens ou interesse jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz.
« Por sua vez Bettiol, in Direito Penal - Parte Geral, t. III, refere:
« “... não se deve, porém, confundir o crime instantâneo com o crime permanente, quando de um crime instantâneo derivam efeitos que podem considerar-se permanentes, dado que se prolongam no tempo [...] Os efeitos dizem respeito as consequências nocivas que podem derivar do crime, mas não podem alterar-lhe a estrutura pelo que se refere a instantaneidade da consumação [...]”.
« No caso dos crimes instantâneos, por oposição aos permanentes, continuados, habituais e não consumados, o crime consuma-se por um só facto, contando-se, inclusive, a prescrição do dia em que teve lugar o facto consumatório - vd. artigo 118 n.° 1 do Código Penal.
« O crime de furto, por exemplo, é reconhecidamente um crime de natureza instantânea, porém, os seus efeitos são permanentes, significando isso a constante e presente ausência da posse do bem móvel subtraído à vitima.
« Contudo, apesar dessa constância, não transforma o dito crime em crime permanente. Este, então, afirma-se como um “estado de antijuridicidade”, não como um “momento de antijuridicidade”.
« Aplicando o exposto ao caso sub judice, fica-se ciente que o crime em causa é um crime contra a autoridade pública e que tem um concreto momento em que se verifica: no preciso momento em que o arguido, legalmente preso, readquire a liberdade através de um concreto meio ilícito, a evasão.
« Ou seja, o arguido ficou em liberdade, fora do imediato controle da autoridade, que desrespeitou, no dia 09/03/1997. Foi nesse dia que aconteceu a violação do bem jurídico que o normativo penal pretende salvaguardar. Claro que, quanto aos efeitos, os mesmos são permanentes, mas tal não significa que o crime seja de natureza permanente. A distinção impõe-se.
« Assim, estamos seguros da natureza instantânea do crime de evasão e, por isso, não vislumbramos razão obstativa para a aplicação ao arguido do perdão da sobredita Lei de clemência (() Em abono da posição assumida, cita-se, ainda, no parecer, o acórdão da Relação de Lisboa de 1994/11/23, processo n.º 2292/03, 3.ª Secção, assim sumariado:
«I - O crime de evasão não é crime permanente; a evasão consuma-se logo que o detido readquire a liberdade, não importando durante quanto tempo.

II - Crime instantâneo é aquele em que a violação jurídica realizada no momento da consumação se extingue com esta.

Ill - E delito permanente aquela em que, depois da sua consumação, continua a violação jurídica realizada com aquela»).»

Acrescentaremos, apenas ao que referiu o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, o seguinte:

Como ensina Roxin (() Cfr. Claus Roxin, Derecho Penai, Parte General, Tomo I, Editorial Civitas S.A., [Madrid] 1997, pág. 328.) , existem delitos permanentes e delitos de estado, com uma grande proximidade conceptual mas que não se confundem.

Os delitos permanentes são aqueles factos em que o delito não está concluído com a realização do tipo, antes se mantém pela vontade delituosa do autor, tanto tempo quanto subsiste o estado antijurídico criado por si mesmo. Exemplos de delitos permanentes são a entrada em casa alheia - com a intrusão do autor já se dá uma facto consumado, mas dura tanto tempo quanto o em que o sujeito se mantém dentro do âmbito protegido - a detenção ilegal e a condução em estado de embriaguez.

São, em regra, delitos de mera actividade, mas podem ser, também de resultado, nos casos em que o resultado típico constantemente volte a renovar-se enquanto se mantém o estado antijurídico, como por exemplo, na condução perigosa de veículo rodoviário se o resultado típico de perigo se repete constantemente pela condução em estado de incapacidade para conduzir.

Diversamente, chamam-se delitos de estado os factos que ficam acabados com a provocação de um determinado estado (regra geral o resultado, no caso dos delitos de resultado) e que portanto não são susceptíveis de ser mantidos pelo seu autor, nem o necessitam. Exemplos típicos são os crimes de homicídio, mas também os de ofensa à integridade física e os de dano.

Entre os delitos de estado haverá que incluir também tipos como a bigamia ou a falsificação do estado civil; ainda que nos mesmos o autor continue a aproveitar-se do estado criado pelo sua acção isso não supõe que ele contraia com constante reiteração um matrimónio bígamo ou uma repetição da falsificação, já consumada, do estado civil.

À luz destes subsídios dogmáticos propendemos para que o crime de evasão, sendo um crime que se consuma com a posta do sujeito fora do alcance da entidade que lhe limita a liberdade – em síntese comum, com a fuga – dá lugar a um estado de coisas em que a “evasão” já não se enquadra como acção. O estado de “evadido” pode ser o mais calmo, público e sedentário, bastando para isso que as autoridades a quem incumbe a recaptura não sejam diligentes na prossecução desse fim (o que não é impossível de acontecer).

Assim, dever-se-á catalogá-lo como delito de estado, na comparação entre os delitos desta natureza e os delitos permanentes.

Também é de ter em muita conta a opinião de Cristina Líbano Monteiro (() Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 395/ 396.), que refere que:

« A descrição da matéria proibida parece fazer consistir o crime de evasão na simples "subtracção [de pessoa privada da liberdade] a vigilância de quem tem o dever de [a] vigiar" (PAOLO PISA, in: BRICOLA, Giurisprudenza IV 495 s.).
« Poderia pôr-se o problema de caracterizar a evasão como crime dura-douro, definindo-o como uma acção seguida de uma continua omissão — a de regressar à custódia. O que teria consequências nítidas no que diz res-peito à questão do âmbito de vigência temporal e espacial da lei penal. Não há duvida de que materialmente as coisas são assim e que neste ponto a evasão se diferencia da tirada: quem liberta um preso não fica constituído na obrigação de o devolver ao estado detentivo; ao passo que quem se evade infringe continuamente o "dever de estar preso". É, porém, um modo de con-siderar o problema que não se coaduna com o estado actual do preceito. Tal-vez na vigência do CP de 1886, em que a evasão era vista como quebra do dever de cumprir a sentença condenatória e a pena proporcional ao tempo em que o evasor andasse fugido, o crime pudesse considerar-se duradouro. Já não no CP de 1982, em que o bem jurídico se configura como a segurança da custódia e o dever em causa — o de a salvaguardar — pesa sobre as pessoas encarregadas da guarda, não sobre o detido. Assim sendo, parece que a sub-tracção à custódia se consuma no momento da libertação efectiva (() Ibidem, pág. 377: «O bem jurídico só sofre lesão quando a custódia é definitivamente violada») e não existe o dever de se deixar reconduzir a ela. Deixa de fazer sentido, por conseguinte, a qualificação como delito duradouro.»
Por todo o exposto, entendemos que o recurso deve proceder.

Nos termos expostos:


III

Damos provimento ao recurso, determinando que, no tribunal de 1.ª instância, relativamente à pena aplicada na sentença recorrida ao recorrente "A", seja declarado o perdão que lhe é conferido pela Lei n.º 29/99, de 12.05.

Não há lugar a tributação.