CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
DECLARAÇÃO INEXACTA
ÓNUS DA PROVA
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário

I – O risco previsto em contrato de seguro de vida, pelo qual o segurado deve ficar, em caso de invalidez, dependente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente, deve ser interpretado como o interpretaria o contraente indeterminado normal, isto é, englobando o núcleo mais significativo dos citados actos da vida corrente, entre eles os respeitantes à higiene, alimentação e locomoção.
II – Traduzindo-se a invocada invalidade do seguro, ex vi artº 429º C.Com., num facto extintivo do direito invocado, então incumbia à seguradora, consoante o disposto no artº 342º nº2 C.Civ., fazer a prova da influência da declaração inexacta ou reticente sobre a existência ou as condições do contrato.
III – Tal influência deve ser efectuada em concreto, em face do alcance da concreta falsa declaração em relação ao risco, e não em abstracto – mais a mais quando o evento integrador do risco já se verificou.
IV - Uma vez verificado o sinistro, importa apurar qual a causa do mesmo e, caso se chegue à conclusão que o facto não declarado nenhuma relação tem com o evento produzido nem para ele contribuiu por qualquer forma, não haverá lugar à consideração da invalidade do contrato.
V - O que se encontra em causa no procedimento cautelar comum – artº 381º nº1 C.P.Civ. – é a adopção da providência que concretamente se adeque a evitar o prejuízo, independentemente de ser a seguradora uma autora meramente mediata desse dito prejuízo.

Texto Integral

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães

Os Factos
Recurso de agravo em separado interposto na acção com procedimento cautelar comum nº2918/03.0TBFLG-A, do 2º Juízo da comarca de Felgueiras.
Requerentes – "A" e mulher "B".
Requerida e ora Agravante – Cª de Seguros "C"

Pedido
Que a Requerida seja cautelarmente intimada a proceder, de imediato, ao pagamento ao Banco ..., beneficiário da apólice nº..., agência da Lixa, do concelho de Felgueiras, do montante em débito relativo às prestações vencidas dos créditos à habitação nºs ... e ..., a que a apólice está associada, e respectivos juros de mora e demais encargos bancários devidos pelo atraso, bem como ao pagamento das prestações que entretanto se vencerem.
Tese dos Requerentes
Celebraram, na qualidade de pessoas seguras, com a Requerida, um contrato de seguro de vida, associado a financiamento imobiliário, prevendo ainda o risco de invalidez absoluta e definitiva do segurado por doença ou acidente, risco que, nos termos contratuais, ocorria quando o segurado ficasse total ou definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada e dependente de terceira pessoa para os actos ordinários da vida corrente.
Desde Abril de 2001 que o Requerente (segurado) se encontra em tal situação, por acidente vascular cerebral.
A Requerida vem invocando a nulidade do contrato de seguro, por ter omitido declarações relevantes quanto ao seu estado de saúde.
Tese da Requerida
Na proposta de seguro, o Requerente omitiu diversas declarações sobre o seu verdadeiro estado de saúde, as quais, a terem sido efectuadas, determinariam que a Requerida houvesse recusado a celebração do mencionado contrato – designadamente omitiu que padecesse de doença gastro-intestinal quando, no próprio dia, sofrera hemorragia digestiva por úlcera duodenal. Daí que o contrato seja anulável, anulabilidade que pode ser invocada pela Requerida, para além do mais porque a prestação a cargo da Requerida ainda não foi efectuada (artº 287º nº2 C.Civ.).
A eventualidade de a entidade bancária mutuante instaurar execução contra os Requeridos em nada faz perigar a obrigação da Requerida que é, tão só, a do pagamento do capital seguro.
Sentença
Na decisão proferida pela Mmª Juiz “a quo”, a providência foi julgada integralmente procedente, por provada, e a Requerida condenada a pagar ao Banco... as prestações vencidas e vincendas, desde Agosto de 2001, relativas aos empréstimos para habitação nºs ... e ..., contraídos pelos Requerentes, bem como juros de mora e demais encargos bancários derivados do retardamento ou mora na sua liquidação.

Conclusões do Recurso de Agravo:
1. Nos presentes autos considerou-se provado que o recorrido, em consequência do aneurisma de que foi vítima, ficou impedido de exercer qualquer actividade profissional, incapaz de fazer a higiene diária, de cortar os alimentos e de se auto- medicar.
2. Não se encontra provado que o Recorrido se encontre obrigado a recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar todos os actos ordinários da vida corrente.
3. Não se verificam os pressupostos do risco de invalidez absoluta definitiva coberto pelo contrato de seguro do ramo vida celebrado entre a recorrente e os recorridos estabelecidos no artigo 7.1 das respectivas condições especiais.
4. No despacho recorrido, ao decidir-se pela decretação do presente procedimento cautelar comum, violou-se o estabelecido no artigo 7.1 das condições especiais do referido contrato de seguro do ramo vida.
5. Em 03/05/2000, o recorrido prestou as declarações sobre o seu estado de saúde que constam do impresso denominado "declarações do candidato a seguro de vida".
6. O recorrido declarou no que respeita à existência de defeitos físicos ou incapacidade a existência de cicatriz deformante no pé esquerdo.
7. O recorrido declarou ser saudável.
8. O recorrido declarou ter estado internado em Hospital ou em estabelecimento de saúde em consequência de litíase renal e perfuração do pé esquerdo por projéctil.
9. O recorrido declarou não se encontrar previsto, a curto ou médio prazo, algum tratamento ou hospitalização.
10. O recorrido declarou ter sido submetido a intervenção cirúrgica em consequência de litíase renal e perfuração do pé esquerdo.
11. O recorrido declarou não ter sido submetido a outros estudos radiológicos, “tac” ou ecografia, nomeadamente do tubo digestivo, vias urinárias, ossos ou outros.
12. O recorrido declarou nunca ter padecido de doença gastro-intestinais.
13. Na data - 03/05/2000 - em que o recorrido preencheu as mencionadas declarações sobre o seu estado de saúde, o mesmo tinha sofrido de hemorragia digestiva por úlcera duodenal.
14. Sofria de atrofia muscular da coxa esquerda e da perna esquerda.
15. Sofria de artrodese do tornozelo esquerdo.
16. Sofria de cicatrizes ao nível do pé (face plantar) que impediam o uso de calçado vulgar.
17. Padecia de deformidade grave do pé esquerdo.
18. O recorrido omitiu os referidos factos sobre o seu estado de saúde na declaração que preencheu sobre o seu estado de saúde.
19. As referidas declarações influenciaram a decisão da recorrente de aceitar a celebração do mencionado contrato de seguro do ramo vida, nos seus precisos termos e condições.
20. Caso o recorrido tivesse declarado os mencionados factos sobre o seu estado de saúde, a recorrente teria recusado a celebração do mencionado contrato de seguro do ramo vida.
21. O recorrido tinha, evidentemente, conhecimento das declarações sobre o seu estado de saúde que omitiu ou que falseou.
22. Não se estabelece no artigo 429º do Código Comercial a necessidade de existência de nexo de causalidade entre as declarações falsas ou os factos omitidos pelo segurado e a verificação do risco coberto pelo contrato de seguro.
23. Apenas se estabelece que as falsas declarações ou os factos omitidos pelo segurado sejam relevantes para a apreciação pela seguradora do risco em que incorre ao aceitar celebrar o contrato de seguro.
24. A relevância para a recorrente das declarações do recorrido sobre o seu estado de saúde decorre desde logo de a Recorrente ter solicitado ao Recorrido a efectuação de exame médico e a resposta ao mencionado questionário clínico.
25. A recorrente incluiu no mencionado questionário clínico as questões dele constantes, precisamente por entender que as respectivas respostas seriam relevantes para a apreciação do risco emergente da celebração do mencionado contrato de seguro do ramo vida.
26. O contrato de seguro do ramo vida referido nos autos continha, como garantia complementar, a invalidez total permanente por acidente.
27. A relevância das falsas declarações ou das omissões do recorrido sobre o seu estado de saúde decorre de, na data da prestação dos mencionadas declarações, apenas faltar 2% para a verificação do risco coberto pelo mencionado contrato de seguro do ramo vida consistente na invalidez total e permanente por acidente.
28. A anulabilidade do mencionado contrato de seguro do ramo vida determina a improcedência do presente procedimento cautelar comum.
29. A anulabilidade do mencionado contrato de seguro do ramo vida determina a inexistência de direito dos recorridos ao pagamento pela recorrente do capital seguro.
30. No despacho recorrido, ao decidir-se pela decretação do presente procedimento cautelar comum, violou-se o disposto no artigo 429º do Código Comercial.
31. A recorrente goza de sólida situação financeira.
32. A situação financeira da Recorrente permite-lhe satisfazer, sem dificuldade, o pagamento do capital seguro ao Banco ..., no caso de se entender pela validade do mencionado contrato de seguro do ramo vida, na acção principal.
33. A mora pelo pagamento das prestações devidas pelos recorridos ao BANCO ..., resulta exclusivamente das dificuldades financeiras dos recorridos.
34. A mora no pagamento das prestações devidas pelos recorridos ao BANCO ..., é imputável aos próprios recorridos.
35. O risco de lesão grave ou de difícil reparação do invocado direito dos recorrentes ao pagamento do capital seguro é imputável aos próprios recorridos.
36. No despacho recorrido ao decidir-se pela decretação do presente procedimento cautelar comum violou-se, pois, o disposto no artigo 381º do Código de Processo Civil.
37. No despacho recorrido, ao decidir-se pela decretação do presente procedimento cautelar comum violou-se o disposto nos artigos 429º do Código Comercial, 381º do Código de Processo Civil, e 7.1 das condições especiais do contrato de seguro do ramo vida referido nos autos.

Os agravados contra-alegaram, concluindo, em resumo, dever ser confirmada a decisão impugnada.

Factos Julgados Provados em 1ª Instância
1 - Em 19 de Maio de 2000, os requerentes "A" e mulher "B" subscreveram a declaração de Crédito/Seguro de Vida de fls. 7, cujo teor se dá por reproduzido, em que constam como pessoas seguras num seguro de vida com o prazo de 15 anos, para o capital de 47.000.000$00 e sendo beneficiário o “Banco ...” e seguradora a requerida "C", tendo os requerentes efectuado uma declaração de saúde, na rubrica capital seguro inferior a 10.000 contos e idade dos segurados inferior a 60 anos e não reformados, que estavam em perfeito estado de saúde e não estar sob observação médica ou com tratamento médico regular, não terem sido operados nos últimos 3 anos, nem terem sido aconselhados a hospitalizarem-se ou a submeterem-se a intervenção cirúrgica e terem tomado conhecimento que qualquer omissão ou falsa declaração pode anular a adesão ao contrato.
2 - Em 19 de Abril de 2000 foi emitido, relativamente ao requerente, o relatório de incapacidade de fls. 130, onde consta, como lesões sofridas, esfacelo grave do tornozelo e pé esquerdo provocado por tiro de arma caçadeira, que obrigou a artrodese do tornozelo esquerdo e várias limpezas cirúrgicas do pé e, como sequelas presentes, atrofia muscular da coxa esquerda e da perna esquerda, artrodese do tornozelo esquerdo, cicatrizes ao nível do pé (face plantar) que impedem o uso de calçado vulgar e deformidade grave do pé esquerdo, concluindo-se pela atribuição de uma IPP de 73%.
3 - Fruto da atrofia da perna esquerda o requerente tem marcha claudicante e usa calçado especial mais alto no pé esquerdo.
4 - Em 22 de Maio de 2000 o requerente prestou as declarações de fls. 120, perante a Dr. Leonor H..., médica da seguradora, enquanto candidato a seguro de vida, tendo mencionado, na rubrica de defeitos físicos/incapacidades, cicatriz deformante do pé esquerdo, não padecer de incapacidade profissional, e ter estado internado em estabelecimento de saúde onde foi submetido a intervenção cirúrgica por litíase e perfuração do pé esquerdo por projéctil (em acidente de caça), tendo declarado, quanto a deformações ou limitações funcionais, deformação do pé esquerdo por cicatriz.
5 - Em 04/08/00 foi emitida pela requerida a apólice n.º ..., de cópia a fls. 8, tendo os requerentes como segurados, o capital seguro de 46.336.205$00, como garantia principal, morte, e como garantias complementares, invalidez absoluta definitiva e invalidez total permanente por acidente.
6 - Segundo as condições gerais da apólice referida em 5, entende-se por invalidez absoluta e definitiva do segurado por doença ou acidente, quando, em consequência de doença ou acidente, o segurado fique total ou definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada e dependente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente.
7 - Em 19 de Fevereiro de 2000 o Dr. Carlos A... subscreveu a informação clínica de fls. 131 e 207, da qual consta que o requerente teve, em Agosto de 1993, hemorragia digestiva por úlcera duodenal, tendo estado internado no Hospital de Amarante para efectuar transfusão de sangue para correcção.
8 - Em 13 de Abril de 2001 o requerente deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital de Amarante com queixas de cefaleia intensa.
9 - Em 15 de Abril de 2001 o requerente voltou a ser assistido no Hospital de Amarante com queixas de cefaleia intensa.
10 - Em 3 de Maio de 2001, e conforme relatório médico de fls. 15 e 16, o requerente foi operado, no Hospital de S. Marcos, em Braga, a aneurisma (patologia congénita) da comunicante posterior esquerda, e melhorou da parésia do III par, mas ficou com grave perda de acuidade visual, o que implica acompanhamento diário constante por outra pessoa.
11 - Por carta de 17 de Agosto de 2001, o requerente solicitou ao Banco... a suspensão do pagamento da prestação mensal dos empréstimos, pois iria accionar a apólice junto da requerida.
12 - Em 17 de Agosto de 2001 o requerente enviou à requerida a carta de fls. 32 cujo conteúdo se dá por repetido.
13 - Em 18 de Setembro de 2001, pela carta de fls. 35, a requerida solicitou ao requerente documento comprovativo do pagamento do complemento de assistência por terceira pessoa.
14 - Em 6 de Novembro de 2001, conforme atestado emitido pela ARSN junto a fls. 354, foi atribuída ao requerente uma incapacidade de 79%.
15 - Em 5 de Fevereiro de 2002, pela carta de fls. 37, a requerida comunicou ao requerente que considerava nulo o contrato de seguro, na medida em que o requerente já conhecia, à data da aceitação do seguro, a patologia que originou a sua situação de invalidez.
16 - Em 14 de Fevereiro de 2002 o requerente enviou à requerida a carta de fls. 40, cujo teor se dá por repetido.
17 - Desde 1 de Março de 2002 que o requerente recebe um complemento por dependência no valor de 346,69 euros.
18 - O Banco... vem interpelando os requerentes para pagamento das prestações do empréstimo, por cartas enviadas em 05/11/01, 25/10/01, 05/12/01, 13/12/01, 02/01/02, 13/05/02, e anunciando que irá recorrer às vias judiciais.
19 - Em 20 de Maio de 2004 foi emitida declaração médica pelo Hospital de Amarante, inserta a fls. 204, da qual consta que o requerente aí esteve internado desde 18/08/93 a 28/08/93, tendo-lhe sido diagnosticado duas úlceras gástricas, hematemeses e melenas.
20 - Em 14 de Junho de 2004 foi emitido o relatório médico de fls. 206, pelo Hospital de S. João, do qual consta que o requerente foi aí internado em 23/01/76 por litíase do rim esquerdo.
21 - Em 22 de Outubro de 2004 foi emitido o relatório médico-legal junto a fls. 227 cujo conteúdo se dá por repetido para todos os efeitos legais e onde consta, designadamente, que o requerente ficou com perda de visão, diplopia e parésia do III par desde Abril de 2001, altura em que foi submetido a intervenção cirúrgica a aneurisma cerebral.
22 - O requerente, em consequência do aneurisma de que foi vítima, ficou impedido de exercer qualquer actividade profissional, incapaz de fazer a higiene diária, de cortar os alimentos e de se automedicar.
23 - Necessita do apoio de uma canadiana para se sentir equilibrado.
24 - Sofre de esquecimento fácil e alterações de memória.
25 - A perda de visão por parte do requerente é quase completa e irreversível e adveio do aneurisma como sua sequela exclusiva, ainda que associada às cirurgias na cabeça.
25 - A deformação na perna e demais maleitas do requerente não geram qualquer predisposição para que este seja vítima de aneurismas.
26 - Os requerentes não têm meios financeiros que lhes permitam amortizar os empréstimos contraídos e liquidar as prestações mensais respectivas, visto que o seu agregado dependia do negócio do requerente que este se viu obrigado a cessar.
27 - A requerente deixou de exercer a sua profissão de cabeleireira para cuidar do marido.
28 - A requerida goza de sólida situação financeira.

Fundamentos
Em função da esquematização das conclusões da Recorrente, são os seguintes os tópicos a abordar na solução do presente recurso:
1 – Saber se se pode concluir que se não encontra provado que o Recorrido se encontre obrigado a recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar todos os actos ordinários da vida corrente e se, em consequência, se não verificam os pressupostos do risco de invalidez absoluta definitiva coberto pelo contrato de seguro invocado.
2 – Saber se o contrato de seguro em causa é inválido, por anulabilidade, em face de falsas declarações ou omissões do Requerente acerca do seu estado de saúde, à luz do disposto no artº 429º C.Com.
3 – Saber se, tratando-se de uma mora no pagamento das responsabilidades perante o Banco a que a seguradora é alheia, inexiste qualquer perigo de que a Requerida não venha a solver quaisquer tipo de prestações a que seja obrigada perante o Banco, e, como assim, não existe fundamento para que seja decretada uma providência cautelar.
Vejamos pois.

I
Baseou-se o presente procedimento cautelar em contrato de seguro do ramo Vida.
O contrato de seguro procura a cobertura dos riscos que possam pesar sobre pessoas, coisas ou direitos, ante a possibilidade de que a ocorrência de determinados eventos futuros e danosos os venham a prejudicar.
De entre as diversas classes de seguros, os seguros de pessoas são aqueles que têm por finalidade a cobertura de riscos que possam afectar a existência, integridade pessoal ou saúde da pessoa humana.
No caso em análise, o beneficiário do seguro, pessoa a favor de quem reverte a prestação da seguradora, é a entidade bancária que mutuou determinada importância aos Requerentes, por via de crédito à habitação.
O presente recurso começa assim por ter por objectivo a apreciação da ocorrência, ou não, do risco previsto em contrato de seguro de Vida, com o respectivo complemento de Invalidez Total e Permanente (ut artº 124º nº1 als. a) e c) RGES – D.-L. nº 94-B/98 de 17 de Abril e José Vasques, Contrato de Seguro, pgs. 75 e 78).
Segundo as condições especiais da apólice em causa, no que concerne o seguro complementar de invalidez absoluta e definitiva, entende-se que se verifica a invalidez absoluta e definitiva do segurado, por doença ou acidente, quando, em consequência de doença ou acidente, o segurado fique total ou definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada e dependente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente (cláusula 7.1).
Em causa, portanto, este duplo aspecto a integrar: por um lado, a incapacidade do Requerente em exercer qualquer actividade remunerada; e, por outro lado, a respectiva dependência de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente.
A Requerida/Agravante sufraga o entendimento de que o acervo factual supra, designadamente os factos referenciados em 10, 14, 17, 21, 22, 23, 24, 25 e 27, apenas demonstra que o Requerente se encontra incapaz de executar alguns dos actos ordinários da vida corrente – na verdade, não se encontra impossibilitado de efectuar “todos esses actos”.
Esta diferença, porém, entre, de um lado, “alguns” dos actos ordinários da vida corrente e, de outro lado, “todos” os actos ordinários da vida corrente não se surpreende da citada cláusula a integrar.
Apenas se exige que o segurado “fique dependente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente”.
E, no que concerne a interpretação e integração das cláusulas contratuais do seguro em causa nos autos, cabe salientar que, nos termos do artº 10º D.-L. nº446/85 de 25 de Outubro (Cláusulas Contratuais Gerais), “as cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam” (artº 10º) – com efeito, a celebração de contratos de seguro efectiva-se através da adesão a cláusulas contratuais gerais.
O método é assim homólogo ao do Código Civil – artºs 236ºss.
Todavia, por obediência a ditames basilares de justiça contratual, estabelece o artº 11º nº1 do citado diploma avulso que “as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real”; mais ainda: “na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente” (artº 11º nº2).
Como se escreveu no Ac. S.T.J. 30/4/96 Col.II-43, seguindo a orientação de Galvão Telles, in Manual dos Contratos em Geral, 3ªed., pg. 410, partindo-se do princípio de que as declarações de vontade se devem interpretar como as interpretaria uma pessoa de qualidades médias na situação do seu destinatário, se em caso de litígio se pretender extrair do conjunto de cláusulas gerais uma significação que habilmente se disfarçara, de sorte que o aderente a não surpreendeu, nem a surpreenderia uma pessoa naquelas condições, não poderá tal significação prevalecer (cf., igualmente, S.T.J. 15/5/01 Col.II/82; S.T.J. 17/5/01 Col.II/92; Ac.R.C. 24/6/97 Bol.468/485).
Nos contratos de adesão é sempre o pactuante mais poderoso o autor efectivo do conteúdo do contrato e, portanto, como destinatário deve sempre tomar-se o aderente, qualquer que seja a forma jurídica, mais ou menos artificiosa, em que se envolva esta indiscutível realidade.
Isto posto, a pessoa de qualidades médias na situação do destinatário, o contraente indeterminado normal, não interpretaria a cláusula referida como exigindo que o segurado esteja impossibilitado de executar por si rigorosamente “todos” os actos ordinários da vida corrente, mas antes o núcleo mais significativo de tais actos, designadamente os actos verdadeiramente fundamentais à manutenção da “vida corrente”.
Ora, se os autos revelam que o Requerente ficou a padecer de perda de visão quase completa e irreversível, que é incapaz de fazer a higiene diária, de cortar alimentos, de se automedicar, se necessita do apoio de uma canadiana para se sentir equilibrado, se sofre de esquecimento fácil e alterações de memória, se a requerente deixou de exercer a sua profissão de cabeleireira para cuidar do marido e se, finalmente, a A.R.S.N. atribuiu ao Requerente a incapacidade permanente de 79%, entendemos que o Requerente ficou impedido de realizar o núcleo fundamental dos actos fundamentais à manutenção da “vida corrente” e, por tal razão, tem de recorrer (como recorre) à assistência permanente de uma terceira pessoa, pelo que a ocorrência dos autos integra o evento previsto na cláusula 7.1 das condições especiais da apólice.
II
De acordo com o disposto no artº 429º C.Com., toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.
A doutrina, todavia, na sua maioria, vem efectuando uma leitura restritiva do preceito, pretendendo que o mesmo contempla tão só um caso de verdadeira anulabilidade.
De facto, sendo certo que o negócio abrangido pela previsão do citado artº 429º apresenta um vício de desconformidade com a ordem jurídica, tal como a nulidade em geral, restritivamente se entende que tal vício não traduz uma falha estrutural do negócio, mas apenas nos diz que o interesse duma determinada pessoa (no caso, da seguradora) não foi suficientemente atendido, aquando da celebração do negócio (cf. Meneses Cordeiro, Tratado, I-§45).
Os interesses em jogo não justificam sanção tão grave como a da nulidade, termo cujo uso, nesse dispositivo, traduz imperfeição terminológica (cf. Acs. S.T.J. 19/10/93 Col.III/72, S.T.J. 3/3/98 Col.I/103, S.T.J. 15/6/99 Bol.488/382, S.T.J. 4/3/04 Col.I/102, Acs. S.T.J. 11/3/99 e 18/12/02 ambos em www.dgsi.pt, Ac.R.L. 28/2/91 Col.I/172, Ac.R.P. 14/6/88 Col.III/238, Meneses Cordeiro, Manual de Direito Comercial, I-§57 e Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro, pg.61; prevendo excepções à consideração da anulabilidade, considerando que, perante declarações falsas acerca da propriedade do veículo, a verdadeira sanção deverá ser a da nulidade, cf. Ac.R.P. 16/10/90 Col.IV/230 e Ac.R.P. 14/3/95 Bol.445/612; no sentido de que, consoante os interesses em jogo, o contrato de seguro que padeça dos vícios referidos no normativo legal pode ser nulo ou anulável, cf. Ac.R.P. 9/11/98 Col.V/186).
No sentido de que a nulidade cominada pelo artº 429º C.Com. é uma nulidade relativa, correspondente hoje à anulabilidade, já que visa reger sobre interesses meramente particulares e não de ordem pública vem também a jurisprudência deste Tribunal da Relação (ut Ac.R.G. 8/10/03 Pº nº1267/2003, 1ª Secção - Relator: Manso Raínho). Estamos aqui numa situação paralela à dos vícios na formação do contrato (dolo e erro) que determinam mera anulabilidade.
Assim, a lei concede a esse interessado o direito potestativo de impugnar o negócio: a anulabilidade só pode ser invocada “pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece” e no prazo de um ano subsequente à cessação do vício, admitindo a confirmação (artºs 287º nº1 e 288º C.Civ.).
III
Como refere a Recorrente, e resulta dos autos, o Requerente/Recorrido declarou perante a médica da seguradora: nunca ter padecido de doença gastro-intestinal, quando já havia sofrido de hemorragia digestiva por úlcera duodenal; por outro lado, é certo que sofria de atrofia muscular da coxa e da perna esquerdas, artrodese do joelho esquerdo e cicatrizes ao nível do pé (face plantar) que impediam o uso de calçado vulgar, factos que não se extraem nem das declarações quanto ao respectivo estado de saúde e intervenções cirúrgicas, prévias à celebração do seguro, nem do exame médico efectuado pela médica da seguradora.
Não é qualquer declaração inexacta ou reticente que pode tornar anulável o contrato de seguro.
Consoante Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, II/541, cit. in S.T.J. 3/3/98 Col.I/103, “a forma por que o artº 429º está redigido pode levar a supor que toda e qualquer declaração inexacta anula o seguro. Não é esta a intenção do legislador, nem é este o ensinamento da doutrina. É indispensável que a inexactidão influa na existência e condições do contrato, de sorte que o segurador ou não contrataria ou teria contratado em diversas condições. As simples inexactidões anódinas não produzem a consequência jurídica de anular o contrato.”
Todavia, na mesma medida em que a invocação da anulabilidade do contrato só pode ser actuada pela parte a quem aproveita, não existe no nosso direito qualquer presunção de relevância das circunstâncias referidas no questionário – cf. Moitinho de Almeida, op. cit., pg. 81.
Traduzindo-se tal invalidade, quando invocada, num facto extintivo da validade do contrato rectius do direito invocado, então incumbia à seguradora, consoante o disposto no artº 342º nº2 C.Civ., fazer a prova da influência da declaração inexacta ou reticente sobre a existência ou as condições do contrato (neste sentido, cf. S.T.J. 3/3/98 cit., S.T.J. 4/3/04 Col.I/102 e S.T.J. 10/5/01 Col.II/60).
Basicamente, podem agrupar-se de dois modos os padecimentos do Requerente que não constam da proposta de seguro – de um lado, a atrofia muscular da coxa esquerda e da perna esquerda, a artrodese do tornozelo esquerdo e as cicatrizes ao nível do pé (face plantar) que impediam o uso de calçado vulgar, com deformidade grave do pé esquerdo; de outro lado, o sofrimento prévio de hemorragia digestiva por úlcera duodenal.
Ora, o que se pode dizer sobre a matéria é que o primeiro grupo de doenças ou sequelas eram perfeitamente visíveis ao exame médico, efectuado pela perita médica da Requerida; tal exame, de resto, não deixou de assinalar a “deformação do pé esquerdo por cicatriz”, acrescendo a litíase renal e a perfuração do pé esquerdo por projéctil previamente declarados pelo Requerente, enquanto candidato a seguro de vida.
Se não resultaram em informação para a Companhia de Seguros, tais doenças/sequelas é de crer, para um declaratário razoável, médio, posto perante a situação em concreto (ut Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, II/541) que lhes não foi dado qualquer relevo pela Companhia, pelo menos em termos do risco que se segurava.
Quanto à hemorragia prévia por úlcera duodenal, não declarada pelo Requerente, pode concluir-se, também, que tal omissão não assumiu qualquer relevância para a Requerida, cujos serviços, em 5/5/02, declaravam perante o Requerente que consideravam o seguro nulo uma vez que “a patologia que condicionou a situação de invalidez do Sr. "A" já era sua conhecida à data da aceitação do seguro”.
Ora, tal ligação entre a invalidez do Requerente e as declarações omitidas foi frontalmente negada pelos factos apurados após audiência final (cf. nº25 dos Factos Provados).
Em face da inexistência de ligação entre a patologia omitida e a invalidez integradora do risco do contrato, é oportuno voltar a lembrar Cunha Gonçalves, conforme supra: “é indispensável que a inexactidão influa na existência e condições do contrato, de sorte que o segurador ou não contrataria ou teria contratado em diversas condições. As simples inexactidões anódinas não produzem a consequência jurídica de anular o contrato.”
Ora, como não considerar anódina uma omissão que em nada contribuiu para o evento consubstanciador do risco?
É que a apreciação da relevância das declarações omitidas, para efeitos de apreciação da invalidade do seguro, nos termos do artº 429º C.Com., deve ser efectuada em concreto, em face do alcance da concreta falsa declaração em relação ao risco, e não em abstracto (orientação da jurisprudência da cassação francesa, citada em B. Beignier, Droit du Contrat d`Assurance, PUF, 1999, §§ 84 a 88) – mais a mais quando o evento integrador do risco já se verificou.
Da mesma forma se vem entendendo que, uma vez verificado o sinistro, importa apurar qual a causa do mesmo e, caso se chegue à conclusão que o facto não declarado nenhuma relação tem com o evento produzido nem para ele contribuiu por qualquer forma, há lugar a indemnização (neste sentido Adriano Antero, Comentário ao Código Comercial, II/152, cit. in Ac.R.P. 20/5/02 in dgsi.pt, nº convencional JTRP00034357: “depois do sinistro, para que essa reticência possa anular o contrato para efeito do não pagamento da indemnização, é preciso que tivesse influído no dano...”, e ainda José Vasques, op. cit., pg.228: “é defensável que a nulidade seja uma sanção desproporcionada, que deve reservar-se para os casos em que exista um nexo de causalidade entre a inexactidão ou omissão e o sinistro”).
Todavia, ainda que se pudesse afirmar, por apoio em juízo ex ante, que a hemorragia gástrica previamente sofrida potenciaria um agravamento do risco, facto que não foi discutido no presente procedimento cautelar, também a Requerida não efectuou qualquer prova sobre a influência das declarações omitidas na existência ou nas condições do contrato de seguro, por forma a que se pudesse dizer integrado o disposto no artº 429º C.Com., prova que lhe incumbia, já que relativa ao facto extintivo (a invalidade do contrato de seguro invocado) do direito do Requerente.
Improcede assim, também, por força, o segundo núcleo conclusivo das alegações.
IV
Invoca finalmente a Recorrente a inexistência de “periculum in mora”, necessário ao decretar da providência, nos termos do artº 381º nº1 C.P.Civ., pois que inexiste qualquer perigo de que a Requerida não venha a solver as prestações a que seja obrigada perante o Banco.
E é um facto que tal perigo inexiste, pois que a solvabilidade financeira da Recorrente é de afirmar (nº 28 dos Factos Provados).
Mas não é menos verdade que “os Requerentes não têm meios financeiros que lhes permitam amortizar os empréstimos contraídos e liquidar as prestações mensais respectivas, visto que o seu agregado dependia do negócio do requerente que este se viu obrigado a cessar” (26) e que “a Requerente deixou de exercer a sua profissão de cabeleireira para cuidar do marido” (27).
Ou seja, os Requerentes encontram-se impossibilitados de solver as prestações em dívida ao Banco e este mesmo Banco pode dar à execução a garantia que possui sobre a quantia mutuada, facto que a Recorrente aceita, até por se entender “terceira” na relação entre a entidade bancária mutuante e os Requerentes mutuários.
Desta forma, não é difícil verificar a existência de um “justo e fundado receio de que se venha a causar lesão grave ao direito” dos Requerentes, ainda que a providência se venha a consubstanciar numa intimação de pagamento dada não ao lesante directo, mas à terceira seguradora, desde que todos eles hajam intervindo no mesmo negócio.
O que se encontra em causa no procedimento cautelar comum – artº 381º nº1 C.P.Civ. – é a adopção da providência que concretamente se adeque a evitar o prejuízo (cf. A. Reis, Anotado, I/685), independentemente de ser a Requerida a autora directa, indirecta ou mediata do referido prejuízo.

Resumindo a fundamentação:
I – O risco previsto em contrato de seguro de vida, pelo qual o segurado deve ficar, em caso de invalidez, dependente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente, deve ser interpretado como o interpretaria o contraente indeterminado normal, isto é, englobando o núcleo mais significativo dos citados actos da vida corrente, entre eles os respeitantes à higiene, alimentação e locomoção.
II – Traduzindo-se a invocada invalidade do seguro, ex vi artº 429º C.Com., num facto extintivo do direito invocado, então incumbia à seguradora, consoante o disposto no artº 342º nº2 C.Civ., fazer a prova da influência da declaração inexacta ou reticente sobre a existência ou as condições do contrato.
III – Tal influência deve ser efectuada em concreto, em face do alcance da concreta falsa declaração em relação ao risco, e não em abstracto – mais a mais quando o evento integrador do risco já se verificou.
IV - Uma vez verificado o sinistro, importa apurar qual a causa do mesmo e, caso se chegue à conclusão que o facto não declarado nenhuma relação tem com o evento produzido nem para ele contribuiu por qualquer forma, não haverá lugar à consideração da invalidade do contrato.
V - O que se encontra em causa no procedimento cautelar comum – artº 381º nº1 C.P.Civ. – é a adopção da providência que concretamente se adeque a evitar o prejuízo, independentemente de ser a seguradora uma autora meramente mediata desse dito prejuízo.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
No não provimento do agravo, confirma-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pela Agravante.

Guimarães, 27/4/2005