LEGADO
LEGADO DE COISA ALHEIA
TESTAMENTO
BENS COMUNS DO CASAL
Sumário

I - O legado de coisa certa e determinada do património comum dos cônjuges não provoca a nulidade do testamento e a consequente invalidação da deixa.
II – Impõe-se em tal caso a observância da disciplina específica fixada no artº 1685º do CC.

Texto Integral

Acordam em conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães:



Em processo de inventário corrente pelo tribunal da comarca de Esposende, instaurado para partilha dos bens deixados por A e B, a cabeça de casal e interessada C apresentou oportunamente a relação de bens, onde fez incluir (verba nº 6) um prédio rústico que lhe foi legado pela inventariada, nos termos de testamento que foi junto ao processo.
Contra tal inclusão vieram reclamar o interessado D e mulher. Disseram para o efeito que o prédio legado pertencia ao património comum e indiviso da inventariada e do pré falecido marido (o inventariado), de sorte que, não se tratando de bem efectivamente pertencente à inventariada, não era válido o testamento, antes tem que ser tido por nulo, justamente por dispor de bens alheios.
Ouvida que foi a cabeça de casal, veio o tribunal a quo a julgar improcedente a arguição de nulidade do testamento, reduzindo porém o alcance do legado ao direito que a inventariada poderia dispor em relação ao imóvel doado. Para o efeito ponderou-se na respectiva decisão que se tratava efectivamente de bem comum do casal (logo, situação de comunhão), sendo por isso ambos os cônjuges proprietários do imóvel, de sorte que não pertencia este, por inteiro, a nenhum deles. Assim, à morte do inventariado, a inventariada não teria deixado de ser proprietária do imóvel (embora não fosse a exclusiva proprietária), antes se mantendo nesta qualidade, agora juntamente com os herdeiros na herança aberta por morte daquele, de modo que na data em que efectuou o testamento não deixava a inventariada, no entanto, de ser também proprietária do mesmo. Mais se lê da na decisão: “Ora, dispõe o art. 2252° do C. Civil que se o testador legar uma coisa que lhe não pertence por inteiro - como é o caso do autos - o legado vale apenas em relação à parte que lhe pertencer, salvo se do testamento resultar que o testador sabia não lhe pertencer a totalidade da coisa. Da análise do teor do testamento em causa, não se retira tal conclusão. Assim, o testamento referido em 6 não é nulo, reduzindo-se apenas, na forma à partilha a realizar, o alcance do legado ao direito que a inventariada poderia dispor em relação ao imóvel em causa”.

Inconformados com o assim decidido, agravaram o interessado D e mulher.

Da respectiva alegação extraem as seguintes conclusões:

1 – A cabeça de casal relacionou o prédio que consta da verba n° 6 da relação de bens como bem que lhe foi legado pelo testamento outorgado pela inventariada A em 14 de Novembro de 2000.
2 — A mesma inventariada outorgou tal testamento já no estado civil de viúva de B.
3 – O bem que consta como legado nesse testamento era bem comum do casal dos inventariados, A e B, existindo já no património comum à data da morte deste último.
4 – Afigura-se, pois, que a inventariada não podia legar o bem tal como o fez.
5 – Tendo-o feito, dispôs de coisa alheia, já que o bem não era seu, pertencendo, antes, a uma herança ainda ilíquida e indivisa, aberta pelo decesso de seu falecido marido.
6 – Daí que o testamento em causa seja nulo e de nenhum efeito, pelo menos no que tange ao legado do bem certo e determinado.
7 – Ao caso dos autos jamais poderia ser aplicável o disposto no art° 2252°, n° 1 do Código Civil, conforme entendeu a decisão sob recurso (o que a fez considerar que o legado era válido, embora reduzido à parte do bem que pertencia à testadora).
8 – É que tal artigo apenas se mostra aplicável aos casos em que esteja em causa o legado de um bem certo e determinado pertencente só em parte ao testador.
9 – Ora, no caso dos autos, o bem em causa era pertença, por inteiro, de uma herança ilíquida e indivisa (aberta por óbito do também inventariado B), e a testadora e inventariada A apenas era titular de um direito e acção a essa herança, inte-grando-se nessa herança, para além de outros bens, o imóvel em causa.
10 – Daí que se pugne pela nulidade do testamento em causa.
11 – Ao decidir como decidiu, violou o despacho em causa o disposto nos arts. 2251°, n° 1 e 2252°, n° 1, ambos do Código Civil.
12 – Considera o apelante, com as considerações que fez ao longo desta peça, ter cumprido a exigência vertida na alínea b) do n° 2 do art° 690° do C. P. C..

Terminam dizendo que deverá a decisão sob recurso ser revogada e substituída por outra que considere nulo e de nenhum efeito o testamento outorgado pela inventariada Augusta em 14 de Novembro de 2000, ao ter legado à cabeça de casal bem que lhe não pertencia, o que conduzirá a que o imóvel em questão deva ser relacionado como um normal bem da herança, com as consequências legais.

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A cabeça de casal contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso, a despeito de (e curiosamente) argumentar juridicamente de forma totalmente adversa à bondade da tese adoptada na decisão recorrida, e de forma absolutamente incompatível com a conclusão a que chega….

Foi proferido despacho de sustentação do agravo.

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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


Plano Factual:

Com interesse para a decisão do agravo, vem dado como provado na decisão recorrida que:

a) Os inventariados eram casados um com o outro no regime de comunhão geral de bens;
b) O prédio rústico – verba nº 6 da relação de bens, relacionada como bem legado – adveio ao casal inventariado por via sucessória a favor do cônjuge mulher;
c) O inventariado faleceu em 30 de Julho de 1990;
d) O citado prédio não foi entretanto objecto de partilha;
e) Por testamento de 14 de Novembro de 2000, a inventariada declarou legar à filha, ora cabeça de casal, e por conta da quota disponível, o referido prédio.


Plano Jurídico-conclusivo Recursivo:

Perante este conjunto de factos, é evidente que o prédio em causa pertencia, em comum, ao acervo patrimonial do casal inventariado, situação em que ainda se mantinha quando a disposição testamentária foi feita.
Deste modo, ressalta certo que não podia a inventariada dele dispor testamentariamente como fez, ou seja, como se fosse coisa exclusivamente sua. Na realidade, apenas podia dispor dos seus bens próprios e da sua meação nos bens comuns (nº 1 do artº 1685º do CC).
Qual a consequência legal de tal acto a non domino?
Seguindo aqui a lição de Carvalho Fernandes (Lições de Direito das Sucessões, 2ª ed., pág 463 e sgts), podemos dizer que o legado constitui um dos modos de atribuição mortis causa do património do autor da sucessão, de modo que este só pode atribuir legados que tenham por objecto bens que lhe pertençam. Caso contrário, segundo o regime típico da ilegitimidade, que então viciaria o testamento, este devia ser nulo (v. artº 2251º, nº 1 do CC). Correspondentemente, se a coisa legada só em parte pertence ao testador, só nessa medida a disposição poderia valer (v. nº 1 do artº 2252º).
Isto é assim em geral.
Mas, como acentua o mesmo autor, há todavia que atender ao regime especial do legado de coisa certa e determinada do património comum do casal (legado de coisa comum), feito por um dos cônjuges. Rege aqui especificamente o artº 1685º do CC, como aliás decorre expressamente do nº 2 do artº 2252º do CC.
Seguindo ainda Carvalho Fernandes (ob. cit., pág 471 e 472), podemos mais dizer que representa legado de coisa comum a disposição mortis causa feita por um dos cônjuges que tenha por objecto coisa certa e determinada do património comum (comunhão) do casal. As particularidades do regime da comunhão conjugal justificam que embora mantendo alguma afinidade com o legado de coisa alheia, o legado de coisa comum esteja sujeito a regime específico. O regime específico, retratado no nº 2 do artº 1685º do CC, que preside à disposição mortis causa de cada um dos cônjuges é o de ela estar limitada aos seus bens próprios e à sua meação – qua tale – nos bens comuns. Deste modo, tendo algum dos cônjuges disposto de coisa certa e determinada do património comum, a disposição não devia, em princípio, valer, pelo menos em espécie. Contudo, dominado pela ideia do favor testamenti e da tutela da vontade do testador até onde for razoavelmente de admitir, o nº 3 do artº 1685º do CC veio permitir a validade do legado de coisa comum em espécie, mas apenas se se verificar alguma das situações prevenidas na mesma norma. Não se verificando alguma dessas situações, o legado não vale em espécie. Todavia, o nº 2 do artº 1685º atribui ao beneficiário do legado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro. Estamos aqui perante um caso de legado de valor. Verifica-se no regime do nº 2 do artº 1685º, ao determinar-se que o legado vale como legado de valor, uma conversão legal do legado de coisa comum.
Ainda a este propósito, salientam Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, anotação ao artº 1685º), que «Quanto ao problema da validade da disposição que tenha por objecto coisa certa e determinada do património comum (v. g. a deixa de um prédio adquirido pelo disponente na constância do matrimónio (…)), o nº 2 do artº 1685º consagra uma solução geral (…) que se afasta da estabelecida no Código para o legado de coisa só em parte pertencente ao testador». Mais salientam, seguindo aqui igual entendimento de Braga da Cruz, que «a disposição que incide sobre bens certos e determinados pertencentes à comunhão conjugal é sempre válida quanto ao valor e sempre nula, em princípio - isto é, a menos que se verifique alguma das excepções consignadas no nº 3 do artº 1685º (acrescento nosso) -, quanto à substância, de tal modo que o contemplado pode sempre exigir o respectivo valor em dinheiro, mas não pode exigir a própria coisa. Nem o outro cônjuge nem os herdeiros do disponente têm de arguir, por via de acção, a nulidade da disposição feita; apenas terão de arguí-la por via de excepção, se o contemplado vier exigir-lhes o cumprimento em espécie. A solução da conversão sistemática, ope legis, da disposição em substância no legado do valor da coisa não corresponde à disciplina fixada no artº 2252º para o legado de coisa só em parte pertencente ao testador. E compreende-se que assim seja. O património comum dos cônjuges é um património colectivo (…) que não confere a nenhum dos seus titulares, nem direitos sobre coisas determinadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas. O facto de um prédio pertencer em comum a ambos os cônjuges não significa que qualquer deles se possa intitular dono do prédio ou sequer titular do direito a metade desse prédio. O património colectivo pode mudar continuamente de conteúdo e tão-pouco pode saber-se, com antecedência, quais são os bens que concretamente virão a pertencer a cada um dos seus titulares, na altura em que se proceda à sua partilha. Daí que, persistindo à data da abertura da sucessão (…) a incerteza do direito do disponente sobre o objecto da decisão, a lei tenha enveredado pelo caminho menos inconveniente e mais seguro de salvaguardar, no essencial, o beneficio daquele que é contemplado: a transformação sistemática da disposição em substância no legado pecuniário correspondente».
Ora, perante o que fica dito, logo se vê que o despacho recorrido não se apresenta juridicamente correcto.
Com efeito:
Estamos perante uma disposição, feita pela inventariada, de um bem comum e indiviso do casal que a testadora formara com o inventariado, pré falecido.
Daqui que, contrariamente ao que se supõe no despacho, não se aplica ao caso o regime geral do nº 1 do artº 2252º do CC, mas sim o específico do artº 1685º.
E face a este regime específico, a disposição testamentária em causa é nula, embora automaticamente convertível em obrigação de valor. Isto significa que não há qualquer fundamento para reduzir o alcance do legado ao direito que a testadora podia dispor sobre o imóvel, como se decidiu.
O regime que se aplica ao caso é o do nº 2 do artº 1685º, o que significa pois que a disposição que a inventariada fez a favor da filha é nula quanto à substância. Daqui decorre que o acto testamentário em causa não vale como acto atributivo de propriedade à suposta legatária, de modo que esta não pode vir exigir, como se propôs fazer, o cumprimento do legado em espécie.
Mas tal disposição é válida, por conversão ope legis, enquanto fonte de obrigação de valor. O que significa que a contemplada poderá exigir o valor pecuniário da coisa objecto do legado. Mas quanto a isto nada temos a decidir, pois que não é objecto do recurso, embora seja estrita consequência legal da procedência da citada nulidade.
Daqui que os agravantes têm razão quando sustentam (embora sob a errónea qualificação jurídica de “nulidade do testamento”, na medida em que o testamento não é nulo, mas sim nula é a disposição em espécie nele contida) que o legado do imóvel não é válido, não podendo por isso a contemplada exigir o cumprimento do legado em espécie. De igual forma têm razão quando dizem que (em consequência de tal nulidade) o imóvel objecto do legado deve ser relacionado como “um normal bem da herança”.
Procede pois a excepção da nulidade da disposição feita, e como assim, procede a reclamação que nesta parte foi oportunamente apresentada contra a relação de bens.
Não pode assim subsistir, por manifestamente contrária à lei, a decisão recorrida.


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Decisão:


Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em conceder provimento ao agravo e, revogando o despacho recorrido, julgam procedente na parte em causa a reclamação apresentada contra a reclamação de bens, declarando nula a disposição testamentária ali constante, e determinam que o bem objecto do legado seja relacionado como não onerado com o legado.

Custas do agravo pela recorrida.


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Guimarães,