CONTRATO DE SEGURO
RESERVA DE PROPRIEDADE
BURLA RELATIVA A SEGUROS
Sumário

I – Quando o tomador e beneficiário do seguro é o comprador de uma viatura que se mantém registada a favor do vendedor, no regime de reserva de propriedade, a indemnização por danos próprios derivados de acidente com aquela viatura cabe ao tomador do seguro e não à empresa vendedora.
II – Assim, se o comprador e segurado, com vista a ser indemnizado, faz declaração, junto da seguradora, de que a viatura lhe pertence, não comete qualquer crime, em especial o de burla.

Texto Integral

Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Guimarães


Luís … foi condenado no Tribunal Judicial de Guimarães, por sentença de 5 de Novembro de 2004, como autor de um crime de burla qualificada dos artigos 217º, nº 1, e 218º, nº 1, do Código Penal, na pena de 14 meses de prisão, que se declarou suspensa por 3 anos, subordinando-se a suspensão ao dever de o arguido, em igual prazo, pagar à lesada Real Seguros, S.A., a quantia de € 10.072,38. Foi ainda julgado o pedido cível parcialmente procedente e o demandado Luís … Leite condenado a pagar à demandante Real Seguros, S.A., a quantia de 10.072,38, acrescida de juros de mora.
Foram para tanto determinantes os seguintes factos apurados no julgamento:
i. No exercício da actividade seguradora a que se dedica, a “Real Seguros, S.A.” celebrou com o ora arguido um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº 90/165986, nos termos da qual, a partir de 31/12/1999, assegurou a cobertura da responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro particular de passageiros da marca “Renault”, modelo “Clio”, com a matrícula nº …., bem como dos danos próprios, incluindo os de choque, colisão ou capotamento até ao valor de 2.294.700$00.
ii. No dia 4 de Maio de 2000, pelas 12:30 horas, o aludido veículo foi interveniente num acidente de viação junto ao posto de combustível da BP na Avenida da Imaculada Conceição, em Braga.
iii. Na data e local do acidente, o aludido veículo, na ocasião conduzido pelo arguido, seguia pela Avenida da Imaculada Conceição no sentido nascente/poente, pela fila da esquerda da hemi-faixa de rodagem destinada àquele sentido de trânsito, quando o seu condutor perdeu o controlo do mesmo e galgou o separador central, que transpôs, derrubando uma das árvores aí implantadas e invadindo a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário ao que o arguido levava, após o que embateu na parte lateral esquerda do veículo de matrícula nº …., que seguia pela hemi-faixa invadida, em sentido contrário ao do arguido.
iv. Ainda como consequência desse despiste, o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula nº …, que circulava atrás do …, pela hemi-faixa de rodagem invadida, em sentido contrário ao do veículo conduzido pelo arguido, sofreu danos provocados pela queda da aludida árvore e pelos detritos provenientes do choque entre o … e o ….
v. O arguido comunicou então o sinistro à ofendida “Real Seguros, S.A.”, accionando as coberturas de responsabilidade civil e de danos próprios do contrato de seguro celebrado.
vi. Em cumprimento das obrigações contratual e previamente assumidas, a ofendida “Real Seguros, S.A.” indemnizou os terceiros lesados pelo acidente, pagando as reparações dos veículos … e … e os prejuízos com a paralisação dos mesmos.
vii. Ao abrigo da cobertura de danos próprios, a “Real Seguros, S.A.” encontrava-se obrigada a indemnizar o beneficiário do contrato de seguro celebrado respeitante ao veículo com a matrícula OR pelos prejuízos sofridos em consequência do aludido acidente, os quais foram estimados em cerca de 1.600.000$00.
viii. Uma vez que o valor venal do veículo com a matrícula nº OR era, à data do acidente, de cerca de 2.000.000$00 e se tratava de um veículo recente – com menos de 6 meses de uso – e o choque afectou várias partes estruturais do mesmo (por exemplo, chassis e longarinas) e a mecânica, a sua reparação foi considerada pela ofendida, no caso concreto e do ponto de vista económico, desaconselhável por prejudicial.
ix. Perante estas circunstâncias, o arguido, arrogando-se proprietário do veículo com a matrícula nº OR e garantindo que sobre o mesmo não incidia qualquer ónus, encargo ou reserva de propriedade, exigiu da denunciante o pagamento da totalidade do valor seguro, subscrevendo, ao mesmo tempo, uma declaração escrita na qual autorizava a “Real Seguros, S.A.” ou, quem esta indicasse, a levantar o referido veículo.
x. É prática da “Real Seguros, S.A”, nos casos de pagamento de indemnizações pela perda total de veículos, exigir a entrega dos documentos do veículo, nomeadamente, do livrete e título de registo de propriedade, pelos quais certifica a legitimidade das pessoas para receberem as respectivas indemnizações e procederem à alienação dos salvados.
xi. Sucede, porém, que o arguido, em virtude de tais documentos, relativos à viatura de matrícula OR, terem sido apreendidos pela autoridade policial que registou a ocorrência do acidente, declarou encontrar-se impedido de proceder a essa entrega.
xii. Com vista a confirmar a impossibilidade de proceder à entrega do livrete e título de registo de propriedade e, simultaneamente, fazer crer ser o único e exclusivo proprietário do veículo em causa, o arguido, para o efeito, entregou a uma funcionária da “Real Seguros, S.A.”, no momento em que lhe foi liquidada a indemnização, um documento emitido pelo Comando da Polícia de Segurança Pública de Braga, onde, para além do mais, se refere a apreensão dos “documentos (livrete e título de registo) da viatura com a matrícula OR, propriedade de Luís …, residente Rua …, por ter sido interveniente num acidente de viação no dia 00MAI, pelas 12:35, na Avª Imaculada Conceição, desta cidade, conforme cópia da participação que se junta”.
xiii. Nada se refere em tal documento quanto à incidência, sobre o aludido veículo, de qualquer ónus, encargo ou reserva de propriedade, sendo certo que existia sobre o mesmo reserva de propriedade devidamente registada a favor de “T, S.A.”, desde 24 de Fevereiro de 2000.
xiv. No dia 8 de Junho de 2000, data em que foi liquidada ao arguido a indemnização, este, após expressamente instado a esse respeito pela funcionária da “Real Seguros, S.A” responsável por tal pagamento, garantiu-lhe que o automóvel lhe pertencia e que sobre o mesmo não incidia nenhum ónus, encargo ou reserva de propriedade, exibindo, por forma a convencer aquela funcionária desse facto, o documento emitido pela autoridade policial ao qual acima se fez referência.
xv. Em virtude da especial relação de confiança que o arguido mantinha com a “Real Seguros, S.A.”, decorrente de ser mediador de seguros dessa mesma companhia, não foram observados, designadamente pela dita funcionária, alguns dos procedimentos usuais, nomeadamente, a prévia confirmação da exacta e completa situação jurídica do veículo àquela data.
xvi. Assim, convencida da seriedade de tais declarações do arguido, sustentada no teor daquele documento e na relação profissional que o mesmo mantinha com a “Real Seguros, S.A.”, esta sociedade, através da aludida funcionária, entregou ao arguido a quantia de 2.019.330$00, que fez sua, titulada pelo cheque nº 6402993652, datado de 8 de Junho de 2000, sacado sobre a conta nº …, do BPN – Banco Português de Negócios, S.A.
xvii. Em troca, o arguido assinou antes a já referida declaração, datada de 7 de Junho de 2000, através da qual autorizava a “Real Seguros, S.A.” ou quem esta indicasse a levantar o veículo de matrícula OR de marca “Renault”, modelo “Clio” do local onde o mesmo se encontrava.
xviii. Só posteriormente, ao apurar através de informação emitida pela Conservatória do Registo Automóvel que o veículo de matrícula OR se encontrava registado com reserva de propriedade a favor de “T, S.A.”, é que a ofendida “Real Seguradora, S.A.” veio a ter conhecimento do logro em que caíra ao entregar a aludida quantia indemnizatória ao arguido.
xix. Ao actuar do modo descrito, aproveitando-se e servindo-se engenhosamente do teor do documento emitido pela autoridade policial, bem como da relação de confiança que mantinha com a “Real Seguros, S.A.”, o arguido pretendeu e conseguiu induzir em erro a funcionária daquela seguradora, de modo a que, aceitando como boas e sérias não só as explicações do arguido como o facto deste se arrogar que a propriedade do aludido veículo lhe pertencia única e exclusivamente – o que o arguido sabia não ser verdade - , lhe entregasse a quantia titulada no referido cheque, da qual a ofendida se viu privada, nessa medida enriquecendo o arguido, que à mesma não tinha direito uma vez que não era legalmente o proprietário do veículo.
xx. Além de ter agido livre e voluntariamente, o arguido tinha ainda a consciência de que estava legalmente proibido de actuar da forma descrita.
xxi. Os salvados do veículo de matrícula OR foram avaliados, à data do pagamento da indemnização (em 8/6/2000), no valor de € 3.740,98.
xxii. Esses salvados encontram-se guardados, desde Junho de 2000, nas instalações de M., em C…, Santa Maria da Feira.
xxiii. O proprietário dessas instalações, quando aí são deixadas viaturas, reclama habitualmente dos responsáveis pelo depósito o pagamento da quantia diária de € 5,00.
xxiv. O arguido é casado (…).

Do decidido vem interposto recurso por Luís, donde se extrai, em resumo já articulado no parecer junto aos autos, que:
—a matéria de facto dada como provada é insuficiente para fundamentar a condenação, uma vez que não contém, “na melhor das hipóteses da acusação”, elementos necessários capazes de proporcionar um juízo seguro de condenação do arguido;
—a sentença padece de vício de contradição insanável na fundamentação;
—o recorrente agiu sem dolo;
—a pena de prisão e a sua medida não são acertadas em face das circunstâncias provadas.
Fora igualmente interposto um outro recurso do despacho de fls. 331 por pretender o arguido a declaração da extinção do procedimento criminal por intempestivo exercício do direito de queixa. A propósito, foi feita a declaração prevista no artigo 412º, nº 5, do CPP.
Na 1ª instância, o MP sustenta, primeiro, a legitimidade para o exercício da acção penal, dada a natureza do crime imputado, que não carece de participação ou queixa; depois, o bem fundado, em toda a linha, da sentença condenatória.
O Ex.mo Procurador Geral Adjunto, ainda que recusando a existência de qualquer nulidade insanável com origem em intempestivo exercício do direito de queixa, pronuncia-se pela absolvição do arguido, atenta a contradição insanável que se retira da fundamentação da sentença condenatória, pois o recorrente celebrou com a queixosa seguradora um específico contrato de seguro cujo âmbito compreendia a responsabilidade civil emergente da condução do veículo OR, e compreendia também os danos próprios. Sendo o arguido o tomador do seguro, com assento em contrato válido, e cabendo à seguradora pagar-lhe, em contrapartida do prémio de seguro, o que era devido, a exigência do arguido em receber da seguradora o montante dos danos próprios emerge como corolário da validade do contrato de seguro assim firmado. De modo que o que se dá como provado quanto à indução em erro da funcionária da seguradora integra o vício capital da contradição, que a Relação está em condições de suprir, evitando o reenvio.
Colhidos os “vistos” legais, procedeu-se à audiência a que se refere o artigo 423º do Código de Processo Penal, com observância do formalismo respectivo.


O recurso interlocutório tem por objecto o despacho de fls. 331. Constatou-se aí a imputação a título de burla qualificada do artigo 218º, nº 1, do CP, que reveste natureza pública. “Assim sendo”, diz o mesmo despacho, “como resulta do artigo 48º do CPP, a legitimidade do MP para exercer a presente acção penal é independente do exercício do direito de queixa por parte da assistente Real Seguros, SA”. No recurso que se seguiu (fls. 379 e ss.), insiste-se em que os factos integrariam, quanto muito, o tipo de burla simples, por o prejuízo, alegado como valor dos salvados, ser apenas de 3740,98 euros, reclama a existência de nulidade insanável, já que o processo foi promovido pelo MP sem ter havido queixa, em clara violação do artigo 119º, alínea b) do CP, além de que se mostram violados também os artigos 115º, nº 1, e 217º, nº 3, do CP, e os artigos 48º e 49º, nº 1, do CPP. Só no caso de a Real ser condenada ao pagamento do valor do veículo à Tovite, ou a alguma empresa do grupo Renault, é que o seu prejuízo patrimonial poderia ser qualificado do crime de burla pelo valor elevado.
Deu o Ex.mo Procurador Geral Adjunto consistente resposta a este caso.
Segundo o artigo 218º, nº 1, CP, no qual recai a qualificação jurídica assumida pela acusação pública, quem praticar o facto previsto no nº 1 do artigo 217º, ou seja, o crime matricial de burla, é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 600 dias se o prejuízo patrimonial for de valor elevado. É este valor elevado, por seu turno, definido no artigo 202º, alínea a), do CP, como sendo o que excede 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto. No caso concreto, vista a imputação que ao arguido é feita na acusação, por factos que aí se dão como produzidos em 8 de Junho de 2000 com a entrega de um cheque de 2.019.330$00, não pode ser outro o valor a levar em conta. E como se não prevaleceu o arguido da instrução, o thema decidendum ficou assente, já que “os contornos fácticos atribuídos ao arguido ficaram, com a acusação recebida, devidamente consolidados”.
Ora, sendo o prejuízo atribuído à actividade do arguido de 2.019.330$00, resta determinar se um tal valor, em 8 de Junho de 2000, é ou não elevado, pois só assim escapa à qualificação como burla simples, dependente de queixa.
Como nessa data a UC era de 16 contos / 69,83 euros, por força do disposto no DL nº 38/97, de 4 de Fevereiro, e artigos 5º e 6º do DL nº 212/89, de 30 de Junho, o valor do prejuízo não pode deixar de se considerar como elevado, em termos de não se desenhar qualquer nulidade de que cumpra conhecer.
Não procedem por isso os argumentos derivados do recurso intercalar do arguido.

No recurso principal invoca-se contradição insanável ligada à seguinte matéria, sucessivamente dada como assente:
no exercício da actividade seguradora a que se dedica, a “Real Seguros, S.A.” celebrou com o ora arguido um contrato de seguro do ramo automóvel, que a partir de 31 de Dezembro de 1999 assegurou a cobertura da responsabilidade civil emergente da circulação do OR, bem como dos danos próprios, incluindo os de choque, colisão ou capotamento até ao valor de 2.294.700$00;
ao abrigo da cobertura de danos próprios, a “Real Seguros, S.A.” encontrava-se obrigada a indemnizar o beneficiário do contrato de seguro celebrado respeitante ao veículo com a matrícula OR pelos prejuízos sofridos em consequência do aludido acidente, os quais foram estimados em cerca de 1.600.000$00.
A matéria dada como provada configura um negócio subjacente entre o arguido e a queixosa donde deriva uma relação de seguro abrangendo tanto a responsabilidade civil emergente da condução do veículo OR como os danos próprios, o que de resto se confirma com a leitura da apólice junta, a fls. 217 e 218. O beneficiário desse contrato, em tudo válido, no que respeita aos danos próprios, era sem dúvida o arguido recorrente, tomador do seguro. A queixosa comprometia-se a cobrir os danos próprios e a responsabilizar-se pelo mais decorrente do seguro assumido; o pagamento do prémio aparece como a contrapartida no negócio.
Que o recebido pelo arguido da seguradora queixosa não é senão o que a esta cumpria pagar-lhe em execução do contrato firmado entre ambos, foi a conclusão assumida pelo Ministério Público nesta Relação nos seguintes termos: “o pagamento pelos danos próprios pela seguradora não estava dependente do tomador do seguro ser ou não o dono, o proprietário do veículo. Na apólice não se estipula que o beneficiário dos danos próprios era o dono do veículo segurado. Para que o dono do veículo fosse beneficiário do seguro relativo aos danos próprios tornar-se-ia indispensável que o mesmo fosse ou tomador do seguro ou o seu beneficiário por vontade expressa daquele. Ora, a proprietária do veículo não se encontra numa destas situações”.
É outra a tese subscrita pelo Tribunal recorrido — e é nela que lança âncoras a condenação decretada.
Mas esta última visão das coisas não é de subscrever.
Diz-se na motivação da sentença que “o arguido sabia — por ter sido informado e não ter deixado ele próprio de informar-se sobre as condições do negócio — que o concessionário que lhe vendeu a viatura de matrícula OR havia reservado para si a propriedade da mesma até total liquidação do preço (o que de resto, resulta expresso do contrato escrito que aquele outorgou com o concessionário vendedor e cuja cópia das condições particulares consta de fls. 359)”. O erro (sobre factos que o agente astuciosamente provocou), elemento do crime de burla, que na sentença se tem igualmente por assente residiria então na circunstância de o arguido, para obter o pagamento da indemnização, ter garantido junto da seguradora, contra a verdade que ele próprio conhecia, que o carro sinistrado lhe pertencia e que sobre ele não incidia qualquer encargo ou reserva de propriedade. Foi assim, diz ainda a decisão em análise, “através do logro que engenhosamente arquitectou”, que o arguido determinou a funcionária “a entregar-lhe a quantia indemnizatória, à qual não tinha direito, pois que, existindo reserva de propriedade sobre a viatura acidentada, não era ele, ainda, o dono desse veículo e, logo, o titular da compensação devida pelos danos sofridos no mesmo (artigos 408º, nº 1 in fine e 409º, nº 1, ambos do Código Civil)”.
Afigura-se demasiado simplista este raciocínio, que eventualmente estaria certo se não tivesse como protagonista o próprio beneficiário do seguro. Se um qualquer, fazendo-se passar falsamente por dono do carro sinistrado, conseguisse levar a seguradora a entregar-lhe a indemnização devida (coisa seguramente bem difícil de imaginar, uma vez que tudo se processa de “papéis” na mão) a lógica do raciocínio que incluísse um erro ou engano no seu desenvolvimento seria quase irrefutável.
O Tribunal, todavia, olhou para o arguido despojado dessa sua condição de tomador / beneficiário do seguro.
E a verdade é que não se vê — nem a sentença o explica, já que se arrima apenas aos artigos 408º, nº 1, in fine, e 409º, nº 1, do CC, donde nada mais resulta do que a constatação de nos contratos de alienação ser lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento — como é que pessoa contratualmente legitimada perante a seguradora, a quem foi comunicado o sinistro por declaração amigável (fls. 227 e ss.), possa usar os meios da burla quando se faz pagar pelo valor do dano comprovadamente sofrido pelo veículo segurado.
Qualquer que seja a mentira de que o arguido se serviu só pode ser entendida como meio, circunstancial, para afastar complicações ou entraves de momento e convencer a seguradora a pagar-lhe naquela ocasião e sem mais exigências, mas não tem a virtualidade de dissolver o clausulado ou de contrariar os seus efeitos. O arguido, reconhecidamente o tomador do seguro, não indicou, que se saiba, outra pessoa como beneficiário dele. Por outro lado, no momento do pagamento, o contrato de seguro celebrado com a seguradora queixosa continuava plenamente válido e eficaz, a produzir todos os seus efeitos. Ora, a burla não existe pelo simples facto de a indemnização ter sido paga, mas sim quando é obtido pelo agente, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo através de um dos processos que a lei refere, ou seja, por erro, engano ou astúcia por ele provocada.
Não estamos assim colocados numa posição típica descrita no preceito que prevê o ilícito pois que não existe qualquer erro, artifício ou engano no acordo que aqueles entre si estabeleceram, comprometendo-se o arguido a pagar o prémio de seguro e a seguradora a suportar os danos. A realidade é bem diferente, tendo havido um acidente, que ninguém contesta, com danos para o veículo segurado, o tomador do seguro tinha direito a reclamar e a obter o pagamento dos danos cobertos. E para isso nem a lei nem o contrato exigem um procedimento vinculado. Como bem lembra o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, o seguro facultativo, que aqui está em causa, com as cláusulas que as partes nele queiram inserir corresponde à concretização do princípio da liberdade contratual consagrada no artigo 405º do CC, tendo uma função complementar ao seguro obrigatório. É no seguro facultativo que as partes podem completar a cobertura dos diferentes danos que ficam confiados ao seguro obrigatório. A própria seguradora admite que ao abrigo da cobertura de danos próprios se encontrava obrigada a indemnizar o beneficiário do contrato de seguro celebrado relativo ao veículo OR pelos prejuízos sofridos em consequência do acidente (veja-se, por ex., fls. 210). É certo que a seguradora afirma que nos casos de pagamento de indemnizações pela perda total de veículos exige a entrega dos documentos deste, nomeadamente do livrete e do título de registo de propriedade, pelos quais diz verificar a legitimidade das pessoas para receber a indemnização e proceder à alienação dos salvados, mas isso repercute-se unicamente no seu modo de agir interno. Consultando-se a apólice em nenhum momento se ressalva, ademais, que a indemnização por danos próprios se possa fazer valer apenas quando a propriedade do veículo segurado coincida na pessoa do tomador do seguro. O que aí se diz é que o veículo, objecto do seguro, é um ligeiro particular de passageiros, com a matrícula OR.

A 1ª instância, para conformar um erro (com relevância criminal) em que a funcionária da seguradora teria incorrido, parte da ideia de não ter o arguido direito à indemnização. Mas, como se viu, é uma conclusão incorrecta, uma vez que o contrato era válido e o arguido o único beneficiário dele. A sentença baseia a conduta astuciosa que encontrou na circunstância — conhecida, é certo — de haver uma reserva de propriedade sobre o carro e de o arguido a ter ocultado. Simultaneamente porém ignorou a posição do arguido como beneficiário de um seguro que a Real Seguros tinha aceitado e que estava plenamente em vigor. A sentença, de resto, reconhece ao arguido a posição de tomador / beneficiário do seguro, mas não chega a explicar, com a simples menção, ainda aqui correcta, de não ser ele o dono do carro acidentado, como é que o titular da compensação devida pelos danos tenha de ser outra pessoa.
O raciocínio consiste em tirar conclusões de factos conhecidos. Quando se raciocina, utiliza-se informação que é conhecida ou que se supõe verdadeira ou provavelmente verdadeira para apoiar uma crença. O raciocínio opera com base em relações lógicas — de princípios, premissas, etc., a conclusões, consequências, etc.,— permitindo desse modo, mediata e discursivamente, obter conclusões, numa cadeia dita ilativa que, orientada para um fim de conhecimento, conduz duma premissa inicial tida por adquirida a uma conclusão final (para mais pormenores, veja-se Castanheira Neves, Metodologia jurídica, especialmente, p. 31).
Neste caso que analisamos, parte da matéria que o Tribunal teve por provada, aquela que integra um meio astucioso para chegar à indemnização, apoia-se, contraditoriamente, em algo incorrectamente valorado, gerando do mesmo modo soluções notoriamente incorrectas, pelo que a sentença é habitada por vício que no entanto pode ser suprido, como bem nota o ilustre Procurador Geral Adjunto, por estar demonstrado, “sempre pelo texto da própria decisão, que o dinheiro recebido pelo arguido da queixosa lhe foi entregue na execução de um contrato facultativo de seguro firmado e do qual o mesmo era beneficiário”.
Todo este quadro nos conduz pois à conclusão de que na economia das relações pessoais e comerciais existentes entre arguido e queixosa e no caso concreto do acordo de seguro firmado e do seu desenvolvimento, tal como ocorreu, não estão presentes os elementos típicos objectivos do crime de burla por ausência de verificação da existência de erro ou engano sobre factos que o agente tenha astuciosamente provocado.
Amputada assim a factualidade da presença de qualquer dos meios próprios da burla e da correspondente projecção factual, especialmente de ordem subjectiva, a conduta revela-se afinal atípica, restando absolver o recorrente, inclusivamente do pedido de indemnização, por comprovadamente não ser a demandante lesada pela prática de um crime.

Nestes termos, acordam em conceder provimento ao recurso de Luís, revogando-se a sentença recorrida.

Não são devidas custas.

Guimarães,