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CRIME PÚBLICO
CRIME SEMI-PÚBLICO
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
DIREITO DE QUEIXA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário
Se, quando entra em vigor uma lei que converte um crime de público em semi-público (ou particular), ainda não se ini-ciou o procedimento criminal, o início deste passa a ficar depen-dente da apresentação da queixa; mas se, quando entra em vigor a referida lei, o procedimento criminal já foi iniciado, não é neces-sária a queixa, mas pode o ofendido extinguir o processo, desistindo do (impedindo o) prosseguimento da acção penal.
Texto Integral
Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães
1. Por sentença, proferida em 2004/10/20, no processo comum n.º 25/02.1EAPRT, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, além do mais, foram condenados:
– A, com os demais sinais dos autos, pela prática do crime de contrafacção, imitação e uso ilegal da marca, p. e p. pelo art. 264.º, n.º 1, al. a) do Código da Propriedade Industrial (CPI) anterior ( () CPI aprovado pelo Decreto Lei n.º 16/95, de 24 de Janeiro.), na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 660,00 (seiscentos e sessenta euros);
– “S, Ldª” pela prática do crime de contrafacção, imitação e uso ilegal da marca, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art. 264.º, n.º 1, al. a) do CPI anterior e arts. 3.º e 7.º do Decreto-Lei (DL) n.º 28/84, de 20/01, aplicáveis ex vi art.º 258.º do CPI citado, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de € 10,00 (dez euros), num total de € 1.100,00 (mil e cem euros);
2. Inconformados, recorreram desta decisão os arguidos A e «Sajunior – Bordados, L.da» .
Remataram a motivação de recurso que apresentaram com a formulação das seguintes conclusões: « 1 – O arguido A foi condenado pela prática de um crime de contrafacção, imitação e uso ilegal da marca, p. e p. pelo artigo 264º, n.º 1, alínea a) do C.P.I. anterior e a arguida S., Lda., foi condenada pela prática do mesmo crime, pelas disposições conjugadas dos artigos 264º, n.º 1, alínea a) do C.P.I. anterior e artigos 3º e 7º do Decreto-lei nº 28/84, aplicáveis ex-vi, artigo 258º do C.P.I. citado. « 2 - O regime legal em vigor à data da prática dos factos conferia àquele crime carácter público, o qual, com a entrada em vigor, no dia 1 de Julho de 2003 do Decreto-lei nº 36/2003, que aprovou o novo Código da Propriedade Industrial, passou a ter natureza semi-pública, atento o disposto no artigo 329º do mesmo. « 3 - As marcas ofendidas não exerceram o seu direito de queixa, do qual são legítimas titulares. « 4 - Analisando os autos, constata-se que nenhum dos lesados apresentou queixa, ou sequer participou os factos, ou demonstrou por qualquer meio o objectivo de demandar criminalmente os arguidos e o prazo para o fazerem já expirou. « 5 - Desta forma, não estava o Ministério Público investido da legitimidade legal que a lei exige para fazer prosseguir, por si só, o procedimento criminal quanto ao ilícito em apreciação. « 6 - Tratando-se de um crime que à data da prática dos factos era legalmente tipificado como público e à data do julgamento semi-público de acordo com o Decreto-Lei n.º 36/2003, de 05/03, a lei a aplicar teria que ser esta última por ser mais favorável aos aqui recorrentes. « 7 – O M.P. deduziu acusação sem prévia apresentação de queixa e tinha legitimidade para o fazer porque se tratava de um crime público. Com a entrada em vigor do novo C.P.I. a queixa passou a constituir um pressuposto da legitimidade do M.P. para a acção penal. « 8 - Por isso, as ofendidas tinham ao seu dispor, para formulação da queixa o prazo de 6 meses a contar da data da entrada em vigor da lei nova - 01/07/2003. « 9 - Não o tendo feito, o direito de queixa das ofendidas extinguiu-se por caducidade e o M. P. perdeu a sua legitimidade para a respectiva acção penal. « 10 - A norma do artigo 5º do C.P.P., por se referir às normas processuais formais cede perante a norma do artigo 2º do C.P., a qual constitui um instrumento de garantia dos direitos fundamentais consagrados no artigo 29º da C.R.P. « 11 – A douta sentença recorrida violou o artigo 2º do C.P., bem como o princípio constitucional subjacente da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, previsto no artigo 29º, n.º 4 da C.R.P. .
Terminou a pedir, com o provimento do recurso, a revogação da sentença recorrida e a absolvição dos recorrentes.
3. Admitido o recurso, o Ministério Público (MP) apresentou resposta no sentido de lhe ser dado provimento.
4. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto (PGA) foi de parecer de que o recurso merece provimento.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do C. P. P., os recorrentes não responderam.
6. Efectuado exame preliminar e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso.
II.
O recurso é restrito a matéria de direito e as questão, complexa, posta no mesmo é se a alteração da natureza do crime de contrafacção, imitação e uso ilegal de marca, de público a semi-público, determina, no caso, a absolvição dos arguidos, por falta de apresentação de queixa das ofendidas, e, assim, sendo, se o regime penal em vigor é o mais favorável, em concreto, aos arguidos, devendo ser aplicável.
É claro que a resposta a dar sobre qual é o regime concretamente mais favorável aos arguidos depende da solução da questão das consequência jurídicas concretas da passagem do crime de público a semi-público, pois tendo o regime penal de ser aplicado em bloco, torna-se indiferente a consideração das normas relativas à punição do crime, na perspectiva de estas não chegarem a ser aplicadas, ainda que, a serem-no, configurassem o regime concretamente manos favorável.
Assim,
O que está, aqui, verdadeiramente em causa, é saber-se o que é que acontece se, após o MP ter promovido um processo penal para a punição dos autores de certo crime público, tal crime passa a ser semi-público, isto, mesmo se a Intervenção do MP, no quadro da sua competência exclusiva de promoção da acção penal, puder ter-se já esgotado, com a ultrapassagem da fase da dedução da acusação pública. Dito de outro modo, se pode pôr-se a questão da exigência de uma queixa – denúncia ou participação de factos – ao MP, queixa que, como se sabe, tem o único fim de desencadear o procedimento criminal (() Note-se que o queixoso, nos crimes semi-públicos, não tem qualquer outro intervenção obrigatória no processo (para além, naturalmente, da que lhe possa vir a ser exigida no esclarecimento da verdade material), pois só no caso dos crimes particulares lhe é exigida a constituição de assistente. ), relativamente a um processo em que a acusação já tenha sido validamente deduzida pelo MP e, no caso afirmativo, o que sucede se, ao tempo da alteração legislativa, já tiver decorrido o prazo que a lei estabelece para a apresentação da queixa.
“Nuance” esta introduzida, desde já, não só porque é a situação que corresponde à dos presentes autos, como porque o problema se complica à medida que o tempo decorre e o processo avança. Assim, v.g., no caso de a alteração legislativa determinativa da alteração da natureza do crime ocorrer após o momento da prática dos factos, mas antes do decurso do prazo legal para a apresentação da queixa e do início do processo, não é difícil chegar-se a uma solução harmónica com as regras do processo e a tutela dos direitos dos interessados
Vejamos, então a situação concreta dos presentes autos, para o que nos basearemos nos elementos de facto e de direito dos autos, que não estão postos em crise pelo recurso.
Em 2002/03/05 foi detectada a acção dos arguidos que veio a ser qualificada e sancionada penalmente como autoria de um crime de “contrafacção, imitação e uso ilegal da marca”, p. e p. elo art.º 264.º do CPI então em vigor.
À mesma data o referido crime era público.
Os autos tiveram origem num auto de notícia da Inspecção Geral das Actividades Económicas (IGAE), seguindo-se-lhe o competente inquérito.
Em 2003/05/30 o MP deduziu acusação nos autos, vindo esta a ser recebida pelo despacho de 2003/09/18 que designou data para a realização de julgamento.
Entretanto, em 2003/03/05 foi publicado o DL 36/2003, que aprovou o novo CPI, para entrar em vigor em 2003/07/01, nos termos do art.º 16.º do mesmo decreto-lei
No novo CPI, o tipo legal de crime de “contrafacção, imitação e uso ilegal de marca” passou a estar previsto no art. 323.º, dispondo o art.º 329.º do mesmo diploma legal que “o procedimento por crimes previstos neste Código depende de queixa”.
Passaram, assim, os crimes previstos e punidos no CPI a ter natureza semi-pública.
Em 2004/09/29 deu-se início ao julgamento dos presentes autos e, em 2004/10/13 foi proferida a sentença, com a decisão já conhecida.
Temos, em resumo, que, decorridos um ano três meses e vinte seis dias sobre a notícia do crime e um mês e um dias sobre a dedução da acusação pública, o crime passou de público a semi-público.
Esta situação coloca um problema de aplicação de lei no tempo, cuja solução, aliás, é causa e fundamento do recurso Quid juris, quando ocorre esta mudança.
Diferentes soluções têm sido avançadas, dependendo de a alteração da natureza do ilícito ser anterior ou posterior ao início do processo ou, mesmo, à dedução da acusação, e ser ela, também, anterior ou posterior ao decurso do prazo para apresentação da queixa, com as possíveis variantes que a intersecção destes dois vectores comporta. Fixemo-nos da situação concreta dos autos, que se nos afigura das mais, se não a mais complexa.
Antes seja-nos permitida a expressão de alguma perplexidade da, para nós insólita, alteração da natureza dos crimes de públicos para semi-públicos.
Desde logo, porque nos bens jurídicos tutelados pela protecção penal das marcas há um patente interesse público, no saneamento e credibilização do funcionamento dos mercados e, por consequência, da saúde da economia.
Depois, porque sendo notório que as pessoas titulares das marcas mantém uma luta permanente, junto das autoridades dos estados e do público, pela defesa da genuinidade dos produtos e da protecção dos seus interesses, sendo difícil de prefigurar uma situação em que não lhes interesse a perseguição penal da contrafacção dos produtos das marcas.
Por fim, porque dificilmente os referidos titulares terão conhecimento dos factos puníveis antes das autoridades a quem está cometida a repressão deste tipo de actividades ilegais. A luta contra a falsificação de produtos supõe a utilização de meios que só estão ao alcance das autoridades públicas e, na maior parte dos casos, os factos ilícitos só se tornam patentes com a actuação dessas autoridades, após investigação. Esta situação coloca uma dificuldade processual: É que o que o que a lei prevê é que os lesados se queixem às autoridades dos crimes que os atingem que pretendam ver criminalmente punidos. Em nenhum lado se prevê e dispõe que as autoridades pratiquem quaisquer actos destinados a incentivar os particulares a exercer seu direito de queixa. Ou seja, em nenhum lugar a lei dispõe que, por qualquer modo, se comunique aos ofendidos a existência de factos integrantes de crimes semi-públicos ou particulares que – vindos ao conhecimento das autoridades com desconhecimento desses lesados – os atinjam, para que se queixem. Esta situação, que é exemplar nos presentes autos, interfere significativamente nas soluções admitidas para o problema em análise.
Assim, confrontadas as posições que têm sido acolhidas na doutrina e na jurisprudência dos nossos tribunais, podermos, sem grande receio de errar, dividir as soluções apresentadas em três grandes grupos:
a) A daqueles que entendem que a queixa é um mero pressuposto processual e as normas relativas ao direito de queixa têm natureza exclusivamente processual, sendo de aplicação imediata, para futuro, sem qualquer reflexo de ordem retroactiva. Esta posição centra a questão na legitimidade do MP para a promoção da acção penal e afere esta pela lei em vigor aquando da instauração do processo. São exemplos da mesma os Acórdãos da Relação do Porto de 1996/03/13, in Colectânea de Jurisprudência (CJ), ano XXI - 1996, tomo II, pág. 229, da Relação de Évora de 1996/03/19, in CJ, ano XXI - 1996 , tomo II, pág. 229 (() Este com um voto de vencido no sentido da natureza processual material do direito de queixa. ), da Relação de Évora de 1997/03/18, in CJ, ano XXII - 1997 , tomo II, pág. 2273, e da Relação de Lisboa, in CJ, ano XXV - 2000, tomo III, pág. 135.
Apoia-se a posição em referência em jurisprudência anterior e, doutrinariamente, em Maia Gonçalves, Figueiredo Dias e Jescheck (() Assim, no Relação de Lisboa, in CJ, ano XXV - 2000, tomo III, pág. 135. cujo sumário publicado é «A entrada em vigor do C. Penal aprovado pelo Dec-lei n.º 48/95, de 15 de Março, não retira ao Ministério Público a legitimidade que possuía quando antes deduziu a acusação pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, que passou a ter natureza semi-pública», referem-se os Acórdãos do STJ de 11.10.83, BMJ n.º 330, pág. 453 e de 18.6.85, BMJ n.º 348, pág. 280, bem como Maia Gonçalves, C. Pen. Port. 5.ª ed., 1990, pág. 286 , Figueiredo Dias, Dir. Proc. Penal, 1974, pág. 122 e Yescheck, Trat. Derecho Penal, trad. Espanhola, 2.º vol., pág. 1230.
)
Para os defensores desta posição uma vez determinada a legitimidade do MP para a acção penal a exigência de queixa que a lei venha a consagrar posteriormente não tem relevo no desenvolvimento da causa.
b) A dos para quem, sinteticamente, a queixa, na medida em que condiciona a efectivação da punição, tem natureza substantiva, mas, por outro lado, e simultaneamente, tem também natureza adjectiva, pois que, sendo condição do procedimento criminal, constitui um pressuposto processual, tratando-se, na terminologia de Taipa de Carvalho, de um instituto de natureza processual penal material, em contraposição aos de natureza processual penal formal, que se limitam a regular o desenvolvimento do processo. E que, dando prevalência à natureza material das respectivas normas, obscurecem a questão processual, nomeadamente no que se refere à legitimidade do MP e tratam a questão como uma mera sucessão de leis penais de natureza cominativa se tratasse. Para este grupo não pode haver condenação sem precedência de queixa e a legitimidade do MP cessa quando a lei nova passa a exigir a existência de queixa para se proceder criminalmente.
São exemplos desta posição – ainda que em diferentes graus da sua assunção – os Acórdãos da Relação de Lisboa de 1996/01/30, in CJ, ano XXI - 1996, tomo I, pág. 154, da Relação de Lisboa de 1996/03/05, in CJ, ano XXI - 1996, tomo II, pág. 134, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 1996/10/24, in CJ - STJ -, ano IV - 1996, tomo III, pág. 177 (() Com a seguinte proposição IV do sumário aí publicado: « IV — As normas processuais penais podem ter natureza material ou meramente formal, e as primeiras, para além de constituírem condições positivas de procedimento criminal, condicionam a responsabilidade penal, ou seja, produzem efeitos jurídico-materiais, pelo que, nessa medida, estão sujeitas aos princípios constitucionais de imposição da lei material intertemporal mais favorável, contrariamente ao que ocorre com as normas processuais puramente formais, que estão sujeitas ao princípio da aplicação imediata da lei nova.») e do STJ de 1999/07/07, in CJ - STJ -, ano VII - 1999, tomo II, pág. 248 (() Como expressão mais acabada da posição que vimos a referir consta da proposição I do sumário publicado, que «o princípio constitucional da obrigatoriedade de aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido vale para todas as normas penais quer materiais quer processuais», formulação esta que, indo ao limite, prescinde da classificação da natureza da norma, para afirmar um princípio irrestrito da aplicação do regime mais favorável ao arguido.)
Afirmou-se, em fundamentação do Acórdão do STJ de 1996/10/24, o seguinte: « Não há dúvida que a generalidade dos pressupostos processuais se esgota no espaço próprio do direito pro-cessual penal. « Há, contudo, pressupostos processuais cujo conteúdo contende como direito substantivo e, por isso, o seu regime é regulado essencialmente na parte geral do Código Penal. « É o caso da queixa e da acusação particular, que são verdadeiros pressupostos adicionais da punição, bem como da prescrição do procedimento criminal, que condiciona negativamente a responsabilidade penal. « Por isso, a doutrina mais recente vem distinguindo por um lado as normas processuais penais materiais e por outro as normas processuais formais. « As primeiras têm uma dupla natureza: se por um lado constituem condições positivas de procedimento criminal (pressupostos processuais). por outro lado condicionam a responsabilidade penal e produzem, nessa medida, efeitos jurídico-materiais, diferentemente do que acontece com as segundas, isto é com as normas processuais formais. « Quanto a essas normas, aplicam-se os princípios consti-tucionais da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável e da imposição da retroactividade da lei nova favorável, o que determina a aplicação do princípio da lei penal mais favorável, consagrado no art. 29° da C.R.P. e no nº 4 do art. 2° do Código Penal - Cfr. Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, pág. 212 e segs.. « A este entendimento parece ter aderido o Prof. Figueiredo Dias que, depois de ter afirmado (in Direito Processual Penal, pág. 117) que a queixa e a acusação particular são verdadeiros pressupostos processuais de natureza processual, veio mais recentemente explicitar uma diferente visão desta problemática quando ao tratar a questão' (in Direito Penal Português As consequências Jurídicas do Crime, págs. 662 a 564) chama significativamente aos institutos da queixa e da acusação particular "Pressupostos Positivos da Punição" e isto na medida em que "o seu conteúdo contende com o próprio direito substan-tivo, na medida em que a sua teologia e as intenções político-criminais que lhes presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser". « Refere ainda o mesmo autor que tais pressupostos, embora estranhos ao tipo-legal-de-crime "podem já relevar para efeitos de determinação do regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente, a que se refere a parte final do 2º nº 4º. « E mais à frente diz que com alguma razão se tem afirmado "que a existência de crimes semi-públicos e estritamente particulares constitui afinal uma forma político-criminal de não intervenção ou mesmo, se se preferir, de descriminalizacão de facto.»
Esta posição, como se vê, faz entroncar a sua principal razão de ser no princípio constitucional consagrado no art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Sendo certo que, de certo modo, se pode dizer que o Tribunal Constitucional lhe deu acolhimento, pelo menos em certa medida.
Assim, no Acórdão do Tribunal Constitucional n. 523/99, proferido em 1999/09/28, no processo n.º 70/97 (() Que pode ser consultado em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/
), considerou-se que: « O fundamento substancial do princípio consagrado no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa resulta de um princípio da necessidade das penas ou da máxima restrição das penas, conforme se retira da análise da doutrina e da jurisprudência (vejam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 240/97, Diário da República, II, n.º 112, de 15 de Maio de 1997, p. 5641 ss., e n.º 677/98, Diário da República, II, n.º 53, de 4 de Março de 1999, p. 3243 ss., e a doutrina aí citada). « Afirmou-se no acórdão n.º 677/98, « "Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu valor assenta na verificação de que «qualquer criminalização e respectiva punição» (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra, 1995, pág. 255) determina a restrição de direitos, liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade, consagrado no n.º 1 do artigo 27.º da Constituição). Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do n.º 2 do artigo 18.º, quando se mostre necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos." « A aplicação retroactiva de uma disposição de direito penal não é automática nem incondicional. Não é automática, pois há que ter em atenção, a par do interesse do arguido, outros valores objecto de protecção constitucional, que podem impedir ou limitar a sua aplicação. Não é incondicional, precisamente porque a existência de outros valores constitucionalmente tutelados pode obrigar o órgão de aplicação do direito a proceder a uma ponderação, a fim de atingir uma solução materialmente justa e constitucionalmente adequada (cfr. artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa). « A transformação de um crime público em semi-público tem relevância ao nível das condições de procedibilidade do crime. A alteração legislativa reflecte a intenção do legislador de, sem querer descriminalizar a conduta, condicionar o direito de punir do Estado à manifestação de vontade do ofendido, por entender que os interesses em jogo são de cariz fundamentalmente privado (sejam eles pessoais ou patrimoniais). « [...] « Não estando em causa, na "transformação" de um crime público em semi-público, a descriminalização da conduta, mas tão só uma "desvalorização" do bem jurídico – no sentido de abdicar do exercício público da acção penal –, torna-se evidente a necessidade de chegar a uma solução que permita equilibrar o interesse do arguido em ver-lhe aplicada a lei mais favorável (artigo 29.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa), e o interesse do ofendido em ver-lhe reconhecido o direito de desencadear o procedimento criminal, que encontra apoio no princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da Constituição). « A solução parece ser a de, aceitando a aplicação retroactiva do regime do crime que de público passa a semi-público, possibilitar ao ofendido, que no regime anterior não manifestou a sua vontade de perseguir criminalmente o agente – porque tal não era exigido –, cumprir esse ónus, no prazo indicado na lei antiga, mas contado a partir do início de vigência da lei nova (neste sentido, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2ª edição, Coimbra, 1997, p. 245).» « [...] « Em síntese, o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável, consagrado no artigo 29º, nº 4, da Constituição, deve ficar salvaguardado, a fim de proteger o interesse do arguido, mas essa aplicação deve ser sujeita a uma ponderação cuidada dos vários interesses em jogo, o que justificaria a concessão de um prazo para que o ofendido manifestasse, se assim o desejasse, a sua intenção no sentido de desencadear o procedimento criminal.»
c) E, finalmente, há os que, aceitando a dupla natureza, material e processual, das normas relativas à queixa do ofendido e, em consequência, a aplicação retroactiva do regime penal, nesta vertente, separam a incidência desta realidade da questão da legitimidade do M.º P.º para a acção penal, que consta de regras próprias, de natureza processual penal formal, não necessariamente subsidiárias daqueloutras, relativas à queixa, a saber: o art.º 5.º do CPP, relativo à aplicação da lei processual penal no tempo, e os art.os 48.º e 49.º do CPP, relativos à legitimidade do MP para promover o processo penal e á legitimidade em procedimento dependente de queixa.
Em aplicação destas normas onde a lei não exija queixa do ofendido tem o MP legitimidade para promover o processo penal, não podendo ser deslegitimado retroactivamente por lei futura, por aplicação do art.º 5.º referido.
Sendo assim, a entrada em vigor de novas normas que mudam um tipo de crime de público em semi-público, não pode ter o sentido de exigir a existência de uma queixa que não era necessária à luz da lei vigente à data da prática dos factos – nem sendo possível reconstruir a realidade de modo a fazê-la existir onde a não tenha havido, dizemos nós –, mas sim o de a transformação abranger um crime cometido numa época anterior à existência da lei que a operou – assim tendo lugar a aplicação retroactiva da lei mais favorável – permitindo que o mesmo seja tido como semi-público, o que permite que lhe seja aplicável o instituto da desistência de queixa.
Esta é a posição sufragada pelos acórdãos da Relação de Lisboa de 1997/04/29, in CJ, ano XXII – 1997, tomo II, pág. 155 e do STJ de 2001/04/05, in CJ – STJ -, ano XXII – 1997, tomo II, pág. 176
É o seguinte o sumário do primeiro dos acórdãos referidos: « I - O art. 49.° do CPP é uma lei processual formal, pelo que é de aplicação imediata. sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (art. 5.° n.° 1 do CPP). « « II — Tendo o procedimento criminal sido validamente exercido pelo M.P., na vigência da lei anterior, o facto de a lei nova ter determinado a qualificação do crime como semi-público não afecta a validade da acusação deduzida, nem implica a perda de legitimidade do M.P. « III — As normas referentes à desistência da queixa são de natureza processual penal material, pelo que os problemas de sucessão devem ser resolvidos de acordo com o princípio do regime mais favorável (art. 2.º, n.º 4, do CP). « IV — Se, após ter sido exercida a acção penal por crime público, uma nova lei o converte em semi-público, é de considerar relevante a desistência de queixa.»
Respigamos, da fundamentação deste acórdão, os seguintes trechos, por nós tidos como mais impressivos: « As questões que o presente recurso suscita são as de saber se, no contexto de um processo iniciado por uma infracção de natureza pública, que lei nova converte em semi-pública, já depois de o M.P. ter deduzido acusação, a lei nova se repercute na legitimidade do M.P. para promover o processo e se, não perdendo o M.P. tal legitimidade, pode ser dada relevância a uma desistência de queixa. « Estas questões remetem-nos para a abordagem, necessariamente sumária, da problemática da sucessão de leis processuais penais (na qual se seguirá Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990). « [..] « [...] no âmbito do direito processual penal devem distinguir-se as normas de conteúdo material - as que condicionam a responsabilização penal ou que contendem com os direitos fundamentais do arguido - e as normas exclusivamente processuais ou formais - as que estabelecem as penalidades do "procedimento criminal" -, em suma, fazer a distinção entre normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais, para extrair a consequência de que os princípios constitucionais da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável e da imposição da lei penal favorável se aplicam às normas processuais penais materiais. « "Contra a perspectiva tradicional, e, ainda maioritária - que imputava e imputa, indiscriminadamente, às normas vulgarmente integradas no direito processual penal, uma exclusiva natureza jurídica processual - contra a sua viciada metodologia formalístico-conceitualístico-dedutiva - que, acriteriosa e voluntaristicamente, extraia daquela superfície superficial e arbitrária qualificação processual a exigência da aplicação imediata, menosprezando a função de garantia política do cidadão contra o exercício arbitrário e, eventualmente, persecutório do ius puniendi estadual e a razão político-criminal da indispensabilidade e da máxima restrição possível da pena - está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material - que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais penais formais - e uma hermeneutica teleológico-material cujos cânones - conferindo o devido primado às (investigações das) verdadeiras rationes jurídico-política e político-criminal do princípio da aplicação de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável"- cf. ob. e autor citados, 219. « Os institutos da queixa e da acusação particular, sendo inequivocamente, condições de punibilidade, constituem pressupostos processuais mas nem por isso têm natureza exclusivamente processual (formal). "Na verdade, sendo condições (positivas) do procedimento criminal (pressupostos processuais), do mesmo modo condicionam a responsabilidade penal. « Não há qualquer fundamento para considerar estas figuras como exclusivamente processuais" -cfr. ob. e autor citados, 242. « Nos institutos da queixa e da acusação particular há que distinguir as normas exclusivamente processuais, de aplicação imediata, de acordo com o princípio da aplicação imediata, contido no art. 5.º do CPP, das normas processuais penais materiais, que se regem pelos princípios da irretroactividade desfavorável e da retroactividade favorável (arts. 2.º n.º.4 e 3.º do CP). « "As primeiras pertencem, sem preocupação exaustiva de pormenor, as normas dos arts. 49.º a 52.º do CPP; às segundas pertencem, inequivocamente, as normas constantes dos arts. 111.º a 116.º do CP" - ob. e autor cits. 244. « [...] « A lei que actualmente exige queixa não pode ser considerada no processo em curso, em termos de afectar a legitimdiade do M.P. para o exercício da acção penal quando entrou em vigor depois de o M.P. já ter exercido a acção penal. Quando deduziu a acusação o M.P. tinha legitimidade para, sem prévia queixa do ofendido, promover o processo penal. Como tal, com a entrada em vigor da lei nova, o M.P. não perde a legitimidade, já que o art. 5º nº.1 do CPP ressalva a validade dos actos realizados na vigência da lei anterior. « Nenhuma nova lei processual pode afectar a validade dos actos processuais validamente praticados segundo a lei da época em que o foram. A acusação do M.P., tendo sido validamente deduzida, validamente tem de subsistir sejam quais forem as leis processuais supervenientes. « O M.P. só deixaria de ter legitimidade para o exercício da acção penal se a lei nova tivesse entrado em vigor antes de ser promovido o processo. Neste caso, o exercício de acção penal passaria a depender de queixa, com aplicação imediata da lei nova, mas encontrando soluções que, tendo em conta as especialidades da queixa, contemplem a posição pessoal do ofendido. « Daí que o autor citado (ob. cit. 245), tratando o problema do termo a quo da contagem do prazo para exercer o direito de queixa, quando a lei nova, que converte o crime de público em semi-público, entrar em vigor num momento em que já tenha decorrido o prazo para apresentar queixa e o M.P. ainda não tenha promovido o processo penal, apresente a solução de contar o prazo a partir do momento em que entre em vigor a lei nova (no caso de o titular do direito já conhecer o facto e os seus autores). « As normas relativas à desistência de queixa - que não contendem com a legitimidade do M.P. para o exercício da acção penal - são de natureza processual penal material, como vimos. « Colocando-se, neste âmbito, um problema de sucessão de leis (não admitir a lei antiga desistência de queixa quan-do a lei nova a admite), tem de ser resolvido em conformidade com o princípio da retroactividade da lei favorável, nos termos do art. 5.º n.º 4 do CP. « Como tal, se, exercida a acção penal por um crime público, a lei nova o converte em semi-público, é de consi-derar relevante e válida a desistência de queixa [...]»
E no Acórdão do STJ de 2001/04/05, cujo sumário publicado é: «Se, quando entra em vigor uma lei que converte um crime de público em semi-público ou particular o procedimento criminal já foi iniciado, não é necessária a queixa do ofendido, mas pode este extinguir o processo, desistindo», consta, na fundamentação, a seguinte conclusão: «Se, quando entra em vigor uma lei que converte um crime de público em semi-público ou particular, ainda não se iniciou o procedimento criminal, o início deste passa a ficar dependente de apresentação de queixa; mas se, quando entre em vigor a referida lei, o procedimento criminal já foi iniciado não é necessária a queixa (pois o que já se iniciou iniciado está; o que já se produziu produzido está), mas pode o ofendido extinguir o processo, desistindo do (impedindo o) prosseguimento da acção penal.
Américo Taipa de Carvalho “Sucessão de Leis Penais”, 2.ª ed. revista, Coimbra Editora 1997, págs. 301-303».
Como se vê, neste acórdão enunciou-se, relativamente ao tema um verdadeiro brocardo jurídico: «o que já se iniciou iniciado está; o que já se produziu produzido está ».
Como vimos, desta sumária passagem pelas posições em presença, temos que as duas finais reclamam, por si, a doutrina de Taipa de Carvalho, que diga-se, não foi enunciada com o específico fim de tratar o tema em causa, mas, muito mais, a questão da aplicação retroactiva da norma penal descriminalizadora, face ao caso julgado e na qual, a questão que nos ocupa começou por apenas ocupar, na obra, uma referência pouco menos do que marginal.
Porém, apenas a última das posições referidas acata a teoria do Ilustre Professor na sua leitura completa, pois a outra, parte da distinção entre normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais (ou processuais tout court), para, logo divergindo da doutrina que diz sustentá-la, enunciar as suas próprias conclusões, quanto à aplicação retroactiva das normas processuais penais materiais.
É que em nenhum lugar Taipa de Carvalho aceita que a legitimidade do MP quanto aos processos iniciados na vigência da norma que classifica certo crime como público possa ser posta em causa pela norma, posterior, que lhe altera a natureza para crime particular. Pelo contrário do que escreveu a este respeito conclui-se – por leitura directa – que o autor entende que, nesses casos o processo não necessita da queixa para a sua regularidade formal, tudo se passando, do ponto de vista material, como se aquela existisse para efeito de desistência, dada a, agora, natureza semi-pública do crime.
E note-se que, sendo a queixa e a desistência acções com um conteúdo concreto, a sua designações semânticas poderiam variar. Assim, como à queixa se chama, também, denúncia ou participação, à desistência de queixa poder-se-ia chamar, sem alteração sensível do significado, “desistência do procedimento criminal”. Isto lembramos, em antecipação do argumento, que poderia ser usado em contrário do que afirmamos, de que não pode haver desistência de uma queixa que não foi feita. Na verdade, na, assim chamada, desistência de queixa, do que verdadeiramente se desiste não é da queixa – que é passado irrepetível – mas sim da pretensão a ver o crime penalmente sancionado.
Ilustrando o que acima dissemos, podemos ler, na edição de 1990 da Sucessão de Leis Penais (() Cfr. Américo A. Taipa de Carvalho, Sucessão De Leis Penais, Coimbra Editora, Limitada, 1990, págs. 242 e ss.): « Exemplo de uma decisão acertada: Ac. RP, de 2.5.84 – Se, face ao CP 1886, o procedimento criminal pela infracção constante da pro-núncia se não achava dependente de queixa, e esta é exigida pelo novo C. Penal, então a incriminação por este último diploma favorece o arguido. « Em tal caso, e tendo o arguido sido pronunciado, em alternativa, pela lei antiga e pela lei actual, é de considerar relevante o perdão, entretanto concedido pelo ofendido e de arquivar o processo, sem necessidade de julgamento». « Não tem, pois, fundamento a posição doutrinal que classifica a queixa e a acusação particular como figuras de natureza exclusivamente processual partindo daqui para a afirmação da aplicação imediata da lei nova.» (pág. 243 )
E em nota ao ponto transcrito, acrescenta: « E que não se venha, formalisticamente, objectar a esta doutrina correcta, jurídico-constitucional e político-criminalmente, dizendo: se pela L.A. o crime era público, e o processo já se iniciou antes de entrar em vigor a L.N. — que passou a exigir a queixa —, então não pode haver desistência da queixa («perdão»), pois que não se pode desistir de uma coisa que se não fez: a apresentação da queixa. — É que não se fez nem se podia fazer, uma vez que, antes, o crime era público.»
O exemplo dado implica que o autor aceita a regularidade dos pressupostos processuais, com relação ao momento da desistência da queixa, apesar de tal queixa não ter sido formalmente apresentada.
Mas há mais e mais explícito: « Em primeiro lugar, diga-se que há que distinguir, nos institutos da queixa e da acusação particular, as normas exclusivamente processuais (princípio da aplicação imediata — CPP, art. 5.0) das normas processuais penais materiais (irretroactividade desfavorável, retroactividade favorá-vel, — CP, arts. 2.º-4. e 3.º). Às primeiras pertencem, sem preocupação exaustiva de pormenor, as normas dos arts. 49.º a 52.º do CPP; às segundas pertencem, inequivocamente, as normas constantes dos arts. 111.º a 116.º do CP.» (pág. 244)
E, finalmente: « Em terceiro lugar, a L.N. favorável ao infractor ou ao já arguido, é aplicável retroactivamente. Exemplos: L.A. — crime público, L.N. — crime semi-público; L.A. — impossibilidade de desistência da queixa, L.N. — pos-sibilidade de desistência, etc. « Surge, porém, um problema quanto ao termo a quo da contagem do prazo para exercer o direito de queixa (ou de acusação particular), quando a L.N., que converte o crime de público em semi-público, entrar em vigor num momento em que já tenha decorrido o prazo para apresentar queixa (cf. CP, 112.0-1) e o Ministério Público ainda não tenha promovido o pro-cesso penal. Problema idêntico surge, quando a L.N. que encurta o prazo para exercer o direito de queixa, entre em vigor num momento em que o novo prazo— que não o antigo— já correu. « Nestes casos — e só nestes — é preciso ter em conta as especialidades da queixa e da acusação particular, antes de apresentar a solução. « Assim, é necessário ter em conta que, enquanto a ratio da prescrição é exclusivamente político-criminal (desnecessidade da pena, sob os aspectos da prevenção geral e especial) (456), já, como vimos, na queixa e na acusação particular, confluem razões (públicas) político-criminais e razões pessoais do ofendido. Há, por outro lado, que ter em conta o «principio da adesão» (CPP, 71.º e ss.), o que se pode traduzir num interesse, numa expectativa legítima do ofendido-lesado. « Daqui resulta que, ressalvado o princípio da aplicação retroactiva da lei nova favorável ao infractor, seja razoável consagrar uma solução que também contemple a posição pessoal do ofendido, posição que o legislador também teve em atenção ao estabelecer a exigência da queixa. « Neste sentido, poderá apresentar-se a seguinte proposta: quanto ao aspecto do termo a quo da contagem do prazo — na hipótese de a L.N. converter o crime de público em semi-público —, este, no caso de o titular do direito já conhecer o facto e os seus autores, contar-se-á a partir do momento em que entrou em vigor a L.N. « [...] « Quanto à hipótese em que a L.N. encurta o prazo, poderá propor-se a solução seguinte: aplicar-se-á a L.N., se o tempo que ainda falta decorrer para preencher o prazo da L.A. for superior ao prazo da L.N.; caso contrário, continuará a aplicar-se a L.A.» (pág. 245).
Como claramente resulta também, do trecho transcrito, o Autor não coloca qualquer questão à subsistência do processo já instaurado à data da entrada em vigor da lei nova e apenas para o caso de esta entrar em vigor após o decurso do prazo para a apresentação da queixa ter decorrido e o processo penal não se ter ainda iniciado, formula, com vista à salvaguarda do direito das vítimas (() Estamos, portanto, nos antípodas dos valores que se querem salvaguardar com a aplicação retroactiva da lei processual penal material mais favorável. ) – que não dos arguidos – as propostas – que configurarão, dizemos nós, soluções a atingir por via de interpretação da lei ou, então, de jure condendo – de contagem do prazo a quo para presentação da queixa.
Porém se, nesta altura, hesitações houvesse quanto ao alcance da teoria de Taipa de Carvalho, relativamente à questão que nos ocupa, o devir encarregar-se-ia de as dissipar.
Na edição da obra que referimos, a questão era tratada, num ponto 10., sem autonomia temática, inserido num contexto de exemplificação do número III (()Intitulado «A Sujeição das Normas Processuais Penais Materiais ao Princípio Constitucional da Aplicação da Lei Penal Favorável: proibição da retroactividade desfavorável e imposição da retroactividade favorável (CRP, Arts. 18.º, N.os 2 e 3, 29.º, N.º 4 – 2.ª Parte, 282.º, N.º 3 – 2.ª Parte; CP, Art. 2.º, N.º 4)».), do 1.º Capítulo (() Intitulado «A Aplicação do Princípio Da Lei Penal Favorável à Sucessão de Leis Penais Materiais (Jurisdicionais, Processuais e de Execução da Pena)». ), da 2.ª Parte (()Intitulada «A Sucessão de Leis Processuais Penais Materiais E O Princípio Da Aplicação Da Lei Penal Favorável»
) da obra.
Em Dezembro de 1997, deu ao prelo a 2.ª Edição revista do mesmo livro. A data não é indiferente, porquanto no ano de 1996 e durante o ano de 1997 a jurisprudência tinha tratado o tema de forma controversa e a teoria da aplicação retroactiva das normas processuais penais favoráveis fazia carreira, ainda que com solavancos na sua interpretação.
Já vimos como o autor era atento à jurisprudência e a dimensão de formação dos conteúdos dogmáticos da decisão que dava à sua intervenção teorética.
Pois bem, neste contexto, na obra revista, na 2.ª parte da obra, o autor autonomizou um 3.º Capítulo, subordinado ao título «Aplicação Do Princípio Da Lei Penal Favorável À Sucessão De Leis Sobre A Queixa E A Acusação Particular». Neste, no ponto IV, sob o título «Distinção entre Direito de Apresentação da Queixa e Direito de Desistência da Queixa; Condição de Procedibilidade; Causa de Extinção do Processo», pode ler-se, além do mais com interesse, o seguinte (() Cfr. Américo A. Taipa de Carvalho, Sucessão De Leis Penais, 2.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 1997, págs. 242 e ss.): « Há, normalmente, uma implicação biunívoca entre crime semi-público (ou particular) com a consequente exigência de queixa e a possibilidade (direito) de desistência da queixa: se o crime é semi-público (ou particular), o início do procedimento criminal depende da queixa; e, uma vez apresentada a queixa, pode o res-pectivo titular desistir da queixa, extinguindo, deste modo, o pro-cesso penal. A queixa é, portanto, uma condição de procedibilidade, isto é, uma conditio sine qua non do (início do) processo, esgo-tando-se os seus efeitos jurídicos (5«(505) Cf. supra, 3. 1v. 1.° cap. desta 2." Parte.» 05) na criação do pressuposto da promoção da acção penal pelo Ministério Público; a desistência da queixa é, diferentemente, uma causa de extinção do processo penal ("desencadeado" pela apresentação da queixa). « Não sendo, portanto, a queixa uma condição de prosseguibili-dade (5«(506) Condição de prosseguibilidade é a dedução da acusação particular, no caso dos crimes particulares (CPP, art. 285.º, n.º 1). Cf. FIGUEIREDO DIAS (n. 496), 666.»
06) mas sim e apenas de procedibilidade, então, uma vez ini-ciado o processo por iniciativa do Ministério Público, num momento em que estava em vigor uma lei (L.A.) que considerava o crime res-pectivo como público, deixa de haver lugar e necessidade para a apresentação de uma queixa cujos (possíveis) efeitos jurídicos já se produziram, quando entra em vigor uma lei (L.N.) que passa a con-siderar o respectivo crime como semi-público, isto é, a fazer depen-der o início do procedimento criminal da queixa. « Disto não se pode concluir que, assim sendo, há como que uma quebra ou excepção do princípio da aplicação retroactiva da lei nova favorável. E que, de facto, não há qualquer desvio deste princípio. Pois, após a entrada em vigor da L.N. que passa o crime de público a semi-público, crime cujo processo já tenha sido iniciado, ex officio, pelo MP, pode o ofendido (aquele que passar a ter o direito de queixa) pôr termo ao processo, extinguindo-o pelo exercício do direito de desistência. Esta "desistência da queixa", que é verdadeiramente um «perdão da parte» (na designação do nosso direito anterior ao CP 1982) e que não pode, por força da entrada em vigor da L.N., ser negada ao ofendido (5«(507) Cf. nota 500.»07), faz com que a L.N. seja mais favorável ao infractor e, consequentemente, torna-o possível de ser beneficiado por ela, no caso de o ofendido decidir pôr termo ao processo. « Conclusão: se, quando entra em vigor uma lei que converte um crime de público em semi-público (ou particular), ainda não se ini-ciou o procedimento criminal, o início deste passa a ficar depen-dente da apresentação da queixa; mas se, quando entra em vigor a referida lei, o procedimento criminal já foi iniciado, não é neces-sária a queixa (pois, o que já se iniciou, iniciado está; o que já se pro-duziu, produzido está), mas pode o ofendido extinguir o processo, desistindo do (impedindo o) prosseguimento da acção penal. No caso de a lei entrar em vigor depois da «publicação da sentença da 1." instância» (508), a «desistência» é possível até ao trânsito em iulgado.»
Posição semelhante veio o mesmo autor a tomar relativamente à questão de o DL n.ª 316/97, de 19 de Novembro passar a exigir a queixa do ofendido para a procedibilidade penal pelo crime de emissão de cheque sem provisão, relativamente aos cheques de valor elevado ou consideravelment4e elevado, ao contrário do que sucedia com a lei anterior (() Cfr. Américo A. Taipa de Carvalho, Crime De Emissão De Cheque Sem Provisão, Coimbra Editora, 1998, págs. 54 e ss.
).
Esta é a posição que foi adoptada na douta sentença recorrida e é a que nós também sustentamos.
Sem prejuízo da sedução que exerce a teoria da total equivalência da lei processual penal e da lei penal, para efeito de aplicação retroactiva da lei penal adjectiva favorável ao arguido, entendemos que a mesma não tem suficiente apoio na lei ordinária e força a interpretação da lei constitucional em termos de desproteger a vítima e que não são os exigidos pela teleologia da arquitectura constitucional. A imposição constitucional da proibição da aplicação da lei penal desfavorável e da aplicação da lei penal favorável, visa, antes do mais, garantir a igualdade, pela exclusão da discriminação negativa, na aplicação do direito. E o efeito que, no caso, se alcançaria englobando – a nosso ver, forçadamente – as normas adjectivas de legitimidade de promoção criminal do MP na natureza processual penal material do instituto da queixa criminal, por forma a desqualificar in itinere um processo legalmente intentado chegam ao resultado oposto: a discriminação positiva do arguido, em sacrifício das legítimas expectativas da vítima e com lesão do princípio constitucional da confiança.
E, embora, o próprio relator do presente acórdão, tenha subscrito, em passado recente, uma decisão em que se seguia a posição de dar ao lesado a oportunidade de declarar que pretendia o procedimento criminal, não podemos deixar de considerar que soluções desse tipo – porque não apoiadas em norma expressa, nem numa indagação interpretativa consolidadamente conforme ao direito – dão origem a uma aplicação da lei susceptível de se orientar por um oportunismo casuístico de resultado incerto e, porventura, tendencialmente arbitrário.
Também, como doutamente é referido na sentença recorrida, o professor Germano Marques da Silva toma posição pela subsistência da acusação pública – e subsequentes trâmites – deduzida antes da passagem do crimes de público a semi--público (()Cfr. Germano Marquesa da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, I Introdução e Teoria da Lei Penal, 2.ª Edição Revista, Verbo, 2001, págs. 289 e ss.)
Diz este autor: « Situação especial é a que resulta de à data da alteração da lei que converte o crime de público em semipúblico ou particular, passando por isso o procedimento criminal a ficar dependente de queixa, o processo já estar instaurado. A orientação jurisprudencial é no sentido de que tendo a queixa natureza processual as respectivas normas são de aplicação imediata, mas não retroactiva, donde a consequên-cia de que o processo se mantém válido (3«(3) Ac. STJ, de 20.6.84, proc. n.º 37290, JP, p. 18: «A exigência actual da queixa do ofendido para a acção penal do crime imputado à ré é uma mera condição de procedibili-dade regida pela lei processual, e a que são aplicáveis, portanto, as normas que regulam a aplicação temporal das leis processuais e a sua lei reguladora é a do tempo do acto. A lei que actualmente exige a queixa do ofendido no crime da ré não tem que ser considerada no processo em curso. Nenhuma nova lei processual pode afectar a validade dos actos processuais validamente praticados segundo a lei da época em que o foram. O que significa que a acusação do M.P., tendo sido validamente deduzida, validamente tem de subsistir sejam quais forem as leis processuais supervenientes.») . « [...] a questão em análise não se resolve pela simples qualificação da queixa como condição de procedibili-dade e natureza processual, pois quando as leis processuais tenham efeitos substantivos é o regime destas leis que se deve aplicar, no que favorecer o arguido. « Importa, pelo menos, distinguir a fase em que o processo se en-contra. « Se o processo se encontra ainda na fase do inquérito, não nos parece que o Ministério Público possa deduzir acusação sem prévia queixa, pois que a legitimidade não é imutável, antes se há-de aferir a cada momento do processo, em relação a cada acto que se vá pra-ticando, em função das disposições legais aplicáveis. Assim, se o crime for particular à data da acusação não nos parece que o Minis-tério Público possa deduzir acusação sem prévia acusação do as-sistente só porque à data da queixa o crime era de natureza semipúbli-ca ou pública. Se o processo já se encontra na fase da instrução ou de julgamento, e o crime de público passou a ser semipúblico ou particu-lar, essa alteração já não tem efeitos no que respeita à validade da acusação, mas a nova natureza do crime tem implicações, nomeadamente no que respeita ao direito de extinção do procedimento pela via da desistência da queixa (melhor, de renúncia ao procedimento) (1«(1) Se o crime era público e passou a semipúblico, encontrando-se ainda na fase do inquérito, também o Ministério Público mantém legitimidade, podendo deduzir acusação independentemente de queixa.»
). »
Por todo o exposto, o recurso deve improceder.
III
Termos em que,
Acordamos em negar provimento ao recurso e conformar a decisão recorrida.
Condena-se cada um dos recorrente no pagamento de 3 UC de taxa de justiça