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SIMULAÇÃO
NEGÓCIO INDIRECTO
Sumário
I – Se as partes se não quiseram vincular ao regime jurídico da facti species em que acordaram (ao menos só em aparência), que assim não passa de um negócio fingido, no intuito de enganar terceiros, estamos perante simulação contratual. II –Mas se o que as partes puseram em causa foram antes os motivos ou fins típicos da facti species contratual, e pretendendo constituir um usufruto, através de um contrato oneroso, optaram consciente e voluntariamente por unir duas prestações contratuais recíprocas típicas, uma, da doação, a outra, do comodato, no objectivo de não suportar os custos fiscais da constituição do usufruto, o que se verifica antes é a figura do negotium mixtum cum donationem, verdadeiro “negócio indirecto” III – Se corresponde à vontade das partes sujeitarem-se à disciplina jurídica do negócio que elegeram, obtendo empiricamente os efeitos jurídicos que pretendem, ainda que por via diversa da via típica, então naturalmente essa disciplina típica do contrato efectivamente celebrado deverá continuar a prevalecer, sob pena de se trair quer a lógica jurídica, quer a vontade das partes.
Texto Integral
Acordão no Tribunal da Relação de Guimarães
Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº489/03.6TBBCL, do 2º Juízo Cível de Barcelos. Autor – "A". Réus – "B" e mulher "C".
Pedido
Que os Réus sejam condenados a restituir ao Autor:
a) a importância de € 40 000, relativa ao empréstimo;
b) a importância de € 71 627,38, relativa a juros vencidos;
c) juros vincendos até integral pagamento da dívida. Pedido Reconvencional
Que seja declarado que o contrato de comodato junto com a Contestação deve converter-se em contrato promessa de usufruto, nos termos do artº 293º C.Civ. Pedido Reconvencional Subsidiário
Que o Autor seja condenado a, por via do abuso de direito ou por via da nulidade do negócio, a restituir aos RR. a quantia de € 60 853,34 (Esc. 12.200.000$00). Tese do Autor
Desde 1985 até 1987, emprestou aos RR. diversas quantias em dinheiro, através de transferência bancária.
Tal contrato é nulo por falta de forma.
Os RR. encontram-se em mora desde Janeiro de 1988, data a partir da qual a referida importância (o respectivo equivalente em escudos) lhes foi exigida pelo Autor. Tese dos Réus
Autor e RR. acordaram em construir, num terreno que os segundos possuíam, duas habitações geminadas , reservando o Autor para si o usufruto de uma delas. Para tanto, o Autor entregou aos RR. a quantia que agora peticiona na acção.
As habitações foram concluídas e inscritas na matriz em 1987.
O Autor permaneceu mais de um mês na casa que lhe cabia pelo acordo, no ano de 1990.
Quando os RR. propuseram ao Autor a outorga da escritura para constituição do usufruto, o Autor contrapropôs-lhes antes que outorgassem um contrato de comodato, por documento particular, a fim de não terem mais despesas. Por tal contrato, os RR. cederam ao Autor o prédio referido, a título vitalício, caducando o comodato com a morte do Autor.
O referido contrato de comodato deverá ser convertido em contrato promessa de usufruto, por, para tal, conter os requisitos essenciais de forma e substância e ser esse o fim prosseguido pelas partes.
A devolução das quantias, conforme peticionado, configura manifesto abuso de direito, tanto mais que a habitação está, há mais de dezasseis anos, à disposição do Autor.
A construção da habitação custou aos RR. cerca de 10 mil contos; em mobiliário despenderam mais 2 mil contos.
As despesas de manutenção do imóvel - € 3 491,58 (PTE 700.000$00) - têm vindo a ser suportadas pelos RR.
O valor de que os RR. se viram até à data privados, por força de terem disponibilizado a habitação ao Autor, desde a data da construção, ascenderá hoje à quantia total de € 47 385,80 (Esc. 9.500.000$00). Sentença
Na sentença proferida em 1ª instância, na procedência da excepção material de abuso de direito e na improcedência da invocada conversão do contrato, foram a acção e a reconvenção julgadas improcedentes, por não provadas.
Conclusões do Recurso de Apelação apresentado pelo Autor
1 – Em face do circunstancialismo fáctico, conclui o Mmº Juiz “a quo” que A. e RR. sempre pretenderam reservar para o Autor o usufruto vitalício do prédio e que os montantes entregues pelo Autor aos RR. foram como contrapartida do usufruto vitalício do prédio destes últimos.
2 - Tendo, porém, o Meritíssimo Juiz a quo decidido converter o contrato de mútuo em contrato de usufruto. Que mesmo não tendo os RR. cumprido a sua parte, dado que o prédio esteve sempre na posse e no uso dos RR., porque sempre o mesmo foi habitado por estes ou seus familiares.
3 - O A. entregou aos RR., as importâncias de 8.000.000$00, o equivalente a € 40.000,00, sem que estes entregassem ou proporcionassem àquele qualquer uso ou gozo do prédio, propriedade dos RR.
4 - Sempre concluindo e bem o Meritíssimo Juiz a quo, não poder haver qualquer conversão - optando pela nulidade do negócio - e assim sendo, pela restituição de tudo quanto havia sido prestado.
5 - Sendo certo que, no caso em apreço, foi o A. que entregou aos RR., a quantia de € 40.000,00, e por isso deve essa importância ser restituída, acrescida dos respectivos juros ao A.
6 - Porém, o Meritíssimo Juiz a quo, vem depois na, aliás, douta sentença recorrida referir o abuso de direito do A. ao pedir a final as importâncias acrescidas dos respectivos juros que havia entregue aos RR.
7 - Referindo a expectativa criada pelos RR. de que o Autor já não exerceria o seu direito de pedir a restituição daquelas importâncias.
8 - Ora nunca poderiam os RR. criar qualquer expectativa, porque bem sabiam do recebimento de tal importância e de que nunca tinham feito qualquer contraprestação ao A., que era proporcionar-lhe o usufruto do prédio.
9 - Como também muito mal andou o Meritíssimo Juiz a quo, ao referir as desvantagens dos RR. com a restituição daquelas importâncias de € 40.000,00 ao A., pois, ao não julgar a acção procedente, com a consequente não restituição daquela importância ao A., criou para este uma enorme desvantagem e para aqueles uma enorme vantagem, quando, aliás, fazer justiça, sempre seria como de direito, decidir pela procedência da acção e pela restituição pelos RR. daquelas importâncias ao Autor, acrescido, claro está, de juros à taxa legal.
Os Apelados pugnam pela manutenção do julgado.
Factos Apurados em 1ª Instância 1 - Entre o Autor e os Réus foi acordado que estes construiriam, num terreno que possuíam, duas habitações geminadas, uma das quais se destinava a ser ocupada pelo Autor. 2 - As habitações ficaram concluídas no ano de 1987. 3 - Autor e Réus assinaram um documento com data de 20 de Março de 1990, intitulado “Contrato de Comodato”, no qual surgem identificados, respectivamente, como segundo e primeiros outorgantes, com o seguinte teor:
“1º
Os primeiros outorgantes são donos e legítimos possuidores e proprietários do seguinte prédio: CASA DE R/C, ANDAR E LOGRADOURO, com a superfície coberta de 180 m2 e logradouro com 2.470 m2, sita no Lugar do ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrita na matriz urbana respectiva sob o art. ..., a confrontar de Norte com João L, do Sul com Horácio L, de Nascente com Ribeiro e do Poente com Estrada Nacional, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o nº...-....
2º
Nessa qualidade e através do presente contrato, os 1ºsoutorgantes, a título meramente gratuito e precário, cedem ao 2º outorgante o prédio identificado na cláusula anterior, para sua habitação.
3º
O contrato tem o seu início nesta data e vigorará vitaliciamente até à morte do 2º outorgante - comodatário, altura em que o prédio ficará restituído aos 1ºs outorgantes, aliás, fica o contrato caducado nos termos do preceituado no art. 1141, do Código Civil.
4º
O 2º outorgante - comodatário é obrigado a manter e conservar o prédio no estado em que o recebeu e fazer dele uma prudente e normal utilização.
5º
Este é efectuado nos termos do preceituado nos arts. 1129 e seguintes do Código Civil.
4 - O A. entregou aos RR. os seguintes montantes:
- Em 10.10.85, o Autor entregou aos Réus 1.193.450$00;
- Em 12.12.85, o Autor entregou aos Réus 334.550$00;
- Em 10.10.86, o Autor entregou aos Réus 2.008.000$00;
- No decurso do ano de 1986, o Autor entregou aos Réus diversas importâncias num total de 2.164.000$00;
- Em 17.08.87, o Autor entregou aos Réus 2.300.000$00;
Sendo que, todos estes montantes foram entregues como contrapartida do usufruto vitalício do prédio propriedade destes últimos.
5 - O A., em data não concretamente determinada, mas após 1990 solicitou aos RR. a restituição do dinheiro que lhes entregou.
6 - Nos termos do acordo a que se alude em 3), o usufruto de uma das duas habitações seria reservado para o Autor, até à sua morte, mediante a entrega por este aos Réus da quantia de 39.903,83 Euros (8.000.000$00).
7 - Em conformidade com o acordo a que se alude em 3), a habitação destinada ao Autor dispunha de todos os utensílios necessários para a utilização da cozinha (fogão, frigorífico, armários, etc.) e de uma mobília de quarto completa.
8 - No ano de 1990 o Autor veio a Portugal com o objectivo de tratar da formalização da reserva do usufruto de uma das habitações até à sua morte e, apenas não foi formalizada a escritura atinente a esse negócio por o mesmo não ter querido suportar os respectivos custos.
9 - Com o documento a que se alude em 3), Autor e Réus pretendiam reservar para o Autor o usufruto vitalício do prédio aí referenciado.
10 - As quantias a que se alude em 4) foram entregues aos Réus como contrapartida do usufruto vitalício do prédio concedido ao Autor.
11 - Na construção da habitação os RR. despenderam montante não concretamente determinado.
12 - Em mobiliário para a habitação os Réus despenderam montante não concretamente determinado.
13 - Desde a data em que a habitação ficou concluída os RR. mantiveram sempre o propósito de a disponibilizar ao A., caso nisso ele revelasse interesse.
14 - As despesas de manutenção do prédio relativas a água, luz, aluguer do contador e outras despesas de manutenção, foram sendo pagas pelos Réus, ascendendo a 3.491,58 Euros.
15 - O valor da renda, à data de 1987, para uma habitação do tipo da que se destinava ao Autor (tipo T3) era de cerca de 199,52 Euros, a que acrescem as actualizações legais.
16 - O Autor tinha conhecimento dos factos referidos em 11) a 15).
17 - Actualmente, as habitações a que se alude em 1) e 2) têm um valor patrimonial de aproximadamente 498.797,90 Euros.
Fundamentos
A única questão colocada pelo recurso dos autos consiste em saber se existiam fundamentos nos autos para julgar verificada a excepção material de abuso de direito ou se, como entende o Recorrente, face à nulidade do mútuo, não podendo este mútuo ser convertido noutro tipo de negócio, se deveria antes ter ordenado a devolução ao Autor da quantia mutuada, tal como peticionado.
Vejamos então.
I
À luz da factualidade demonstrada nos autos, o Mmº Juiz “a quo” entendeu verificada uma situação de simulação relativa (artº 241º C.Civ.): “o que A. e RR. pretenderam foi celebrar um contrato de constituição de usufruto de um imóvel a favor do primeiro e mediante o pagamento de um correspectivo preço, por parte dos segundos, e não um contrato de comodato, cedendo, de modo gratuito, o uso desse mesmo imóvel ao Autor para instalação da sua habitação, que, na realidade, não tiveram qualquer intenção de fazer”.
E quanto ao especial requisito da simulação, vê-o o Mmº Juiz “a quo” no facto de A. e RR. terem visado única e exclusivamente enganar e prejudicar o Estado, obstando a que este cobrasse os emolumentos e taxas que lhe eram devidas pela celebração do negócio jurídico (constituição de usufruto) que quiseram realizar”.
Do facto provado sob 8 decorre, aliás, que as partes acordaram no comodato em face da objecção do Autor de “não querer suportar quaisquer custos”.
Todavia, do exposto não decorre linearmente que as partes tenham tido o intuito de prejudicar o Estado – não quiseram pagar taxas e emolumentos (facto negativo demonstrado); porém, demonstrado não está o facto positivo anverso, qual seja o efectivo intuito de enganar o Estado, prejudicando-o, no concreto negócio de comodato realizado.
É certo que não existiu o “benefício” para o Estado que resultaria do pagamento das taxas devidas pela realização de escritura pública; todavia, não existiu o “prejuízo” ou o engano de terceiros (o Estado, na situação em concreto) que o normativo demanda.
Na realidade, o concreto efeito prático da constituição do usufruto (artº 1439º C.Civ.) lograram-no as partes ao acordarem na constituição de um comodato vitalício – artºs 1129º e 1137º nº1 C.Civ., contrato este cuja forma é livre (artº 219º C.Civ.), ao contrário do usufruto (artº 80º nº1 C.Not.).
Nem sequer poderá dizer-se que o comodatário não pode defender o seu direito por meios tão eficazes como o usufrutuário (artºs 1311º e 1315º C.Civ.), designadamente em face da eficácia puramente obrigacional do comodato, já que os direitos decorrentes de um eventual incumprimento contratual por parte do comodante conferem a este o direito à correspondente indemnização ou a exigir judicialmente o cumprimento do contrato (artº 817º 1ª parte C.Civ.).
Parece-nos assim que não se pode afirmar que as partes se não quiseram vincular ao regime jurídico da facti species em que acordaram (ao menos só em aparência), que assim não passaria de um negócio fingido.
O que as partes puseram em causa foram antes os motivos ou fins típicos da facti species contratual, comparando-se perfeitamente a hipótese em presença com o exemplo clássico de negócio indirecto traduzido na chamada “venda a preço vil” – negotium mixtum cum donationem (utAc.R.L. 12/7/88Col.IV-107).
A definição de “negócio indirecto” (pese embora não ter tido no nosso Código Civil o enfoque dogmático que merecia, facto que, por vezes, o faz passar despercebido) consta de M. de Andrade, Teoria Geral, II-179: “pode um negócio típico (venda, etc.) cujos efeitos são realmente queridos pelas partes ser concluído por um motivo ou por um escopo ulterior diverso dos que estão de acordo com a função característica (causa) desse tipo negocial e correspondente a outro negócio típico ou tipificável (doação, qualquer negócio de garantia creditória, etc.”
“O fim ulterior há-de ser indirecto em face do negócio adoptado, autónomo em face das respectivas consequências normais, mas derivar imediatamente da própria actuação do negócio”.
No negócio indirecto, o negócio – meio (aquele que é efectivamente realizado) não perde a tipicidade com a inserção nele de cláusulas aditadas pelas partes para o conduzir à funcionalidade económica do negócio – fim.
Desta forma, o negócio indirecto nada tem a ver com o negócio simulado, já que esse negócio indirecto corresponde efectivamente à vontade das partes.
Se corresponde à vontade das partes sujeitarem-se à disciplina jurídica do negócio que elegeram, obtendo empiricamente os efeitos jurídicos que pretendem, ainda que por via diversa da via típica, então naturalmente essa disciplina típica do contrato efectivamente celebrado deverá continuar a prevalecer, sob pena de se trair quer a lógica jurídica, quer a vontade das partes.
Consoante Orlando Carvalho, Bol. Fac. Direito, sup. X, pgs. 1 a 149, cit. in Ac.R.P. 5/6/97Col.II/208, só a configuração do negócio indirecto como fraude à lei poderia, provado o animus nocendi, conduzir à invalidade do acto.
II
O que se encontra em causa no processo é tão só uma “união de contratos”, uma pluralidade de contratos, mantendo cada negócio jurídico a sua autonomia, mas com uma finalidade económica comum, de tal sorte que os contratos se completam e as vicissitudes de um deles se hão de repercutir no outro (cf., com toda a doutrina portuguesa, G. Telles, Manual dos Contratos, §266 e S.T.J. 27/2/96Col.I/99).
De um lado, uma doação em dinheiro, efectuada pelo Autor, em benefício dos RR. – artºs 940º e 947º nº2 C.Civ.
De outro lado, a respectiva contrapartida, o comodato de um imóvel, efectuado a favor do Autor/doador.
Os dois contratos, que consubstanciam liberalidades recíprocas, unem-se porém nessa reciprocidade, não podendo, sem ela, existir.
Desta forma, não cabe falar nos autos em mútuo nulo por falta de forma (como era a tese do Autor), nem contrato inválido convertido em promessa de usufruto (tese dos Réus), nem, pese embora a justiça final idêntica, em abuso de direito no facto de fazer actuar os efeitos de uma simulação contratual, que, como vimos, não existe em concreto.
O que existiu, na verdade, foram dois contratos, unidos na chamada figura da “união de contratos” e que foram validamente celebrados, não estando em causa o respectivo incumprimento - não cabendo agora, assim, repristinar o statu quo ante.
O aforismo latino era preciso – pacta sunt servanda.
A moderna doutrina só o reformulou – “os contratos impõem-se por si” (Larenz).
Para resumir a fundamentação: I – Se as partes se não quiseram vincular ao regime jurídico da facti species em que acordaram (ao menos só em aparência), que assim não passa de um negócio fingido, no intuito de enganar terceiros, estamos perante simulação contratual. II –Mas se o que as partes puseram em causa foram antes os motivos ou fins típicos da facti species contratual, e pretendendo constituir um usufruto, através de um contrato oneroso, optaram consciente e voluntariamente por unir duas prestações contratuais recíprocas típicas, uma, da doação, a outra, do comodato, no objectivo de não suportar os custos fiscais da constituição do usufruto, o que se verifica antes é a figura do negotium mixtum cum donationem, verdadeiro “negócio indirecto” III – Se corresponde à vontade das partes sujeitarem-se à disciplina jurídica do negócio que elegeram, obtendo empiricamente os efeitos jurídicos que pretendem, ainda que por via diversa da via típica, então naturalmente essa disciplina típica do contrato efectivamente celebrado deverá continuar a prevalecer, sob pena de se trair quer a lógica jurídica, quer a vontade das partes.
Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Na integral improcedência do recurso, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.