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TÍTULO EXECUTIVO
Sumário
1 – O cheque, como título de crédito, só é título executivo se se verificarem os requisitos de exequibilidade enunciados no artigo 40 e 29 da Lei Uniforme Sobre Cheques. 2 – Estes requisitos, para serem eficazes, têm de constar do cheque, podendo a data da sua apresentação a pagamento ser deduzida da data de emissão e de recusa. 3 – A declaração de que a conta está encerrada tem o mesmo valor jurídico que a declaração de falta de provisão. 4 – O cheque, em que a relação jurídica cambiária está prescrita, só é título executivo desde que contenha a relação jurídica subjacente ou seja alegada na petição inicial executiva, salvaguardando os negócios formais, cuja forma é um elemento constitutivo da relação jurídica.
Texto Integral
Acordão do Tribunal da Relação de Guimarães
"A", morador na Estrada Nacional ..., Guimarães, requereu execução ordinária para pagamento de quantia certa contra "B", moradora no Lugar da ..., Santo Tirso, pedindo a sua citação e para pagamento da quantia de 21.448,31 €, acrescida dos juros vencidos no montante de 355, 4,0 €, a partir de 19 de Maio de 2003, e os vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que é portador de dois cheques, que lhe foram entregues pela executada a 17/04/94 e 14/04 /94, para garantia dum empréstimo, no montante global de 4.600.000$00, tendo sido acordado entre ambos que o portador poderia apor-lhes a data de emissão que entendesse, desde que posterior a 14/04/96. O exequente apôs-lhes as datas de 30/01/2003 e 3/03/2003, respectivamente, no cheque n.º 7... e 8..., sacados sobre o Banco ....
A executada deduziu Embargos de Executado, alegando a prescrição da acção executiva e a inexequibilidade dos títulos de crédito por falta de data de apresentação a pagamento.
No despacho saneador sentença o juiz julgou improcedente a prescrição e procedentes os embargos com fundamento na inexequibilidade dos cheques como títulos de crédito por falta da data de apresentação a pagamento e da declaração de recusa do pagamento e como documentos particulares porque está em causa um mútuo nulo por vício de forma.
Inconformado com o decidido, o embargado interpôs recurso de apelação, formulando conclusões.
Não houve contra alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Matéria de facto assente na decisão recorrida, que passamos a transcrever:
a) Nesta vara mista corre termos a execução para pagamento de quantia certa n.º 588/03.4TCGMR, em que figura como exequente "A" e como executado "B", a qual foi instaurada com base em dois cheques sacados pela executada/embargante e por ela subscritos, emitidos da conta n.º ... da agência de Santo Tirso do Banco ...: o cheque n.º 7..., com data de emissão de 30/01/2003, no montante de 2.300.000$00; e o cheque n.º 8..., com data de emissão de 3/03/2003, no montante de 2.000.000$00 (cfr. documentos juntos a fls. 5 do processo executivo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
b) Os referidos cheques foram devolvidos pelo Banco ... em 21/04/2003, por “conta encerrada”.
Das conclusões de recurso ressaltam as seguintes questões, a saber:
1 – Se a matéria fáctica alegada nos artigos 12 a 17 da contestação dos embargos é relevante para demonstrar a apresentação dos cheques a pagamento dentro do prazo de oito dias após a sua emissão.
2 – Se a falta de conhecimento destes factos, que são controvertidos, implica a revogação do despacho saneador sentença e a continuação do processo, para efeitos de organização da base instrutória, com inclusão desta matéria, para ser decidida em audiência de discussão e julgamento.
3 – Se a declaração constante no cheque de “ devolvido por conta encerrada” é equivalente a recusa de pagamento por “falta de fundos”.
4 – Se os cheques dados à execução são títulos executivos, como documentos particulares, mesmo na situação em que a relação jurídica subjacente foi alegada na petição inicial da execução e traduz um mútuo nulo por vício de forma.
Iremos decidir as questões suscitadas, sendo a 1ª e 2ª em conjunto, porque são interdependentes.
1 e 2 - Os factos integrantes dos artigos 12 a 17 da contestação aos embargos, são os seguintes:
12 - O embargado apresentou a pagamento os títulos em causa no banco sacado nas precisas datas do seu vencimento;
13 - Dirigiu-se por isso ao respectivo balcão, mas foi aí recusada qualquer solução para o caso, com a alegação de que o valor em causa estava em escudos quando, na data do depósito, já os pagamentos se efectuavam em euros;
14 – Como importava certificar a tentativa de cobrança, para posterior acção judicial contra a sacadora dos cheques, foi exigido ao funcionário em questão que certificasse por escrito que os cheques ali foram apresentados e que fora recusado o seu pagamento;
15 – Porém, foi recusada a passagem desse documento, recusa que mais tarde foi reiterada através de um outro funcionário.
16 – O gerente da agência também instado, informou - recusando-se a documentar a informação – que a conta estava há muito cancelada, que os cheques tinham sido extraviados e que o assunto seria resolvido pelo contencioso, que posteriormente daria notícias.
17 – Só posteriormente, após muitas insistências, o referido banco convocou o exequente para pôr nos títulos o que neles consta.
Esta matéria fáctica está relacionada com o comportamento do embargado e do banco sacado, sobre a apresentação dos cheques a pagamento. O embargado tentou apresentá-los ao banco para que fossem pagos, ou que lhes fosse aposta uma declaração de falta de provisão, com vista a uma futura acção judicial.
O certo é que estes factos são irrelevantes, para efeitos da prova da apresentação a pagamento. E isto porque estamos no domínio de títulos de crédito, mais concretamente de cheques, em que impera o princípio da literalidade. E, segundo este princípio, só é relevante o que constar do título, isto é, o que nele estiver escrito. Só o que nele constar é que produz efeitos jurídicos.
No caso não foi aposta qualquer data do momento da apresentação dos cheques a pagamento. E nem se pode deduzir que a apresentação foi feita no prazo de 8 dias, entre a data da sua emissão e a data da declaração de “ devolvido por conta encerrada”. Na verdade, o cheque, com o número 7..., tem como data de emissão 30 de Janeiro de 2003 e como data de devolução 21 de Abril de 2003. O outro cheque, com o número 8... foi datado, como emitido a 3 de Março de 2003 e devolvido a 21 de Abril de 2003.
O certo é que a apresentação do cheque a pagamento, no prazo de 8 dias, após a sua emissão, é um requisito de exequibilidade do cheque, ou condição da acção cambiária, como o impõe o artigo 40 da Lei Uniforme sobre cheques, conjugado com o artigo 29 do mesmo diploma. Só em casos excepcionais ( prescrição legal declarada por um outro Estado qualquer ou outro caso de força maior) é que o prazo poderá ser prorrogado – artigo 48 da referida lei. Porém, não estamos perante um caso de força maior, nem o Estado Português reservou a prorrogação do prazo. Na verdade, aquele concretiza-se com circunstâncias naturais que o homem não pode dominar. Estamos perante factos humanos, o que exclui de imediato, o caso de força maior. Daí que o embargado não possa beneficiar do prazo de prorrogação, que cessa quando cessar o caso de força maior, como se depreende da leitura de todo o normativo.
Assim sendo, para efeitos de prova da apresentação dos cheques a pagamento, no prazo de 8 dias, a matéria fáctica incorporada nos artigos 12 a 17 da contestação dos embargos é irrelevante. Esta só poderá ser feita por menção expressa nos títulos ou por dedução da data de emissão e de recusa ( conferir – Ac. STJ. 14/06/83, BMJ 328/598 e Ac. STJ de 4/05/99, CJ. ( STJ) 1999, Tomo II, pag. 82).
Daí que tenhamos de concluir que a matéria fáctica em discussão não tenha de integrar a base instrutória para efeitos de ser decidida em julgamento, pelo que o despacho saneador sentença não tem de ser revogado com este fundamento.
3 – A recusa de pagamento, segundo o artigo 40 da Lei Uniforme sobre cheques, terá de verificar-se por uma das seguintes formas:
a)– quer por um acto formal ( protesto;
b) – quer por uma declaração do sacado, datada e escrita sobre o cheque, com indicação do dia em que este for apresentado;
c) – quer por uma declaração datada duma câmara de compensação constatando que o cheque foi apresentado em tempo útil e não foi pago;
Com estes requisitos, pretendeu-se que o portador do cheque demonstrasse que, depois de o ter apresentado a pagamento, o banco sacado não o tivesse pago. Só depois desta confirmação, é que o portador do título poderia socorrer-se dos meios judiciais, para ser reembolsado do valor titulado no cheque. É que este traduz uma ordem de pagamento, que vigora durante um prazo de oito dias, entre a emissão até à apresentação a pagamento. Tal ordem é dirigida ao banco sacado, que terá de a cumprir, dentro deste prazo, pagando o cheque, ou apondo uma declaração que não o pode fazer, porque não tem fundos disponíveis, ou outra circunstância que o impeça de fazer. É que, dentro desse prazo, a ordem não pode sequer ser revogada pelo sacador, para tutelar a circulação do cheque que incorpora moeda. É como de dinheiro se tratasse.
No caso em apreço, foi aposta uma declaração de devolução do cheque, isto é, sem pagamento, porque a conta estava encerrada. O encerramento da conta traduz-se numa extinção do contrato de depósito celebrado entre o depositante e o banco depositário. A partir da extinção da conta, deixa de haver qualquer relação jurídica de obrigação de pagar qualquer cheque, por parte do banqueiro, sacado sobre a conta encerrada. Pois, se só era obrigado a pagar cheques emitidos sobre uma conta aberta, e com fundos disponíveis, por maioria de razão não tem que pagar quando a conta já não exista.
E a declaração de que a conta está encerrada tem o mesmo valor jurídico que a falta de provisão. Na verdade, o banqueiro não dispõe de fundos para pagar o cheque ou cheques apresentados a pagamento, pela simples razão de que o contrato de depósito bancário se extinguiu. Os cheques emitidos não poderão ser pagos, mas o titular deles terá de ter uma prova da causa do seu não pagamento. E esta, no caso em apreço, é a declaração de encerramento da conta, que se traduz numa falta de pagamento legítima por parte do banqueiro, oriunda da extinção duma relação jurídica contratual entre o emitente dos cheques e o banqueiro.
Porém, como não foi provada a data da apresentação dos cheques a pagamento, estes continuam a não possuírem os requisitos de exequibilidade exigidos pelo artigo 40 da Lei Uniforme sobre os cheques.
4 – Esta questão está relacionada com o valor do cheque como documento particular, com força executiva, nos termos do artigo 46 al. c) do CPC. A decisão recorrida teceu várias considerações sobre o assunto, explanando as várias correntes doutrinais e jurisprudenciais, acabando por adoptar a defendida por Lebre de Freitas, que vai no sentido de que o cheque, cuja relação jurídica cambiária está prescrita, é título executivo desde que contenha a relação jurídica subjacente ou seja está alegada na petição executiva, salvaguardando os negócios formais, cuja forma é um elemento constitutivo da relação jurídica, pelo que neste caso, não valeria como título executivo. E, neste sentido vai a jurisprudência dominante no STJ ( conferir entre outros – Ac. STJ. 4/05/99, CJ. (STJ) 1999, Tomo II, pag. 82), com a qual concordamos.
O embargado recorrente cita o Ac. RP. de 27/05/98, CJ. 1998, Tomo III, pag. 233, para fundamentar que, no caso de mútuo nulo, por vício de forma, o cheque que o titula tem força executiva, porque incorpora uma quantia que está em dívida e que é exigível por força do artigo 220, 285, 286, 289 e 497 do C.Civil.
Porém, o caso apresentado no acórdão citado refere-se a um cheque que vale como título de crédito e fundamenta um crime de emissão de cheque sem provisão. E, se fosse objecto de uma acção cível, fundamentaria uma acção executiva, porque continha os requisitos de exequibilidade, como título de crédito, nos termos do artigo 40 da Lei Uniforme sobre cheques. O facto de no acórdão se referir que o mútuo, mesmo nulo, incorpora uma dívida e como tal um prejuízo para o titular do cheque, mas para efeitos de integrar os elementos constitutivos do crime e não para fundamentar a exequibilidade do cheque, como documento particular.
Daí que, no caso dos autos, como o refere a decisão recorrida, os cheques em causa não são títulos executivos, porque a relação jurídica de mútuo, que os mesmos titulam, é nula por vício de forma.
Decisão
Pelo exposto, acordam os juizes da Relação em julgar improcedente a apelação, e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.