REPETIÇÃO DO INDEVIDO
Sumário

1. O trânsito em julgado da sentença que julgue procedente o pedido de impugnação de paternidade, maternidade ou perfilhação faz cessar a obrigação de alimentos já que, desta maneira, o carecido perde o status de filho relativamente ao outrora obrigado;
2. Todavia, fica naturalmente excluída a possibilidade de o impugnante pedir a restituição das quantias entregues ao menor (ao progenitor com guarda, para custear as despesas com aquele) pois que a sentença produz efeitos ex nunc.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:



A intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum e forma sumária, contra B, pedindo que o réu seja condenado a pagar ao autor a quantia de € 8.455,11 a título de reembolso de alimentos indevidamente prestados, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento.

A fundamentar este seu pedido alega, em síntese, que casou com a mãe do réu em 1968, casamento que foi dissolvido por divórcio em 1989 e o réu nasceu em 26 de Julho de 1970, constando do seu Assento de Nascimento que o autor é seu pai.
Acontece que na acção ordinária de impugnação de paternidade intentada pelo autor contra o réu e sua mãe, foi proferido acórdão que declarou estar afastada a presunção de paternidade em relação ao autor, ordenando o cancelamento do registo do qual consta que o autor é pai do réu.
Porém, desde que o réu nasceu até Abril de 1989 despendeu com ele, a título de alimentos, a quantia de 428.000$00, actualizada de acordo com as taxas anuais de inflação, montante que ascende a 1.695.098$00, ou, € 8.455,11.

Contestou o réu impugnando de forma genérica os factos alegados pelo autor.

Foi proferido despacho saneador-sentença que, conhecendo imediatamente do pedido, julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu o réu do pedido.

Inconformado com esta sentença recorreu o autor que alegou e concluiu do modo seguinte:

1. Está demonstrado e decidido em sede judicial, que o beneficiário de alimentos, o aqui Recorrido não é, afinal, descendente do A., aqui Recorrente.
2. Em consequência, inexistia qualquer obrigação de prestação a cargo do Recorrente.
3. Este só procedeu ao pagamento por se julgar erroneamente pai do alimentado, aqui Recorrido.
4. O erro é indubitavelmente desculpável, tanto mais que os filhos nascidos na constância do casamento presumem-se filhos de ambos os cônjuges.
5. In casu aplica-se o instituto do enriquecimento sem causa, na hipótese especial da repetição do indevido.
6. Pois trata-se uma obrigação inexistente e não da cessação de uma obrigação até então existente, como defende a M.mo Juiz.
7. No artigo 477.º do nosso Código Civil prevê-se a aplicação da "conditio indebit" à situação de alguém, que por erro desculpável, cumpriu uma obrigação alheia, julgando-a própria, estabelecendo o legislador que nessa hipótese o "solvens" goza do direito de repetição, excepto se o credor, desconhecendo o erro do autor da prestação, se tiver privado do título ou das garantias do crédito, tiver deixado prescrever ou caducar o seu direito, ou não o tiver exercido contra o devedor ou contra o fiador enquanto solvente.
8. No caso sub judice, todos os pressupostos para aplicação da conditio indebit estão verificados.
9. O erro é desculpável.
10. O credor não está privado do título ou das garantias do crédito, tanto mais que, está a decorrer uma acção de investigação de paternidade no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo sob o n.º 325/02, distribuída ao 1.º Juízo Cível, interposta pelo aqui Recorrido contra o seu pai natural.
11. Na hipótese de alguém julgar outrem como seu filho, assegurando o seu sustento, nos termos do artigo 1878.º do C.C., quando posteriormente se vem a verificar que a paternidade afinal, é de um terceiro, o fim da prestação é efectuada em relação ao credor, pelo que a restituição deve ser exigida deste, conforme coerentemente prevê o artigo 477.º do C.C.
12. É que, não existe causa jurídica da prestação, uma vez que não se verificou o fim visado pelo prestante.
13. O princípio romano "suum recepit" não é afrontado na medida em que a "conditio indebit" só é admissível na medida em que a realização da prestação tiver sido motivada por um erro desculpável do prestante.
14. O que in casu está verificado.
15. Não existe qualquer linha de filiação ou laço familiar entre quem pagou as prestações como se fossem alimentos e quem os recebeu.
16. Por isso nem sequer pode falar-se num dever de ordem moral ou social cujo cumprimento corresponde a um dever de justiça, como impões o artigo 402.º do C.C.
17. Por tudo quanto antecede, conclui-se que o M.mo Juiz do processo errou na determinação das normas jurídicas aplicáveis, violando o disposto nos artigos 402.º, 476.º e 477.º do C.C.
Termina pedindo que seja revogada a decisão recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos cumpre decidir.
A sentença recorrida considerou assentes os factos seguintes:
O autor e a mãe do réu casaram-se no dia 14 de Janeiro de 1968.
Esse casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 8/2/89 - certidão de fls. 19.
O réu nasceu no dia 26/7/70 - certidão de fls. 22.
O assento de nascimento foi lavrado a 13/8/70 com base em declarações directas do autor.
Desse assento consta o autor como pai do réu.
Por acórdão proferido a 27/11/01 na acção ordinária n.º 275/99 do 4º Juízo Cível/T.J. da comarca Viana do Castelo, foi declarado o afastamento da presunção de paternidade em relação ao réu e ordenando o cancelamento do registo do qual consta que o autor é o pai de B.

Passemos agora à análise das censuras feitas à decisão recorrida nas conclusões do recurso, considerando que é por aquelas que se afere da delimitação objectiva deste (artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do C.P.C.).

A questão posta no recurso é a de saber se é admissível a restituição de quantias pagas a título de alimentos.



I. A problemática que o recorrente ora suscita não é nova e está já suficientemente tratada pela doutrina e pela jurisprudência de forma uniforme.
Já o Prof. Pereira Coelho ensinava, citando Vaz Serra e acompanhando o Ac. STJ de 07.05.1963 (in Boletim n.º 127; pág. 145), que “as mesmas razões que justificam o princípio de que não são devidos alimentos quanto ao passado justificarão, também, que não haja obrigação de restituir os alimentos já recebidos antes daquela declaração ou, pelo menos, antes de ter sido pedida a extinção ou redução de alimentos”. Curso de Direito de Família; I - Direito Matrimonial - Tomo 2.º - pág. 364, nota (1).
Considerando que o enriquecimento sem causa se coloca entre dois patrimónios, tendo de haver enriquecimento de um e empobrecimento de outro numa relação de causalidade, situação que não ocorre se, muito embora houver empobrecimento do autor não se constate, todavia, o enriquecimento do réu, aquele entendimento, que tem o seu fundamento naturalista e racional na regra do imediato consumo da prestação alimentícia que faz com que se esgote, concomitantemente com o seu cumprimento, a materialidade que incorpora a obrigação de alimentos realizada, está expressamente previsto para os alimentos provisórios recebidos (cfr. n.º 2 do art.º 2007.º do C. Civil).
Elevando-a acima dos princípios das figuras do enriquecimento sem causa (art.º 473.º e segs. do C. Civil) e da repetição do indevido (art.º 476.º), aquela máxima deve estender-se igualmente aos alimentos definitivos, pois que a pensão alimentícia não concretizou o enriquecimento do credor e porque, contrariamente ao princípio da não restituição dos alimentos, o não locupletamento à custa alheia tem natureza subsidiária Abílio Neto; C. Civil Anotado, anotação ao art.º 2007.º que aponta no sentido de que o seu regime se deve aplicar tão-só aos casos omissos na lei e genericamente descritos no art.º 473.º do C. Civil. A. Varela; Das obrigações; I Volume; pág. 474.
Destarte, passando por Moitinho de Almeida Revista da Ordem dos Advogados; 1968; 104., Abel Pereira Delgado Abel Pereira Delgado; Divórcio; pág. 217. e mais recentemente J. P. Remédio Marques - para quem, muito embora o trânsito em julgado da sentença que julgue procedente um pedido de impugnação de paternidade, maternidade ou perfilhação faça cessar a obrigação de alimentos, já que, desta maneira o carecido perde o status de filho relativamente ao outrora obrigado, todavia, fica naturalmente excluída a possibilidade de o impugnante pedir a restituição das quantias entregues ao menor (ao progenitor com guarda, para custear as despesas com aquele) já que a sentença produz efeitos ex nunc Algumas Notas Sobre Alimentos; 2; pág. 336/337. , todos estes tratadistas manifestam a sua preferência pela doutrina acabada de expor e que conduz à assinalada proposição de que não são de restituir os alimentos definitivos indevidamente recebidos.

II. Invoca em seu favor o recorrente que in casu se aplica o instituto do enriquecimento sem causa na modalidade especial da repetição do indevido, pois que estamos perante uma obrigação inexistente e não da cessação de uma obrigação.
Não lhe assiste, porém, razão.
Na verdade, a figura da repetição do indevido, integrando-se no instituto do enriquecimento sem causa do qual é uma sua modalidade e incluída na legislação francesa e italiana na categoria dos quase-contratos A. Varela; Das obrigações; I Volume; pág.476., tem a regulá-la o primado legal descrito no n.º 1 do art.º 476.º do C. Civil, que dispõe que a disciplina a observar neste circunstancialismo jurídico-positivo há-de ter por detrás uma situação de cumprimento de uma obrigação que não existia no momento da prestação (…o que for prestado com intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido, se esta não existia no momento da prestação) e apenas quando estiver comprovado este condicionalismo factual é que se poderá processar a repetição do indevido.
Ora, atendendo em que os efeitos do acórdão proferido na acção ordinária n.º 275/99 do 4º Juízo Cível/T.J. da comarca Viana do Castelo, que declarou o afastamento da presunção de paternidade do autor em relação ao réu Paulo Jorge da Silva Barreiro se produzem a partir de 27/11/01 (ex nunc), segue-se que não pode o recorrente invocar em seu proveito, por não se lhe destinar, aquela disciplina jurídica.


Pelo exposto, julgando improcedente o recurso, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

Guimarães, 25 de Janeiro de 2005.