CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
DESCRIMINALIZAÇÃO
Sumário

I – A Lei n° 30/2000 vem, em primeiro lugar, descriminalizar o consumo de estupefacientes e, em segundo lugar, descriminalizar a aquisição e a detenção de estupefacientes para consumo próprio, desde que não exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
II – O DL nº 30/00 de 29/11 tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (art. 1º nº 1) e revogou expressamente o art. 40º do DL nº 15/93 de 22/1 excepto quanto ao cultivo (art. 28º).
III – O art. 40º do DL nº 15/93 de 22/1 previa e punia o consumo de estupefacientes pelo que, sendo revogado como o foi, a punição do consumo transitou para a esfera da Lei nº 30/00 de 29/11 que o passou a qualificar como uma contra-ordenação (art. 2º nº 1).
Consequentemente, o DL nº 15/93 de 22/1 passa a reger apenas o tráfico (realidade distinta do consumo) mantendo-se contudo em vigor a norma que prevê e pune a realidade mista do traficante-consumidor.
IV – A dose média individual (diária) para a Canabis é de 0,5 gramas (resina) de acordo com o preceituado no art. 71º nº 1 al. c) do DL nº 15/93 de 22/1 e Portaria nº 94/96 de 26/3 e o estupefaciente que o arguido detinha (8,04 gramas) excedia o necessário para o consumo médio individual durante dez dias (5 gramas).
V – Contudo, o citado art. 2º nº 2 da lei nº 30/00 de 29/11 não tem a virtualidade de excluir do consumo a conduta do arguido.
VI – Deve interpretar-se o nº 2 do art. 2º da lei nº 30/00 de 29/11 no sentido de ser meramente indicativo ou seja de ter sido feito constar na Lei com o propósito de habilitar o julgador com uma medida orientadora para a conclusão a extrair na circunstância, pois não é do senso comum a aferição sobre a quantidade necessária para o consumo médio durante 10 dias pelo que se tornava imperativo fixá-la em termos médios com o objectivo de orientar o julgador nesse contexto.
VII – Daí que, estando-se perante um termo médio que habilitará o julgador a decidir os casos concretos mas que não lhe coarcta a possibilidade de subsumir juridicamente uma determinada situação ao consumo mesmo que ocorra excesso da sobredita média.

Em sentido contrário, conferir o ACSTJ 07-04-2005, Proc. n.º 446/05 - 5.ª Secção - Costa Mortágua (relator):
I - Caso o arguido detenha, já na vigência da Lei 30/2000, de 29-11, 38,886 g de cannabis (resina) para consumo próprio e, portanto, quantidade superior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias, cumpre entender que cometeu um crime previsto no n.º 2 do art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, e não o de tráfico de menor gravidade do art. 25.º deste diploma.
II - Com efeito, apesar de o art. 28.º da aludida lei ter revogado genericamente o citado art. 40.º, excepto quanto ao cultivo, deve interpretar-se restritivamente essa revogação e considerar-se em vigor aquele n.º 2, sob pena de certos consumidores serem punidos como traficantes, o que seguramente não foi a intenção do legislador.

Texto Integral

Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
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Rui, idº no processo, foi condenado, como autor material de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40º nº 2 do DL nº 15/93 de 22/1, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 5 euros o que perfaz a multa de 500 euros.
O tribunal a quo alterou a qualificação jurídico-penal na audiência de julgamento (o arguido estava acusado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25º al. a) do DL nº 15/93 de 22/1).
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O Mº Pº interpôs recurso da sobredita decisão e apresentou as seguintes conclusões:
O artigo 28° da Lei N° 30/2000 revogou parcialmente o artigo 40° do Decreto-Lei N° 15/1993, preceito que sobrevive criminalizando o cultivo para consumo, sendo ilegal a tentativa de interpretação restritiva do referido preceito revogatório, e, em segundo lugar, que o período de 10 dias consagrado no artigo 2°, N° 2, da Lei N° 30/2000, é imperativo.
O Decreto-Lei N° 15/1993, no artigo 21°, N° 1, tipifica como conduta criminal a mera compra e a mera detenção de estupefacientes, independentemente do fim a que se destinam (consumo, cedência ou venda); o artigo 25° do mesmo diploma legal pune, igualmente, a mera aquisição e a mera detenção de estupefacientes, independentemente do fim a que se destinam (consumo, cedência ou venda), embora numa moldura penal mais "branda", na medida em que militam a favor do agente circunstâncias que diminuem consideravelmente a ilicitude do facto, designadamente a quantidade de estupefaciente; e o artigo 26° criminaliza a aquisição e a detenção de estupefacientes, desde que não exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, quando o agente tem por finalidade exclusiva conseguir estupefacientes para o seu consumo pessoal.
A Lei N° 30/2000 vem, em primeiro lugar, descriminalizar o consumo de estupefacientes e, em segundo lugar, descriminalizar a aquisição e a detenção de estupefacientes para consumo próprio, desde que não exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, caso contrário, a conduta do agente configurará a prática de um dos crimes acima mencionados, que punem, em três graduações diferentes, a aquisição e a detenção de estupefacientes.
Pelo que revogando-a e ordenado a prolação de sentença condenatória do arguido pela prática do crime do artigo 25° do DL 15/93, de 22/01, farão Vexas Justiça.
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O Magistrado do Mº Pº junta desta Relação pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso e manifestou-se no sentido da conduta do arguido integrar a prática de uma contra-ordenação (fls. 91 a 97).
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Foram os seguintes os factos dados como provados e não provados na decisão recorrida:
a) No dia 27 de Outubro de 2004, cerca das 15.00 horas, no Bairro Social de Santa Teclas, em local conotado por moradores das imediações e pelo público em geral como lugar habitual de tráfico de estupefacientes, o arguido sem por qualquer forma estar legalmente autorizado a tal, guardava consigo, oculto no seu vestuário, dois fragmentos de uma substância resinosa, acastanhada, prensada, com o peso conjunto líquido de 08,04 gramas, produto este que, submetido que foi à competente perícia toxicológica se revelou ser HAXIXE Canabis-resina) - substância esta com características estupefacientes contida na Tabela I-C do Dec.-Lei n.° 15/93, de 22
b) Tencionava o mesmo arguido fraccionar os indicados pedaços de HAXIXE para depois os destinar exclusivamente ao seu consumo pessoal;
c) O arguido bem conhecia as características estupefacientes e psicotrópicas daqueles pedaços de HAXIXE e que lhe foram apreendidos naquela data;
d) Ademais tinha o arguido plena consciência que a supra descrita conduta era ilícita e proibida pela lei penal e, não obstante, quis levá-la a cabo e alcançar os correspectivos resultados delituosos;
e) O arguido consome haxixe há mais de um ano;
f) O arguido trabalha como empregado de mesa num hotel sito na Suiça, auferindo o vencimento mensal líquido de 1500 Francos Suíços;
h) Completou o 6.° ano de escolaridade;
i) O teor do certificado de registo criminal de fls. 50 a 52.
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Matéria de facto não provada:
Resultaram não provados os seguintes factos constantes da acusação:
a) Tencionava o mesmo arguido fraccionar os indicados pedaços de HAXIXE para depois os vender a preço unitário não apurado e a indeterminados consumidores de tal tipo de estupefaciente que naquelas circunstâncias de tempo frequentavam o indicado local onde o arguido foi surpreendido pela Polícia de Segurança Pública - adiante designada pela sigla P. S. P. - de Braga;
b) O arguido agiu sempre motivado pelo mesmo desejo de alcançar lucro que lhe permitisse custear a compra e obtenção de quantidades de HAXIXE superiores às necessárias para o seu próprio e individual consumo durante um período superior a cinco e a dez dias.
Motivação da decisão sobre a matéria de facto:
A convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados baseou-se na ponderação global de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Com efeito, o arguido admitiu a posse do produto estupefaciente que lhe foi apreendido pela P.S.P., negando que visasse proceder à sua venda, mas sim apenas ao seu consumo. O arguido referiu que, naquele dia, tinha acabado de adquirir produto estupefaciente e, como tinha mais dinheiro, optou por comprar uma dose maior, bem sabendo que a mesma excedia a quantidade descriminalizada para consumo próprio durante dez dias.
Por outro lado, a testemunha R, agente da P. S. P. que procedeu à fiscalização do arguido, referiu que nunca assistiu a qualquer transacção por parte do arguido, tendo apenas iniciado a fiscalização por se tratar de um local conhecido como de consumo e tráfico de estupefacientes.
Relativamente às características estupefacientes do produto apreendido a fls. 09, foi igualmente relevante a análise do relatório de toxicologia do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária junto aos autos a fls 20.
Quanto às condições sócio-económicas do arguido, foram relevantes as suas próprias declarações, as quais surgiram de forma espontânea e coerente.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, foi determinante a análise do teor do certificado de registo criminal do mesmo, o qual foi devidamente submetido a contraditório em sede de audiência de julgamento.
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A questão suscitada pelo recorrente resume-se ao enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido alargada à hipótese da prática de uma contra-ordenação dada a posição do Mº Pº desta Relação.
O DL nº 15/93 de 22/1 tem como objectivo a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (art. 1º).
Tráfico e consumo são duas realidades de facto e jurídicas distintas.
O tráfico encontra-se regulado no art. 21º do referido DL o qual pune quem, sem autorização, cultive, produza, fabrique, extraía, prepare, ofereça, puser á venda, distribua, compre, ceda ou por qualquer título receba, proporcione a outrem, transporte, importe, exporte, faça transitar ou ilicitamente detenha determinadas plantas, substâncias ou preparações fora dos casos previstos no art. 40º.
O consumo encontra-se regulado no supra referido art. 40º o qual prevê a punição de quem consuma ou cultive, adquira ou detenha substâncias para o seu consumo.
Estamos perante duas realidades distintas ou seja de um lado há o tráfico previsto e punido pelo art. 21º do DL nº 15/93 de 22/1 e do outro lado há o consumo previsto e punido pelo art. 40º do citado DL.
Ambas as situações comunicam apenas no caso do traficante-consumidor previsto e punido no art. 26º do DL nº 15/93 de 22/1.
O DL nº 30/00 de 29/11 tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (art. 1º nº 1) e revogou expressamente o art. 40º do DL nº 15/93 de 22/1 excepto quanto ao cultivo (art. 28º).
O art. 40º do DL nº 15/93 de 22/1 previa e punia o consumo de estupefacientes pelo que, sendo revogado como o foi, a punição do consumo transitou para a esfera da Lei nº 30/00 de 29/11 que o passou a qualificar como uma contra-ordenação (art. 2º nº 1).
Consequentemente, o DL nº 15/93 de 22/1 passa a reger apenas o tráfico (realidade distinta do consumo como se disse) mantendo-se contudo em vigor a norma que prevê e pune a realidade mista do traficante-consumidor.
No caso em apreço, o arguido vinha acusado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo art. 25º al. a) do DL nº 15/93 de 22/1.
Atenta a matéria de facto dada como não provada (não intenção de vender o haxixe encontrado com o objectivo de alcançar lucro para a compra de mais haxixe) inexiste fundamento para subsumir a conduta do arguido ao disposto no citado art. 25º do DL nº 15/93 (o art. em causa remete para o supracitado artigo 21º, que indubitavelmente prevê situações fora do contexto do consumo, pelo que ele próprio – art. 25º - está fora do âmbito do consumo enquanto tal).
A conduta do arguido, integra a prática de uma contra-ordenação uma vez que, como resultou provado, destinava o haxixe apreendido exclusivamente para seu consumo pessoal (art. 2º nº 1 da Lei nº 30/00 de 29/11).
O único problema a pôr em causa a sobredita conclusão tem a ver com o disposto no nº 2 do citado art. 2º. Dispõe o nº 2 do art. 2º da Lei nº 30/00 de 29/11 que “Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
A dose média individual (diária) para a Canabis é de 0,5 gramas (resina) de acordo com o preceituado no art. 71º nº 1 al. c) do DL nº 15/93 de 22/1 e Portaria nº 94/96 de 26/3 e o estupefaciente que o arguido detinha (8,04 gramas) excedia o necessário para o consumo médio individual durante dez dias (5 gramas).
Contudo, o citado art. 2º nº 2 da lei nº 30/00 de 29/11 não tem a virtualidade de excluir do consumo a conduta do arguido.
O nº 2 em causa não diz que o nº 1 não se aplica quando ocorre o dito excesso (o nº 3 do art. 26º do DL nº 15/93 de 22/1 exclui expressamente a aplicação do seu nº 1 quando se excede o consumo médio individual durante o período de 5 dias o que não acontece com o nº 2 da Lei nº 30/00 onde se recorreu a expressão de teor diferente).
Aliás, que sentido faria excluir do consumo condutas, como a presente, que pouco excedem os 5 gramas maxime quando se demonstra que o arguido apenas visava o consumo?
Neste contexto, interpreta-se o nº 2 do art. 2º da lei nº 30/00 de 29/11 no sentido de ser meramente indicativo ou seja de ter sido feito constar na Lei com o propósito de habilitar o julgador com uma medida orientadora para a conclusão a extrair na circunstância.
Efectivamente, não é do senso comum a aferição sobre a quantidade necessária para o consumo médio durante 10 dias pelo que se tornava imperativo fixá-la em termos médios com o objectivo de orientar o julgador nesse contexto.
Daí que, estamos perante um termo médio que habilitará o julgador a decidir os casos concretos mas que não lhe coarcta a possibilidade de subsumir juridicamente uma determinada situação ao consumo mesmo que ocorra excesso da sobredita média.
Aliás, se essa indicação não fosse meramente indicativa ou exemplificativa o legislador ter-se-ia exprimido da mesma maneira como o fez para o traficante-consumidor (… Não é aplicável o disposto no nº 1 quando…) o que não aconteceu ou seja apenas pretendeu deixar explícito que um consumidor consome, em média, 5 gramas de haxixe em dez dias fornecendo ao julgador um valor orientador para as suas decisões na matéria em causa.
Tanto é assim que esse valor é susceptível de actualização quando a evolução dos conhecimentos científicos o justificar (art. 71º nº 2 do DL nº 15/93 de 22/1) pelo que excluir da grande área do consumo condutas que, designadamente, pouco ultrapassassem o sobredito valor carecia de sentido.
Acresce que o texto legal é compatível com a interpretação acabada de expor pelo que se subsume o comportamento do arguido a uma contra-ordenação cfr. art. 2º da Lei nº 30/00 de 29/11.
O Magistrado do Mº Pº, aquando da acusação, determinou a remessa de certidão à Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência de Braga o que não se mostra cumprido nos autos (fls 23 e ss).
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Nestes termos, por razões diferentes das alegadas em sede de recurso, revoga-se a sentença recorrida (absolvendo-se o arguido Rui do crime que lhe era imputado) e determina-se que o tribunal recorrido comunique à entidade administrativa (competente para o processamento da contra-ordenação por consumo de estupefaciente) em conformidade com o enquadramento legal supra exposto.
Sem tributação.
Guimarães, 27/2/2006