ESCUTA TELEFÓNICA
REQUISITOS LEGAIS
Sumário

I – O artigo 187°/1 do CPP preceitua que "a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só pode ser ordenada ou autorizada por despacho do juiz" e "se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova".
II – A citada norma do processo penal tem que ser vista à luz do disposto no artigo 18°, n.º 3, da Constituição, segundo o qual "a lei só pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".
III – Ora, daqui ressalta que não basta uma convicção subjectiva e porventura infundada, do juiz, acerca da grande relevância da diligência, antes se exige uma convicção baseada em "razões" que não podem deixar de ser objectivas, consistentes e compreensíveis pelo cidadão médio.
IV – Se das diligências efectuadas pela polícia, apenas foi possível verificar que o suspeito se encontrou com outro indivíduo (subjectivamente suspeito) e que utiliza regularmente o telemóvel, tanto não basta para que se decrete uma escuta.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juizes da Relação de Guimarães:

TRIBUNAL RECORRIDO :
Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto – (Inquérito n.º 318/03.0GACBC-A).

RECORRENTE :
Ministério Público

RECORRIDO :
Juiz de Instrução

OBJECTO DO RECURSO :
Após ter sido notificado do despacho proferido nos autos que indeferiu a intercepção de comunicações telefónicas, veio o M.º P.º interpor recurso, apresentando as seguintes
Conclusões:
1. O excessivo comedimento no recurso a métodos de recolha de prova invasivos das comunicações privadas, a certa altura e ante certo tipo de criminalidade, autorizará - a coberto do respeito da reserva da vida privada - o domínio da criminalidade em detrimento da sua perseguição, solução que, certamente, o legislador constitucional não pretendeu contemplar, ou não teria estabelecido a reserva de lei em matéria penal, consagrada pela ultima parte do artigo 34.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
2. No caso, cremos existirem mais do que meras suspeitas sobre o visado com as escutas, sendo que os elementos de facto que constituem esse "mais" se encontram ratificados na actividade processual de inquérito.
3. Assim, deveria a Ex.ma Senhora Juiz de Instrução ter autorizado a intercepção e gravação das comunicações telefónicas com origem e destino nos terminais que operam com os números 914499534 e 916041201.
4. Ao não o fazer violou os artigos 262 n.º 1 e 187 n.º 1 do Código de Processo Penal.
Assim, deve o presente recurso ser declarado procedente, e, em consequência revogada a douta decisão recorrida, autorizando-se a intercepção e gravação das conversações telefónicas, com origem e destino nos terminais que operam com os números 914499534 e 916041201, pelo período mínimo de 30 dias, por revestir grande Interesse para a descoberta da verdade e para a prova.

Respondeu a senhora juiz requerida mantendo o despacho recorrido.

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Admitido o recurso e remetido a este tribunal, no seu parecer o Ex.mo Procurador Adjunto limitou-se a apor o seu visto.
Efectuado exame preliminar e não havendo questões a decidir, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência.
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Tendo em atenção que são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412 n.1 do Código de Processo Penal, a única questão colocada no requerimento de interposição do recurso é a de saber se o requerimento de intercepção de comunicações telefónicas formulado nos autos pelo M.º P.º deve ser deferido.

Vejamos:
É do seguinte teor o despacho recorrido:
“A fls. 81, veio o MP promover a autorização de intercepção de conversações telefónicas, dos telemóveis que identifica, relativamente ao suspeito António.
Como fundamento de tal promoção veio sustentar a existência de suspeitas da prática de crime de tráfico de estupefacientes.
Assim, relativamente às suspeitas da prática de crime de tráfico de estupefacientes, face à denúncia existente nos autos, foram efectuadas diligências de vigilância, tendo sido possível verificar que o suspeito se encontrou com um indivíduo (também) suspeito de se dedicar ao tráfico de estupefacientes, para além do suspeito fazer uso regular do telemóvel.
Cumpre decidir.
No âmbito da intercepção de conversações telefónicas rege o artigo 187°/1 do CPP, o qual preceitua da seguinte forma:
"A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só pode ser ordenada ou autorizada por despacho do juiz" quanto os crimes aí elencados e "se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova".
Como requisitos ou pressupostos de que depende a realização daquilo que vulgarmente se apelida de escutas telefónicas, verifica-se, assim, um duplo segmento:
- um, de ordem formal, reportado à circunstância de o objecto dos autos ser referente a um dos crimes constantes do catálogo descriminado nas diversas alíneas de tal normativo;
- outro, reportado à verificação de razões que façam crer que tal diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou oara a prova.
No caso dos autos, verifica-se que o objecto dos mesmos se reporta à eventual prática de um crime de tráfico de estupefacientes, peio que se encontra verificado o primeiro dos pressupostos, atento o disposto no artigo 187° n.º 1 -b) do CPP.
Quanto ao segundo pressuposto, verifica-se que as razões aduzidas pelo MP, assentes na informação da PJ, assentam numa denúncia efectuada em 14/09/2004 (fls. 45 verso) por César M..., não confirmadas posteriormente (fIs. 70), encontrando-se este actualmente a cumprir pena de prisão por crime de tráfico de estupefacientes.
Das diligências efectuadas, foi possível verificar que o suspeito se encontrou com um alegadamente também suspeito de se dedicar ao tráfico de produtos estupefacientes e que utiliza regularmente o telemóvel.
Assim, todos estes elementos, conjugados entre si, não fazem com que resulte verificado, neste processo, o segundo dos pressupostos.
Efectivamente, no caso das intercepções telefónicas estamos perante uma situação que atenta a reserva da vida privada e familiar, valor fundamental reconhecido na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 26°/1.
E, para salvaguarda desse valor, estabelece o artigo 34°/4 também da Constituição da República Portuguesa que "É proibida toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal".
Neste quadro, a referida norma do processo penal (o artigo 187°) tem de ser analisado à luz do disposto no artigo 18°/2 da CRP, nos termos da qual "a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".
Na aferição deste critério, na ponderação de interesses, o tribunal tem que criar uma convicção, tem de acreditar que há razões para crer que tal diligência é relevante.
Tais razões para crer não se bastam com uma convicção meramente subjectiva, exigindo, antes, uma convicção baseada em razões objectivas, consistentes e compreensivas pelo cidadão médio.
Conforme se pode ler no texto do Acórdão da RL de 28/10/2004, in www.dgsi.pt "O juiz tem que fazer é um juízo acerca das probabilidades da eficácia da diligência e autorizar a sua realização apenas quando essa probabilidade se mostrar muito elevada, pois que quando assim não for não se justifica a intromissão na vida privada e familiares que as escutas telefónicas sempre acarretam. Mas esses juízos têm que assentar em elementos concretos e consistentes, já existentes no processo quando a questão é submetida. a apreciação judicial”.
As razões para crer aduzidas pelo MP, sustentadas na informação policial, salvo o devido respeito, não convencem.
Das diligências efectuadas pela polícia, apenas foi possível verificar que o suspeito se encontrou com outro indivíduo (subjectivamente suspeito) e que utiliza regularmente o telemóvel.
Ora, autorizar as diligências promovidas pelo MP quando não existem elementos objectivos nos autos que nos façam acreditar que as mesmas serão relevantes e quando os elementos subjectivos invocados pelo MP não convencem, traduz-se numa interferência no valor fundamental reserva da vida privada e familiar dos suspeitos absolutamente insustentável e inadmissível, nos termos da ponderação a efectuar ao abrigo do artigo 18°/2 da Constituição da República Portuguesa.
Em conformidade com todo o exposto e ao abrigo das normas legais e constitucionais supra citadas, indefiro a promovida autorização de intercepção de conversações. Notifique.
Devolva ao MP.”

Este despacho foi proferido na sequência da seguinte promoção do M.ºP.º
“Investiga-se nos presentes autos factos abstractamente integradores da prática dos crimes de receptação, p. e p. pelo artigo 231°, n.o 1 do Código Penal, furto, p. e p. pelo artigo 203°, n.o 1 do mesmo diploma legal e tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21°, n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93 de 22/01 praticados pelo arguido Paulo J... (o segundo) e pelo denunciado António M..., de alcunha, "o Cesteiro" (0 primeiro e 0 terceiro).
Com interesse para o presente requerimento, deverão ser considerados, em primeira linha, os factos praticados pelo denunciado António M....
Para além das declarações do arguido Paulo J..., que confirmou ter furtado uma motosserra e tê-Ia vendido ao denunciado António M... em troca de heroina, as testemunhas de fIs. 70, 70 verso, 72, 73, 74 e 75 também confirmaram que este se dedica à venda de produtos estupefacientes.
Durante as investigações, apurou-se que o denunciado António usa os telefones com os n.os 91…… e 91……. - cfr. fls. 9 e 64.
É bastante provável que a conduta do denunciado António não tenha cessado, assim como também é razoavelmente credível que o mesmo use, além do mais, o seu telefone para efectuar contactos conducentes à realização de outros negócios ilegais, adquirindo objectos provindos de factos ilícitos contra o património em troca de produtos estupefacientes.
Assim, a intercepção e gravação de chamadas telefónicas dos terminais com os referidos números assume vital importância para o decurso das investigações no âmbito do presente inquérito, existindo a forte probabilidade de, através das mesmas, se poder identificar os elementos de uma rede que se dedica a furtos e vendas, designadamente, de máquinas e produtos estupefacientes , bem como á localização de diversos objectos furtados e do respectivo centro de operações.
Assim, com os fundamentos supra expostos, nos termos do disposto no artigo 187°, n.o 1, a) e b) do Código de Processo Penal, promovo que se determine a intercepção e gravação das chamadas telefónicas com origem e destino nos terminais que operam com os n.os 914499534 e 916041201, pelo período mínimo de 30 dias.
Remeta os autos à Meritíssima JIC.
Cumpre agora decidir.
Nos termos do artigo 187°, nº 1, do Código de Processo Penal, "a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só pode ser ordenada ou autorizada, por despacho do juiz", quanto aos crimes ali enlencados e "se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Ressalta desta norma que a realização das vulgarmente designadas "escutas telefónicas" está sujeita a dois requisitos, a saber: 1° - que esteja em causa crime constante do catálogo nela estabelecido; 2° - que existam razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Entre os crimes elencados no preceito contam-se os relativos a tráfico de estupefacientes - cfr.a respectiva alínea b). E sendo crime desse tipo que a PJ se propõe investigar com base nas pretendidas intercepções, não sofre dúvidas que o primeiro daqueles requisitos se mostra, no caso cumprido.
A controvérsia gerada tem a ver com o segundo requisito: entendeu e entende o Ministério Público que o mesmo se encontra preenchido, o que não mereceu a concordância da Senhora Juiz e levou ao indeferimento da diligência promovida.
As escutas telefónicas são susceptíveis de atentar contra a reserva da vida privada e familiar, que é um valor fundamental, como tal reconhecido pela Constituição da República portuguesa no seu artigo 26°, nº 1.
Para salvaguarda desse valor preceitua o n.º 4 do artigo 34° da Lei Fundamental, que "é proibida toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal".
Assim, a citada norma do processo penal tem que ser vista à luz do disposto no artigo 18°, n.º 3, da Constituição, segundo o qual "a lei só pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos" e revela a preocupação por parte do legislador ordinário em dar cumprimento a esse comando constitucional: restringe-se a possibilidade de realização das intercepções telefónicas à investigação de determinados crimes, em princípio considerados mais graves, ou em que tais diligências se revelam de maior eficácia, ou cometidos, eles próprios, através do telefone; exige-se, para a efectivação das intercepções, que haja razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova; e defere-se ao juiz a competência para, em cada caso, verificar a existência desses requisitos e autorizar - ou denegar - a realização de escutas.
Como se sabe, com as escutas, a intromissão afecta não só a pessoa perseguida, mas também a que, no outro extremo da linha, se dispõe confiadamente a encetar ou a prosseguir um diálogo. De modo que qualquer limitação da liberdade e do segredo das conversações telefónicas envolve-se tanto com o direito à palavra como com o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26°, nº 1, da CRP). Por outro lado, a Constituição (artigo 34º, nº 4) proíbe toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Conjugando esta disposição com nº 8 do artigo 32º, que — para além de outras — declara nulas as provas obtidas mediante abusiva intromissão nas telecomunicações, chega-se à existência de um regime relativo, não impeditivo, em absoluto, da intervenção das autoridades públicas nas telecomunicações.
A escuta telefónica é um meio de obtenção de prova cuja produção e utilização reveste significativo melindre, consabido que conflitua com direitos e valores fundamentais diversos, designadamente o direito à privacidade, o direito ao sigilo e inviolabilidade das telecomunicações.
O sigilo e a inviolabilidade das telecomunicações envolve a proibição a terceiros da intromissão (v.g. por intersecção), da tomada de conhecimento (v.g. por escuta ou outro meio), do registo (v.g. por gravação ou outro meio), da utilização (pelo interceptor ou por transmissário deste) e da divulgação do conteúdo dessas comunicações. Está igualmente sujeito a sigilo o próprio destinatário das telecomunicações que revistam carácter confidencial (Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, 331 (nota 831).)
O direito à palavra ( - O direito à palavra, atributo extrínseco da pessoa, que a identifica e a individualiza, é um elemento intrínseco da personalidade, uma qualidade físico-espiritual, dotada de criatividade e de originalidade, reconhecido como direito geral de personalidade – cf. Capelo de Sousa, ibidem, 247 nota (562).) e a confiança comunitária – artigos 26º, n.º1 e 34º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República ( - A tutela penal daqueles direitos encontra-se estabelecida nos artigos 194º, n.º 1 (crime de violação de telecomunicações) e 199º, n.º1 (crime de gravações ilícitas), do Código Penal) (- Como refere Guedes Valente, Escutas Telefónicas – Da Excepcionalidade à Vulgaridade (2004), 48, a escuta telefónica é um meio de obtenção de prova que fere profundamente os direitos fundamentais.).
Por isso, a sua admissibilidade depende (da rigorosa verificação) de requisitos de natureza formal e substancial – artigo 187º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Na verdade, o Código contém regras sobre a admissibilidade (artigo 187º) e as formalidades das operações de intercepção e gravação e eventual transcrição em auto (artigo 188º).
Essas regras e formalidades são conformadoras de um rito, de um conjunto de práticas processuais que têm de ser observadas com carácter de necessidade. Prevenindo a arbitrariedade, servem para pôr travão à actividade tanto das autoridades judiciárias como das polícias criminais e de quem se dispõe a investigar por conta própria. Neste sentido poderá falar-se da legalidade do método de formação das provas.
É uma matéria muito delicada e sensível a vários títulos, tanto de ordem legislativa como na sua aplicação prática. As escutas têm que ser ordenadas por despacho do juiz; só são admitidas para certos tipos de crimes (crimes do catálogo: terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, etc.).
Regressando ao segundo requisito acima apontado, o que a lei impõe, para que seja proferida uma decisão favorável, é que "haja razões para crer...".
O que a lei exige é que existam razões suficientemente fortes e objectivas de que as escutas telefónicas se revelam de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova. Relevância a apreciar segundo os critérios da necessidade, adequação e proporcionalidade, atento o carácter excepcional e subsidiário das escutas telefónicas, por constituírem uma ingerência na vida privada e nos meios de comunicação privada.
É neste sentido que tanto a doutrina como a jurisprudência têm interpretado a norma em referência, no seu confronto com as normas constitucionais sobre o direito à reserva da intimidade da vida privada (art. 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa) e sobre a inviolabilidade das telecomunicações e demais meios de comunicação privada (art. 34º nº 1 e nº 4 da Constituição da República Portuguesa).
Ressalvando esta última norma constitucional os casos excepcionais de ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, previstos na lei em matéria de processo penal.
João Conde Correia [Revista do Ministério Público, nº 79, 3º trimestre de 1999, p. 45] sintetiza esta questão nos seguintes termos: “A máxima protecção dos direitos fundamentais colocaria barreiras intransponíveis à descoberta da verdade e, em consequência, à realização da justiça, e a busca da verdade a todo o custo eliminaria os mais elementares direitos, conduzindo a uma mistificação da justiça. Este conflito revela-se, em toda a sua amplitude, de forma exponencial, no domínio dos meios de prova e de obtenção da prova. Com efeito, o interesse punitivo do Estado e a plêiade de métodos, tendentes a determinar a existência de um facto ilícito, a punibilidade do seu autor e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis, dada a natureza das coisas, podem afrontar, de forma grave e irreversível, os direitos fundamentais inerentes a um ser livre e digno.
Ciente desta problemática, a Constituição da República Portuguesa prescreve [Art. 32º nº 8 da Constituição da República Portuguesa] que «são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações», conformando desta forma a concreta regulamentação deste conflito.
A Constituição circunscreve, assim, o âmbito de protecção daqueles direitos e remete para o legislador ordinário a tarefa de definir as áreas de intervenção não abusivas, logradas pela concordância prática entre aqueles direitos individuais e o interesse punitivo do Estado. (...) As escutas telefónicas devem, assim, ser entendidas como a consagração de um juízo de ponderação de interesses a que não é alheia a ideia de eficácia funcional da justiça penal, no sentido de que aquelas só são admissíveis, quando revelarem grande interesse para a descoberta da verdade. Trata-se da consagração processual dos princípios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade, através da atribuição de carácter subsidiário às escutas telefónicas.
Ora, daqui ressalta que não basta uma convicção subjectiva e porventura infundada, do juiz, acerca da grande relevância da diligência, antes se exige uma convicção baseada em "razões" que não podem deixar de ser objectivas, consistentes e compreensíveis pelo cidadão médio.
O que o juiz tem que fazer é um juízo acerca das probabilidades da eficácia da diligência e autorizar a sua realização apenas quando essa probabilidade se mostrar muito elevada pois que quando assim não for não se justifica a intromissão na vida privada e familiar que as escutas telefónicas sempre acarretam. Mas esse juízo tem que assentar em elementos concretos e consistentes, que já devem constar do processo quando a questão é submetida a apreciação judicial.
“Tais elementos, embora não precisem de ter a consistência necessária para a dedução de acusação ou para a imposição das medidas de coacção mais graves, devem permitir «configurar uma séria e concreta hipótese criminosa cuja verosimilhança só pode assentar em meios de prova identificáveis e utilizáveis no processo. Quer isto dizer que esse juízo não pode assentar em fontes anónimas ou meros informadores policiais.
Por isso, não é legalmente possível ordenar a realização de uma escuta telefónica sem que primeiro tenham sido realizadas diligências de prova, de natureza diversa das intercepções, que permitam asseverar o necessário grau de verosimilhança da suspeita” (Ac. Rel. Lisboa de 24/11/2004, proc. n.º 7166/2004-3, disponível no site www.dgsi.pt).
Para Costa Andrade (in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pag. 290) é de exigir "uma forma relativamente qualificada da suspeita da prática do crime" e que, se não é de reclamar "o limiar dos fortes indícios da prática do crime (de que o artigo 202° faz depender a prisão preventiva)" já não serão suficientes "as meras suposições ou boatos infundados", pois que a suspeita tem de "atingir um determinado nível de concretização a partir de dados do acontecer exterior ou da vida psíquica".
Só podem ser ordenadas ou autorizadas por decisão do juiz, quando houver razões para crer que se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova ( - Conquanto a lei adjectiva penal não exija, de forma expressa, que a escuta seja essencial para a descoberta da verdade ou para a prova, isto é, que se mostre indispensável, a verdade é que, face ao conflito de valores e de interesses que aquele meio de obtenção de prova gera, entendemos que a intercepção e a gravação de conversações e de comunicações só pode ser ordenada ou autorizada em caso de (reconhecida) necessidade – neste sentido pronuncia-se Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal (1992), 290.
A não ser assim, estar-se-ão a afectar, injustificadamente, direitos e valores de matriz constitucional, o que é inadmissível.
Deste modo, havendo já prova nos autos do facto investigado e do seu autor ou autores, ou havendo outros meios de prova eficazes, o juiz não pode ordenar ou autorizar a utilização deste meio de prova.).
Interpretando o texto legal na parte em que impõe, ao juiz, a formulação de um juízo de prognose sobre a necessidade e a eficácia da escuta telefónica, ou seja, sobre a essencialidade deste meio de obtenção de prova e sobre os resultados que se espera dele advirão ( - Conforme defende Costa Andrade, ibidem, 287, a lei que estabelece os pressupostos de admissibilidade deste meio de obtenção de prova deve ser objecto de uma interpretação restritiva, tendo em vista que os atentados contra o sigilo das telecomunicações, o direito à palavra falada e mesmo a liberdade de expressão devem ater-se ao estritamente necessário e salvaguardar sempre a garantia do conteúdo essencial e do princípio de proporcionalidade.), diremos que àquele juízo é desde logo essencial a certeza ou, pelo menos, a forte probabilidade de que o telefone a colocar sob escuta irá ser utilizado pelo suspeito do facto investigado e/ou através dele irão processar-se conversações ou comunicações atinentes ao facto em investigação, juízo que, evidentemente, terá de ser suportado por fundamento sério e seguro ( - Costa Andrade, ibidem, 290, entende que é de exigir, ainda, uma forma relativamente qualificada da suspeita da prática do crime, suspeita que assente em factos determinados.).
Com efeito, só perante a certeza ou a forte probabilidade de que através do telefone a colocar sob escuta irão processar-se conversações ou comunicações atinentes ao facto em investigação (suposta a verificação dos demais pressupostos legais) é admissível a determinação ou a autorização da intercepção e da gravação das conversações ou comunicações, posto que estas, como já se consignou, conflituam com direitos e valores fundamentais, cuja violação não é sustentável sem a ocorrência, pelo menos, de forte probabilidade de que da escuta advirão resultados de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova ( - Como impressivamente refere Costa Andrade, ibidem, 291, o recurso a este meio de obtenção de prova há-de justificar-se na base de pontos concretos de apoio que convençam que a escuta a empreender se adivinha fecunda e promissora de resultado, isto é, que a escuta se mostra idónea a descobrir os factos.).
Ora, tudo o que foi trazido ao conhecimento da Senhora Juiz "a quo", com eventual relevo para a questão, foi, como ela bem diz no seu despacho de indeferimento “Das diligências efectuadas pela polícia, apenas foi possível verificar que o suspeito se encontrou com outro indivíduo (subjectivamente suspeito) e que utiliza regularmente o telemóvel”.
Basta ler as páginas deste apenso.
No fundo, o que o Ministério Público defende é que o Tribunal devia aceitar acriticamente os fundamentos invocados e deferir de modo automático a pretensão que formulou.
A necessidade de combater o tráfico de estupefacientes justificaria esse procedimento e a eventual devassa da vida privada do visado que daí resultasse esbater-se-ia posteriormente pela efectivação dos meios de controle judicial do resultado das escutas previstos na lei.
Ora, tal posição acha-se construída à revelia da lei, como decorre do que acima se expôs e, a vingar, transformaria a autorização judicial consagrada no preceito em análise em mera formalidade burocrática e, como tal, inútil.
***
Decisão:
Termos em que, de harmonia com o exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem tributação
Notifique.
Guimarães, 5 de Fevereiro