LOCAÇÃO
Sumário

1. O bem penhorado que recai no direito do executado como locatário, no âmbito de contrato de locação financeira, de determinado prédio urbano destinado a habitação, consubstancia uma penhora efectivada numa expectativa jurídica por parte do executado cujo objecto é a aquisição de um imóvel e o regime legal a observar neste caso é o que está especialmente descrito no art.º 860.º -A, do C.P.Civil, inserido sistematicamente na categoria de “penhora de direitos”.
2. À penhora de direitos assim solidificada não se aplicam os efeitos substantivos e processuais da penhora sobre o imóvel abstractamente naquela contido - muito embora o exequente (consumada a aquisição) deva inscrever no registo a penhora que, doravante, passa a incidir sobre o bem transmitido, os seus efeitos não se retrotraem à data da realização da penhora da expectativa ou do direito de aquisição, uma vez que a penhora do direito ou a expectativa de aquisição não é registável;
3. A realização da penhora assim concretizada não está dependente nem sujeita às regras do registo inerentes a imóveis e torna-se eficaz com a notificação à pessoa de quem o executado pode vir a adquirir o direito acordado no pacto celebrado.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

Paulo S..., residente na Rua Dr. Rocha Peixoto, 50 a 56, em Braga, veio, por apenso à execução que José R... move contra José S..., deduzir os presentes embargos de terceiro, alegando que é o titular do direito objecto da penhora naqueles autos, desde 16/06/2005 data em que foi celebrado o contrato de locação financeira de imóvel, pelo que nunca poderá ser responsabilizado por dívidas de terceiro.
Conclui pedindo que sejam julgados procedentes os embargos, declarando-se o embargante como titular do direito de locatário objecto de penhora.

Após produção de prova testemunhal foram os embargos recebidos, ficando suspensa a execução relativamente ao bem penhorado em causa.

A exequente contestou, sustentando que o contrato de cessão da posição contratual não lhe é oponível dado que, na data em que ocorreu o reconhecimento notarial das assinaturas apostas no contrato, já a penhora se encontrava registada. Mais alega que a exigência legal de reconhecimento de assinaturas é uma formalidade ad substantiam, pelo que a sua omissão fere de nulidade o negócio e embora se possa admitir a renovação do negócio após o cumprimento da formalidade, a eficácia retroactiva que pode ser atribuída pelas partes não opera em face de terceiros.
Conclui pela improcedência dos embargos.

Realizou-se audiência preliminar, mantendo as partes as posições assumidas nos autos.

De harmonia com o disposto no artigo 510.º n.º 1, alínea b), do Código Processo Civil, considerando que o estado dos autos permite desde já o conhecimento do mérito da causa, foi proferido saneador-sentença em que, julgando os embargos procedentes, em consequência, ordenou o levantamento da penhora do direito de locatário a que se reporta o auto de penhora de fls. 87-89 do processo da execução.

Inconformado com esta sentença dela recorreu o embargado/exequente José R... que alegou e concluiu do modo seguinte:
1. A locação financeira e as suas transmissões estão sujeitas a registo - Código de Registo Predial, art.° 2°, n.° 1, alínea 1) - , pelo que a penhora da posição contratual de locatário emergente da locação financeira também está sujeita a registo - alínea n) , do n.° 1, do citado art.° 2°.
2. Como resulta do número de registo (6786/04.6) dos presentes autos, a execução para pagamento de quantia certa de que os mesmos autos constituem dependência foi instaurada no ano de 2004, pelo que são aplicáveis à execução as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.° 38/2003 aos Códigos de Processo Civil e de Registo Predial.
3. A penhora de coisas imóveis realiza-se por comunicação electrónica à Conservatória do Registo Predial competente, a qual vale como apresentação para o efeito da inscrição no registo - Cod. Proc. Civil, art.° 838°, n.° 1, na redacção emergente do Dec. Lei n.° 38/2003, de 8 de Março.
4. Atentas as datas do registo da penhora do direito penhorado na execução (02/08/05) e da notificação à locadora de que o direito penhorado ficaria à ordem do agente da execução (20/09/ /05), é manifesto que o registo da penhora foi feito com base na comunicação electrónica do agente de execução.
5. É subsidiariamente aplicável à penhora de direitos o disposto nos art.°s 838° e segs. do Cód. Proc. Civil, para a penhora de coisas imóveis e de coisas móveis – art.° 863°, do mesmo Código.
6. Da conjugação do disposto pelos art.° s 838°, n.° 1, e 863°, do Cod. Proc. Civil, resulta que, se a penhora incidir sobre um direito sujeito a registo (como é o caso da penhora da posição contratual de locatário emergente de um contrato de locação financeira), o regime regra no que concerne ao modo de realização da penhora é o contido na subsecção de penhora de imóveis, que se aplica subsidiariamente à penhora de direitos.
7. Assim, tem de considerar-se que a penhora do direito penhorado na execução de que os presentes autos constituem dependência ocorreu na data em que se efectuou o seu registo (em 02/08/05) e não na data (20/09/05) em que a locadora foi notificada de que o direito penhorado ficaria à ordem do agente de execução.
8. Após as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.° 38/2003 ao regime da acção executiva deve entender-se que o art.° 856°, n.° 1, do Cod. Proc. Civil, regula a forma de efectivar a apreensão, para a execução, do direito sujeito a registo anteriormente penhorado nos termos definidos pelo art.° 838.º, n.º 1, do mesmo Código, ou seja, do direito penhorado anteriormente à aludida notificação através do registo da penhora.
9. Assim, tendo a penhora do direito ocorrido em 2 de Agosto de 2005 - data em que foi inscrita no registo -, a posterior cessão do mesmo direito pelo executado ao embargante e recorrido consubstanciou um acto de disposição do direito penhorado, pelo que é inoponível à execução - Có-digo Civil, art.° 819°.
10. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 2°, n.º 1, alíneas 1) e n), do Código de Registo Predial, 838°, n.º 1 e 863°, do Código de Processo Civil, e 819°, do Código Civil.
Termina pedindo que seja revogada a sentença recorrida e se julguem improcedentes os presentes embargos de terceiro, com a consequente manutenção da penhora efectuada na execução.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

A sentença recorrida considerou assentes os factos seguintes:
- Nos autos de execução foi penhorado o direito do executado como locatário, no âmbito de contrato de locação financeira, do prédio urbano, destinado a habitação, composto de casa de cave, rés-do-chão e andar, sito na Rua Rocha Peixoto, 50/56, descrito na CRP sob o n.º 00218/Braga e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 537.
- A penhora operou-se mediante a notificação à locadora concretizada em 20/09/2005 (cf. cópia da notificação datada de 16/09/2005 e aviso de recepção juntos a fls. 90 e 91 dos autos principais) e foi registada em 02/08/2005 (cf. fls. 232-234 dos autos principais).
- Ao embargante foi cedida a posição contratual de locatário no âmbito do mesmo contrato de locação financeira, por documento escrito datado de 16/06/2005 e com o reconhecimento notarial das assinaturas do dia 10/08/2005 (fls. 283-286 verso dos autos principais).

Passemos agora à análise das censuras feitas à decisão recorrida nas conclusões do recurso, considerando que é por aquelas que se afere da delimitação objectiva deste (artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do C.P.C.).

A questão essencial posta no recurso é a de saber se tem de considerar-se que a penhora do direito realizada na execução ocorreu na data em que se efectuou o seu registo (em 02/08/05) e não na data (20/09/05) em que a locadora foi notificada de que o direito penhorado ficaria à ordem do agente de execução.


I. É o património do devedor a garantia geral das obrigações; e, consequentemente, no caso de haver necessidade de se recorrer ao cumprimento coercivo da obrigação, haverá que se indagar quais os bens necessários que integram o acervo patrimonial do devedor de modo que, individualizando-os, sejam afectados à satisfação do direito do credor/exequente através da penhora - é preciso, pois privar o executado de bens ou direitos, sobre os quais se vai exercer através do Tribunal, o direito do credor sobre o património do devedor. J. P. Remédio Marques; Curso de Processo Executivo Comum; pág. 168.
E como se pode reagir contra a penhora realizada em bens de pessoa que não é executada no processo em que o exequente demanda o devedor relapso no incumprimento da sua obrigação?
- Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro (n.º 1 do art.º 351.º do C.P.Civil - fundamento dos embargos de terceiro).
Quer isto dizer que, perante um acto judicial - apenas determinado ou já efectivado - de apreensão ou entrega de bens que atenta contra a posse ou qualquer direito incompatível com essa diligência (ordenada ou já concretizada) de quem não é parte na causa, tem o lesado a faculdade de se opor a esta diligência mediante embargos de terceiro.
A nova reforma processual trazida pelo Dec. Lei 329- A/95, de 12/12, deixou de considerar os embargos de terceiro como, restritivamente, um instrumento de tutela possessória, estendendo os seus fundamentos para além da posse, de outro qualquer direito que seja incompatível com a diligência mandada fazer no processo executivo - através deles, agora relativamente desvinculados da posse, pode o embargante efectivar ou defender, para além da posse, qualquer direito de conteúdo patrimonial ilegalmente afectado pela diligência judicial de tipo executivo. Salvador da Costa; Os Incidentes da Instância; pág. 180/181.

II. A complexidade e a delicadeza que acompanham a constituição, a transferência e a extinção dos direitos reais, tornam necessárias medidas destinadas a dar-lhe publicidade, para que possam ser conhecidos ou cognoscíveis por todos aqueles que nisso estejam interessados.
Em termos gerais podemos distinguir a publicidade espontânea - a que resulta do mero funcionamento social do direito real, nos termos da qual os membros da sociedade tomam naturalmente conhecimento da situação jurídica em causa - da publicidade racionalizada, também designada de publicidade registal - a que deriva da intenção deliberada de dar a conhecer ao público determinada situação jurídica, sendo, normalmente, instituída ou imposta pelo Estado Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II Vol.; pág. 364.- o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.º 1.º do C.R.P.).
Ambos estes modos de divulgação têm assentimento no enquadramento geral da publicidade dos direitos reais, anotando-se que é o direito registal que, por ser emanação de uma tarefa estatal que tem por objectivo fixar os contornos dos direitos incidentes sobre bens imóveis, melhor trata desta problemática jurídico-positiva.
A penhora incidente sobre bens imóveis só produz efeitos em relação a terceiros desde a data do registo (art.º 838.º, n.º 4, do C.P.C.); e enquanto não for junto ao processo a certidão comprovativa do seu registo definitivo (e em certos casos do seu registo provisório) a execução não pode ser movimentada (art.º 838.º, n.º 5 e 6 e art.º 864.º, n.º 1, do C.P.C.) - o registo é obrigatório, constituindo ónus do exequente. Com efeito, não só é condição da eficácia do acto da penhora perante terceiros (art.º 838 - 4), nos termos gerais, como é também condição do prosseguimento do próprio processo de execução. Lebre de Freitas; A Acção Executiva; pág. 209.
Como se vê, a penhora referente a bens imóveis só se ultima quando o registo dela se concretiza; e, sendo assim, o exigido registo da penhora, constituindo um pressuposto legal para a sua efectiva existência, é constitutivo deste acto processual. E tanto assim é que, estando em causa penhora sujeita a registo, a data do respectivo registo vai ser determinante para a garantia dos créditos que ela satisfaz, graduando-se em primeiro lugar o crédito garantido por penhora registada anteriormente ("prior tempore potior jure") - art.º 871.º, n.º 1, parte final, do C.P.C..
Neste contexto é que o legislador estatui que a penhora de bens imóveis se efectua por termo no processo (art.º 838°, n.º 3, do C.P.Civil), a de bens móveis se concretiza através de auto (art.º 849°, do C.P.Civil) e a penhora de direitos se faz mediante notificação de terceiros (art.º 856° e segs. do C.P.Civil), salientando-se que esta última (penhora de direitos) tem lugar quando não está em causa o direito de propriedade plena e exclusiva do executado sobre coisa corpórea nem um direito real menor que possa acarretar a posse efectiva e exclusiva de coisa (corpórea) móvel ou imóvel.


III. O bem penhorado recai no direito do executado como locatário, no âmbito de contrato de locação financeira, do prédio urbano, destinado a habitação, composto de casa de cave, rés-do-chão e andar, sito na Rua Rocha Peixoto, 50/56, descrito na CRP sob o n.º 00218/Braga e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 537.
É através da análise da relação jurídica atrás referenciada estabelecida entre o locador e o locatário no âmbito do contrato de locação financeira pactuado entre ambos que se vai buscar a natureza jurídica do bem a penhorar e há-de ser, necessariamente, a partir desta qualificação jurídico-processual assim delineada que a solução da questão posta no recurso se vai dirimir, tudo porque estamos em presença de penhora a incidir sobre a expectativa de aquisição do imóvel (prédio urbano, destinado a habitação, composto de casa de cave, rés-do-chão e andar) em benefício do executado (locatário financeiro) e que o locador está obrigado a vender no fim do contrato e caso este queira, ex vi do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 9.º do Dec.Lei n.º 149/95, de 24/06.
São elementos do contrato de locação financeira, a cedência do gozo temporário de uma coisa pelo locador, a aquisição ou construção dessa coisa por indicação do locatário, a retribuição correspondente à cedência, a possibilidade de compra, total ou parcial, por parte do locatário, o estabelecimento de prazo por convenção e a determinação ou determinabilidade do preço de cedência, nos termos fixados pelo contrato.
Quer isto dizer que na locação financeira o locatário, concretizado o contrato, tem o direito potestativo de adquirir o bem locado nos termos e pelo preço previamente pactuados, mantendo o locador financeiro a titularidade da posse efectiva dos bens objecto do contrato exercida através do locatário. O locador, porém, conserva sempre a propriedade plena da coisa, sendo a compra pelo locatário apenas opcional.
Deste modo, consubstanciando a penhora efectivada uma expectativa jurídica por parte do executado cujo objecto é a aquisição de um imóvel, o regime legal a observar é o que está especialmente descrito no art.º 860.º -A, do C.P.Civil, inserido sistematicamente na categoria de “penhora de direitos” e, assim, terá de ser tratada, como efectivamente o foi e até sem que esteja demonstrada a oposição do recorrente neste particularizado passo detectado na tramitação processual ora em exame.

Neste enquadramento legal, considerando que só se aplica o regime de penhora de imóveis quando esteja em causa a penhora do direito de propriedade exclusiva sobre imóveis, porque não tem estas características a penhora realizada no processo ora em análise - não está penhorado o imóvel objecto do contrato de locação financeira - a penhora destas expectativas e direitos (reais) de aquisição faz-se mediante notificação à pessoa de que o executado pode vir a adquirir os direitos reais de gozo ou de garantia, aplicando-se, pois, o trâmite dos artigos 856.º e seguintes.
Tendo na devida conta que enquanto a aquisição se não consumar - pode até acontecer que ela nunca se venha a concretizar - o objecto a adquirir é insusceptível de ser penhorado, à penhora de direitos assim solidificada não se aplicam os efeitos substantivos e processuais da penhora sobre o imóvel abstractamente naquela contido - muito embora o exequente (consumada a aquisição) deva inscrever no registo a penhora que, doravante, passa a incidir sobre o bem transmitido, os seus efeitos não se retrotraem à data da realização da penhora da expectativa ou do direito de aquisição, uma vez que a penhora do direito ou a expectativa de aquisição não é registável, J. P. Remédio Marques; Curso de Processo Executivo Comum; pág. 232/233. igualmente podemos asseverar que a realização da penhora de que falamos não está dependente nem sujeita às regras do registo inerentes a imóveis e se torna eficaz com a notificação à pessoa de quem o executado pode vir a adquirir o direito acordado no pacto celebrado.

Foi este o entendimento professado na sentença recorrida e, por isso, a ela damos a nossa aquiescência relativamente à solução final dada ao litígio.

Pelo exposto, julgando improcedente o recurso, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

Guimarães, 19 de Abril de 2007.