PROPRIEDADE DE IMÓVEL
DIREITO DE PROPRIEDADE
ABUSO DE DIREITO
ÁRVORE
Sumário

I- Age com abuso de direito quem planta e conserva no seu prédio, junto à linha divisória do mesmo com outro, dois pinheiros, cuja caruma ( provinda em parte de galhas que não pendem sobre o prédio confinante) cai, por força do vento, no logradouro e no telhado do prédio vizinho, obrigando o proprietário deste a constantes limpezas, em ordem a evitar possíveis quedas e infiltrações de humidade no telhado e nas paredes da sua casa, por entupimento dos algerozes.
II- A sanção adequada a tal abuso consiste em cortar os pinheiros porque só ela permite evitar que os autores lesados continuem a sofrer danos, que de outra maneira continuariam a sofrer, ou venham a sofrer danos de outra natureza, sem prejuízo da indemnização em dinheiro dos danos já verificados e dos que eventualmente tiverem lugar até ao corte dos pinheiros.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:


*
A e mulher B intentaram a presente acção com processo sumário contra C pedindo que: a) se declare que são donos e legítimos possuidores do prédio descrito no art. 1º da p.i.; b) se condene o réu a cortar os pinheiros existentes no seu prédio, concretamente junto à linha divisória deste com a propriedade dos réus; c) se condene o réu a pagar-lhes a título de danos patrimoniais a importância já liquidada de 3.827,00€, acrescida de juros de mora legais desde a citação até integral pagamento; d) e se condenar o réu a pagar-lhes todos os montantes que estes vierem a despender com as limpezas que sejam forçados a fazer, até ao efectivo corte dos pinheiros, bem como os demais prejuízos que venham a sofrer, os quais, por ainda não estarem determinados, serão liquidados em execução de sentença.
Para tanto, alegam que no logradouro do prédio do réu existem dois pinheiros junto à linha divisória com o prédio dos autores cujos ramos invadem o espaço aéreo deste prédio; que destes pinheiros caem pinhas e caruma para o caminho paralelo de acesso dos autores à sua garagem e habitação, em todo o logradouro que circunscreve a casa de habitação dos autores e no telhado da mesma, dado que a casa dos autores fica em nível inferior à do réu; que essa caruma e essas pinhas obrigam os autores a limpar constantemente o logradouro para evitar alguma queda; que a caruma acumulada no telhado já provocou e provoca entupimento dedos algerozes, provocando infiltração de humidade nos tectos e nas paredes, o que obriga os autores, durante o ano, a mandar limpar duas vezes o telhado e os algerozes; que as raízes dos pinheiros se introduziram no terreno dos autores provocando inúmeras fissuras no pavimento e no muro junto à garagem e anexos; que solicitaram ao réu que cortasse os pinheiros ou pelos menos os ramos que pendem sobre a propriedade dos autores mas aquele nada fez, como nada fez em relação às raízes; que o uso da faculdade do art. 1366º do CC de que os autores não lançaram ainda mão para evitar problemas também não resolve os problemas, designadamente o da caruma que vai continuar a ser a arrastada por força do vento para o seu prédio, não evita que as raízes depois de cortadas voltem a crescer; para além dos aborrecimentos e incómodos os autores receiam ser atingidos por uma pinha ou que o seu veículo o seja; receiam também que uma tempestade derrube os pinheiros para cima da sua casa; alegam, ainda, prejuízos com a limpeza do telhado e reparação do pavimento.
Contestaram os réus, recusando o direito dos autores ao corte dos pinheiros, que está vedado por legislação que cita, invocando, ainda, o disposto no art. 1366 do CC.
Responderam, ainda, os autores, sustentando que só o corte dos pinheiros é susceptível de remover os prejuízos constantes que a situação acarreta
Foi proferido despacho saneador, que afirmou a regularidade da lide, dispensando-se a selecção da matéria de facto.
Realizou-se, depois, o julgamento, no decurso do qual se procedeu a uma inspecção ao local e que culminou com a decisão da matéria de facto que não foi objecto de reclamação.
Após o que foi proferida sentença que conclui
“Pelo exposto, nos termos de Direito invocados, julgo a acção parcialmente procedente e:
a) declaro os autores donos e legítimos possuidores do prédio urbano, constituído por casa de dois pavimentos e logradouro. sito no Lugar do Calvário, freguesia de Loivo, concelho de Vila Nova de Cerveira, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 166 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Cerveira sob o n° 00731/250996;
b) absolvo o réu dos demais pedidos.
Custas pelos autores.
Registe e notifique.”
Desta sentença vieram os autores interpor recurso, rematando a respectiva alegação com as conclusões que se transcrevem:
“1 ° - O disposto no art. 1366° do Código Civil apenas define os limites da licitude da plantação das árvores e a possibilidade do dono do prédio vizinho eliminar as raízes e os galhos que ultrapassem tal limitação.
2° - Todavia, a referida limitação física não pode circunscrever a responsabilidade pelos danos que advenham de qualquer plantação, na medida em que, caso assim fosse, estariam totalmente desprotegidos todos os direitos e garantias dos vizinhos.
3° - O nosso ordenamento jurídico contempla normas que impõem restrições à liberdade dos titulares do direito de propriedade, concretamente quanto às relações de vizinhança.
- Segundo o art. 1346° do Código Civil "o proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes do prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substância para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam. "
- Tal norma tem especialmente em vista a emissão ou projecção de agentes físicos com carácter de continuidade ou, pelo menos, de periodicidade, que tenham a sua fonte em determinado prédio e perturbem a utilização normal do prédio contíguo.
- Todavia, a enumeração constante do art. 1346° do Código Civil não é taxativa, dando apenas um conceito geral.
- Pelo que, cabe ao intérprete da norma enquadrar, no referido preceito, as diversas situações que aí tenham acolhimento.
8°- Ora, o facto dos pinheiros implantados na propriedade do Réu largarem caruma que se dissipa por todo o prédio dos Autores, terá, necessariamente, de ter enquadramento no referido normativo.
9° - Pois que, não seria razoável que a lei facultasse a possibilidade do vizinho se opor à emissão de corpos gasosos, ou de pequenas partículas, e não possibilitasse a oposição à projecção de corpos de maior volume, neste caso, caruma, pinhas, ramos, etc.
10° - Assim sendo, assiste aos Autores o direito de se oporem à projecção de caruma para a sua propriedade.
11 ° - Tanto mais que, está clamorosamente provado nos autos que a emissão da caruma que atinge a propriedade dos Autores provoca um prejuízo substancial para o uso do imóvel.
12° - Acresce que, não pode o titular da faculdade de plantar as árvores até à linha divisória exercer tal direito prejudicando direito de terceiros.
13° - Segundo o disposto no art. 334° do Código Civil "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.))
14° - Ora, in casu, a actuação do Réu excede claramente os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes.
15° - É inconcebível que o Réu, no exercício do seu direito de propriedade, provoque danos no prédio vizinho, onerando, assim, terceiros com prejuízos que advém do seu exercício.
16° - O abuso de direito consubstancia o exercício de qualquer direito por forma anormal, quanto à sua intensidade, ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo de direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular, e as consequências que outros têm que suportar.
17° - Assim, face aos danos que o exercício do direito de propriedade do Réu provoca no prédio dos Autores, é manifesto que estamos perante uma situação de abuso de direito.
18° - Pelo que, deve o Réu indemnizar os Autores pelos prejuízos sofridos.
19° -- Sendo certo que, não obstante a faculdade consagrada na segunda parte do n° 1 do art. 1366° do Código Civil -"arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ela propendem, se o dono da árvore, sendo rogado judicialmente ou extra judicialmente, o não fizer dentro de três dias - a verdade é que, os Autores não poderia, nem podem, evitar os danos em causa nos autos.
20º - É manifesto que, in casu, o corte das galhas dos pinheiros que impendem sobre o logradouro do prédio dos Autores não obstaria a que o telhado continuasse a ser pejado de caruma e, consequentemente, provocasse danos.
21º - Pois que, conforme se encontra provado a caruma provém também de galhas que não impendem sobre a propriedade dos Autores.
22º - Acresce que, encontra-se igualmente provado que "as raízes dos mesmos pinheiros introduziram-se no terreno dos Autores e provocaram várias fissuras no muro e no pavimento, e ainda neste o levantamento de lajes, junto à garagem e aos anexos.
23° - Assim, a introdução das raízes na propriedade dos Autores revelou-se através dos danos que causou sobre o pavimento e o muro.
24° - Pelo que, os Autores só puderam constaram a invasão da sua propriedade quando os danos estavam consumados.
25° - Sendo certo que, não era, nem é, legitimo impor aos Autores que destruíssem o pavimento e o muro para verificarem se as raízes estavam, ou não, a invadir a sua propriedade.
26° - Além do mais, conforme se encontra provado, o simples corte das raízes junto à linha divisória dos prédios não obstaria definitivamente à ocorrência de danos.
27° - Resulta claro dos autos que a única forma de evitar a ocorrência de danos na propriedade dos Autores será através do corte dos pinheiros.
28° - Por outro lado, o art. 335° do Código Civil, estabelece duas soluções para a colisão de direitos, consoante sejam ou não iguais ou da mesma espécie.
29º - No caso dos autos, no que tange aos Autores, além do pleno exercício do direito de propriedade estão também em causa o direito à segurança, o direito à liberdade de mobilidade, o direito de habitação, o direito à integridade física, o direito ao sossego e à qualidade de vida.
30º - Sendo que, é manifesto, evidente e claro que a situação dos autos limita e altera a normal vivência dos Autores, os quais se vêem obrigados a actuar em função das imposições que os factos lhe determinam.
31º - A todos assiste o direito de exercer o direito de propriedade de forma despreocupada, entendendo-se como tal o direito de usufruir de habitação própria sem a constante inquietude de vigiar, limpar e recolher as sujidades decorrentes do exercício do direito de propriedade de terceiros.
34º - Assim, os direitos dos Autores, pela sua natureza, prevalecem em relação ao direito do Réu, ou seja, ao direito de propriedade.
35º - Uma vez que, o exercício do direito de propriedade do Réu excede a medida das obrigações ordinárias de vizinhança, causando, assim, prejuízos materiais e pessoais aos Autores, o seu direito terá, necessariamente de ceder perante a prevalência do direito dos Autores.
36° - Todavia, caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese se concebe, terão ambos os direitos de ser harmonizados de forma a minimizar os prejuízos que do seu exercício decorrem.
37° - Deve pois ser revogada a douta decisão de 1ª instância, julgando-se a acção totalmente procedente e condenando-se o Réu nos pedidos formulados.
38° - Assim, no modesto entendimento dos recorrentes, a douta decisão recorrida violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 334°, 335°, 483°, 1346° e 1366° todos do Cód. Civil.”
Pedem que se revogue a decisão recorrida, substituindo-se por uma outra que julgando a acção totalmente procedente, condene o réu nos pedidos formulados.
O recorrido não respondeu.
Cumpre decidir:
A matéria de facto provada dada como provada na 1ª instância é a seguinte:
1 - Os AA. são donos e legítimos possuidores do seguinte imóvel:
Prédio urbano, constituído por casa de dois pavimentos e logradouro. sito no Lugar do Calvário, freguesia de Loivo, concelho de Vila Nova de Cerveira, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 166 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Cerveira sob o n° 00731/250996.

2 - Tal prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Cerveira a favor dos A.A. através da inscrição G-1.

3 - O imóvel adveio à titularidade dos A.A. através de escritura pública de compra e venda, celebrada no dia 10 de Dezembro de 1971, no Cartório Notarial de Vila Nova de Cerveira e exarada a fls. 61 verso a 64 verso, do livro de notas para escrituras diversas B – 30.

4 - Por si e seus antecessores, os AA. estão na posse pública, pacifica, contínua e de boa-fé do citado imóvel, há mais de 1, 15, 20, 30, 40 e mais anos, reconstruindo a casa e dependências, habitando-a e nela praticando todos os actos característicos de uma normal habitação, nomeadamente confeccionando e tomando as refeições, dormindo, nela recebendo amigos e correio, jardinando o logradouro, em suma, retirando todas as suas potencialidades, de harmonia com as seus interesses e conveniências.

5 – Por sua vez, o réu é dono e legítimo possuidor do seguinte imóvel:

Uma casa de habitação e logradouro, sita no lugar do Calvário, freguesia de Loivo, concelho de Vila Nova de Cerveira.

6 – As propriedades dos autores e do réu são contíguas, confrontando directamente entre si.

7 – O limite sul do prédio dos autores confina directamente com o limite norte do imóvel do réu.

8 – No logradouro do prédio do réu existem dois pinheiros, junto à linha divisória com o prédio dos autores, cujos ramos atingem parte do espaço aéreo do prédio dos autores.

9 – Os ramos dos pinheiros têm pinhas.

10 – O facto de um dos acessos ao prédio dos AA., tanto à casa de habitação como aos anexos e garagem, fazer-se paralelamente com a linha divisória do imóvel do réu, e aí caírem pinhas e carumas provenientes dos pinheiros existentes no logradouro do Réu, coloca os AA. perante o risco iminente de serem atingidos por uma pinha;

11 – Os autores circulam no caminho de acesso à garagem e habitação.

12- Os AA. vêem e sentem as pinhas a atingirem o seu terreno e caminho de acesso;

13 - As pinhas e caruma não caem apenas no acesso referido mas também, com a força do vento, em quase todo o logradouro que circunscreve a casa de habitação dos AA., bem como no telhado da mesma, atento o desnível entre o prédio do Réu e a casa de habitação dos AA., onde se expandem;

14 – A casa de habitação dos autores fica desnivelada em relação ao prédio do réu, ou seja, dois socalcos abaixo deste.

15 - Devido à caruma e pinhas que caem no seu prédio, os AA. vêem-se obrigados a limpar o logradouro do seu prédio, sempre que a mesma se acumula nas escadas que ligam os dois socalcos que compõem o seu prédio, em quantidade que os faça recear que pisando a mesma alguém possa escorregar e cair;

16 - A caruma acumulada no telhado da casa de habitação dos AA já provocou infiltrações de humidade no tecto da habitação principal e a que se acumula nos algerozes provoca entupimento dos mesmos, o que faz com que a água transborde e escorra pelas paredes da casa, o que provocou e provoca infiltração de humidade nas paredes;

17 - Durante o ano, os AA, vêm-se obrigados, para evitar estragos, a mandar limpar pelo menos duas vezes o telhado e respectivos algerozes, o que fizeram: em Dezembro de 2002, tendo pago por tais serviços a Eurico Pereira 357,00 Euro; em Outubro de 2004, tendo pago 404,60 Euros; em Dezembro de 2004, tendo pago 83,30 Euros; em Maio de 2005, tendo pago 326,70 Euros; em Dezembro de 2005, tendo pago 350,90 Euros;

18 - As raízes dos mesmos pinheiros introduziram-se no terreno dos AA. e provocaram várias fissuras no muro e no pavimento, e ainda neste o levantamento de lajes, junto à garagem e aos anexos;

19 - A empresa de construção “Eurico J. Silva Pereira, Construções, Lda” elaborou um orçamento, em 15/1/2003, a pedido do Autor marido para reparação do pavimento junto à garagem e aos anexos, fissurado e levantado devido à pressão das raízes dos pinheiros supra referidos, com o valor de 1.685,00 Euros;

20 - A casa de habitação dos A.A. existe há mais de 70 anos, ainda que tenha sido por estes aumentada e reconstruída, e quando a mesma foi construída, os pinheiros hoje implantados no prédio do Réu não existiam;

21 - Atento o desnível entre as duas propriedades, a caruma proveniente das galhas dos pinheiros que não pendem para a propriedade dos AA. são arrastadas para o prédio dos AA., pela força do vento;

22 - O corte dos pinheiros obstará em definitivo à danificação do pavimento;

23 - O simples corte das raízes junto à linha divisória dos prédios não implica que as mesmas voltem a crescer;

24 - Os AA. andam aborrecidos e transtornados, pois não podem desfrutar do logradouro da casa despreocupadamente, vendo-se obrigados a limpar periodicamente a sua propriedade da caruma, galhas e pinhas que caem dos pinheiros;

25 - Os AA. receiam que a todo o momento uma pinha se desprenda e caia sobre eles ou sobre o veículo automóvel;

26 - O veiculo automóvel, para aceder a garagem ou dela sair, tem necessariamente de passar sob a copa dos referidos pinheiros;

27 - Os Autores são obrigados a manterem vigilância sobre o telhado da sua casa, a fim de retirarem a caruma ai caída, assim evitando o entupimento dos algerozes e inundações na casa;

28 - Os AA. têm de retirar a caruma e pinhas caídas no resto do logradouro do seu prédio;

29 - Os AA. receiam que durante uma das invernais tempestades, os citados pinheiros caiam sobre a sua casa e na mesma provoquem prejuízos gravosos, uma vez que os mesmos se encontram em zona desabrigada, na parte mais alta de Loivo, e batida a ventos fortes.
O Direito:

Os autores invocam agora, em sede de recurso, o disposto no art. 1346 do CC, que lhes confere, na sua perspectiva, o direito de se oporem à projecção de caruma para a sua propriedade.
Consideram, por outro lado, que o exercício do direito do réu, enquanto proprietário, plantar as árvores até à linha divisória é claramente abusivo, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes.
Sustentam, por isso, que face aos danos que o exercício do direito de propriedade do réu provoca no seu prédio, existe uma clara situação de abuso de direito.
Argumentam, também, que o uso da faculdade consagrada na segunda parte do n° 1 do art. 1366° do Código Civil, que permite ao dono do prédio vizinho "arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ela propendem, se o dono da árvore, sendo rogado judicialmente ou extra judicialmente, o não fizer dentro de três dias “ não poderia evitar os danos em causa; isto porque, o corte das galhas dos pinheiros que impendem sobre o seu logradouro não obstaria a que o telhado continuasse a ser pejado de caruma e, consequentemente, provocasse danos, pois que, conforme se encontra provado, a caruma provém também de galhas que não impendem sobre a sua propriedade; e ainda porque não tiveram possibilidade de constatar, com antecedência, a introdução das raízes na sua propriedade que apenas se revelou através dos danos que causou sobre o pavimento e o muro, sendo que não era legitimo impor-lhes que destruíssem o pavimento e o muro para verificarem se as raízes estavam, ou não, a invadir a sua propriedade, além de que, conforme se encontra provado, o simples corte das raízes junto à linha divisória dos prédios não obstaria definitivamente à ocorrência de danos.
Concluem, assim, que a única forma de evitar a ocorrência de danos na sua propriedade será através do corte dos pinheiros.
Invocam, depois, o disposto no art. 335 do Código Civil, para concluir que os seus direitos (o direito de propriedade, o direito à segurança, o direito à liberdade de mobilidade, o direito de habitação, o direito à integridade física, o direito ao sossego e à qualidade de vida) prevalecem sobre o direito de propriedade do réu, uma vez que o exercício deste direito excede a medida das obrigações ordinárias de vizinhança, causando-lhes, assim, prejuízos materiais e pessoais.
Se assim não se entender, terão ambos os direitos de ser harmonizados de forma a minimizar os prejuízos que do seu exercício decorrem.
Vejamos então as questões postas:
Dispõe o art. 1346 do CC: “O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes do prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam. "
Consideram os recorrentes que tal norma tem especialmente em vista a emissão ou projecção de agentes físicos com carácter de continuidade ou, pelo menos, de periodicidade, que tenham a sua fonte em determinado prédio e perturbem a utilização normal do prédio contíguo, como é o caso da caruma que se dissemina por todo o prédio dos autores, não sendo razoável que a lei facultasse a possibilidade de o vizinho se opor à emissão de corpos gasosos, ou de pequenas partículas, e não lhe possibilitasse a oposição à projecção de corpos de maior volume como a caruma, pinhas, ramos, etc.
Porém, não parece que esta disposição se adapte à situação dos autos.
É certo que “ o art. 1346 do CC, referente à emissão de fumos, fuligens, vapores, cheiros, calor, ruídos e à produção de trepidações, tem especialmente em vista as emissões de agentes físicos, com carácter de continuidade ou, pelo menos, de periodicidade, que tenham a sua fonte em determinado prédio e perturbem a utilização normal do prédio contíguo “ (Antunes Varela, RLJ, 114º- 74).
Todavia, emissões de agentes físicos não significam emissões de natureza corpórea; diz-se que são físicos para excluir influências ou reflexos de natureza diversa, efeitos de realidades meramente psicológicas ou sociais (cfr. Antunes Varela, CC anotado, 2ª edição, III, 177; Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, 592).
Como escreve Antunes Varela, citando Henrique Mesquita “só estão sujeitos ao regime fixado, (...), as emissões de elementos que tenham natureza incorpórea (vapor, ruídos, correntes eléctricas, raios luminosos) e as de elementos corpóreos de tamanho ínfimo (fuligem, poeira, cinza, etc. Às emissões de outros corpos sólidos (v.g. fragmentos de granitos provenientes de pedreiras em exploração) ou líquidos poderão os proprietários sempre opor-se... “ (ob. cit., 177)
Sustentam os recorrentes que existe, de qualquer modo, abuso de direito, uma vez que o réu, com os danos que causa no prédio dos autores, excede, no exercício do seu direito de propriedade, os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes.
Nos termos do art. 1366, nº 1 do CC “ é lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios; mas ao dono do prédio vizinho é permitido arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ele propenderem, se o dono da árvore, sendo rogado judicialmente ou extrajudicialmente, o não fizer dentro de três dias“.
Parece, pois, pacífico que o art. 1366 do CC não atribui ao vizinho, prejudicado com as árvores, o direito de pedir indemnização ao dono delas pelos prejuízos sofridos com a invasão das raízes e do tronco ou ramos na medida em que os pode evitar exercendo o seu direito de os cortar (Antunes Varela, ob. cit., 231; Ac.R.Lx. de 22.9.92, Col. 92, 4º-198).
Quanto às raízes dos pinheiros, está provado que elas se introduziram no terreno dos autores e provocaram várias fissuras no muro e no pavimento, e ainda neste o levantamento de lajes, junto à garagem e aos anexos (cfr. ponto 18 da matéria de facto).
Não parece, no entanto, que, com este fundamento, os autores possam exigir o corte dos pinheiros e reclamar a indemnização pela reparação do pavimento.
O art. 1366 do CC veda essa possibilidade, fazendo recair sobre os autores o ónus de cortar as raízes antes do dano se verificar, nem que para tal tenham de exigir do réu o corte das raízes, a que não tenham acesso, para evitar danos (Antunes Varela, ob. cit., 231e 232).
E nem a alegada circunstância de os autores só terem podido constatar a invasão da sua propriedade já quando os danos estavam consumados (pois só destruindo o pavimento e o muro é que podiam verificar se as raízes estavam ou não a invadir a sua propriedade) é passível de lhes conferir qualquer indemnização, que a lei, tudo o indica, quis excluir.
Sobre esta matéria, convém, aliás, precisar que não está provado que “ o simples corte das raízes junto à linha divisória dos prédios não obstaria definitivamente à ocorrência de danos” mas apenas – o que é diferente – que “ o simples corte das raízes junto à linha divisória não implica que as mesmas voltem a crescer”.
Porém, os autores não alegam apenas danos relacionados com as raízes que se introduziram no seu terreno e com o tronco ou ramos que sobre ele propendem.
Está provado, com interesse:” 13 - As pinhas e caruma não caem apenas no acesso referido mas também, com a força do vento, em quase todo o logradouro que circunscreve a casa de habitação dos AA., bem como no telhado da mesma, atento o desnível entre o prédio do Réu e a casa de habitação dos AA., onde se expandem; 15 - Devido à caruma e pinhas que caem no seu prédio, os AA. vêem-se obrigados a limpar o logradouro do seu prédio, sempre que a mesma se acumula nas escadas que ligam os dois socalcos que compõem o seu prédio, em quantidade que os faça recear que pisando a mesma alguém possa escorregar e cair; 16 - A caruma acumulada no telhado da casa de habitação dos AA já provocou infiltrações de humidade no tecto da habitação principal e a que se acumula nos algerozes provoca entupimento dos mesmos, o que faz com que a água transborde e escorra pelas paredes da casa, o que provocou e provoca infiltração de humidade nas paredes; 21 - Atento o desnível entre as duas propriedades, a caruma proveniente das galhas dos pinheiros que não pendem para a propriedade dos AA. são arrastadas para o prédio dos AA., pela força do vento; 24 - Os AA. andam aborrecidos e transtornados, pois não podem desfrutar do logradouro da casa despreocupadamente, vendo-se obrigados a limpar periodicamente a sua propriedade da caruma, galhas e pinhas que caem dos pinheiros; 27 - Os Autores são obrigados a manterem vigilância sobre o telhado da sua casa, a fim de retirarem a caruma ai caída, assim evitando o entupimento dos algerozes e inundações na casa”
Está, assim, provado que a caruma provem também de galhas que não pendem sobre a propriedade dos autores (pontos 13 e 21).
O corte das galhas que pendem sobre o logradouro não obsta, pois, a que a caruma das galhas que não invadem a propriedade continue a cair, por força do vento, no logradouro e no telhado, obrigando os autores a limpezas, para desentupir os algerozes e evitar infiltrações de humidade (pontos 15, 16, 24 e 27)
Ora, é a manutenção de uma tal situação que se torna abusiva.
O direito do réu de plantar os pinheiros junto à linha divisória e de aí os conservar com as consequências apuradas é abusivo.
Senão vejamos:
Estabelece o art. 334 do CC que "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
Daqui se infere que o exercício de um direito é abusivo quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Manuel de Andrade, "Teoria Geral das Obrigações", Coimbra, Almedina, 1963, pág. 63).
Ou, como também se costuma dizer, quando ofende o sentimento jurídico socialmente dominante.
Ora, o direito do réu de plantar os pinheiros junto à linha divisória e de aí os conservar tem as seguintes consequências: obriga os autores a limpar o logradouro sempre que a caruma se acumule nas escadas que ligam os dois socalcos que compõem o seu prédio, em quantidade que os faça recear que pisando a mesma alguém possa escorregar e cair (ponto 15); provoca a acumulação de caruma no telhado da casa de habitação dos AA, que pode dar origem a infiltrações de humidade no tecto da habitação principal, provocar o entupimento dos algerozes, fazendo com que a água transborde e escorra pelas paredes da casa, infiltrando-as de humidade (16); desassossega permanentemente os autores que não podem desfrutar do logradouro da casa despreocupadamente, vendo-se obrigados a limpar periodicamente a sua propriedade da caruma (24); obriga-os a manterem vigilância sobre o telhado da sua casa, a fim de retirarem a caruma ai caída, assim evitando o entupimento dos algerozes e inundações na casa (25).
Estão assim sob ameaça permanente o direito dos autores ao sossego, tranquilidade e bem-estar, à sua integridade física (direito com tutela legal e até constitucional, nos termos do art. 70 do CC e art. 25 da CRP, respectivamente, com dignidade superior ao do réu) e até o seu direito de propriedade.
Nestas circunstâncias, o direito do réu, pelas consequências que tem na vida dos autores, fere as regras de convivência civilizada entre vizinhos, podendo dizer-se que excede manifestamente os limites impostos pelos bons costumes.
Os bons costumes “ são uma noção variável com o tempo e o lugar, abrangendo um conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento (...) “ (Mota Pinto, Teoria Geral, 1967, 306).
Embora a lei não indique as consequências do abuso de direito e se limite a declará-lo ilegítimo tem-se entendido que compete ao juiz determinar a sanção ou as sanções adequadas ao caso concreto, que podem ir desde a obrigação de indemnizar (caso haja dano) até à nulidade, nos termos gerais do art. 294 do Código Civil, passando pela legitimidade de oposição ou pelo alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade (Vaz Serra, RLJ ano 107º, pág. 25, citado por Antunes Varela, CC anotado, 3ª edição, Vol. I - 297; Ac. STJ de 21.9.93, Col. 93 STJ- III-19; Mário Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª edição, 64; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, 547).
E aqui parece-nos que a sanção adequada consiste em cortar os pinheiros porque só ela permite evitar que os autores continuem a sofrer danos, que de outra maneira continuariam a sofrer, ou venham a sofrer outros de outra natureza, sem prejuízo da indemnização em dinheiro dos danos já verificados e dos que eventualmente tiverem lugar até ao corte dos pinheiros.
Resta verificar a extensão da obrigação da indemnização em dinheiro:
Os autores pediram a indemnização dos prejuízos tidos com a limpeza do telhado e com o pavimento, que precisa de ser reparado.
Porém, e como acima notámos, os autores não têm direito ao valor do custo da reparação do pavimento danificado (art. 1366 do CC).
Têm, no entanto, direito a serem indemnizados pelas despesas que tiveram de fazer com a limpeza do telhado e respectivos algerozes.
Provou-se que se viram obrigados “ para evitar estragos, a mandar limpar pelo menos duas vezes o telhado e respectivos algerozes, o que fizeram: em Dezembro de 2002, tendo pago por tais serviços a Eurico Pereira 357,00 Euros; em Outubro de 2004, tendo pago 404,60 Euros; em Dezembro de 2004, tendo pago 83,30 Euros; em Maio de 2005, tendo pago 326,70 Euros; em Dezembro de 2005, tendo pago 350,90 Euros” (ponto 17)
O que ascende à quantia total de € 2.142,00.
Porém, tendo em conta que o comportamento omissivo dos autores (que não arrancaram os ramos dos pinheiros que invadiam a sua propriedade) concorreu para esse valor, reduz-se o valor da indemnização para metade da pedida, ou seja, para € 1.071,00 (art. 570 do CC).
Os autores formularam, ainda, um pedido genérico, ou seja, pediram a condenação do réu a pagar-lhes “ todos os montantes que vierem a despender com as limpezas que sejam forçados a fazer até ao efectivo corte dos pinheiros bem como os demais prejuízos que venham a sofrer, os quais, por não se encontrarem ainda determinados, serão liquidados em execução de sentença.”
Nos termos do art. 471, nº 1, al. b) do CPC é permitido formular pedido genérico “ quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o art. 569 do Código Civil “.
Não é possível determinar as consequências do facto ilícito quando não é possível conhecer o montante do dano sofrido ou quando não é possível prever novos danos (Lebre de Freitas, CPC, anotado, vol. 2º, 239).
Deve, ainda, o réu (dentro da mesma lógica de proporção de responsabilidades) suportar metade dos montantes que os autores vierem a despender com as limpezas que sejam forçados a fazer e metade do valor da indemnização de outros prejuízos (provocados pela caruma que se depositar no prédio dos autores) valores a apurar em execução de sentença (art. 471, nº 2 e art. 661 do CPC).
Invocaram, ainda, os recorrentes o disposto no art. 335 do Código Civil, para concluir que os seus direitos (o direito de propriedade, o direito à segurança, o direito à liberdade de mobilidade, o direito de habitação, o direito à integridade física, o direito ao sossego e à qualidade de vida) deviam prevalecer sobre o direito de propriedade do réu.
Sucede, porém, que a colisão de direitos pressupõe a existência e validade dos direitos concorrentes (Pessoa Jorge, Pressupostos da Responsabilidade Civil, 201).
“Para haver colisão de direitos, têm de estar frente a frente dois direitos subjectivos, ou seja, o comportamento de cada titular tem de preencher, por hipótese, o seu direito, não só estruturalmente, na forma que lhe cabe, mas também na valoração jurídica que em concreto lhe dá sentido. De outro modo, poderíamos ter um conflito entre um direito, materialmente actuado e um outro e diverso fenómeno que poderia até consistir no abuso de um direito – mas não já uma colisão de direitos, porque um dos sujeitos actuaria sem direito ou para lá do seu direito (F. Cunha e Sá, Abuso do Direito, 528 e 529, citado por Abílio Neto, CC anotado, 13ª edição, 277)”.
Tendo-se reputado ilegítimo, por abusivo, o exercício do direito do réu, fica, portanto, prejudicada a apreciação da questão da colisão de direitos prevista no art. 335 do CC, que pressupõe o exercício legítimo dos direitos em conflito.
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a apelação parcialmente procedente e consequentemente:
a) condenar o réu a cortar os pinheiros existentes no seu prédio junto à linha divisória deste com o prédio dos autores;
b) condenar o réu a pagar aos autores, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 1.071,00 acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;
c) condenar o réu a suportar metade do montante que os autores vierem a despender com limpezas forçadas e metade do montante necessário à indemnização de outros prejuízos, que forem também eles consequência da caruma depositada no prédio dos autores até ao efectivo corte dos pinheiros, devendo os montantes serem apurados em execução de sentença;
d) manter a alínea a) da sentença.
As custas na 1ª instância e as da apelação ficam na proporção de 2/3 para o réu/apelado e 1/3 para os autores/apelantes.


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Guimarães, 12 de Junho de 2007