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MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
EFICÁCIA DO NEGÓCIO
Sumário
I - Se A compra um prédio a B, em nome próprio, e, por acordo entre A e C, o prédio se destina a C, havendo o objectivo de enganar D, filho de C, não se configura simulação nem reserva mental mas apenas um mandato sem representação. II - Esse contrato de mandato entre A e C não tem eficácia real mas apenas obrigacional, sendo o mandatário obrigado a transferir para o mandante o direito adquirido. III - Falecendo o mandante C, o seu herdeiro D não pode exigir de B a restituição do prédio, em acção de reivindicação, mas apenas o cumprimento da obrigação de transferência do direito.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto.
Rosa Maria ........intentou no Tribunal da comarca de Barcelos uma acção com processo ordinário contra Maria ......., pedindo que esta seja condenada: a) "a ver declarar que o verdadeiro adquirente e dono do prédio misto descrito no artigo 13 desta petição, titulado por escritura de 28/12/1976, outorgada no 2º Cartório Notarial de Barcelos, foi o falecido pai da autora, José ...... e não a ora ré, que não passou de uma adquirente fingida, para enganar e prejudicar a autora, ocultando o património de seu pai e privando-a da herança deste"; b) "e quando assim se não entenda, condenar-se em todo o caso a ré a restituir o prédio à autora, por ter abusado da procuração que tinha de seu irmão para comprar prédios, adquirindo abusivamente para si e contra os interesses do mandante e da autora, o prédio descrito no artigo 13 desta petição ( artigos 258 e alíneas a) e e) do artigo 1161, artigos 1178 e nº 1 do artigo 1181, todos do Código Civil )"; c) "a restituir à autora o prédio descrito no artigo 13 desta petição com todos os rendimentos produzidos pelo aludido prédio desde a data do falecimento de José ..... - 17 de Setembro de 1988 - e até que pague e entregue o prédio conforme se liquidar em execução de sentença e tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal que, ao presente, é de 15%"; d) "a ver declarar cancelado qualquer registo predial a favor da ré".
A ré contestou, dizendo designadamente que foi com dinheiro seu, embora em parte proveniente de mútuo, que comprou para si o prédio em causa.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente.
A autora interpôs recurso da sentença.
Diz nas conclusões da sua alegação que se violaram os artigos 217, nº 2, 241 e 244 do Código Civil e que os fundamentos invocados na sentença estão em oposição com a decisão absolutória, pelo que a sentença seria nula por violação do artigo 668 do Código de Processo Civil.
Pede se revogue a sentença, "julgando-se parcialmente procedente e provada a acção, ou sejam os pedidos formulados pela autora e ora apelante, na medida e nos limites da matéria de facto dada como provada pelo acórdão do Tribunal Colectivo".
A recorrida contra-alegou.
Factos provados, referentes ao objecto da acção:
"A autora Rosa Maria ......., nascida em 31 de Maio de 1933, está registada como filha de Maria de Fátima ........e foi reconhecida judicialmente como filha de José ......, natural da freguesia de ..........., concelho de Ponte de Lima, por sentença de 14 de Maio de 1976, transitada em julgado, do Tribunal Judicial de Ponte de Lima ( conforme certidão de folhas 93 )".
"José ....... faleceu em 17/09/1988, estando registado como filho de Domingos ....... e de Maria Rosa de ....... ( cfr. certidão de folhas 92 )".
"Em procuração lavrada no Consulado de Portugal em Bremen, na então República Federal da Alemanha, José ....... em 12/11/1976 declarou constituir sua bastante procuradora sua irmã Maria ........, dando-lhe plenos poderes para ceder a sua irmã Lucinda ...... o direito e acção à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai Domingos .......e para partilhas amigáveis ou judiciais e para comprar quaisquer bens ou direitos, conforme certidão de folhas 98 a 100".
"Por escritura de 28/12/1976, lavrada na secretaria notarial de Barcelos, Domingos ........ e mulher Maria ...... declararam vender a Maria F., que declarou comprar, pelo preço de oitocentos mil escudos, o prédio misto formado por casa de dois pavimentos e junto eirado de lavradio, sito no lugar de ......, freguesia de Lijó, a confrontar do norte com caminho público, do sul com R......, do nescente com caminho público e C....... e do poente com M......, tudo conforme certidão de folhas 101 a 104".
"Acha-se inscrita a favor da ré Maria ...... na Conservatória do Registo Predial de Barcelos, a aquisição de uma casa de rés-do-chão, duas dependências e terreno de lavradio, sitas no lugar de ........., freguesia de Lijó, desta comarca, a que correspondem os artigos matriciais
205 urbano e 85 rústico, que confronta do norte com caminho público, sul com R...... , nascente com caminho público e C............. e poente com M............., descrito sob o nº 70240, a folhas 13 do Livro B 178 da Conservatória referida, conforme certidão de folhas 83 a 86".
"Quando efectuou a declaração de compra, na escritura de 28/12/1976, mencionada em f) da especificação, a ré pretendia camuflar a sua verdadeira vontade, a qual era a de que o prédio fosse adquirido na proporção de 2/3 para o José ......... e 1/3 para ela".
"O falecido pai da autora satisfez o montante de 400 mil escudos, correspondente a 2/3 do preço da venda ( que foi de 600 mil escudos, não obstante ter ficado consignado na referida escritura o preço de 800 mil escudos )".
"O José ......... contribuiu monetariamente para a compra das máquinas agrícolas para cultivo do prédio aludido na alínea f) e contribuiu também monetariamente para a instalação de uma vacaria com ordenha macânica, em proporção de cerca de 2/3 dos respectivos preços, recebendo enquanto vivo, proventos nessa proporção".
"A falta de correspondência entre o que a ré verdadeiramente queria e o que declarou, referido supra, teve lugar concertadamente com o falecido pai da autora, com o fim de enganar esta, ocultando-lhe a quota dele sobre tal prédio".
"As vacas foram registadas em nome da ré, na Zona Agrária de Barcelos, dando-a como residente no lugar de ..........., da freguesia de .......".
"A ré embolsou até à morte do José ............ cerca de 1/3 dos proventos do prédio referido na alínea f) da especificação e, depois da morte dele, passou a embolsar todos os proventos de tal prédio".
Os factos e o direito.
Está em causa um contrato de compra e venda de um prédio misto.
Nele interveio a ré-apelada como compradora.
Ela será, como tal, uma verdadeira adquirente, já que o contrato de compra e venda tem eficácia real, isto é, o direito de propriedade transferiu-se para a ré por mero efeito do contrato, observada que foi a forma legal - artigos 408, 874, 879, alínea a), 1316 e 1317, alínea a), do Código Civil.
Só assim não seria se se verificassem factos impeditivos da aquisição.
Neste sentido a autora invoca os artigos 241 e 244, que se referem respectivamente à simulação e à reserva mental.
Em qualquer destes casos o contrato seria nulo, - artigo 240, nº 1, - mas nem a ré, nem o pai da autora seriam os titulares do direito de propriedade, considerando a eficácia retroactiva da declaração da nulidade - artigo 289, nº 1.
A simulação é definível como divergência intencional entre a vontade e a declaração, procedente de um acordo entre o declarante e o declaratário e determinada pelo intuito de enganar terceiro - cf. artigo 240, nº 1.
São, assim, requisitos da simulação:
1) divergência entre a vontade real e a vontade declarada.
2) intuito de enganar terceiros.
3) conluio entre o declarante e o declaratário ( acordo simulatório ).
No caso vertente não há simulação, porque falta o requisito do acordo simulatório ( "pactum simulationis" ).
Provou-se que houve um conluio, mas somente entre o pai da autora e a ré.
Esta, concertada com aquele, ao intervir na escritura, declarou comprar o prédio, quando na verdade apenas queria adquirir uma sua fracção ideal, um terço, pois a outra fracção, dois terços, destinava-se ao pai da autora, mas quanto a esta fracção a ré outorgou a escritura em nome próprio, para evitar que a autora, pela via sucessória, como herdeira do José ............, viesse a adquirir o direito àquela fracção.
"A reserva mental consiste em o declarante emitir conscientemente uma declaração discordante da sua vontade real, com a intenção de enganar o próprio declaratário", diferindo da simulação, porque, na reserva mental a intenção é a de enganar o próprio declaratário e, por consequência, não há acordo simulatório. ( Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 4ª reimpressão, página 216 ).
Segundo o artigo 244, seu nº 1, "há reserva mental, sempre que é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário".
É irrelevante se não for conhecida do declaratário - artigo 244, nº 2.
Ainda que a ré, ao emitir uma declaração parcialmente em discrepância com a sua vontade real, tivesse querido, não só enganar e prejudicar terceiro, mas também enganar os declaratários, a reserva seria irrelevante, válido seria o contrato, porque restaria alegar e provar o conhecimento da reserva pelos declaratários - artigo 244, nº 2.
Assim sendo, o pedido a) deduzido pela autora, - declaração de que o seu pai José ......... foi "o verdadeiro adquirente e dono do prédio...",
- não é fundamentável pela simulação, "in casu" de manifesta inexistência, nem pela reserva mental.
Resta apreciar uma eventual subsunção ao mandato.
Em b) e c) da petição inicial a autora deduziu subsidiariamente os pedidos de restituição do prédio e dos rendimentos produzidos desde a morte de seu pai, estes acrescidos de juros de mora à taxa legal.
Fundamentando, a autora invocou a violação do mandato, que seu pai tinha conferido à ré por meio de procuração.
Ao adquirir o prédio para ela, contra os interesses do mandante, a ré teria abusado da procuração.
É manifesta a inexistência de tal abuso, pois constata-se pelos termos da escritura que a autora não faz nela qualquer referência à procuração, pelo que dela não se serviu, nem dela carecia para adquirir em nome próprio o prédio em causa.
Aliás, tal aquisição concilia-se com o conluio entre a ré e o pai da autora, o que só por si exclue o invocado abuso.
O mandato com representação existe quando o mandatário realiza o negócio em nome do mandante, no interesse e por conta deste - cfr. artigo 1178 do Código Civil.
Pode existir mandato sem atribuição de poderes representativos, no que se distingue da procuração.
Neste caso, - artigo 1180 do Código Civil -, se o mandatário agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora sejam terceiros os destinatários de tais actos.
Mandato sem representação "é aquele pelo qual uma pessoa - mandante -, confia a outra, - mandatário -, a realização em nome desta, mas no interesse e por conta daquela, de um acto jurídico relativo a interesses pertencentes à primeira, assumindo a segunda a obrigação de praticar esse acto; ou, dada a noção de interposição de pessoa, como o contrato pelo qual alguém se obriga a intervir, como interposta pessoa, na realização de um acto jurídico que a esta respeita". ( v. O Mandato sem Representação, página 411, de Pessoa Jorge ).
O mandato, na definição do artigo 1157 do Código Civil, "é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra".
No caso concreto, a ré, na sequência de um conluio com o José ........., emitiu uma declaração negocial parcialmente divergente da sua vontade real, ocultando aquele como destinatário de uma fracção ideal do prédio.
É um caso de interposição real, porque nesta o interposto actua em nome próprio, mas no interesse e por conta de outrém, nos termos de um acordo entre ele e um só dos sujeitos.
Não existe conluio entre os três sujeitos, diversamente do que sucede na simulação subjectiva ou dos sujeitos, com interposição fictícia, por conluio entre os dois sujeitos reais da operação e o interposto. ( v. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, página 476 ).
A ré não fez uso de poderes representativos, não obstante a existência de uma procuração.
Ela agiu, pois, na sequência de um mandato sem representação, - artigo 1180 - pelo que adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio em causa, porque agiu em nome próprio, mas na sua qualidade de mandatária é obrigada a transferir para o mandante o direito a dois terços do prédio, que adquiriu em execução do mandato - artigo 1181 do Código Civil.
Embora um terceiro seja o destinatário dos actos, os efeitos destes verificam-se na esfera jurídica do mandatário, - artigo 1180 - assim se revelando como lícita a interposição real do mandatário sem representação, ainda que oculte a sua posição em relação ao mandante ( cf. Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 3ª edição, página 747 ).
Decorre do artigo 1181, como correlativa ao princípio geral nele consignado, uma acção do mandante de carácter pessoal e não de carácter real.
A acção do mandante não é de reivindicação, porque, antes da transferência pelo mandatário, ele não tem direito algum sobre os bens adquiridos.
Não se atribui eficácia real ao contrato de mandato sem representação.
Este é apenas um contrato obrigatório ou obrigacional, pois a sua eficácia constitutiva, modificativa ou extintiva situa-se no domínio das obrigações em sentido técnico ou direitos de crédito.
A acção do mandante destina-se apenas a obter o cumprimento de uma obrigação - a de transferir os bens, ( v. Antunes Varela, "ibidem", página 748, e anotação de Vaz Serra ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/78, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 111, página 248 ).
Por isso, no caso de incumprimento daquela obrigação, o mandante, ou por substituição deste, o seu herdeiro, não pode, com base em mandato não representativo, exigir a restituição do prédio, mas tão somente lhe é permitido exigir do interposto- -mandatário o cumprimento da obrigação de transferência, nos termos do artigo 1181 do Código Civil.
Ora, a autora permitiu-se, indevidamente, vincular uma pretensão reivindicativa, pedindo que a ré seja condenada a restituir-lhe o prédio.
Não pode, assim, proceder a acção de reivindicação que a apelante, como sucessora "mortis causa" do mandante, propôs contra a apelada, esta como mandatária sem uso de poderes representativos e numa interposição real relativamente a parte do objecto de um contrato de compra e venda.
Decisão:
Face ao exposto, confirma-se a sentença recorrida e condena-se a apelante nas custas do recurso.
Porto, 3 de Novembro de 1992
Cardoso Lopes
Metello de Nápoles
Almeida e Silva