DIFAMAÇÃO
INJÚRIA
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA CULPA
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Sumário

I – Assente que está que as expressões produzidas pelo arguido são ofensivas da honra dos assistentes, cumpre no entanto averiguar se a antijuridicidade de tal comportamento deve ou não ter-se por excluída, face à eventual ocorrência de causa de justificação.
II – A primeira observação a fazer é a de que estamos perante a formulação de juízos de valor e de atribuição de epítetos e não face a imputação de factos, pois que, na verdade, o arguido atribuiu aos assistentes não apenas factos, mas também os epítetos de “vigaristas” e “caloteiros” o que convenhamos, é uma situação muito diferente daquela em que se diz que os assistentes devem uma determinada quantia ao arguido.
III – Ou seja, não é legalmente admissível que o arguido faça prova de que os assistentes são “caloteiros” ou “vigaristas” mas, é certamente possível admitir que o arguido logre demonstrar que os assistentes afinal eram devedores de uma determinada quantia, facto que, diga-se veio a acontecer.
IV – E, como vem sendo defendido na doutrina e na jurisprudência (ver por significativo nesta matéria, o Ac. da RE de Outubro de 1996, BMJ, 460, 817), «a causa de justificação prevista no n° 2 do artº 180 do C. Penal apenas é aplicável à imputação de (actos ou à reprodução da correspondente imputação, pelo que não abrange a formulação de juízos ofensivos, a atribuição de epítetos ou palavras a que se alude no crime de injúrias, bem como a imputação de factos genéricos ou abstractos».
V - Com efeito, nos casos de formulação de juízos ofensivos o recurso à causa de justificação prevista no citado artº 180º nº 2 do C. Penal, não é legalmente possível, dada a inadmissibilidade da “exceptio veritatis”, bem como a circunstância de o legislador entender que para a salvaguarda do interesse legítimo (requisito essencial da causa da causa de justificação em apreço), basta que se possam manifestar os factos desonrosos.
VI – Daí que consideramos prejudicada a questão de saber se o arguido fez ou não prova da verdade dos factos na prossecução de um interesse legítimo.

Texto Integral

Acordam, em audiência, na Secção Criminal do tribunal da Relação de Guimarães

I)
Relatório
No processo comum singular nº 409/05 do 1º Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Guimarães, por sentença de 27.09.2007, foi para além do mais, decidido:
- condenar o arguido MANUEL P... pela prática de dois crimes de injúria, p. e p. pelo art.º 181º, n.º 1 do C.P., na pena de 40 ( quarenta ) dias de multa por cada um dos crimes praticados;
- Efectuado o necessário cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5 € (cinco euros), no total de 300 € (trezentos euros).
Foi também julgado o pedido cível parcialmente procedente e, em consequência, decidiu-se condenar o demandado no pagamento a cada um dos demandantes da quantia de 100 Euros a título de indemnização.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido, concluindo na sua motivação: (transcrição)
«A)- Vem o presente recurso interposto da sentença que, quanto à parte criminal, julgou totalmente procedente a acusação particular e condenou o arguido, ora recorrente, em cúmulo jurídico, na pena de multa de € 300,00 (sessenta dias, à taxa diária de € 5,00), pela prática de dois crimes de injúrias, previsto e punido pelo art° 181°, n° 1 do Código Penal; e quanto à parte cível, julgou o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, em consequência, condenou o ora recorrente a pagar a cada um dos demandantes a quantia de € 100,00 (cem euros) acrescida de juros de mora desde o trânsito em julgado da decisão até integral pagamento;
B) salvo melhor opinião, afigura-se que o tribunal a quo, julgando como julgou, não interpretou, nem aplicou correctamente o direito atinente;
C) para que um facto ou juízo possa ser havido como ofensivo da honra ou consideração de qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente;
D) a honra é entendida como conjunto de valores éticos que cada pessoa humana conserva na sua esfera, tais como o carácter, a lealdade, a probidade e a rectidão;
E) a consideração prende-se com o merecimento que cada um dos sujeitos adquire, ao longo da sua vivência, no meio social em que se integra, como seja, o seu bom nome, o seu crédito, a sua confiança, a sua estima e a sua reputação;
F) a tutela penal destes direitos é assegurada pelos art.os 180.° e 181.0 do Código Penal;
G) crê-se afoitamente que nem todos os juízos (consubstanciados em factos ou palavras), que envolvem uma apreciação negativa de outrem, quer das qualidades intrínsecas ou extrínsecas comportam em si uma carga ofensiva tal que mereça a intervenção da alçada penal e o seu respectivo sancionamento;
H)- os ilícitos penais sofrem limitações aos casos em que sejam ultrapassadas as barreiras da boa educação e da cortesia;
I)- o desencadear da acção penal dá-se para intervenção de comportamentos suficientemente graves, violadores do mínimo de respeito ético que a generalidade das pessoas considera imprescindível à vivência na sociedade - assiste-se, assim, a uma estreitar da honra e da consideração;
J)- apreciando as expressões: parem de mentir; são uns mentirosos; paguem-me o que me devem; seus vigaristas; caloteiros, salvo o devido respeito por melhor opinião, proferidas no circunstancialismo referido na sentença não tem, a virtualidade de serem consideradas corno ofensivas da honra e consideração dos assistentes;
L) trataram-se de expressões - ainda que com alguma firmeza - decorrentes de um contexto assaz conflitualidade e acerca de uma disputa que aos autos indirectamente indiciam ser de natureza laborai;
M) o recorrente, com tais expressões, visou transmitir que a conduta dos assistentes, especial peia função e cargo que desempenham, era manifestamente incompatível com a utilização de afirmações que não correspondiam à verdade;
N) neste sentido, as expressões proferidas pelo recorrente não são objectivamente ofensivas da honra e consideração dos assistentes;
O) Sem conceder, nunca a conduta do recorrente seria punível;
P) o crime de injúrias, previsto e punido pelo art.181º, nº 2, do Código Penal, não é punível desde que se verifiquem cumulativamente as seguintes condições: a imputação de facto desonroso ser feita para realizar interesses legítimos e, para além disso, o agente provar a verdade da mesma imputação ou ter fundamento sério, para em boa fé, a reputar verdadeira;
Q) considerando esta realidade, temos que o recorrente proferiu as mencionadas expressões com base em elementos que objectivamente avaliou, para dar satisfação ao seu interesse legítimo de cobrança da quantia de que é credor;
R) ao julgar, como julgou, salvo o devido respeito por melhor opinião, a sentença em crise violou os artigos 180º e 181º do Código Penal.

O magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância respondeu aduzindo bem elaborada argumentação tendente a demonstrar a sem razão do recorrente, batendo-se, assim, pela manutenção da decisão recorrida.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual adere no essencial à resposta oferecida pelo Mº Pº em 1ª instância.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir .

***
Com relevância para a decisão do presente recurso, importa que se transcreva agora a matéria de facto que foi dada como provada na 1ª instância:
Os assistentes sócios gerentes da sociedade por quotas “ E... Lordelo, Lda. “, com sede em Guimarães, sendo o arguido, à data da prática dos factos, trabalhador dessa sociedade;
No dia 20 de Janeiro de 2005, pelas 14 horas, no interior das instalações fabris da sociedade, realizou-se uma reunião, em que estiveram presentes quase todos os trabalhadores dessa sociedade, cerca de cem, incluindo o arguido.
Essa reunião foi presidida pelos assistentes, na qualidade de sócios gerentes da sociedade e teve por finalidades expor aos seus trabalhadores as dificuldades, que a sociedade estava a sentir, resultantes da falta de encomendas, agravada pela situação de inactividade em que, na sua opinião, se encontrava o arguido;
No decurso dessa reunião, quando um dos assistentes fazia alusão à prestação do trabalho por parte do arguido, o arguido aproximou-se dos dois assistentes e diante de todos os trabalhadores presentes nessa reunião, dirigindo-se, directamente aos assistentes com o propósito de os ofender na honra e consideração de cada um deles, de viva e alta voz, disse-lhes “Parem de mentir; são uns mentirosos; paguem-me o que me devem “;
Um dos assistentes perguntou ao arguido: “Diga o que lhe devemos”;
O arguido, sem responder à interpelação que lhe foi feita, chamou aos assistentes “Seus vigaristas; Caloteiros “.
Os assistentes ordenaram então ao arguido, que saísse do local da reunião, o que ele fez, acompanhado por dois funcionários.
Agiu o arguido de modo livre, voluntário e consciente, com o intuito de ofender a honra e consideração social dos assistentes, o que conseguiu, apesar de saber, que a sua conduta era proibida por lei;
Os assistentes sentiram-se envergonhados e humilhados;
Os restantes trabalhadores que se encontravam na reunião presenciaram a prática dos factos;
Por decisão de 17.02.2003, a sociedade “E... Lordelo, Lda.” foi condenada, entre outras coisas, a pagar ao arguido a quantia de 12.412,11 €, não tendo até à presente data efectuado esse pagamento.
O arguido não é portador de antecedentes criminais;
Está actualmente desempregado, auferindo subsídio de desemprego;
É casado, sendo a sua esposa enfermeira;
Não tem filhos a seu cargo;
Reside em casa de um filho, não pagando renda de casa;
Da discussão da causa, não resultou provado Apenas serão, eventualmente, mencionados os factos alegados com interesse para o objecto do processo e não aqueles que não assumam relevância para a decisão da causa ou as conclusões, juízos de valor ou conceitos jurídicos constantes das diversas peças processuais submetidas à apreciação do tribunal.:
Que o assistente R... Silva, no decurso da reunião, referindo-se ao arguido, disse “Anda aqui a chular a empresa”;
Que a convocação da reunião teve como objectivo o vexame pessoal do arguido;
Que nessa reunião, pretenderam transmitir a ideia de que a crise económica era imputável ao arguido, provocada pelo desentendimento judicial que desde 2002 os separa;
Que pretender incutir nos colaboradores da empresa a ideia de que o arguido tem uma personalidade conflituosa de inadmissível falta de respeito pela sua entidade patronal;
II)
Conforme decorre da análise das conclusões da motivação, com o presente recurso pretende-se apenas o reexame da matéria de direito (artº 403º e 412º, nºs 1 e 2 e 428, nº 1 do C.P.P.).
Assim há que considerar definitivamente fixada a matéria de facto atrás escrita, a menos que ocorra qualquer dos vícios referidos nas diferentes alíneas do n° 2 do artº 410º do referido Código, cujo conhecimento é oficioso e que, no caso vertente, desde já se dirá não se vislumbrarem.
Assim sendo há que analisar tão só as questões suscitadas pelo recorrente nas suas conclusões.
Ora como emerge da motivação, o recorrente baseia e fundamenta a sua discordância com o decidido em sentença, que a seu ver deveria ter sido absolutória, na circunstância de o teor das expressões produzidas, não serem portadoras de qualquer sentido ofensivo para a honra e consideração dos assistentes, bem como no facto de haver actuado na prossecução de interesses legítimos (cobrança de uma dívida de que era credor).

Analisemos então se diante da matéria de facto dada como processualmente assente, é possível concluir pela condenação como o fez o tribunal recorrido, ou, se, pelo contrário, como pretende o recorrente, aquela não é suficiente para uma decisão condenatória, impondo-se assim a absolvição do arguido.
Vejamos.
Para se cometer o crime difamação ou o crime de injúrias p. e p. respectivamente pelos artºs 180º e 181º do C. Penal é necessário que os factos sejam imputados ou dirigidos a determinada pessoa e que os mesmos sejam ofensivos da sua honra e consideração.
Conforme se observou no Ac. da RL CJ de 1996, I, 156, «materialmente a difamação pode definir-se como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerre em si, uma reprovação ético-social».
E como escrevia Beleza dos Santos (RLJ 92º, 168) «não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrém, aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais».
Aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena (Beleza dos Santos, Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação e de Injúria, RLJ, Ano 92/165 e 166).
Dentro desta orientação decidiu-se no Ac. da RE, de 2/7/96, CJ, 1996, IV, 295, que um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração.
Aplicando estes princípios ao caso dos autos, dúvidas não temos de que, o comportamento protagonizado pelo arguido Manuel, consubstancia actos ofensivos da honra ou da consideração dos assistentes R... Prazeres e R... Lucas.
Mas relembremos os factos imputados aos assistente que o Tribunal a quo considerou ofensivos:
“(…)
No decurso dessa reunião, quando um dos assistentes fazia alusão à prestação do trabalho por parte do arguido, o arguido aproximou-se dos dois assistentes e diante de todos os trabalhadores presentes nessa reunião, dirigindo-se, directamente aos assistentes com o propósito de os ofender na honra e consideração de cada um deles, de viva e alta voz, disse-lhes “Parem de mentir; são uns mentirosos; paguem-me o que me devem “;
Um dos assistentes perguntou ao arguido: “Diga o que lhe devemos”;
O arguido, sem responder à interpelação que lhe foi feita, chamou aos assistentes “Seus vigaristas; Caloteiros “.
Ora se é verdade que as expressões “Parem de mentir; são uns mentirosos; paguem-me o que me devem“, são criminalmente inóquas, pois que não violam o mínimo de respeito moral, cívico e social a que aludimos, já o mesmo se não pode dizer do teor das restantes imputações. De facto é inegável que as afirmações em causa (“vigaristas” e “caloteiros”), mesmo tendo presente o específico contexto de conflitualidade em que foram produzidas, quando conjugadas com o significado que as mesmas assumem para a generalidade das pessoas, encerram claramente uma reprovação ético-social da conduta dos assistentes, que desta forma foram visados pelo comportamento do arguido.
Analisemos agora a questão da eventual ocorrência de causa de justificação.
Assente que está que as expressões produzidas pelo arguido Manuel são ofensivas da honra dos assistentes, cumpre no entanto averiguar se a antijuridicidade do comportamento protagonizado pelo arguido deve ou não ter-se por excluída, face à eventual ocorrência de causa de justificação.
A primeira observação a fazer é a de que estamos, in casu, como bem salienta o Exmº magistrado do Mº Pº junto da 1ª instância, perante a formulação de juízos de valor e de atribuição de epítetos e não face a imputação de factos.
Na verdade, o arguido Manuel, como vimos, atribuiu aos assistentes não apenas factos, mas também os epítetos de "vigaristas" e "caloteiros" o que convenhamos, é uma situação muito diferente daquela em que se diz que os assistentes devem uma determinada quantia ao arguido.
Ou seja, não é legalmente admissível que o arguido faça prova de que os assistentes são "caloteiros" ou “vigaristas” mas, é certamente possível admitir que o arguido logre demonstrar que os assistentes afinal eram devedores de uma determinada quantia, facto que, diga-se veio a acontecer.
E, como vem sendo defendido na doutrina e na jurisprudência (ver por significativo nesta matéria, o Ac. da RE de Outubro de 1996, BMJ, 460, 817), «a causa de justificação prevista no nº 2 do artº 180 do C. Penal apenas é aplicável à imputação de factos ou à reprodução da correspondente imputação, pelo que não abrange a formulação de juízos ofensivos, a atribuição de epítetos ou palavras a que se alude no crime de injúrias, bem como a imputação de factos genéricos ou abstractos».
Com efeito, nos casos de formulação de juízos ofensivos o recurso à causa de justificação prevista no citado artº 180º, nº 2 do C. Penal, não é legalmente possível, dada a inadmissibilidade da exceptio veritatis, bem como a circunstância de o legislador entender que para a salvaguarda do interesse legítimo (requisito essencial da causa da causa de justificação em apreço), basta que se possam manifestar os factos desonrosos.
Daí que consideramos prejudicada a questão de saber se o arguido fez ou não prova da verdade dos factos na prossecução de um interesse legítimo.
Assim e apesar do esforço argumentativo do arguido, o recurso não pode deixar de improceder sob todos os aspectos.
Não foram, pois, violadas quaisquer normas legais, maxime, as apontadas pelo arguido/recorrente.
Em conclusão, a sentença recorrida não merece qualquer censura.
III)
DECISÃO
Nestes termos e com tais fundamentos, os Juízes desta Relação acordam em negar provimento ao recurso, confirmando-se, in integrum, a douta sentença recorrida.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo arguido/recorrente em três Ucs.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º, nº 2 do C.P.P.)
Guimarães, 28 de Janeiro de 2008