CAUSA DE PEDIR
CONCRETIZAÇÃO DA FACTUALIDADE ALEGADA
Sumário

I - A noção legal de causa de pedir é uma noção mista entre factos e direito, e pode ser definida como o conjunto de factos naturais alegados à luz de uma certa e concreta perspetiva jurídica.
II - Tendo por base esta noção de causa de pedir, deve entender-se que se verifica uma situação de alteração da causa de pedir quando o autor adita uma factualidade inicialmente omitida por insuficiência de alegação, quando substitui um facto essencial inicialmente alegado por outro do mesmo tipo e abarcável à luz da mesma pretensão jurídica ou quando altera o fundamento jurídico invocado, com ou sem alteração do pedido.
III - Tendo a Autora alegado na Petição Inicial que celebrou um contrato de transporte internacional de mercadorias com a Ré e que a mercadoria não foi entregue, por o veículo que fez o transporte se ter acidentado, causando a perda total daquela e causando-lhe um conjunto de prejuízos materiais, indemnizáveis à luz das disposições relativas à responsabilidade do transportador, deve entender-se que a subsequente alegação de que o acidente se ficou a dever a velocidade excessiva e desrespeito dos tempos de condução e descanso não se traduz numa alteração da causa de pedir, mas tão-só uma concretização da factualidade alegada inicialmente.

Texto Integral

Processo n.º 1253/15.5T8PVZ-A.P1
Comarca: [Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim (J4); Comarca do Porto]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunto: Fernando Samões
Adjunto: Vieira e Cunha

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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
“B…, LDA”, sociedade com sede na Rua …, n.º …, …, …, Maia, intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “C…, LDA”, sociedade com sede na Rua …, n.º …, Zona Industrial de …, …, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de €231.033,36, a título de indemnização pela perda total da mercadoria que a Ré se obrigou a transportar desde a Alemanha até às suas instalações, acrescida de juros moratórios legais, vencidos e vincendos até integral e efetivo pagamento, à taxa anual legal para as dívidas comerciais, ascendendo os vencidos a €7.853,37.
Alega, em síntese, ter celebrado com a Ré, em março de 2015, um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, nos termos do qual esta se obrigou a transportar desde Hamburgo, Alemanha, até às suas instalações, na Maia, duas máquinas industriais de alta precisão, no estado de novas.
Afirma que, no dia 20 de março de 2015, a Ré iniciou o transporte ajustado, mas não lhe entregou a mercadoria em causa, uma vez que o veículo que fez o transporte se acidentou, já em Portugal, no dia 21 de março, causando a perda total da mercadoria.
Invoca um conjunto de prejuízos materiais decorrentes desta situação, no valor global de €231.033,36.
Entende ser aplicável ao caso a Convenção relativa ao transporte internacional de mercadorias por estrada, vulgarmente conhecida por CMR, incidindo uma presunção de culpa sobre o transportador.
A Ré veio contestar, contrapondo que, tendo celebrado com a “D…” o transporte de mercadorias da Autora, só será responsável se aquele também o for. Afirma que aguarda o resultado das investigações à causa do acidente e eventuais danos daí decorrentes por parte do Segurador.
Impugna as verbas indicadas a título de danos e defende que a legislação em vigor apenas permite o ressarcimento dos danos patrimoniais nos termos dos art.º 23.º e 25.º da Convenção CMR.
A Autora veio apresentar articulado de resposta, impugnando a invocada contratação do transporte com a sociedade “D… Unipessoal, Lda.” e alegando que a regra da limitação da responsabilidade do transportador, contida nos art.º 23.º e ss. da Convenção CMR é afastada quando se prova que houve atuação com dolo que tenha causado a perda total da mercadoria transportada.
Afirma que o acidente causador da perda total da mercadoria teve como causa dolo, negligência grosseira ou falta gravíssima do transportador, já que o motorista seguia a velocidade excessiva e desrespeitou os tempos de condução e descanso, para não atrasar mais a entrega da carga que transportava, em grupagem.
A Ré veio responder, dizendo que a Autora aproveita a sua resposta à exceção da limitação da responsabilidade para vir alterar a sua causa de pedir e invocar novos factos essenciais.
Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual se proferiu despacho, com o seguinte teor: “Foram apresentados ao longo dos autos vários requerimentos pelas partes. De tais requerimentos apenas serão considerados aqueles que consubstanciem resposta a matéria de exceção invocada nos articulados (pois que sempre seria admissível tal pronúncia em sede de audiência prévia), ou impugnação de documentos. Notifique.
Na sua resposta à matéria de exceção invocada pela ré na sua contestação, veio a autora concretizar a forma como ocorreu o acidente invocado na petição inicial.
Entendendo a ré que se trata de uma alteração à causa de pedir, opôs-se à mesma.
Salvo o devido respeito por opinião em contrário, entendemos que a alegação ora feita pela autora não consubstancia uma alteração ou ampliação da causa de pedir, por que esta se limita a vir concretizar a factualidade alegada na petição inicial, no que ao acidente diz respeito.
E tal verifica-se na sequência da alegação da ré de que havia contratado o transporte com a interveniente D…, facto que a autora alega desconhecer.
Acresce que, o que se discute nestes autos é uma realidade concreta – aquele acidente – e a forma como o mesmo ocorreu sempre resultaria da prova que vier a ser produzida em audiência, sendo que a interveniente E… também descreveu uma versão do mesmo na sua contestação.
Ora, pretendendo o atual CPC o primado da substância sobre a forma, com vista à justa composição dos litígios, entendemos que, não permitir a concretização da forma como ocorreu o acidente que invocou na petição inicial, seria ir contra tal pretensão do legislador.
Face a tal, admite-se a concretização feita pela autora da forma como ocorreu o acidente. Notifique.”
Inconformada com este despacho, a Ré veio interpor recurso, rematando com as seguintes
CONCLUSÕES:
1) A Recorrente vem apresentar recurso do despacho de admissão de articulado e prova proferido no âmbito de audiência prévia, que admitiu a concretização feita pela Recorrida da forma como ocorreu o acidente.
2) De acordo com os art.s 5º, nº 1 e art. 552º, alínea d), ambos do CPC, é na petição inicial que o Autor deve dar cumprimento ao ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, os quais deverão ser entendidos como todos aqueles de cuja verificação depende a procedência da ação.
3) Para além deste momento, as partes apenas podem alterar a causa de pedir, por acordo ou, nos precisos termos do disposto no art. 265, nº 1 do CPC.
4) A Convenção CMR, vem estipular dois regimes diferentes para a responsabilidade do transportador: um regime geral previsto nos art.s 17 e ss e outro regime previsto no art. 29º e ss.
5) A Recorrida veio intentar a presente ação com base no regime geral da responsabilidade do transportador, estipulado pelo art. 17º e ss da Convenção CMR.
6) Porém, quando confrontada com o limite de indemnização invocado pela Ré/Recorrente na sua Contestação, veio, em resposta, invocar o dolo da Ré/Reconvinda, para se poder aproveitar do regime da responsabilidade previsto no art. 29º da Convenção CMR, o qual no modesto entendimento da Recorrente configura uma alteração da causa de pedir.
7) Pois, se no regime geral da responsabilidade do transportador previsto nos art.s 17º e ss da Convenção CMR, assente na culpa leve presumida do transportador, à Recorrida bastaria a prova de que os alegados danos ocorreram enquanto a mercadoria se encontrava à guarda deste, sendo irrelevante a forma como ocorreu o acidente,
8) Já no regime instituído nos art.s 29º e ss da Convenção CMR, inverte-se o ónus da prova, cabendo à Recorrida a alegação e invocação de factos que permitam o tribunal apurar da culpa do transportador, os quais teriam necessariamente que vir alegados em sede de PI, sob pena de alteração da causa de pedir.
9) Não obstante, entendeu o Tribunal a quo, não configurar tal articulado e factos aí descritos referentes ao acidente como uma alteração da causa de pedir, em clara violação com o disposto no art.s 552, alínea d), art. 5º, nº 1 e 265, nº 1, todos do CPC.
10) À contrário, permitir que a Recorrida venha através de uma concretização da forma como ocorreu o acidente, aceitar que este teve como causa “dolo, negligencia grosseira ou falta gravíssima do transportador o que ao dolo se equipara” (cf.art. 7º da resposta da Autora), assim como que “o acidente se deve a velocidade excessiva e à violação dos tempos de condução legalmente impostos, causadora de cansaço tal, que o motorista adormeceu” (cf. art. 12º do mesmo articulado), constitui efetivamente numa alteração da causa de pedir não permitida pelo CPC, em clara violação com o disposto nos art.s 5º, nº 1, art. 265º, nº 1 e art. 552, nº 1 al. d), todos do CPC.
11) Devendo o despacho de admissão do articulado e consequente prova da forma como ocorreu o acidente, ser declarado nulo nos termos do disposto no art. 195º do CPC, por poder influir no exame ou na decisão da causa, importando a sua anulação nesta parte.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, prende-se com a legalidade da apresentação de factos complementares pela Autora e com o enquadramento jurídico desta atuação.
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III - LEGALIDADE DA APRESENTAÇÃO DE FACTOS COMPLEMENTARES PELA AUTORA E ENQUADRAMENTO JURÍDICO DESTA ATUAÇÃO
A recorrente sustenta que a Recorrida veio intentar a presente ação com base no regime geral da responsabilidade do transportador, estipulado pelo art.º 17º e ss. da Convenção CMR.
Porém, quando confrontada com o limite de indemnização invocado pela Ré/Recorrente na sua Contestação, veio, em resposta, invocar o dolo da Ré/Reconvinda, para se poder aproveitar do regime da responsabilidade previsto no art.º 29º da Convenção CMR.
Entende que esta atuação configura uma alteração da causa de pedir, pois, se no regime geral da responsabilidade do transportador previsto nos art.s 17º e ss. da Convenção CMR, assente na culpa leve presumida do transportador, à Recorrida bastaria a prova de que os alegados danos ocorreram enquanto a mercadoria se encontrava à guarda deste, sendo irrelevante a forma como ocorreu o acidente, já no regime instituído nos art.s 29º e ss. da Convenção CMR, se inverte o ónus da prova, cabendo à Recorrida a alegação e invocação de factos que permitam o tribunal apurar da culpa do transportador.
Defende que permitir que a Recorrida venha através de uma concretização da forma como ocorreu o acidente, aceitar que este teve como causa “dolo, negligencia grosseira ou falta gravíssima do transportador o que ao dolo se equipara” (cf. art.º 7º da resposta da Autora), assim como que “o acidente se deve a velocidade excessiva e à violação dos tempos de condução legalmente impostos, causadora de cansaço tal, que o motorista adormeceu” (cf. art.º 12º do mesmo articulado), constitui uma alteração da causa de pedir não permitida pelo Código de Processo Civil[1], em clara violação com o disposto nos art.s 5º, nº 1, art.º 265º, nº 1 e art.º 552, nº 1 al. d), todos do CPC.
Importa, portanto, apurar da admissibilidade do requerimento apresentado pela Autora, na sequência das alegações apresentadas na Contestação.
O processo civil não é mais do que um conjunto de regras ordenadoras da forma e dos prazos de arguição em Tribunal das pretensões jurídicas das partes.
A obrigação de seguir este "figurino legal" conduz necessariamente à autorresponsabilização dos sujeitos processuais: caso pretendam praticar um qualquer ato processual terão de o fazer pela forma e no prazo previsto na lei, sob pena de preclusão.
Refere, a este propósito, José Lebre de Freitas[2] "Ónus, preclusões e cominações ligam-se entre si ao longo de todo o processo, com referência aos atos que as partes, considerada a tramitação aplicável, nele têm de praticar dentro de prazos perentórios. (...). As partes têm assim o ónus de praticar os atos que devam ter lugar em prazo perentório, sob pena de preclusão e, nos casos indicados na lei, de cominações. A autorresponsabilidade da parte exprime-se na consequência negativa (desvantagem ou perda de vantagem) decorrente da omissão do ato."
A possibilidade de alteração do pedido e da causa de pedir na falta de acordo sofreu uma profunda restrição no atual regime legal.
Com efeito, na anterior redação do CPCivil, conferia-se às partes a possibilidade de alterarem o pedido e/ou a causa de pedir na réplica. Atualmente, desapareceu essa faculdade legal, sendo apenas possível alterar-se a causa de pedir, fora de acordo, na sequência de confissão feita pelo réu.
Quer no regime anterior, quer no actual, a lei processual preocupou-se apenas com a definição dos tempos e das atuações típicas processualmente admissíveis, deixando para a doutrina e para a jurisprudência a difícil tarefa de definir o que deve entender-se por alterações do pedido e/ou da causa de pedir.
Iniciando o caminho desta definição, especialmente no que concerne às alterações à causa de pedir[3], esbarramos necessariamente na noção de causa de pedir.
Trata-se de um conceito central do processo civil, mas, seguramente também por causa disso, sem unanimidade na doutrina e jurisprudência quanto aos seus elementos constitutivos.
Tradicionalmente, são definidos três grupos de construções da noção de causa de pedir: o primeiro grupo identifica a causa de pedir como um direito de ação (right of action) e, apesar de ter um número considerável de seguidores no direito americano, tem poucos defensores em Portugal; o segundo constrói a sua noção apenas como um conjunto de facto naturais e teve como seguidor de renome no nosso país Castanheira Neves[4] e o terceiro, que identifica a causa de pedir como o conjunto dos factos constitutivos do direito, é, sem dúvida, a tese com maior reconhecimento na doutrina e jurisprudência do nosso país[5].
Esta última tese – usualmente identificado como “doutrina da substanciação” - vem sendo repetida e crescentemente defendida na doutrina, desde Alberto dos Réus, que definia causa de pedir como “ato ou facto central da demanda, o núcleo essencial de que emerge o direito do autor”[6].
No mesmo sentido, Manuel de Andrade definiu-a como “ato ou facto jurídico (contrato, testamento, facto ilícito, etc..) donde o Autor pretende ter derivado o direito a tutelar; o ato ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito.[7]”
Mais recentemente, Abrantes Geraldes[8] identificou causa de pedir como os “factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil”.
Ainda mais recentemente Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[9] referem: “A causa de pedir é o conjunto de facto da relação material (ocorridos) subsumíveis às fatispécies das normas individualizadas que preveem o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor.”
Na jurisprudência, encontram-se várias definições paralelas ao longo dos tempos. Deixamos aqui referência exemplificativa a algumas delas, designadamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/94, relatado por Carlos Caldas[10], onde se refere que “Causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico que o autor pretende obter.”; o Acórdão do mesmo Tribunal de 08/02/85, tendo como Relator Moreira da Silva[11], onde se indica que “A causa de pedir é o facto de que procede a pretensão deduzida na ação.” e o Acórdão desta Relação de 23/02/95, tendo como Relator Coelho da Rocha[12], onde se refere: “Só o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido pelo A. é que constitui causa de pedir.”
Ainda que com dúvidas, levantadas pelas inúmeras posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre a matéria, propendemos para considerar que a noção legal de causa de pedir será efetivamente uma noção mista entre factos e direito. Ou melhor, a causa de pedir será um conjunto de factos naturais alegados à luz de uma certa e concreta perspetiva jurídica, que se invoca[13]. Com efeito, a disposição legal do art.º 581.º, n.º 4, do CPCivil, na construção dos vários tipos de causas de pedir, apela simultaneamente para os factos e para as normas que se alegam como fundamento da ação respetiva.
Partindo desta noção legal de causa de pedir, chegamos facilmente, por dedução, à definição legal de alteração da causa de pedir.
Desde logo, a leitura das disposições legais dos art.º 264.º e 265.º do CPCivil é linear e pacífica, no sentido de poder abarcar quer as situações de cumulação, quer as situações de diminuição ou substituição de elementos da causa de pedir.
Especificamente quanto à situação de alteração – aquela potencialmente aplicável na situação dos autos, nos termos invocados pela Recorrente – entendemos, sempre assentes na noção adotada de causa de pedir, que esta se verifica quando o autor adita uma factualidade inicialmente omitida por insuficiência de alegação, quando substitui um facto essencial inicialmente alegado por outro do mesmo tipo e abarcável à luz da mesma pretensão jurídica ou quando altera o fundamento jurídico invocado, com ou sem alteração do pedido.
Tal como refere Mariana França Gouveia[14]: “A causa de pedir para efeitos de cumulação sucessiva e alteração do objeto, superveniente ou não, deve ser definida como o facto principal comum às pretensões materiais alegadas originária e sucessivamente, em substituição ou em cumulação. Assim, se forem alegados factos que não coincidem minimamente com os factos (supervenientes ou não) constitutivos da pretensão material originariamente alegada, haverá alteração da causa de pedir. Alteração permitida desde que o pedido se mantenha o mesmo.” Ou, como adiantam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[15]: “Sendo a causa de pedir a designação processual dos factos essenciais ocorridos, alterar a causa de pedir significa descrever uma outra relação material.”
Na jurisprudência, citam-se – a título meramente exemplificativo – as seguintes decisões, que concluíram no sentido da existência de situações de alteração da causa de pedir: no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/01/14, tendo como Relator Abrantes Geraldes[16] decidiu-se que “Tendo a parte sustentado o pedido de reconhecimento da contitularidade de um prédio como bem comum do casal na figura da acessão industrial imobiliária, não pode, no recurso de revista, pretender que se reconheça esse mesmo direito com fundamento na usucapião, por não ser admissível nessa fase do processo a alteração do seu objeto.”. No mesmo Supremo Tribunal, decidiu-se, por Acórdão de 18/02/15, relatado por Fernandes do Vale[17] que “Tendo sido invocada como causa de pedir da pretensão formulado a ocorrência de válidas cessões de crédito que vieram a ser julgada nulas, vedado está ao autor, atenta a – neste âmbito – perfilhada teoria da substanciação, passar a invocar, em sede de recurso, como causa de pedir da mesma pretensão, quer o instituto do enriquecimento sem causa, quer a sustentada integração de contrato de mandato sem representação em que o cedente se teria limitado a cumprir as instruções do terceiro-autor.”
O caso dos autos é seguramente um caso de fronteira, mas em que – em nosso entendimento – não se verifica uma situação de alteração da causa de pedir, tal como foi defendido pelo tribunal recorrido.
Na Petição Inicial, a Autora alegou ter celebrado um contrato de transporte internacional de mercadorias com a Ré. Diz que a mercadoria não foi entregue, por o veículo que fez o transporte se ter acidentado, causando a perda total daquela e causando-lhe um conjunto de prejuízos materiais. Invoca a aplicação das disposições legais relativas à responsabilidade do transportador, designadamente a presunção de culpa consagrada no art.º 17.º da Convenção CMR.
Estamos, portanto, perante uma causa de pedir complexa, composta por este conjunto de factos à luz deste fundamento jurídico.
Em sede de articulado de resposta, a Autora veio alegar que o acidente causador da perda total da mercadoria teve como causa dolo, negligência grosseira ou falta gravíssima do transportador, já que o motorista seguia a velocidade excessiva e desrespeitou os tempos de condução e descanso, para não atrasar mais a entrega da carga que transportava, em grupagem.
A alegação deste novo conjunto de factos não veio suprir qualquer falta inicial (já que os factos inicialmente alegados eram suficientes), não veio substituir outros factos inicialmente alegados e constitutivos da causa de pedir (que se mantiveram inalterados) e não veio alterar o fundamento jurídico invocado (que continua a ser a responsabilidade do transportador à luz da Convenção CMR).
Trata-se, tal como defende o tribunal recorrido, de uma mera concretização da factualidade alegada inicialmente, no que à dinâmica do acidente diz respeito.
Contrariamente ao defendido pela Recorrente, a nosso ver, a Convenção CMR apenas contém um regime para a responsabilidade do transportador, especificamente nos art.º 17.º e ss., ainda que com diversos efeitos jurídicos, consoante se apure a culpa efetiva deste ou se tenha que apelar à presunção de culpa consagrada neste preceito inicial.
Assim, estes novos factos complementares agora trazidos para os autos para nada mais poderão relevar senão para a eventual alteração do montante indemnizatório a pagar pela Recorrente/Ré, o que - por si só – não altera seguramente a causa de pedir inicial.
Aliás, a prova de que se trata sempre da mesma causa de pedir e do mesmo regime jurídico é que, em caso de falta de prova de alegada culpa do transportador, sempre aproveitará ao autor a aplicação do regime da presunção de culpa, previsto no indicado art.º 17.º da Convenção CMR.
A conclusão final é, portanto, a da total improcedência do recurso.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso da Recorrente/Réu, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas a cargo da Recorrente - art.º 527.º do CPCivil.
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Notifique e registe.
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Porto, 21 de fevereiro de 2018
Lina Baptista
Fernando Samões
Vieira e Cunha
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[1] Doravante apenas designado por CPCivil.
[2] In Introdução ao Processo Civil - Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3ª Edição, Coimbra Editora, p.182.
[3] Por ser a definição que interessa á apreciação do presente recurso.
[4] In Questão de Facto Questão de Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade, 1967.
[5] Para maior desenvolvimento veja-se Mariana França Gouveia in A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Coleção Teses, 2004, Almedina.
[6] In Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 1981, pág. 351,
[7] In Noções Elementares de Processo Civil, 1993, Coimbra Editora, pág. 322.
[8] In Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 1999, Almedina, pág. 193 e ss.
[9] In Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª Edição, Almedina, pág. 37.
[10] Proferido no Processo n.º 084669 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[11] Proferido no Processo n.º 071886 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[12] Proferido no Processo n.º 9430762 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[13] Que, obviamente, não terá que ser acatada pelo tribunal, face ao disposto no n.º 3 do art.º 5.º do CPCivil.
[14] Ob. Cit. pág. 308.
[15] Ob. Cit. pág. 255.
[16] Proferido no Processo n.º 1206/11.2TBCHV.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[17] Proferido no Processo n.º 1695/04.1TBVIS-C.C2.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.