CONTRA-ORDENAÇÃO
SANÇÃO
AUTOR MATERIAL NÃO IDENTIFICADO
Sumário

I – Se uma sentença claramente identifica que o condutor do veículo não era o arguido, mas o seu pai, estando, pois, provado que o condutor era pessoa diferente do titular do documento de identificação do veículo, nenhuma responsabilidade pode recair sobre este.
II – Nenhuma norma existe que obste a que seja feita na impugnação judicial a prova de que o condutor foi pessoa distinta do proprietário.
III – No caso, embora o processo «corresse» contra o recorrente, nunca foi feita qualquer diligência no sentido de determinar quem efectivamente conduzia o veículo, nem, nomeadamente, foi o arguido notificado para proceder à identificação do condutor, nos termos do art. 171 nº 6 do Cód. da Estrada, sendo apenas foi notificado, para nos termos gerais, exercer o seu direito de audição e defesa.
IV – A simples circunstância do titular do documento de identificação do veículo, durante o prazo para a defesa na fase administrativa, não identificar outra pessoa como autora da contra-ordenação, não pode ter como consequência a admissão de que foi ele o autor da infracção.
Do Voto de Vencido
V – No caso, entendo que se deveria julgar procedente o recurso, em virtude de não se poder dar cobertura ao expediente usado (que só aproveita ao arguido) de, sem qualquer critério, se atribuir a infracção a um terceiro e desse modo absolver-se o titular do documento de identificação do veículo e permitir que também o terceiro possa vir a beneficiar de outra absolvição.
VI – Com efeito, se no prazo concedido para a defesa, aparece no processo, sem se saber enviada por quem, uma carta subscrita por outro indivíduo a dizer que pagou a coima e que foi ele o autor da infracção, e sendo que essa carta, sem autoria autêntica, não obedece ao prescrito no nº 1 do artigo 171º, ou seja, dela não consta a residência, nem o número do documento legal de identificação pessoal, data e respectivo serviço emissor, nem o número do título de condução e respectivo serviço emissor do assumido infractor, bem andou a entidade administrativa ao não considerar a referida carta nem o documento de pagamento da coima, pois era precipitado, e contra a lei, suspender o processo contra o proprietário do veículo e fazer seguir outro contra o alegado subscritor da carta.
VII – Assim, a sanção acessória é bem aplicada ao inicial autuado, que pode, obviamente, reagir contra tal decisão, invocando todos os meios de defesa, incluindo o de que não era ele o condutor e, colocado perante situação, o Juiz pode, evidentemente, atribuir o pagamento da coima e a prática da infracção ao assumido infractor, mas o que não poderia fazer era absolver, sem mais, o arguido.
VIII – Por um lado, teria que, ao abrigo do disposto no artº 72º, nº 1 do RGCO, promover oficiosamente a prova de todos os factos que considere relevantes para uma decisão correcta (trata-se da inserção, no direito de mera ordenação social, do princípio da investigação da verdade material), ou seja, tinha que recolher prova mais autêntica de quem foi o remetente e/ou autor da citada carta, bem como a partir de que conta bancária foi feito o pagamento; por outro lado, a consequência do apuramento (certo, para a Mmª Juíza) da autoria da carta, do pagamento da coima e da infracção não era a absolvição do arguido, mas sim, a suspensão do processo em julgamento, quer ao abrigo do artº 171º, nº 3 do Código da Estrada, quer do artº 7º, nº 2 do C.P.Penal, e, obviamente, o envio de certidão para instauração de processo ao apurado infractor.
IX – Caso contrário, pode dar-se cobertura a expedientes (que só aproveitam aos iniciais arguidos) que levam a que, sem bases sérias, se atribua a infracção a um terceiro e desse modo se absolva o titular do documento de identificação do veículo e se permita que também o terceiro possa vir a beneficiar de outra absolvição.
X – De facto, em todas as situações semelhantes à destes autos, bastará que os arguidos comprovem o pagamento (seja por quem for) da coima e arranjem maneira de fazer chegar ao processo um papel onde um qualquer terceiro se diz autor da infracção para que possam ilibar-se da aplicação da sanção acessória e, depois, como irá por certo acontecer no caso destes autos, o terceiro vem dizer que nada teve a ver com a infracção, …e também pode acabar absolvido!!!

Texto Integral

Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
- Tribunal recorrido:
Tribunal Judicial de Felgueiras ( 3º Juízo - Processo n.º 1 261/07.0TB. FLG).
- Recorrente:
- O Ministério Público.
- Objecto do recurso:
No processo de recurso de contra-ordenação n.º 1 261/07.0TB.FLG, do 3º Juízo, do Tribunal Judicial de Felgueiras, no que aqui importa, por sentença constante nos autos de fls. 42 a 47, foi decidido o seguinte:
- Absolver o recorrente E, pela prática, da contra-ordenação que lhe era imputada, revogando-se, assim, a decisão recorrida da Direcção Regional de Viação do Norte.

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(Já havia sido efectuado o pagamento voluntário da coima, tendo sido aplicada ao arguido pela DRVN, pela prática da contra-ordenação ao disposto no art. 61º, n.º 1 do Código da Estrada - o veículo em causa circulava sem fazer uso das respectivas luzes - a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 75 dias).
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Inconformado o M. P. da referida decisão interpôs recurso (cfr. fls. 54 a 64), terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:
"1. Na sentença recorrida a Meritíssima Juiza a quo absolveu o arguido da imputada autoria material de uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 61°, n.ºs 1, a) e 5 do Código da Estrada e que se traduziu na circunstância de no dia 14 de Abril de 2005, cerca das 01 :50 horas, o veículo com a matrícula JL, propriedade do arguido, ter sido detectado por agentes da GNR a circular sem fazer uso das respectivas luzes, por ter ficado convencida que era o pai do arguido o condutor daquele veículo e que este endereçou uma carta à DGV assumindo as responsabilidades decorrentes daquela contra-ordenação;
2. Junto aos autos existe um manuscrito onde é assumida, por alguém que assinou o nome do pai do arguido, a condução do veículo com a matrícula JL, no dia 14 de Abril de 2005, cerca das 01 :50 horas - cfr. fls. 6;
3. A lei estabelece uma presunção iuris tantum relativamente ao proprietário do veículo no que tange às contra-ordenações em que este seja interveniente e estabelece uma presunção de igual natureza relativamente à pessoa que este venha a identificar como autor da contra-ordenação que lhe é imputada;
4. Todavia, desconhece-se quem foi o autor do manuscrito de fls. 6, só se sabendo que o mesmo se encontra assinado com um nome igual ao do pai do arguido;
5. Desconhece-se se aquele documento foi apresentado pelo arguido, pelo seu pai ou por um terceiro com qualquer eventual motivo tortuoso, nomeadamente, imputar ao pai do arguido a prática da referida contra-ordenação;
6. A entidade administrativa agiu no rigoroso cumprimento da lei, nada a obrigando a imputar a contra-ordenação a terceiro (nem sequer ao pai do arguido), uma vez que nada nos autos revelava de forma credível que tivesse sido outra pessoa o condutor do veículo descrito nos autos no momento da prática dos factos;
7. O arguido não produziu qualquer prova de que o manuscrito de fls. 6 havia sido elaborado, assinado e submetido à entidade administrativa pelo seu pai;
8. Nada existe nos autos que suporte a afirmação na sentença recorrida de que "(…) o referido António endereçou uma carta à DGV pagando a multa e subscreveu uma declaração, assinada por si, onde assume que foi o mesmo quem conduziu o JL nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas no auto";
9. Quanto a este facto em concreto, a prova do mesmo pertencia ao arguido, que não a fez, nem sequer a tentou fazer;
10. À entidade administrativa apenas competia fazer a prova da existência da contra-ordenação - o que fez - que efectuou a notificação nos termos legais ao proprietário da viatura correspondente - o que fez - e que este nunca identificou o condutor do veículo - o que é notório nos termos já acima expostos;
11. Não existindo qualquer prova nos autos - cfr. sentença recorrida - da identidade do autor do manuscrito de fls. 6, nem de que não era o proprietário do automóvel identificado nos autos - o arguido - o condutor do mesmo no momento da prática dos factos, não é lícito à Meritíssima Juíza de Direito a quo extrair estas conclusões;
12. Conclui-se, assim, que a sentença recorrida proferiu uma decisão cujo conteúdo enferma de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e nulidade por falta de fundamentação - cfr. artigo 410° n.º 2 alínea a) e artigos 374° n.º 2 e 379° n.º 1 alínea a) do Código de, Processo Penal - devendo o processo ser reenviado para novo julgamento, nos termos do artigo 426° n.º 1 do Código de Processo Penal. ".
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- O recurso foi admitido por despacho de fls. 70.
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Nesta instância o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, emitiu o parecer constante de fls. 80 a 87, no qual entende que o recurso deve ser julgado procedente.
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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, não veio a ser apresentada qualquer resposta.
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Efectuado exame preliminar e não havendo questões a decidir, colhidos os vistos legais, prosseguiram os autos para audiência.
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- Cumpre apreciar e decidir:
- A - É de começar por salientar que, para além das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1 do C. P. Penal.
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- B - No essencial, as questões colocadas no requerimento de interposição do recurso são as seguintes:
- 1 - De saber se face aos elementos dos autos (pelas razões indicadas - cfr. fls. 62 a 64) a sentença não devia ter sido absolutória.
- 2- Invoca o M. P. que a sentença recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, n.º 2, al. a) do C. P. Penal).
- 3- Enfermando ainda de nulidade por falta de fundamentação ( art.s 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1 al. a) do C. P. Penal.
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- C - Matéria de facto dada como provada e não provada na 1ª instância e sua motivação (transcrição):
"Procedeu-se ao julgamento com observância do formalismo legal, tendo resultado com interesse para o objecto do processo os seguintes factos considerados provados:
1. No dia 2005-04-14, pelas 01:50 no local X, Felgueiras, António, pai do arguido, usou o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula JL, pertencente ao arguido, conduzindo-o e não fazendo uso das luzes de cruzamento, desde o anoitecer ao amanhecer.
2. O arguido E não permitiu a infracção dos autos e desconhece os factos que estão na sua origem, ou seja, a razão pela qual o seu pai resolveu utilizara sua viatura.
3. A utilização da viatura, foi feita por motivos completamente alheios ao arguido e sem sua autorização.

B.
A convicção do tribunal para apuramento dos factos fundou-se na ponderação, análise crítica dos elementos existentes no processo, com as declarações prestadas pelas testemunhas, em sede de julgamento.
Assim, as testemunhas José e Ana referiram que viram passar o JL e que o seu condutor, nessa ocasião, desligou as luzes. Conseguiram tirar a matrícula da viatura, mas não se aperceberam quem era a pessoa do seu condutor.
Por sua vez, as testemunhas C e P cunhados do arguido, referiram que estiveram na casa do arguido nos dias posteriores à situação versada nos autos, onde também se encontrava o pai do arguido António. Presenciaram uma discussão entre pai e filho, mostrando-se este muito revoltado com o pai pelo facto de o mesmo ter conduzido o seu veículo sem a sua autorização e nas circunstâncias em que o fez. O António sentiu-se incomodado com o facto e disse que pagava a multa e se responsabilizava por todos os prejuízos.
De facto, consta dos autos que o referido António endereçou uma carta à DGV pagando a multa e subscreveu uma declaração, assinada por si, onde assume que foi o mesmo quem conduziu o JL nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas no auto - ver fls 6, 7 e 8.
Ouvido o arguido em declarações, o mesmo reiterou o depoimento relatado pelas testemunhas C e P, referindo que o seu pai tem veículo e carta de condução, pelo que não consegue explicar a razão do sucedido.
A entidade administrativa encerrando-se num aspecto manifestamente formal e desprezando o facto de no caso espécie serem de aplicar as normas do processo penal, não indagou a verdade material, desvalorizando pura e simplesmente a declaração apresentada.
Cremos, sdr, que andou mal a entidade administrativa, que deveria ter averiguado a situação e eventualmente convidar o arguido a regularizá-la nos termos da lei.".
***
- Quanto às questões colocadas no requerimento de interposição do recurso -
- 1 - De saber se face aos elementos dos autos (pelas razões indicadas - cfr. fls. 62 a 64) a sentença não devia ter sido absolutória:

1 - Refere-se no Auto de Notícia que no dia 14-4-2005, cerca da 1h50m, no local de X, Felgueiras o veículo matrícula JL “circulava sem fazer uso das luzes de cruzamento, quando obrigatórias desde o anoitecer ao amanhecer”.
O auto de notícia apenas “faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante” art. 170 nº 2 do Cod. da Estrada (diploma a que pertencerão todas as normas a seguir mencionadas sem indicação de origem). Não se identificando quem era o condutor do veículo, o auto nenhum elemento contém sobre o autor da infracção.
2 – O art. 135 nº 3 dispõe que “A responsabilidade pelas infracções previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:
a) Condutor do veículo, relativamente às infracções que respeitem ao exercício da condução;
b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às infracções que respeitem às condições de admissão do veículo que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infracções referidas na alínea anterior quando não for possível identificar o condutor.
c) …
3 – Afigura-se inequívoco que se está perante uma infracção que “respeita ao exercício da condução”. Nos termos da al. b) acabada de transcrever, a responsabilidade só será do “titular do documento de identificação do veículo”, quando não se puder determinar quem efectivamente a praticou.
Ora a sentença recorrida claramente identifica que o condutor do veículo não era o arguido E, mas o seu pai António. Estando provado que o condutor era pessoa diferente do titular do documento de identificação do veículo, nenhuma responsabilidade pode recair sobre este. Também nenhuma norma existe que obste a que seja feita na impugnação judicial a prova de que o condutor foi pessoa distinta do proprietário.
4 – A argumentação do recurso assenta na ideia, que parece perpassar igualmente a decisão da autoridade administrativa, de que as disposições conjugadas dos nºs 2 e 3 do art. 171 do Cód. da Estrada estabelecem uma presunção “iuris tantum” sobre a autoria da infracção quando o proprietário não identifica o condutor, com todos os elementos constantes do nº 1.
«Presunções» são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (v. art. 349 do Cód. Civil). A lei não tira da não comunicação dos elementos da identificação a «ilação» de que foi o proprietário quem praticou os factos. É uma leitura que não é permitida pelo texto das normas. Estabelece que nesse caso deve “ser levantado auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo”, o que é diferente. A circunstância de a lei determinar que um processo «corre» contra determinada pessoa nada indica sobre a prova dos factos que o fundamentam, nem sobre a possibilidade de defesa do arguido quanto à prática desses factos.
Percebe-se a opção do legislador, que é coerente com a já citada norma do art. 135 nº 3 al. b). A final, “quando não for possível identificar o condutor”, a responsabilidade recai sobre o titular do documento de identificação do veículo. Saber se esta norma implicará alguma espécie de “responsabilidade objectiva”, constitucionalmente inadmissível nos direitos sancionatórios, é questão que ultrapassa o âmbito deste recurso.
No caso destes autos, embora o processo «corresse» contra o recorrente, nunca foi feita qualquer diligência no sentido de determinar quem efectivamente conduzia o veículo. Não foi nomeadamente notificado para proceder à identificação do condutor, nos termos do art. 171 nº 6 do Cód. da Estrada.
5 – Lendo-se a decisão da autoridade administrativa, fica-se sem se saber se o recorrente foi punido por ser o condutor do veículo, ou na qualidade de proprietário, por não ser possível identificar o condutor. Por um lado, nenhuma referência é feita à norma do art. 135 nº 3 al. b) do Cód. da Estrada; por outro, declara-se que “consideram-se provados os factos constantes do auto de notícia”, mas deste não consta que o recorrente era o condutor.
6 – Nada obsta a que no processo por contra-ordenação existam mecanismos similares aos que o art. 344 do CPP estabelece para a relevância da confissão integral e sem reservas, mecanismos esses que não terão de ser rodeados dos mesmos cuidados e formalismos da confissão em processo penal, que é feita perante o juiz. Tutelando a lei penal bens jurídicos mais relevantes (destina-se a punir as ofensas intoleráveis aos valores ou interesses fundamentais à convivência humana), é natural que o processo contra-ordenacional não coloque tantos cuidados no reconhecimento de factos desfavoráveis.
Mas, de alguma forma, o interessado tem de ser informado das consequências do seu comportamento – sobre este assunto, embora a propósito das consequências do «pagamento voluntário» nas contra-ordenações estradais, v. ac. Tribunal Constitucional 45/2008 de 23-1-2008.
No caso, o arguido apenas foi notificado, para nos termos gerais, exercer o seu direito de audição e defesa. Não foi, simultaneamente, notificado para indicar quem era o condutor (como prevê, repete-se, o art. 171 nº 6 do Cód. da estrada), nem foi advertido de alguma cominação para o caso de optar pelo silêncio.
Ora, a simples circunstância do titular do documento de identificação do veículo, durante o prazo para a defesa na fase administrativa, não identificar outra pessoa como autora da contra-ordenação, não pode ter como consequência a admissão de que foi ele o autor da infracção. Para que pudesse ser tirada tal conclusão, teria a lei, pelo menos, de prever que fosse notificado para identificar o condutor, com a cominação de que o seu silêncio equivaleria à admissão de ter sido ele quem a praticou. Só assim seria informado das consequências do seu comportamento, requisito essencial para que, conforme se decidiu no TC, possa ser considerada uma admissão juridicamente relevante de factos desfavoráveis. Tal cominação não é sequer de alguma forma referida nos “termos da notificação”que constam do verso do auto de notícia.
7 – Finalmente, o magistrado recorrente espraia-se em considerações sobre a prova produzida na audiência de julgamento. É uma argumentação improcedente, porque neste processo a Relação apenas conhece de direito – art. 75 do RGCO. A questão é prévia: saber se o arguido podia produzir prova sobre o facto de não ser ele o condutor. A resposta é afirmativa, pelas razões já apontadas.
*
- 2- Invoca o M. P. que a sentença recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, n.º 2, al. a) do C. P. Penal):
Nos termos do disposto no art. 410 n.º 2 do C. P. Penal, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
(...)
Como é unanimemente entendido, os vícios referenciados no art. 410 n.º 2 do C. P. Penal, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Refere-se, pois, o recorrente ao vício da alínea a) “Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”.
Verifica-se o vício do art. 410 nº 2 al. a) do CPP quando há omissão de pronúncia pelo tribunal relativamente a factos alegados por algum dos sujeitos processuais ou resultantes da discussão da causa, que sejam relevantes para a decisão. Ou seja, quando o tribunal não dá como «provado» nem como «não provado» algum facto necessário para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Como se refere em ac. do STJ de 21-06-2007:
"I - O ter um acórdão omitido pronúncia quanto a determinados factos alegados pelo arguido em sede de contestação, não os considerando como não provados, nem como provados, não determina a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPP.
II - O que releva é antes a ocorrência de um vício da matéria de facto: insuficiência da matéria de facto [art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP], com o eventual reenvio para novo julgamento, insuficiência que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da discussão da causa, ou seja, os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, atentas todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339.º, n.º 4, do CPP.
III - Na verdade, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito.
(...)
(Proc. n.º 2268/07 - 5.ª Secção Simas Santos (relator) * Santos Carvalho Costa Mortágua).
(O sublinhado e destacado a negrito é nosso).
Este vício supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixam espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", Vol. III, pág. 339, este vício, "consiste na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. (...). Para se verificar este fundamento é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito".
Este tem sido o entendimento jurisprudencial dominante.
E como se escreve no Ac. do STJ de 29-2-96 (in www.dgsi.pt) " a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artº 410º, nº 2 do C.P.Penal de 1987, só existe quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo deixa de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que a matéria de facto apurada não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação".
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de direito.
São realidades distintas a insuficiência da matéria de facto para a decisão, enquanto vício da sentença, previsto no art.º 410º, n.º 2, al.ª a), do CPP, ou seja, a falta da factos (na sentença) importantes para se poder proferir decisão e a falta (ou insuficiência) de provas para o tribunal poder formar a sua convicção no sentido em que a formou.
Esta alínea refere-se à "(...) insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito.
(...)
A insuficiência da matéria de facto há-de ser de tal ordem que patenteie a impossibilidade de um correcto juízo subsuntivo entre a materialidade fáctica apurada e a norma penal abstracta chamada à respectiva qualificação (...).
" (in Cód. Proc. Penal anotado de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, II vol, 2ª edição, 2004, pág. 410).
A insuficiência da matéria de facto provada para a decisão verificar-se-á “quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito... existe se o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídico-criminal, pressupondo a existência de factos constantes dos autos ou derivados da causa que ainda seja susceptível de apurar, sendo esse apuramento necessário para a decisão a proferir” – acórdão do STJ de 18.11.98, Proc. 855/98, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 5.ª edição, 61 a 67, de Simas Santos e Leal-Henriques.
Lidos e relidos os fundamentos invocados pelo recorrente para justificar a existência deste vício, deles se vê que não são susceptíveis de fundamentar o mesmo, ou seja, em face das razões invocadas pelo recorrente temos de concluir que não se verifica o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão – não invoca a ausência de factos (necessários para a decisão) que o tribunal devesse averiguar, mas – antes – embora sob o pretexto da insuficiência da matéria de facto para a decisão, a insuficiência de provas para o tribunal formar a sua convicção no sentido em que a formou, concretamente quanto aos factos supra mencionados, questão diversa daquela.
Ora, no que se refere à materialidade da infracção, o tribunal investigou toda a matéria que havia a investigar. Aqui se dando como reproduzida a matéria fáctica apurada, acima referida que é suficiente e plenamente justifica a decisão de direito.
Lida a decisão recorrida, a factualidade assente e a respectiva motivação, conclui-se, pois, que este vício suscitado pelo recorrente e com a fundamentação por ele adiantada, não está patente no texto da decisão recorrida.
Em face do que deve ser julgado improcedente o recurso nesta parte.
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- 3- Enfermando ainda de nulidade por falta de fundamentação ( art.s 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1 al. a) do C. P. Penal:
A respeito da fundamentação das decisões refere-se no acórdão do STJ de 01/03/2000, proc. 1179/99, conselheiro Brito Câmara:
"Ao artigo 374º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a partir da Lei 59/98 de 25 de Agosto, foi aditada a exigência de que o colectivo devia proceder ao exame crítico das provas (cfr. a este respeito quanto ao sentido desta exigência o B.MJ. 333, página 380 e Manual de Processo Civil, 2. edição de Antunes Varela, M. Bezerra e Sampaio Nora, página 665).
É assim imprescindível que o tribunal esclareça quais foram os elementos probatórios que em maior ou menor grau o elucidaram e porque o elucidaram, de modo a que se consiga compreender porque foi proferida aquela e não outra decisão - (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n. 680/98 de 2 de Dezembro, Processo n. 456/95; D.R. /I de 5 de Março de 1999)".
Ou seja, impõe-se que o julgador ao sentenciar proceda a um exame crítico da prova.
O tribunal, partindo da indicação e exame das provas que serviram para formar a sua convicção, deve enunciar as razões de ciência extraídas daquelas provas, o porquê da opção por uma e não outra das versões apresentadas, se as houver, revelando os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, para que, como evidencia o Conselheiro Lourenço Martins no acórdão do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/0 I - 3." Secção, "um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção".
Ora, vendo-se a sentença impugnada, em termos de fundamentação fica-se ciente que na parte intitulada "convicção do tribunal", o julgador expressamente enunciou os meios de prova que usou para proceder à fixação da matéria de facto - "elementos existentes nos autos, com as declarações prestadas pelas testemunhas, em sede de julgamento" -
Do que se referiu retira-se a razão pela qual conferiu credibilidade aos depoimentos das testemunhas, bem como do arguido (nomeadamente ali se referindo que "as testemunhas Cristóvão Filipe Aires e Carina Patrícia Aires, cunhados do arguido, referiram que estiveram na casa do arguido nos dias posteriores à situação versada nos autos, onde também se encontrava o pai do arguido António. Presenciaram uma discussão entre pai e filho, mostrando-se este muito revoltado com o pai pelo facto de o mesmo ter conduzido o seu veículo sem a sua autorização e nas circunstâncias em que o fez. O António sentiu-se incomodado com o facto e disse que pagava a multa e se responsabilizava por todos os prejuízos.
De facto, consta dos autos que o referido António endereçou uma carta à DGV pagando a multa e subscreveu uma declaração, assinada por si, onde assume que foi o mesmo quem conduziu o JL nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas no auto - ver fls. 6, 7 e 8.
Ouvido o arguido em declarações, o mesmo reiterou o depoimento relatado pelas testemunhas Cristóvão e Carina, referindo que o seu pai tem veículo e carta de condução, pelo que não consegue explicar a razão do sucedido.")
Não obstante, ante a enunciação efectuada, forçoso será perguntar se tal basta para se poder afirmar que a sentença concretizou um efectivo e legal exame crítico da prova.
Em nosso entender, podendo parecer escassa, certo é que todos em vendo a sentença ficam a saber os pressupostos, os critérios, os juízos de racionalidade e de valor que determinaram a decisão sobre a matéria de facto, ou seja, conferem a sua validade e legitimação extraprocessual. Por outro lado e ao nível interno - projecção interior, ao tribunal de recurso torna-se possível reapreciar a decisão, tendo em conta a fundamentação aduzida.
Ou seja, a sentença procedeu a um efectivo exame crítico da prova, respeitando os normativos que, imerecidamente, o recorrente diz violados.
A sentença não padece, por isso, de nulidade.
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Em face de tudo o que se deixou referido deve o recurso ser julgado totalmente improcedente.
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- DECISÃO:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, confirmar a decisão recorrida.
Sem custas por delas estar isento o recorrente.
Notifique.
D. N.
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2008
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Pº 1983/07 - 1ª Secção
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VOTO DE VENCIDO



Com o devido respeito, entendo que se deveria julgar procedente o recurso, em virtude de não se poder dar cobertura ao expediente usado (que só aproveita ao arguido) de, sem qualquer critério, se atribuir a infracção a um terceiro e desse modo absolver-se o titular do documento de identificação do veículo e permitir que também o terceiro possa vir a beneficiar de outra absolvição.
Vejamos.
Um indivíduo passa por uma brigada da GNR, à noite, sem luzes. A GNR apenas identifica a matrícula do veículo e não o condutor.
Nos termos do artº 171º, nº 2 do Código da Estrada, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.
No prazo concedido para a defesa, aparece no processo, sem se saber enviada por quem, uma carta subscrita por outro indivíduo a dizer que pagou a coima e que foi ele o autor da infracção. Essa carta, sem autoria autêntica, não obedece ao prescrito no nº 1 do citado artigo, ou seja, dela não consta a residência, nem o número do documento legal de identificação pessoal, data e respectivo serviço emissor, nem o número do título de condução e respectivo serviço emissor do assumido infractor.
Nestas condições, bem andou a entidade administrativa ao não considerar a referida carta nem o documento de pagamento da coima, pois era precipitado, e contra a lei, suspender o processo contra o proprietário do veículo e fazer seguir outro contra o alegado subscritor da carta.
Precipitado, porque não há indicação minimamente segura de que o teor da carta seja verdadeiro; contra a lei, porque a quem cabe vir fazer a indicação de outro infractor é ao titular do veículo e a indicação deve satisfazer todos os requisitos de identificação do imputado infractor, para que contra ele siga outro processo, enquanto o primeiro é legalmente suspenso.
Assim, a sanção acessória é bem aplicada ao inicial autuado, que pode, obviamente, reagir contra tal decisão, invocando todos os meios de defesa, incluindo o de que não era ele o condutor.
Colocado perante situação, o Juiz pode, evidentemente, atribuir o pagamento da coima e a prática da infracção ao assumido infractor, pese embora seja de se reconhecer que, no caso concreto, o fez com base em provas precárias (quer documentais - a carta e o talão bancário -, quer pessoais; a prova testemunhal é “insonsa” e “fictícia”).
Seja como for, dentro dos seus poderes, a Mmª Juíza do caso convenceu-se da bondade da defesa do arguido e absolveu-o.
Ora, é exactamente isso que não poderia fazer.
Por um lado, teria que, ao abrigo do disposto no artº 72º, nº 1 do RGCO, promover oficiosamente a prova de todos os factos que considere relevantes para uma decisão correcta (trata-se da inserção, no direito de mera ordenação social, do princípio da investigação da verdade material), ou seja, tinha que recolher prova mais autêntica de quem foi o remetente e/ou autor da citada carta, bem como a partir de que conta bancária foi feito o pagamento.
Não procedendo assim, é evidente que existe insuficiência da matéria de facto para a decisão, mais ou menos nos termos em que o Digno recorrente invoca tal vício, vício esse que é cognoscível por este Tribunal e que deveria levar ao reenvio do processo.
Por outro lado, a consequência do apuramento (certo, para a Mmª Juíza) da autoria da carta, do pagamento da coima e da infracção não era a absolvição do arguido, mas sim, a suspensão do processo em julgamento, quer ao abrigo do artº 171º, nº 3 do Código da Estrada, quer do artº 7º, nº 2 do C.P.Penal, e, obviamente, o envio de certidão para instauração de processo ao apurado infractor.
Só assim se respeitam a letra e o espírito da lei e se garantem os direitos de defesa, ao mesmo tempo que melhor se alcança a justiça material.
Caso contrário, e como acima dizemos, pode dar-se cobertura a expedientes (que só aproveitam aos iniciais arguidos) que levam a que, sem bases sérias, se atribua a infracção a um terceiro e desse modo se absolva o titular do documento de identificação do veículo e se permita que também o terceiro possa vir a beneficiar de outra absolvição.
Demonstremos.
Em todas as situações semelhantes à destes autos, basta que os arguidos comprovem o pagamento (seja por quem for) da coima e arranjem maneira de fazer chegar ao processo um papel onde um qualquer terceiro se diz autor da infracção para que possam ilibar-se da aplicação da sanção acessória. Depois, como irá por certo acontecer no caso destes autos, o terceiro vem dizer que nada teve a ver com a infracção, …e também pode acabar absolvido!!!
Ora, é a isto que a lei - os nºs 2 e 3 do artº 171º - quer obviar, estabelecendo meios simples de as pessoas que não foram autoras das infracções indicarem (quando possam fazê-lo; a propósito, cf. o acórdão do signatário, proferido no pº nº 1.535/07, disponível em dgsi.pt) o verdadeiro infractor: aquelas pessoas vêem os seus direitos garantidos com a suspensão do seu processo; os alegados infractores podem defender-se em processo próprio, e, aqui sim, alguém responde pela infracção.
No caso em apreço, como os autuantes não identificaram o condutor, estando a coima paga (seja por quem for) e sabendo que o filho foi absolvido, …bem burro seria o pai se viesse a aceitar a apócrifa autoria da carta e da infracção!!!
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Anselmo Augusto Lopes