HOMICÍDIO TENTADO
MATÉRIA DE FACTO
Sumário

I – Pratica o crime de homicídio voluntário, na forma tentada, aquele que avista um peão no passeio, pelo menos a cerca de 20 metros de distância, abranda a sua marcha, sobe o passeio com as rodas esquerdas do veículo e imprime aceleração ao motor, conduzindo a viatura em direcção ao peão, embatendo neste com a parte da frente do lado esquerdo da viatura e projectando-o por cima de um gradeamento.
II – Independentemente de se saber se o arguido lançou ou não “um olhar cínico” ao ofendido, imediatamente este haver sido atropelado, segundo as regras da experiência da vida, o que qualquer normal cidadão faria naquelas circunstâncias era pedir imediatamente desculpa ao ofendido pelo sucedido.
III – Não é o facto de o arguido não ter fugido do local ou de no dia seguinte ter procurado o ofendido na Clipóvoa que assume especial relevo para a percepção da verdadeira intenção da conduta do recorrente, pois, tendo o arguido uma boa relação com o ofendido, então a ter-se como verdadeira a tese do arguido de distracção na sua condução, o que seria normal acontecer, logo após o embate era o arguido ficar estupefacto pelo sucedido e pedir imediatamente desculpas ao assistente, face ao estado em que ficou.
IV – Tendo em conta que a prova da prática de um crime não tem necessariamente que resultar de um facto directamente apreendido pelas testemunhas, podendo sê-lo da conjugação de todos os factos, então a conclusão de que o arguido agiu dolosamente com o propósito de atingir o assistente na sua integridade física, só não lhe tirando a vida por motivos alheios à sua vontade, é perfeitamente legítima à luz das regras da experiência comum e segundo padrões de lógica e razoabilidade do homem médio.

Texto Integral

Acordam, em audiência, na Secção Criminal do tribunal da Relação de Guimarães

I)
No processo comum Singular nº 1037/04.6GAEPS do 2º Juízo da comarca de Esposende, por sentença de 9.07.2007, foi para além do mais, decidido:
Condenar o arguido A, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 131º e 22º, nºs 1 e 2, alínea b) e 23º do C. Penal, na pena de dois anos e dez meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa pelo período de três anos.

Inconformado o arguido interpôs recurso da sentença, concluindo na sua motivação: (transcrição)
«1a Tendo em conta os depoimentos prestados pelo assistente, pelo arguido
e pela testemunha N, não poderia ter sido dado como provado que
"O arguido avistou o J no passeio, pelo menos a cerca de 20 metros de distância, e abrandou a marcha;"
2ª Já que, NINGUÉM (arguido/assistente/testemunha N) afirma, ou sequer sugestiona a hipótese, que o arguido avistou o assistente.
3a Assim, é de todo incompreensível que tenha sido dado como provado o que NÃO FOI DITO em nenhum dos depoimentos.
4a Acresce que, TODOS (arguido/assistente/testemunha N) confirmam que o arguido abrandou a sua marcha, quase parando.
5a Sem qualquer fundamento, ou suporte na prova produzida, a sentença proferida nos autos limitou-se a transcrever, palavra por palavra, o constante do art° 4° da acusação pública.
6a Entende, por isso, ora recorrente, que o n.° 4 da matéria de facto dada como provada merece forte censura, devendo ser suprimida a referência "o arguido avistou o J no passeio, pelo menos a cerca 20 metros de distância...",
7a Tendo em conta os depoimentos prestados pelo assistente e pela testemunha N, não poderia ter sido dado como provado que "Momento seguido o arguido subiu o passeio com as rodas esquerdas do veículo e imprimiu aceleração ao motor, conduzindo a viatura em direcção a J, com o propósito de a atingir;"
8ª Os depoimentos do assistente e da testemunha N confirmaram o alegado pelo arguido nos números 11 e 12 da sua contestação, quando disse: Só que, a fracção de tempo em que teve o olhar focado no estabelecimento, foi o suficiente para, numa via tão estreita e com carros estacionados (do lado direito - esclarecimento nosso), o levar a invadir o passeio situado à sua esquerda.
Mesmo em frente ao estabelecimento, o passeio do lado esquerdo, (tendo em conta o sentido de marcha possível), tem uma rampa de acesso a um quintal (da casa com o n.° 51), rampa essa com três facetas, integrada na própria guia do passeio.
9ª Ora, tendo em conta tudo isso, dizia-se, é absolutamente despropositado e incompreensível porque não fundado, concluir-se que "o arguido subiu o passeio com as rodas esquerdas do veículo e imprimiu aceleração ao motor, conduzindo a viatura em direcção a J, com o propósito de a atingir;".
10ª Mais absurdo ainda se torna porquanto EM MOMENTO ALGUM foi referido, por quem quer que fosse, o motivo por que o arguido teria o propósito de atingir o assistente.
11ª Aliás, as testemunhas JF e JG, esclareceram o Tribunal que arguido e assistente não só não tinham qualquer quezília, como ainda tinham um bom relacionamento de vizinhança e colaboração.
12a Sem qualquer fundamento, ou suporte na prova produzida, a sentença proferida nos autos limitou-se a transcrever, palavra por palavra, o constante do art.° 5° da acusação pública.
13a Entende, por isso, ora recorrente, que o n.° 5 da matéria de facto dada como provada merece forte censura, devendo ser suprimida a referência "...conduzindo a viatura em direcção a J, com o propósito de o atingir.".
14a Tendo em conta os depoimentos prestados pelo assistente e pela testemunha N, não poderia ter sido dado como provado que "Em resultado do embate J foi projectado por cima do gradeamento em ferro, colocado sobre o muro da residência com o número de polícia 51, vindo a cair no interior desta residência, partindo a caixa de correio que se encontrava em cima do pilar da entrada principal da habitação;"
15a Nem a testemunha N, nem o próprio assistente, referem que este tenha sido projectado por cima do gradeamento de ferro.
16a Tal expressão foi única e exclusivamente usada pelo Senhor Procurador-Adjunto e "transportada" pelo Tribunal a quo da acusação pública para a sentença.
17a Os depoimentos do assistente e da testemunha N confirmam o alegado pelo arguido nos artigos 16° a 19° da sua contestação, quando disse que após ter recuperado a atenção e visão para a sua frente, apercebeu-se que colhera alguém que circulava no passeio e a atirara contra o portão da casa 51, indo a pessoa atropelada cair dentro do quintal, entre uma passadeira de mármore e uns arbustos situados a nascente (dessa mesma passadeira).
18a É de todo incompreensível que tenha sido dado como provado o que NÃO FOI DITO por nenhuma testemunha.
19a Sem qualquer fundamento, ou suporte na prova produzida, a sentença proferida nos autos limitou-se a transcrever, palavra por palavra, o constante do art.° 8° da acusação pública.
20a Entende, por isso, ora recorrente, que o n.° 7 da matéria de facto dada como provada merece forte censura, devendo ficar apenas a referência ao facto de o assistente ter sido atirado contra o portão da casa 51 (que abriu com o impacto) indo cair já dentro do quintal da mesma.
21a Tendo em conta os depoimentos prestados pelo assistente e pela
testemunha N, não poderia ter sido dado como provado que "O
arguido espreitou para o quintal onde a vítima se encontrava prostrada" (n.° 9, parte inicial, da fundamentação de facto da sentença recorrida)
22a Nem o assistente, nem a testemunha N referem que o arguido espreitou para o quintal.
23a Ambos referem, isso sim, que o arguido olhou. E olhar não é sinónimo de espreitar.
24a É de todo incompreensível que tenha sido dado como provado o que NÃO FOI DITO, em momento algum, pelo assistente, ou pela testemunha N.
25ª Tendo em conta os depoimentos prestados pelo assistente e pela
testemunha N, não poderia ter sido dado como provado que "...e sem
cuidar como aquele se encontrava ou mesmo de o auxiliar para o levar
ao Hospital entrou para o referido veículo automóvel e estacionou-o num quintal na mesma rua;" (n.° 9, parte final, da fundamentação de facto da sentença recorrida)
26a O arguido manteve-se no local até o assistente ter sido transportado na ambulância.
27a Nesse entretanto, e porque o seu veículo estava a impedir a circulação estradai (a rua tem apenas uma faixa de rodagem, com sentido único), foi-lhe sugerido pelos presentes, nomeadamente pela testemunha JF, que o encostasse mais à frente.
28a O arguido colocou o seu veículo no único espaço disponível, a entrada do n.° x da Rua Y (o acidente foi em frente ao n.° 51), que dista do local do acidente uns 15 metros.
29a Como é habitual, após um qualquer acidente de viação, as pessoas presentes no local estavam agitadas.
30a Por isso, o arguido foi aconselhado a aguardar em casa, sita em frente ao local do acidente, pela chegada da Autoridade Policial.
31a Tão logo esta chegou, e garantida a sua segurança, o arguido apresentou-se à autoridade.
32ª Sem qualquer fundamento, ou suporte na prova produzida, a sentença proferida nos autos limitou-se a transcrever, palavra por palavra, o constante do art.° 10° da acusação pública.
33a Deverá, por isso, ser suprimido o n.° 9 da fundamentação de facto da sentença recorrida.
34ª Tendo em conta todos depoimentos prestados, não poderia ter sido dado como provado que "O arguido agiu deliberada e conscientemente, com o propósito conseguido de embater com a viatura na vítima J, para lhe tirar a vida, o que não conseguiu por motivos alheios à sua vontade." (n.° 18 da fundamentação de facto da sentença recorrida)
35a Nenhum dos depoimentos poderia levar ao afirmado pelo Tribunal a quo.
36a A sentença proferida nos autos limitou-se, tão-somente, a repetir, palavra por palavra, a acusação deduzida pelo Ministério Público.
37a Razão pela qual o n.° 18 da fundamentação da matéria de facto dada como provada, merece forte censura, devendo ser excluído na íntegra.
38a Tendo o Tribunal a quo optado por copiar, no que à fundamentação de facto diz respeito, o constante na acusação deduzida contra o arguido, sem proceder a uma análise critica dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, desconsiderou, considerando matéria de facto não provada, todo o teor da contestação deduzida pelo arguido.
39a Para além da falta de suporte factual, que permitisse concluir verificado o tipo objectivo de ilícito, muito mal foi o Tribunal a quo ao concluir como fez, omitindo qualquer referência, por mais simples que fosse, à motivação do comportamento que imputa ao arguido.
40a Como é bom de ver, a prática de um crime de homicídio, mesmo na forma tentada, pressupõe, como requisito essencial, a verificação de uma qualquer motivação/intenção.
41a O Tribunal a quo teria de, para concluir como fez, referenciar e concretizar o elemento subjectivo de ilícito. Isto é, teria o Tribunal a quo de referenciar a motivação/intenção que permitisse afirmar a existência de dolo. O que não fez!
42a Logo não poderia concluir pela imputação de um crime de homicídio, sob a forma tentada, ao ora recorrente.
43a Ficou amplamente esclarecido, até porque afirmado pelo próprio assistente, que ele e o ora recorrente tinham um bom relacionamento de vizinhança e cooperação, e que não havia qualquer motivo para o sucedido.
44a Também foi referenciado, por testemunhas em audiência de julgamento, que, após o acidente, o arguido e seus familiares foram inteirar-se do seu estado de saúde à Clínica onde aquele se encontrava internado.
45a Ora, dos presentes autos nada permite afirmar que os factos não tenham passado de um, ainda que lamentável, exemplo de negligência, infelizmente tão frequente nas nossas estradas.
46a Faltando assim, quer o dolo na culpa, quer a verificação do elemento objectivo e do elemento subjectivo de ilícito, forçoso será concluir que o Tribunal a quo incorreu em manifesto ERRO DE JULGAMENTO.
47a Razão pela qual, se impõe a revogação da decisão proferida nos autos, e a sua substituição por acórdão que decrete a absolvição do ora recorrente, da prática de um crime de homicídio, na forma tentada, que lhe é imputado.
48. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou as normas constantes dos artigos 131º do CP e os Princípios Gerais do In Dúbio Pró Réu e da Legalidade».
Termina requerendo a absolvição.

Respondeu o Exmº magistrado do Mº Pº junto da 1ª instância batendo-se pela manutenção do julgado.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu douto parecer no qual aduz bem elaborada argumentação tendente a demonstrar a sem razão do recorrente.
Conclui pela manutenção da decisão impugnada.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

O Tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade:
1. No dia 25 de Agosto de 2004, cerca das 21h, na Rua Y, freguesia da A, concelho de Esposende, o arguido conduzia o veículo automóvel, marca Wolkswagen, modelo Transporter, cilindrada 1.9 TD e com a matrícula IZ;
2 Circulava a uma velocidade não apurada, no sentido poente nascente;
3. Nas mesmas circunstâncias de tempo e espaço, J encontrava-se no passeio do lado esquerdo da via, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, em frente à casa com o número de polícia 51;
4. O arguido avistou o J no passeio, pelo menos a cerca de 20 metros de distância, e abrandou a sua marcha;
5. Momento seguido o arguido subiu o passeio com as rodas esquerdas do veículo e imprimiu aceleração ao motor, conduzindo a viatura em direcção a J, com o propósito de o atingir;
6. Como consequência o arguido embateu com a parte da frente do lado esquerdo da viatura contra as pernas e o corpo de J;
7. Em resultado do embate J foi projectado por cima do gradeamento em ferro, colocado sobre o muro da residência com o número de policia 51, vindo a cair no interior do quintal desta residência, partindo a caixa de correio que se encontrava em cima do pilar da entrada principal da habitação;
8. Após, o arguido desceu o passeio e imobilizou o veículo na via pública;
9. O arguido espreitou para o quintal onde a vítima se encontrava prostrada e sem cuidar como aquele se encontrava ou mesmo de o auxiliar para o levar ao Hospital entrou para o referido veículo automóvel e estacionou-o num quintal na mesma tua;
10. Da colisão resultaram para o peão, J, a perda de três dentes, politraumatismos, ferida incisa da região fronto parietal e do mento, equimoses múltiplas, contusão torácica – fractura de 3 arcos costais – múltiplas fracturas das costelas, contusões do membro inferior esquerdo, sub-luxação do joelho esquerdo, fractura da rótula e demais lesões descritas nos relatórios periciais juntos aos autos e que aqui damos por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, que determinaram 401 dias de doença com afectação da capacidade para o trabalho e diminuição permanente da mobilidade do joelho esquerdo e fenómenos dolorosos ao nível do joelho direito;
11. J recebeu de imediato tratamento hospitalar no Hospital de Fão e na Clipóvoa, onde esteve internado no período de 25 a 28 de Agosto de 2004 e, posteriormente, numa clínica de fisioterapia;
12. A Rua Y é uma via de sentido único, com 4,90 metros de largura, de pavimento betuminoso, em bom estado de conservação e, na altura, estava seco e limpo;
13. No lado direito da via, atento o sentido de marcha do veículo do arguido, encontravam-se veículos estacionados;
14. O passeio onde se encontrava a vítima tem 90 centímetros;
15. Na referida data e hora estava sol;
16. A velocidade máxima permitida no local é de 50 km/h;
17. O arguido e a vítima são vizinhos;
18. O arguido agiu deliberada e conscientemente com o propósito conseguido de embater com a viatura na vítima J, para lhe tirar a vida, o que não conseguiu, por motivos alheios à sua vontade;
19. O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;
20. O arguido não tem antecedentes criminais;
21. O arguido é casado;
22. É estucador;
23. O prédio onde tem a sua residência (Rua Y) pertence-lhe;
24. Tem a 4a classe completa.
A circulação no sentido poente – nascente é o único sentido de marcha admitido na Rua do Facho.
O arguido tem a sua residência na Rua Y.
No mesmo edifício tinha, à data dos factos, um estabelecimento de rninimercado, situado no rés-do-chão do prédio com o n° 44, rés-do-chão esse sobrelevado e com montras viradas para a via pública e para as escadas de acesso ao prédio.
No dia e hora a que se reportam os factos, toda a zona de estacionamento, junto ao passeio direito (tendo em conta o sentido de marcha possível na via) estava ocupada, com viaturas estacionadas.
Matéria de facto não provada
O arguido, que circulava na Rua Y, no sentido poente – nascente, ao chegar sensivelmente em frente à montra do seu estabelecimento, abrandou a marcha do veículo que conduzia e, vendo que estava encerrado, procurou ver o que se passava.
Como não tinha lugar para estacionar junto ao estabelecimento, acelerou de novo o carro.
A fracção de tempo em que teve o olhar focado no estabelecimento foi o suficiente para, numa via tão estreita e com carros estacionados, o levar a invadir o passeio situado à sua esquerda.
Foi pela rampa do passeio do lado esquerdo (tendo em conta o sentido de marcha possível) de acesso a um quintal (da casa 51), existente em frente ao estabelecimento, que o veículo do arguido invadiu o passeio.
O arguido só se apercebe do desgoverno do seu veículo e de que invadira o passeio quando bate com o pára-choques na zona frontal esquerda no muro da casa com o número 51, sensivelmente a dois metros do pilar poente, que suportava o portão de acesso à casa com on°51.
Nesse instante o arguido recupera a atenção e a visão à sua frente e apercebe-se que colhe alguém que circulava no passeio e o atira contra o portão da casa 51.
A velocidade do arguido não excedia 30 a 40 km/h.
O arguido foi inteirar-se da saúde da pessoa atropelada.
O acidente ocorreu por via da sua momentânea distracção e menor falta de cuidado na circulação.
Não se faz referência à restante matéria alegada na contestação por se tratarem de considerações, conclusões ou de matéria sem interesse para o objecto do processo.
Motivação da decisão de facto
A factualidade dada como provada resultou da análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em audiência, designadamente, na valoração das declarações prestadas pelo arguido, das declarações do assistente, do depoimento das testemunhas de acusação, conjugado com os exames médicos de fls. 82 a 84, 100 a 103, 131 a 134, 187 a 194 (repetido de fls. 367 a 374), 205 a 208, dos elementos clínicos de fls. 9 a 11, 31, 36 a 56, 85 a 91, 113 a 123, 171 a 180, e das fotografias juntas de fls. 19 a 21.
O Tribunal teve, também, em consideração a participação do acidente, de fls. 4 e 5 e o parecer técnico da D.G.V. de fls. 226 a 228 e os esclarecimentos de fls. 684, os prestados pelos senhores peritos em audiência de julgamento e do relatório apresentado em audiência e cuja junção se ordenou de fls. 913 a 916 dos autos.
Por último, a convicção do Tribunal teve por base o exame judicial ao local.
Assim, e concretizando, o arguido assumiu parte dos factos de que vinha acusado, concretamente, assumiu ter colhido o assistente com a sua viatura, porém, negou ter tido intenção de o matar ou de o ferir, sustentando que o atropelamento se deveu a um momento de distracção no qual perdeu o controle da sua viatura, galgando o passeio e indo embater no muro e no assistente.
Inicialmente, a sua versão pareceu-nos verosímil, porém, não foi corroborada por mais nenhum elemento probatório, tendo antes sido contrariada e refutada pela demais prova produzida, designadamente pelas declarações do assistente e pelo depoimento da única testemunha presencial.
O assistente relatou ao Tribunal o que lhe sucedeu, afirmando que o arguido o avistou a vários metros de distância (cerca de 25 metros), subiu cuidadosamente o passeio, colocando as rodas do lado esquerdo da viatura em cima do mesmo e acelerando em sua direcção, apanhando-o de surpresa e sem qualquer reacção e conseguindo atropelá-lo e projectá-lo no ar, indo o assistente cair dentro do quintal da casa. Mais afirmou que, em momento nenhum, perdeu o arguido o controlo da viatura que conduzia.
Para além do arguido e do assistente, a única pessoa que poderia prestar o seu contributo no esclarecimento dos factos em discussão — dado os ter presenciado era a testemunha N. O seu depoimento foi essencial para convicção do Tribunal, tendo deposto de uma forma, clara, verdadeira e espontânea e merecendo a nossa credibilidade.
Esta testemunha esclareceu que se encontrava junto ao minimercado do arguido, sentado nas escadas, à espera que alguém o viesse abrir. Quando se decidiu ir embora, coloca-se de pé e avista a carrinha do arguido a começar a subir a rua pelo que fica à espera. Afirma que o viu a abrandar, a subir o passeio devagar, colocando as duas rodas do lado esquerdo e começa a acelerar em direcção ao assistente, até o colher. Bate no corpo do assistente e este passa mesmo por cima do gradeamento, batendo na caixa do correio e caindo no pátio. Depois de bater no assistente desce devagar o passeio. Refere, de igual modo, que não lhe parece que o arguido tenha perdido o controlo do veículo, pois subiu com cuidado o passeio, nunca tocou no muro, e faz uma trajectória direita ao assistente, sempre a acelerar e até lhe bater. Depois de bater, desceu novamente devagar e parou a carrinha no meio da estrada. Refere, ainda, esta testemunha que foi o primeiro a prestar assistência à vítima, procurando que os carros que passavam parassem para chamarem uma ambulância, e que o arguido não se preocupou em fazer nada para socorrer a vítima.
A testemunha JF não assistiu ao atropelamento mas refere ter ouvido o estrondo, o que o faz vir fora da sua casa e avistar o assistente no chão do pátio da casa do vizinho. Verificou-se alguma contradição entre as declarações desta testemunha e da testemunha anterior – uma vez que o sr. JF refere ter sido o primeiro a ver o assistente e não ter visto a testemunha N – no entanto, o Tribunal não lhe atribuiu grande importância, dado que, após o confronto entre as duas testemunhas e tendo o assistente esclarecido que a primeira pessoa que se aproximou de si foi a testemunha N, seguida de uma vizinha que o terá coberto com cobertores – pareceu-nos que esta testemunha não estaria muito segura de certas afirmações e não terá sido tão rápido a acorrer ao local como supõe que foi. Já a testemunha N nos pareceu bastante segura das afirmações que fez, tendo bem presente a situação a que assistiu, até por ter ficado surpreendido e chocado com o que viu.
As restantes testemunhas inquiridas não presenciaram os factos, embora algumas delas tenham aparecido no local posteriormente.
Precisando mais alguns aspectos, no que respeita ao facto 4., foi possível dar como provada a distância a que o arguido avistou o assistente com base nas medições efectuadas no local e conjugadas com os depoimentos do assistente e da testemunha N.
Quanto aos factos 12. e 14, baseou-se o tribunal na participação elaborada pela GNR no dia em que se deslocou ao local.
No que respeita às lesões resultantes para o assistente, teve o tribunal em consideração o teor dos relatórios periciais elaborados e juntos.
Ponderada toda a prova, entendemos não haver dúvidas quanto à prática do crime, sendo certo que o arguido não nos convenceu que o atropelamento se deveu a um momento de distracção e perda de controlo da viatura. Atendendo aos actos praticados pelo arguido nos momentos que antecederam o embate, à forma e à violência como o arguido foi projectado, derrubando a caixa do correio que se encontrava cravada no pilar de pedra, e à gravidade das lesões produzidas, não ficamos com dúvidas que o arguido tinha a intenção de atingir o assistente e de o matar. A forma escolhida — atropelamento — é idónea e adequada a produzir tal resultado e, para além disso, a forma como subiu o passeio e a trajectória que faz em direcção ao assistente, não deixam dúvidas quanto à sua vontade.
A matéria de facto dada como não provada deveu-se à total ausência de prova.
***
Visto que as declarações prestadas oralmente em audiência se mostram documentadas, este Tribunal conhece de facto e de direito, nos termos dos artºs 364, nº 1 e 428º, nºs 1 e 2 do C.P.P.
As conclusões do recurso balizam o objecto do recurso (artº 412º, nº 1 do C.P.P.).
Entremos então na apreciação do recurso do arguido A.
Vem impugnada a decisão sobre a matéria de facto.
A divergência do recorrente quanto à apreciação da prova feita pelo Tribunal, é a de aquele entende não ter ficado provado:
O facto vertido no n° 4 da sentença: "o arguido avistou o J no passeio, pelo menos a cerca de 20 metros de distância";
O facto constante do n° 5 daquela: "Momento seguido, o arguido subiu o passeio com as rodas esquerdas do veículo e imprimiu aceleração ao motor, conduzindo a viatura em direcção a J, com o propósito de o atingir";
O facto referido no n° 7 daquela decisão: "Em resultado do embate, J foi projectado por cima do gradeamento em ferro, colocado sobre o muro da residência com o n° de polícia 51, vindo a cair no interior desta residência, partindo a caixa de correio que se encontrava em cima do pilar da entrada principal da habitação;
O facto vertido sob o n° 9: "O arguido espreitou para o quintal onde a vítima se encontrava prostrada e sem cuidar como aquele se encontrava ou mesmo de o auxiliar, para o levar ao Hospital, entrou para o referido veículo automóvel e estacionou-o num quintal na mesma rua";
O facto expresso no n° 18 da sentença: "O arguido agiu deliberada e conscientemente, com o propósito conseguido de embater com a viatura na vítima J, para lhe tirar a vida, o que não conseguiu por motivos alheios à sua vontade".
Alega para o efeito, e no essencial, que tal factualidade não tem sustentabilidade na prova produzida em audiência de julgamento, designadamente nos depoimentos do assistente e da testemunha N que presenciou os factos.
Salienta, por outro lado que o Tribunal desprezou a sua defesa por ter "optado por copiar, no que à fundamentação de facto diz respeito, o constante na acusação deduzida contra o arguido, sem proceder a uma análise crítica dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento".
Adianta ainda que a sentença não referenciou e concretizou o elemento subjectivo do ilícito, que permitisse afirmar a existência de dolo ou negligência.
E o que desde já se dirá é que face ao conjunto da prova produzida, com o devido respeito, não podemos concordar com o recorrente A.
Na verdade não pode de modo algum pretender isolar-se do conjunto dos depoimentos e da restante prova adquirida, certos passos de depoimentos procurando-se por esse modo impressionar e infirmar a matéria que foi dada como provada.
É que as provas produzidas têm de ser apreciadas não apenas por aquilo que isoladamente valem, mas também valorizadas globalmente, isto é no sentido que assumem no conjunto de todas elas.
A prova, como resultado, é nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva (in Curso de P. Penal II, pág. 96) "a convicção formada pela entidade decidente de que os factos existiram ou não existiram, isto é que ocorreram ou não".
Por outro lado e salvo quando a lei dispuser em contrário, não estando o valor dos meios de prova pré-estabelecido, devem elas ser apreciadas segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador.
Como diz o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1988-89, pág. 139) essa "livre" ou "íntima" convicção do juiz é uma convicção objectivável, portanto, capaz de impor-se aos outros.
"Uma tal convicção existirá quando e só quando - parece-nos este um critério adequado, de que se tem servido com êxito a jurisprudência anglo-americana - o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na "convicção" de uma mera opção "voluntarista" pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse".
Por outro lado não podemos esquecer que, ao apreciar a matéria de facto, este tribunal está condicionado pelo facto de não ter com os participantes no processo aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão. Conforme refere Figueiredo Dias (Princípios Gerais do Processo Penal, pág. 160) só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabeleceu-se com o tribunal de 1ª instância e daí que a alteração da matéria de facto fixada na decisão recorrida deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento do princípio da imediação.
Chegados aqui começaremos por dizer que, de uma forma linear, estão em causa duas versões distintas dos mesmos factos: uma dessas versões (segundo a qual o arguido agiu com o propósito de atropelar o ofendido) mereceu acolhimento na decisão recorrida; a outra versão (que diz que houve apenas uma situação de falta de atenção do arguido na sua condução, portanto uma situação de mera negligência) é carreada pelo arguido, apresentando, assim, uma coloração distinta da primeira na reportagem dos mesmos acontecimentos.
Assim, compreende-se, desde logo, a estratégia processual do recorrente procurando abalar a tese acusatória apontando-lhe falta de apoio na prova produzida em julgamento.
Mas não lhe assiste razão, como procuraremos demonstrar, de imediato.
a) Da factualidade inserta no ponto 4):
O relato da dinâmica do acidente que é feita quer pelo ofendido, quer pela testemunha N que assistiu aos factos aponta claramente no sentido decidido.
Relembremos, numa boa síntese feita pelo Exmº PGA, a forma como o ofendido e o N descrevem a manobra então levada a cabo pelo arguido:
O abrandamento da marcha por banda do arguido é descrita, claramente, pela mencionada testemunha a fls. 21 do apenso da transcrição. Depôs respondendo à julgadora: "Sempre. Depois tipo - subiu devagar, bateu e depois desceu devagar outra vez". Ou como respondeu a um dos advogados presentes - vd. fls. 25: "É assim: ele entrou, assim, devagarinho a subir ali o coiso como se fosse para estacionar ... depois saiu outra vez com o carro".E a fls. 19, respondeu: "Sim. Subiu devagar e depois acelerou". E a fls. 14 respondeu ao M°P°: "Sim. Subiu devagar... ", "...subo devagarinho...". E à pergunta: e a acelerar cada vez mais, respondeu inequivocamente: "Foi. Sempre ".
Esta testemunha é elucidativa quando opera a descrição da conduta do arguido na sua condução automóvel. E esclarece que o embate na vítima foi frontal - "Continuou sempre a andar, depois começou a acelerar, eu queria dizer - cuidado - para o sr. Só que não tive reacção de dizer..." (fls. 12), embateu "na parte da frente" (fls. 14) da vítima, indo ele "sempre direitinho" (fls. 19), sendo o "embate forte" (fls. 20). Quando à projecção do corpo da vítima, também esclareceu esse facto - vd.fls. 15 - "Embateu contra a carrinha, depois passou para o lado de lá, mas também levou a caixa do correio consigo. Acho que bateu nas costas, não tenho a certeza. Passou para lá e arrancou a caixa do correio", "...por cima da caixa do correio", do gradeamento (fls. 15), "...mas também levou a caixa do correio consigo"(fls. 15). "Depois ouvi-o a bater no corpo do sr., a bater contra a caixa e a entrar para o lado de dentro. Depois o sr. desceu o passeio, virou a carrinha ali mais ou menos ..., saiu, olhou lá para dentro e eu ainda estava aqui meio coiso porque eu tinha visto o sr. a ser atropelado" (fls.13), "...E depois o sr. olhou lá para dentre, meteu-se outra vez na carrinha, estacionou a carrinha; eu fui para a beira daquele sr., depois estava lá dentro e depois nunca mais vi" (fls. 13).
A vítima também assevera que o arguido após o embate "...abordou-se do muro, olhou para mim. O olhar dele era mesmo com cara de cínico. Meteu-se na carrinha e foi-se embora. Nesta altura não havia cá ninguém. A única pessoa que foi logo a correr ter comigo, inclusive que até teve que pôr-me de pé, não consegui, como é evidente, o miúdo sai daqui a correi, foi ter comigo, pôs-me inclusive as mãos no peito. O sr. foi-se embora" - vd. fls. 4.
À pergunta feita por um dos advogados “se nessa altura o condutor olhava para o lado esquerdo, direito, para trás ou para a frente, para onde é que olhava”, o ofendido respondeu (cfr. fls. 10 das transcrições) “Nessa altura fixou-se em mim, só olhou para trás e para os lados aqui precisamente na zona da entrada”.
É portanto inconsistente dizer que ninguém afirma, ou sequer sugestiona a hipótese de o arguido ter avistado o assistente. Mas mais. Como é possível acreditar na versão do arguido, segundo a qual só se apercebeu do J quando nele embateu com a carrinha, quando é certo como ele próprio refere que na altura podia avistar o ofendido a 40/50 metros, sendo que circulava a uma velocidade de 40/50 kms hora?
Ou seja, conjugando as regras da experiência comum com o relato que nos é dado pelo ofendido e pela referenciada testemunha presencial, a versão dada pelo arguido de que conduzia perfeitamente desatento não convence.
b) Dos factos constantes dos n°s 5 e 18 da sentença: "Momento seguido, o arguido subiu o passeio com as rodas esquerdas do veículo e imprimiu aceleração ao motor, conduzindo a viatura em direcção a J, com o propósito de o atingir": "O arguido agiu deliberada e conscientemente, com o propósito conseguido de embater com a viatura na vítima J, para lhe tirar a vida, o que não conseguiu por motivos alheios à sua vontade".
Diz o arguido que é “absolutamente despropositado e incompreensível, porque não fundado” concluir pelo acolhimento da citada factualidade nos factos dados como assentes e que foi omitida “qualquer referência, por mais simples que fosse, à motivação do comportamento imputado ao arguido”.
Mais uma vez e salvo o devido respeito, sem razão.
Desde logo porque o relato do ofendido e do N confirma de forma inequívoca que o arguido subiu o passeio com as rodas esquerdas da carrinha e imprimindo aceleração ao motor. "Sim. Subiu devagar e depois acelerou""Subiu devagar... ", "...subo devagarinho...". E à pergunta: e a acelerar cada vez mais, respondeu inequivocamente: "Foi. Sempre ".
Mas também resulta desses testemunhos o propósito evidenciado pelo recorrente de atingir o assistente.
Basta relembrar que a testemunha N foi muito clara quando respondeu à pergunta "Porque é que o sr. Diz que ele quis bater mesmo no senhor? (fls. 18). A sua resposta foi: "Porque ele se estivesse embriagado tinha subido e batido contra o muro ou já tinha batido lá atrás. Mas ele subiu assim devagarinho e depois é que começou a acelerar direito ao sr. J", sempre a acelerar até lhe bater, a "acelerar e cada vez mais", "Como você entra numa auto-estrada, vai sempre a acelera” (fls. 19 e 20).
Por outro lado é preciso não esquecer toda a conduta do recorrente subsequente ao embate. Independentemente de se saber se o arguido lançou ou não “um olhar cínico” ao ofendido, imediatamente este haver sido atropelado (cada um tem o olhar que tem), o certo é que segundo as regras da experiência da vida, o que qualquer normal cidadão faria naquelas circunstâncias era pedir imediatamente desculpa ao ofendido J pelo sucedido (não é o facto de o arguido não ter fugido do local ou de no dia seguinte ter procurado o ofendido na Clipóvoa que assume especial relevo para a percepção da verdadeira intenção da conduta do recorrente). Na verdade, tendo o arguido uma boa relação com o ofendido (segundo as declarações do arguido, nunca teve nada com ele, “chegou a emprestar-lhe a sua carrinha” “foi buscar vinho para ele” “deitei uma madeira abaixo, dei-lhe a lenha na Primavera antes do acidente”), então a ter-se como verdadeira a tese do arguido de distracção na sua condução, o que seria normal acontecer, logo após o embate era como referimos, o arguido ficar estupefacto pelo sucedido e pedir imediatamente desculpas ao assistente, face ao estado em que ficou. Mas não foi isso que seguramente ocorreu. No dizer do assistente, depois de ser colhido, o arguido tirou a carrinha para o meio da estrada, parou no meio da estrada e abordou-se do muro, olhou para ele com cara de cínico e foi-se embora.
Ora, tendo em conta que a prova da prática de um crime não tem necessariamente que resultar de um facto directamente apreendido pelas testemunhas, podendo sê-lo da conjugação de todos os factos, então a conclusão de que o arguido agiu dolosamente com o propósito de atingir o assistente na sua integridade física, só não lhe tirando a vida por motivos alheios à sua vontade, é perfeitamente legítima à luz das regras da experiência comum e segundo padrões de lógica e razoabilidade do homem médio.
c) Do facto referido no n° 7 da decisão impugnada: "Em resultado do embate, J foi projectado por cima do gradeamento em ferro, colocado sobre o muro da residência com o n° de polícia 51, vindo a cair no interior desta residência, partindo a caixa de correio que se encontrava em cima do pilar da entrada principal da habitação:
Na perspectiva do arguido esta matéria de facto dada como assente deve ser censurada, por não ter qualquer fundamento ou suporte na prova produzida.
Também aqui sem razão.
Basta atentar nas declarações do ofendido sobre esta matéria, para nos darmos conta de que efectivamente o J foi, de facto, projectado com o impacto da carrinha: “Eu não saltei. Eu fui projectado com o impacto da carrinha. Eu não saltei” “Eu levei o embate no corpo todo, porque eu parti vários dedos, várias costelas… portanto, eu fui apanhado desde os pés à cabeça”, “Eu depois fui embater no gradeamento e na caixa do correio, que a arranquei, fiquei lá encostado a uma esquina(cfr. fls. 4 e 5 das transcrições).
Deste modo, improcede assim também o recurso quanto a esta questão.
d) Por último defende o recorrente que o tribunal a quo errou ao dar como provado o facto vertido sob o n° 9: "O arguido espreitou para o quintal onde a vítima se encontrava prostrada e sem cuidar como aquele se encontrava ou mesmo de o auxiliar, para o levar ao Hospital, entrou para o referido veículo automóvel e estacionou-o num quintal na mesma rua":
Bem quanto a esta matéria não há muito a dizer face ao que acima dissemos a propósito da questionada intenção dolosa do comportamento do arguido.
Já fizemos referência ao relato que o ofendido fez da atitude do recorrente logo após o atropelamento. É um facto que de acordo com este relato, o arguido não manifestou qualquer preocupação em se inteirar verdadeiramente do estado de saúde do J. E nem se argumente, como o faz o recorrente que só retirou a carrinha do local para não mais impedir o trânsito naquela artéria estreita em tempo de férias de Verão tendo aliás sido aconselhado a tal conduta por parte da testemunha JF. Não, ao recorrente exigia-se mais, muito mais, naquelas circunstâncias caso estivesse verdadeiramente preocupado com a situação do ofendido. Repetindo aquilo que acima salientámos, não é compatível com as regras da experiência da vida que o arguido, conforme alega após “uma pequena distracção” e após o embate não tenha tido uma outra atitude de se desculpar perante o assistente de lhe pedir perdão. E se assim tivesse agido, certamente que a sua primeira preocupação seria a de contactar imediatamente os serviços de assistência médica, não arredando pé do local enquanto não tivesse a certeza de que o J iria ser tratado.
Improcede, pois o recurso neste ponto.
Em suma: o que se afigura subsistir no espírito do recorrente, é uma divergência entre a convicção que ele próprio alcançou sobre a prova e aquela convicção que sobre a mesma prova e nos termos prevenidos do artº 127º, do C.P.P., e com os benefícios da imediação e da oralidade, a Srª Juíza logrou obter.
Acresce que, do texto da decisão recorrida, não resulta que a Sra. Juíza a quo tivesse tido dúvidas sobre a existência dos factos impugnados. E, por isso mesmo, não há que chamar à colação o princípio in dubio pro reo.
Assim sendo, da prova produzida (transcrita nos autos) devidamente conjugada entre si, pode concluir-se, de acordo com os critérios da experiência comum, da lógica do homem médio suposto na ordem jurídica e de bom senso, que face a tudo quanto acaba de ser exposto dúvidas não restam de que a matéria que foi dada como provada nenhuma censura nos merece e por essa razão se confirma integralmente.
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Por outro lado analisando atentamente a decisão recorrida, constata-se que a mesma não padece de qualquer dos vícios ou nulidade de conhecimento oficioso a que alude o artº 410º, nºs 2 e 3, do C.P.P., por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
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Questão não colocada pelo recorrente é relativa às consequências jurídico-penais na sentença da entrada em vigor da Lei 59/2007 de 04/09.
Uma é imediata e confina-se à nova redacção dada ao art. 50º do Código Penal. No n° 5 deste preceito prevê-se que o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença.
Ou seja e volvendo o olhar para o caso concreto, tendo o arguido sido condenado na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, a duração do período da suspensão tem de ser igual a esta pena, não podendo manter-se o período de 3 anos como se sentenciou.
Claro está, por operância do disposto no art. 2, n° 4 do CPenal.
Deve, por isso, ser aplicado o novo regime, em conformidade com o disposto no citado artº 2º, nº 4 do C. Penal.
Resta, pois, decidir:
III)
DECISÃO
Nestes termos e com tais fundamentos, os Juízes desta Relação decidem nos seguintes termos:
- Negam provimento ao recurso.
- Ao abrigo do disposto no artº 50º, nº 5 do C. Penal, ex vi artº 2º, nº 4, do mesmo código, reduzem o período de suspensão da execução da pena para 2 anos e 10 meses.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em três Ucs

Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º, nº 2 do C.P.P.)
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2008