ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
NULIDADE DO CONTRATO
GESTÃO DE NEGÓCIOS
RATIFICAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Sumário


I - Contrato de arrendamento para comércio:
a - Sua nulidade por falta de escritura pública;
b - Invocação da nulidade.

II - Escritura de trespasse de estabelecimento comercial outorgada por gestor de negócio. Falta de ratificação.

III - Abuso de direito.

Texto Integral

PROCESSO Nº 62/02
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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A... instaurou na Comarca de Portimão a presente acção, com processo ordinário, contra

B... e marido C..., alegando:

O Autor é arrendatário de uma loja, sita na ...
Tal loja está destinada a comércio de pronto a vestir e artesanato, é composta por uma divisão assoalhada, casa de banho e despensa, com a área de 83,8 m2, correspondendo ao artigo matricial ..., da referida freguesia.

O Autor adquiriu o arrendamento através dum contrato verbal, celebrado no dia 16 de Junho de 1986, com a proprietária do locado, D..., tendo sido fixada a renda em 25.000$00 mensais, a pagar no escritório da Senhoria, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dizia respeito.

O Autor equipou o local com balcão e prateleiras, alcatifou o chão e adquiriu artigos destinados a serem comercializados e pagou pontualmente as rendas, contra a passagem dos respectivos recibos.

No dia 15 de Novembro de 1990, pelos gestores de negócios do Autor e a Ré foi outorgada uma escritura de trespasse, a favor de B, tendo sido fixado o preço de 1.500.000$00, a pagar no prazo de um mês. Logo a Ré passou a explorar o estabelecimento comercial em seu proveito.
Acontece, que a Ré não liquidou o montante acordado para o trespasse, apesar de várias tentativas feitas, pelo que não foi ratificada a gestão exercida através da outorga da escritura.

Tentou também o Autor retomar o estabelecimento, mas também isso a Ré lhe negou.

Não dispõe, pois, a Ré de qualquer título que lhe confira o direito de ocupar o estabelecimento, bem como das coisas que o equipam. E, quando a Ré ocupou o estabelecimento, no mesmo existiam muitos artigos destinados a serem vendidos, com o valor de várias centenas de contos, mas que neste momento não é possível avaliar em concreto e que a Ré transaccionou, recebendo o preço, isto sem autorização do Autor.

A conduta da Ré está e continuará a motivar prejuízos ao Autor, tanto mais que o estabelecimento está instalado numa zona de grande afluência de turistas e tem numerosa clientela, proporcionando um lucro líquido anual de 1.200.000$00.

Toda a conduta da Ré foi feita com conhecimento e assentimento do marido.

Termina pedindo a procedência da acção e, consequentemente:

- Que o Autor seja reconhecido como arrendatário da fracção identificada;
- Que seja reconhecido como dono do estabelecimento e do respectivo equipamento (balcão, estantes e alcatifa);
- Que os Réus sejam condenados a reconhecer os pontos anteriores;
- Que os Réus sejam condenados a entregar o estabelecimento livre, desonerado e desembaraçado bem como o respectivo equipamento.
- Que sejam os Réus condenados a abster-se de praticarem qualquer acção que perturbe ou ponha em causa o exercício dos direitos por parte do Autor;
- Que sejam os Réus condenados a pagarem ao Autor, a título de indemnização, pela apropriação dos artigos de comércio que lhe pertenciam, o montante que se vier a liquidar em execução de sentença;
- Que sejam os Réus condenados a pagarem ao Autor uma indemnização pelo uso e exploração ilegítimos do estabelecimento, no montante de 5.100.000$00, acrescido de 100.000$00 por mês, durante todo o tempo que dure ainda a exploração, até efectiva entrega do estabelecimento.
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Citados, contestaram os Réus, alegando:

No dia 21 de Abril de 1988, o Autor e a Ré mulher celebraram um contrato-promessa de trespasse, nos termos do qual o primeiro se obrigou a transferir para a segunda, com todo o activo, incluindo o recheio e todo o passivo o ajuizado estabelecimento comercial, livre e desonerado, juntamente com os seus direitos de locatário, mediante o pagamento da quantia de 1.500.000$00.
A Ré mulher liquidou no acto do contrato-promessa a quantia de 1.500.000$00, tendo ainda contribuído com 500.000$00 para rendas que o Autor dizia ter em atraso e respectiva indemnização, razão que motiva que o cheque então emitido tenha aposto o valor de 2.000.000$00.

A escritura de trespasse deveria ser outorgada um mês após o contrato-promessa.

O Autor comprometeu-se a passar recibo à Ré do montante recebido.

A partir do dia 21 de Abril a Ré tomou conta do estabelecimento, que na altura estava completamente vazio de mercadorias e móveis. E há muitos meses que se encontrava encerrado ao público.

Como a loja se encontrava vazia e há muitos meses que a renda não era paga, a senhoria havia procedido à mudança das fechaduras. Porém, o Réu, no princípio de Abril de 1988, forçou a porta e voltou a ocupar o espaço e foi após esta conduta que veio a surgir o negócio entre ele e a Ré mulher.

Foi a Ré que alcatifou o estabelecimento o mobilou e adquiriu toda a mercadoria que passou a transaccionar, a partir de Maio de 1988 até hoje, sem oposição de quem quer que fosse, designadamente da senhoria, que considera a Ré a única arrendatária, tanto mais que o Autor informou a Locadora do trespasse, por carta de 26.11.90.

O pretendido pelo Autor não deixa de ser um mero expediente para extorquir dinheiro à Ré. Mas, ao comunicar à Locadora o trespasse, ratificou a conduta dos seus gestores.

Foi o Autor que não cumpriu com aquilo a que se havia obrigado, designadamente a pagar as rendas em atraso, pelo que a Ré se viu obrigada a liquidar à Senhoria o montante de 1.987.500$00, isto para manter o arrendamento.

Após impugnarem especificadamente os vários números da petição inicial, suscitam ainda a excepção peremptória da prescrição e isto considerando que é o próprio Autor que na petição inicial diz que desde Dezembro de 1990 a Autora tem a dívida para com ele e a acção só entrou em juízo no dia 23 de Fevereiro de 1995, isto é, decorridos mais de quatro anos, quando o crédito prescreveria ao fim de três, nos termos do artigo 498º, nºs 1 e 2, do Código Civil.

Pedem ainda a condenação do Autor como litigante de má fé e no pagamento duma indemnização de 250.000$00.

Formulam ainda os Réus um pedido reconvencional para o caso de procedência da acção, no montante correspondente ao valor entregue ao Autor, mais o valor das rendas e indemnização paga à Locadora, bem como do montante despendido em benfeitorias, do valor do estabelecimento hoje, que aumentou devido à actividade da Ré e ainda que seja proferida decisão que suprima a declaração negocial do Autor e declare ratificada a gestão praticada na escritura de 15.11.90.
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Replicou o Autor, impugnando os factos constantes da contestação, designadamente o pedido reconvencional, condenação como litigante de má fé e a excepção suscitada.
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Foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a excepção de prescrição. Foram elaboradas a especificação e a base instrutória.

Seguiram-se os demais termos processuais e procedeu-se a audiência de discussão e julgamento.

Na Primeira Instância foram dados como provados os seguintes factos:

1 - No dia ... e no Cartório Notarial de..., foi lavrada uma escritura pública de trespasse, na qual, E..., como gestor de negócios do ora Autor e F..., como gestor de negócios da ora Ré declararam:
Que o ora Autor era proprietário do estabelecimento comercial de pronto a vestir, instalado na loja..., freguesia do ..., concelho de ..., correspondente à fracção autónoma designada pela letra ..., inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...
Que o Autor trespassa à Ré, abrangendo o trespasse a cedência da respectiva chave e os direitos e obrigações de arrendatário do local, bem como a cedência de todas as licenças e alvarás e ainda a venda de utensílios, mercadorias e demais coisas móveis pertencentes ao estabelecimento.
Que o preço do trespasse é de 1.500.000$00, que será pago no prazo de um mês a partir da data da escritura.
A Ré aceitava o trespasse nos termos expostos.

2 - Aos 21 de Abril de 1988, foi celebrado um contrato-promessa de trespasse, no qual o ora Autor, na qualidade de dono e possuidor do estabelecimento de boutique instalado numa loja, de que é arrendatário, pertencente a D..., situada no ..., prometeu trespassar, livre e desonerado a favor da Ré o estabelecimento comercial.
A Ré, por seu turno, promete tomar o referido estabelecimento, juntamente com os seus direitos de locatário.

No contrato-promessa foram estipuladas as seguintes cláusulas, que ambos os outorgantes aceitaram:

A - O preço do trespasse era de 1.500.000$00, a pagar com a assinatura do contrato;
B - O estabelecimento é transferido com todo o activo, incluindo o seu recheio, e todo o passivo.
C - A escritura seria efectuada no prazo de um mês a contar da data do contrato-promessa, no Cartório Notarial de ...;
D - Ficava por conta do Autor o pagamento das rendas em atraso e respectivas indemnizações por mora, bem como as despesas do eventual processo judicial respeitante a este depósito;
E - O Autor passa recibo da quantia de 1.500.000$00 a favor da Ré.

3 - O Autor não procedeu à ratificação da escritura de trespasse mencionada em 1.

4 - Os Réus são casados em comunhão geral de bens e ambos comerciantes, havendo toda a actividade da Ré sido desenvolvida no âmbito da sua profissão e revertido o produto da mesma para o património comum do casal e seu enriquecimento.

5 - A Ré, desde a data da realização da escritura mencionada em 1, tem explorado o estabelecimento em seu proveito.

6 - No âmbito do processo nº ... (acção ordinária) do Tribunal Judicial da Comarca de ..., foi efectuada uma transacção entre o ora Autor e D..., onde a ali autora D... desistiu do pedido formulado contra o Réu (o ora Autor) e reconhecem ambas as partes reciprocamente ter celebrado um contrato de arrendamento (em 18.06.86) a loja de que a ali Autora era proprietária (D...), identificada pela letra ... e designadamente pelo número ..., sito no ... , inscrito na matriz urbana da Repartição de Finanças ..., sob o artigo ..., freguesia de ...

7 - O Autor passou a usar o local no atendimento ao público.

8 - O Estabelecimento em causa está instalado numa zona turística.

9 - A Ré entregou ao Autor um cheque sacado da conta da Ré, na CCAM de Lagoa, no montante de 2.000.000$00, a que se reporta o documento de folhas 29.

10 - Quantia que o Autor recebeu e fez coisa sua.

11 - Na data do contrato-promessa de trespasse havia um atraso no pagamento de rendas.

12 - A Ré entregou ao Autor dois cheques, um deles com data de 23.04.88, no montante de 2.000.000$00 e outro referido na contestação, com data de 24.05.88, no montante de 1.800.000$00.

13 - O cheque de 1.800.000$00 não foi pago até hoje.

14 - Para além do que consta no número 5, a Ré pelo menos desde o mês de Junho de 1988, já explorava tal estabelecimento.

15 - A dita loja encontrava-se fechada pelo menos há um mês.

16 - Não eram pagas rendas e que a D... procedeu à mudança das fechaduras.

17 - O Autor forçou a porta da loja nº ... e voltou a mudar a fechadura.

18 - Para além do que resultou provado no número 14 a Ré adquiriu mercadorias para o estabelecimento.

19 - O Autor escreveu a carta de folhas 187, dirigida à D..., onde comunicava que pela escritura de 15 de Novembro de 1990, aludida em 1, havia trespassado o estabelecimento instalado na loja nº... à ora Ré e que oportunamente remeteria a escritura de ratificação.

20 - Após o recebimento da carta mencionada em 19, a D... imediatamente comunicou à Ré que se encontrava em dívida montante de rendas.

21 - A Ré pagou à D..., em 05.03.91, a quantia de 1.987.500$00.

22 - O montante referido em 21, correspondia às rendas em atraso, que deviam ter sido pagas pelo Autor, acrescidas de 50%.
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Perante esta factualidade, na Primeira Instância foi a acção julgada parcialmente procedente, declarou a nulidade do contrato celebrado pela escritura de trespasse de 15 de Novembro de 1990 e improcedente por não provado o demais peticionado.

Julgou totalmente improcedente o pedido reconvencional.
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Não se conformaram o Autor e os Réus com a decisão proferida, tendo interposto os respectivos recursos.

Apresentou o Autor as seguintes conclusões:

1 - Por força do contrato verbal de 18 de Junho de 1986, a sociedade D... , como locadora, deu de arrendamento ao Autor, que este aceitou a fracção autónoma ..., descrita no artigo 1º da petição inicial, pela renda mensal de 25.000$00, para comércio de boutique, tudo como consta da acta de tentativa de conciliação e certificada a fls. 209 e 210 dos autos.

2 - O Autor passou a usar o local na exploração dum estabelecimento de boutique atendendo o público.

3 - O local e o estabelecimento são os referidos nos artigos 1º e 2º da petição inicial.

4 - O arrendamento indicado é válido nos termos do disposto no nº 3 do art. 1029º do Cod. Civ. em vigor à data de 18 de Junho de 1986.

5 - A Ré (os Réus) não adquiriram os direitos sobre o local nem o estabelecimento.

6 - Mas a Ré, desde a data de realização da escritura de trespasse de fls. 7 e 8, em 15 de Novembro de 1990 tem explorado o estabelecimento em seu proveito.

7 - O Autor, assim, tem o direito, tal como ele o formulou na sua petição inicial, a

a) - Ser reconhecido como arrendatário do prédio descrito no art. 1º desse articulado e dono do estabelecimento e de todos os objectos que constituem o seu equipamento.
b) - Serem os Réus condenados a reconhecer esses direitos e a fazer entregar ao Autor, livre e desembaraçados, do local arrendado, do estabelecimento respectivo e do seu equipamento. E ainda
c) - Condenados também os Réus a absterem-se de qualquer acção que perturbe ou ponha em causa o exercício daqueles direitos do Autor. E também
d) - Condenados os Réus a pagarem ao Autor indemnizações, a liquidar em execução de sentença, por apropriação ilícita dos artigos do seu comércio, por exploração e uso ilegítimos do estabelecimento e do local em que este se encontra instalado, tomando-se em conta todo o tempo de exploração e de retenção do local e do estabelecimento pelos Réus. Por fim,
e) - Condenados os Réus a custas e demais despesas do processo.
f) - A douta decisão recorrida violou o disposto nos artºs 1029º nº 3 do Cod. Civ. em vigor em 18 de Junho de 1986, 1037º nº 2 e 1276º e 1277º, todos do mesmo Código.

Deve ser dado provimento ao recurso.
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Apresentaram os Réus as seguintes CONCLUSÕES:

1 - A não ratificação da escritura de trespasse não implica que a Ré deixe de ser inquilina legítima do local arrendado, perfeitamente reconhecida pelo senhorio e com transmissão válida pela comunicação pessoal do Autor feita nos termos do disposto no art. 1038º g) CC.
O Autor não tinha no local qualquer estabelecimento a funcionar e foi a Ré quem pagou as rendas em atraso e respectivos montantes indemnizatórios calculados nos termos do disposto no artº 1041º CC.

Não aplicou pois a douta sentença da melhor forma o disposto nos arts. 1059º e425º ambos do CC, o que, em conjugação com o disposto no art. 1038º g) CC sempre levaria a considerar que se mantém intocável a posição da Ré como inquilina.

2 - O Autor na Petição não pede a declaração de nulidade da escritura de trespasse mas sim o seu reconhecimento como inquilino do local o que nunca poderia ser julgado procedente sem a intervenção da senhoria D...

O disposto no art. 268º, nº 1 do CC configura apenas uma ineficácia relativa e não qualquer nulidade de negócio jurídico.

Mantém-se perfeitamente válida a posição da Ré como inquilina.

3 - Caso proceda o pedido formulado pelo Autor mesmo que parcialmente sempre deve ser julgado procedente o pedido subsidiário de execução específica do contrato-promessa de trespasse celebrado em Abril de 1988.
Estão reunidos todos os pressupostos do art. 830º CC e o preço está integralmente pago.
O Autor recusa-se a celebrar a escritura de trespasse.

Ao se decidir que o disposto no art. 830º CC não é aplicável fez-se uma deficiente aplicação deste preceito que se destina precisamente a precaver casos como o presente.

4 - Caso proceda o pedido do Autor deve proceder o pedido subsidiário formulado pelos Réus de pagamento pelo Autor de todas as importâncias pagas na sequência do contrato julgado ineficaz.
Não só os 2.000.000$00 pagos aquando do contrato-promessa de trespasse como também as rendas em atraso de 1.987.500$00 pagas pela Ré à D...
Estes montantes foram pagos ao Autor e beneficiam-no exclusivamente, pois por causa do último ainda o arrendamento subsiste.
Tudo conforme o disposto nos arts. 477º, nº 1, 478º e 289º, nº 1 todos do CC.

A douta sentença entendeu estar esta questão prejudicada o que não acontece dada a procedência parcial do pedido formulado pelo Autor.

5 - O Autor deve ser condenado como litigante de má fé já que alegou factos que se vieram a provar falsos e cuja falsidade não poderia deixar de conhecer.
Usou o Autor factos não verídicos para induzir o Tribunal em erro.

Tal ficou provado da conjugação entre o art. 15º da matéria provada e o art. 10º da PI.

A condenação como litigante de má fé resulta da melhor interpretação do disposto no art. 456º, nº 1 CPC.

6 - A douta sentença não se pronunciou sobre questões de que deveria ter tomado conhecimento nem decidiu em definitivo a procedência ou improcedência da presente acção.

Não fez segundo os Apelantes a interpretação correcta do disposto no art. 660, nº 2 CPC.
Deu causa à nulidade da sentença prevista no art. 668º, nº 1, d) CPC e daí que tenha de ser colmatada tal nulidade com o acórdão do Tribunal ad quem.

Estamos perante uma situação que se vem mantendo desde pelo menos Junho de 1988 e perfeitamente consolidada até ao presente.
A aplicação das normas aos factos aponta para a improcedência total do pedido formulado pelo Autor.
Contudo a procedência do pedido tal como é formulado pelo Autor implica, porque factualmente comprovada a procedência dos pedidos subsidiários dos Réus acima referidos.
Não se pode entender é que fiquem os Réus numa expectativa angustiante sem saber o que os espera.
Pensa-se que, julgando-se improcedentes os pedidos formulados pelo Autor, considerando-se prejudicados os pedidos subsidiários formulados pelos Réus e deles se não conhecendo, e condenando-se o Autor como litigante de má fé se fará melhor Justiça.
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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
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O Exmº Juiz que proferiu a decisão recorrida, tomou posição quanto à invocada excepção, opinando pela sua não verificação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir
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As conclusões de recurso limitam o objecto do mesmo - artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Haverá, assim, que apreciar:

A - Recurso interposto pelo Autor:

I - O Autor como titular dum contrato de arrendamento válido sobre o local.

II - A Ré como titular dum direito de arrendamento válido sobre o local.

B - Recurso interposto pela Ré:

I - A Ré como inquilina legítima do local.

II - Execução específica do contrato-promessa de trespasse.

III - Condenação do Autor no pagamento das importâncias liquidadas pagas pela Ré.

IV - Condenação do Autor como litigante de má fé.

V - Nulidade da sentença proferida na Primeira Instância.
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RECURSO INTERPOSTO PELO AUTOR
I - O AUTOR COMO TITULAR DUM CONTRATO DE ARRENDAMENTO
VÁLIDO SOBRE O LOCAL

Aos 18.06.1986, entre o ora Autor e a empresa D..., foi celebrado um contrato verbal de arrendamento, mediante o qual tal empresa cedia de arrendamento ao Autor uma loja, que agora é objecto dos presentes autos.
Tudo se passou, pois, em data anterior ao Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, e que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano. Haverá, então, que olhar às disposições do Código Civil, designadamente ao seu artigo 1029º, nº 1, alínea b), que impunha a obrigação dos contratos de arrendamento para comércio serem reduzidos a escritura pública.
Se é certo que tal não aconteceu, a verdade é que vigorava na altura o nº 3 de tal normativo que dizia: “No caso da alínea b) do nº 1, a falta de escritura pública é sempre imputável ao locador e a respectiva nulidade só é invocável pelo locatário, que poderá fazer a prova do contrato por qualquer meio”. Veio este nº 3 a ser revogado pelo artigo 5º, nº 1, do já aludido Decreto-Lei nº 321-B/90. Embora assim, no seu artigo 6º, salvaguardou os contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, fazendo expressa alusão ao nº 3, do artigo 1029º, do Código Civil.
A tudo isto acresce o que provado ficou sob o nº 6 da matéria factual, isto é, que a proprietária da loja reconheceu judicialmente o ora Autor como arrendatário da mesma.
Se tudo permanecesse como então, não restaria qualquer dúvida em afirmar ser o Autor titular legítimo do direito ao arrendamento.
II - A RÉ COMO TITULAR DUM DIREITO DE ARRENDAMENTO VÁLIDO

SOBRE O LOCAL

No dia 21 de Abril de 1988, Autor e Ré celebraram um contrato-promessa mediante o qual o primeiro cederia à segunda o estabelecimento ora em causa, mediante o pagamento da quantia de 1.500.000$00, tendo tal quantia sido desde logo liquidada e o Autor dado quitação.
Estavam, todavia, os outorgantes conscientes da necessidade de formalizarem o contrato através de escritura pública, tendo por isso mesmo exarado que a mesma seria celebrada no prazo de um mês, no Cartório Notarial de ... E tiveram ainda o cuidado de precisar que existiam na altura rendas em atraso, que deveriam ser liquidadas pelo então Trespassante e ora Autor.

Baseados em tal contrato-promessa, logo em Junho de 1988, a ora Ré passou a explorar o estabelecimento e, por isso até se compreende que a escritura pública não tenha sido celebrada no período inicialmente aprazado.

Acontece que, no dia 15 de Novembro de 1990, no Cartório Notarial de ... (e já não em...), foi celebrada uma escritura de trespasse do estabelecimento comercial, tendo na mesma intervindo gestores de negócios, quer por parte do ora Autor, quer por parte da Ré. E, por assim ser, foi feita a advertência da necessidade de ratificar o acto. Ora, tal não veio a ocorrer. E, para tal situação diz o artigo 268º, nº 1 do Código Civil: “O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”.

Se deparássemos tão somente com este quadro, poderíamos concluir que a detenção do estabelecimento por parte da Ré não estaria baseado em qualquer título válido. Acontece, porém, que por carta de 26 de Novembro de 1990, o ora Autor informou a proprietária da casa que havia sido celebrada a escritura de trespasse. Face a esta comunicação, a proprietária do imóvel informou a ora Ré, por carta de 04 de Fevereiro de 1991, conforme documento de folhas 30 dos autos que a reconhecia como inquilina, mas teria esta que regularizar as rendas em atraso, no montante de 1.325.000$00 - isto ao arrepio do que havia ficado estipulado entre Autor e Ré... E, note-se, conforme ainda consta do documento de folhas 30, as rendas em dívida provinham de Outubro de 1986, isto é, muito antes do primitivo contrato-promessa! E a Ré liquidou o montante em dívida com o legal acréscimo de 50%, conforme documento de folhas 32. E a Senhoria comunicou a Ré que a renda deixava de ser de 25.000$00 para passar a ser de 40.000$00, tendo a Ré passado a liquidar este montante e os recibos passados em seu nome - folhas 34 e seguintes.

De toda a conduta do Autor resulta, necessariamente o seguinte: criou a expectativa legítima na Ré que havia ratificado a escritura, pois que a presente acção só surge quatro anos e quase três meses volvidos após a carta enviada à proprietária do imóvel onde se situa o estabelecimento! E tal expectativa merece ser protegida, conforme opina Vaz Serra na RLJ 112º - 374.

Mas acaso assim não se processasse, vejamos a coisa por outro prisma.

Com a comunicação levada a cabo pelo Autor à proprietária do imóvel onde se situa o estabelecimento, resulta necessariamente uma tomada de posição: O Autor pretendia fazer cessar os efeitos do contrato em relação a si. E a subsequente conduta da proprietária do imóvel perante a Ré foi reconhece-la como inquilina, desde que aceitasse certas condições. E elas foram aceites, razão pela qual, desde Março de 1991, que emite recibos em seu nome e procede aos respectivos aumentos de renda, tudo conforme documentos de folhas 32 e seguintes. Ora, o RAU, já então em vigor, prevê que o arrendamento urbano pode cessar por acordo entre as partes - artigo 50º - não podendo restar dúvidas que a conduta do Autor e da proprietária do imóvel pelo menos conduz a tal cessação do contrato de arrendamento por mútuo acordo entre as partes.

Depois de outorgar um contrato-promessa de trespasse e receber o correspondente valor de 1.500.000$00; de ter conhecimento duma escritura pública de trespasse com intervenção dum gestor de negócios seu; depois de ter largado mão do estabelecimento pelo menos em Junho de 1988; depois de ter visto rendas em dívida e da sua responsabilidade serem liquidadas pela Ré; depois de ter comunicado à proprietária do estabelecimento que a nova inquilina era a Ré; vir, praticamente 7 anos depois - a acção entrou em juízo no dia 23 de Fevereiro de 1995 e a Ré encontrava-se a explorar o estabelecimento desde Junho de 1988 -, reclamar a restituição do estabelecimento pretendendo ser considerado como proprietário dele e pedir que seja reconhecido como titular do direito ao arrendamento, e a tudo não deixando de acrescer ter o Autor prometido trespassar o estabelecimento por 1.500.000$00, ter desde logo recebido esta importância e dado quitação (conforme consta no contrato-promessa) e depois, no acto de celebração da escritura, os gestores terem confirmado que o preço era, efectivamente de 1.500.000$00, mas já a pagar posteriormente (por esta lógica o trespasse teria que ser pelo valor de 3.000.000$00, o que nunca foi alegado) e agora, na acção, alegar-se que a escritura não foi ratificada pois que tal montante não foi pago... Tudo isto não poderá deixar de ser considerado como o mais flagrante caso de abuso de direito. Para tal circunstância, diz o artigo 334º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício dum direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Eis, pois, que a Ré B há que ser considerada não só como legal detentora do contrato de arrendamento do estabelecimento comercial em causa como ainda proprietária de tal estabelecimento.

Por outro lado, quer no contrato-promessa, quer na escritura se aludia a que o estabelecimento era trespassado com o activo, incluindo o equipamento e recheio , pedindo agora o Autor a restituição deste...

Improcede, pois, o impetrado pelo Autor Recorrente já que não se mostram violados os preceitos legais invocados.
RECURSO INTERPOSTO PELA RÉ

I - A RÉ COMO INQUILINA LEGÍTIMA DO LOCAL

Já acima nos referimos a este ponto. Nada mais haverá a acrescentar.
II - EXECUÇÃO ESPECÍFICA DO CONTRATO-PROMESSA DE TRESPASSE

Considerando que a Ré já acima foi considerada como titular do direito ao arrendamento e proprietária do estabelecimento, nenhuma necessidade impõe a análise da questão em epígrafe.
III - CONDENAÇÃO DO AUTOR NO PAGAMENTO DAS IMPORTÂNCIAS

LIQUIDADAS PELA RÉ

Haveria necessidade de tomar em consideração esta questão suscitada no pedido reconvencional, caso a acção fosse julgada procedente. Ora, sendo a Ré reconhecida como arrendatária do local onde o estabelecimento está inserido e proprietária deste, a questão está ultrapassada.
IV - CONDENAÇÃO DO AUTOR COMO LITIGANTE DE MÁ FÉ

Ao instaurar a presente acção, o Autor partiu do princípio que não tendo ratificado a escritura outorgada por um mero gestor de negócios, poderia pedir a nulidade do acto. Não poderemos deixar de atentar que tal gestor é o mesmo Excelentíssimo Advogado que patrocina o Autor nestes autos, mas uma interpretação diferente dos factos acima tidos como provados não poderá fundamentar uma condenação como litigante de má fé.
NULIDADE DA SENTENÇA PROFERIDA NA PRIMEIRA INSTÂNCIA

Suscita a Ré Apelante a nulidade da sentença, pois que a mesma não aprecia alguns dos pontos suscitados nos articulados e nos pedidos formulados em reconvenção. Pensamos que tal nulidade não se verificara, pois que a falta de apreciação resulta, necessariamente, da improcedência da acção. Embora assim, neste Acórdão os vários temas foram apreciados - inclusive o pedido de condenação do Autor como litigante de má fé. Assim sendo, mesmo que ocorresse a nulidade suscitada, este Tribunal de Recurso apreciou o objecto das Apelações interpostas, conforme ordena o artigo 715º, do Código de Processo Civil, pelo que, mesmo tendo existido, qualquer nulidade fica sanada.
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DECISÃO

Atentando em tudo quanto se procurou deixar esclarecido, e embora por razões diferentes das exaradas na sentença proferida na Primeira Instância, acorda-se nesta Relação:

I - Em negar provimento ao recurso interposto pelo Autor;

II - Em conceder provimento ao recurso interposto pelos Réus e consequentemente:

A - Reconhece-se e declara-se a Ré como legítima arrendatária da fracção autónoma, designada pela letra ..., sita no ..., freguesia ..., composta por uma divisão assoalhada, casa de banho e despensa, com a área de 83,8 m2, correspondente ao artigo matricial ..., da mesma freguesia;

B - Reconhece-se e declara-se a Ré como proprietária do estabelecimento instalado no espaço definido em A;

C - Condena-se o Autor a reconhecer o decidido em A e B;

D - Face ao decidido em A, B e C deixa de ter qualquer interesse tomarmos agora posição quanto à nulidade ou ineficácia da escritura de trespasse; quanto à execução específica do contrato-promessa. Por seu turno, já foi tomada posição quanto a considerar-se de má fé a conduta processual do Autor.

Custas pelo Apelante Autor.
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Évora, 10 de Outubro de 2002