CORRUPÇÃO PASSIVA
CRIME ESSENCIALMENTE MILITAR
CRIME MILITAR
COMPETÊNCIA
FORO ESPECIAL
FORO COMUM
FORO MILITAR
FORO MATERIAL
FORO PESSOAL
GUARDA NACIONAL REPUBLICANA
RECUSA DE JUÍZ
INDEPENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS
AGENTE PROVOCADOR
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
ESCUTA TELEFÓNICA
PROIBIÇÃO DE PROVA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
DESTINO DOS BENS APREENDIDOS
ABUSO DO PODER
PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO
ARMA DE FOGO
ARMA PROIBIDA
DETENÇÃO ILEGAL DE ARMA
Sumário


I. Para que uma conduta possa ser qualificada como crime essencialmente militar, e não apenas acidentalmente militar, exige-se que haja uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional e não meramente indirecta ou remota.

II. A qualidade militar do agente do crime de corrupção passiva, p. e p. pelo artº 191º, n.º 1 do Cód. de Justiça Militar, também p. e p. no artº 372º, n.º 1 do Cód. Penal, constitui ligação meramente indirecta ou remota à instituição militar, surgindo, pois, como simples elemento acidental do crime.

III. Assim, não se tratando de crime essencialmente militar, é competente para conhecer do referido crime de corrupção, nos termos do artº 309º do Código de Justiça Militar, o foro comum.

IV. A intervenção de um juiz no julgamento, após a publicação da sua nomeação, no Diário da República, como Director Nacional-Adjunto na Directoria Nacional da Polícia Judiciária, em comissão de serviço, não constitui fundamento de recusa, nos termos do artº 43º, n.º 1 do CPP.

V. Não se enquadra na figura do agente provocador a colaboração de quem quer que seja com a polícia judiciária, posterior à consumação do crime que se investiga.

VI. A selecção, feita pelo juiz, ao abrigo do disposto no artº 188º do CPP, sem a prévia audição do arguido, dos elementos recolhidos através da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas não está inquinada de nulidade bem como não enferma de inconstitucionalidade, designadamente por violação do artº 32º, n.º 1 da Lei fundamental, a norma que confere ao juiz tal poder-dever.

VII. Para o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382º exige-se: a) que o funcionário abuse de poderes ou viole deveres inerentes às suas funções; b) actue com intenção de obter para si ou para terceiro, benefício - necessariamente - ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa; c) dolo específico.

VIII- A pena acessória de proibição do exercício de função, prevista no artº 66º, n.º 1 do CP, tem como pressuposto formal de aplicação a condenação do agente por crime concretamente punido com pena de prisão superior a três anos, não bastando que este seja punível, em abstracto, com aquela pena.

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I- Submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, na Vara Mista da Comarca de …, foi o arguido A:

    a) absolvido da prática de um crime de abuso de poder, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 382° e 30º, n.º 2, do Cód. Penal;
    b) condenado pela prática de um crime de corrupção passiva para a prática de acto ilícito, p. e p. pelo art.° 372º, n.º 1, do C. Penal, na pena de dois anos de prisão;
    c) condenado pela prática de um crime p. e p. pelo artº 275º, n.º 3, do C. Penal, na verão vigente à data dos factos e actualmente p. e p. pelo art. °275º, n.º 1 do C. Penal, na redacção dada pela Lei n.° 65/98, na pena de oito meses de prisão;
Juridicamente unificadas tais penas, ficou o arguido condenado na pena única de dois anos e quatro meses de prisão.

Inconformados, interpuseram recurso o MP e o arguido, sintetizando este o seu inconformismo nas seguintes conclusões:
1ª - A conduta que é imputada ao arguido, que é militar da Guarda Nacional Republicana, é violadora do dever militar e foi levada a cabo em acto de serviço.
Por estas razões ela é susceptível de integrar o crime de corrupção passiva previsto e punido pelo artº 191° do Código de Justiça Militar.
E por se tratar, assim, de um crime essencialmente militar atento o disposto no artº 1º, n.º 2, compete ao tribunal militar e não aos tribunais comuns a competência para conhecer o crime de que o arguido vem acusado, cfr. artº 313° do C.J. Militar.
2ª - No decurso do julgamento o Mº Juiz Auxiliar, Dr. Pedro Cunha Lopes, tomou posse na Policia Judiciária como Director da Direcção Central de Combate ao Banditismo, acumulando, assim, esta função policial, que lhe tolhe a independência, com a que tinha como juiz no processo do arguido. .
O exercício destas duas funções incompatíveis entre si, não só não estão previstas no artº 69° da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, como viola o disposto no artº 216º da Constituição da Republica Portuguesa.
3ª - Compulsando os elementos de prova constantes do processo verifica-se, com facilidade, que a polícia utilizou meios enganosos, usando para o efeito um agente provocador, que acabaram por determinar a prática, pelo arguido, dos alegados crimes constantes da acusação.
O método utilizado pela polícia para mais tarde justificar a condenação do arguido é manifestamente ilegal atento ao disposto no artº 126°, 2. a) do C. P. Penal.
4ª - As conversas entre o arguido e a suposta vítima foram assumidamente truncadas pela polícia e a transcrição da que foi seleccionada foi levada a cabo sem o conhecimento, colaboração e anuência do arguido, como, aliás, vem implicitamente reconhecido no acórdão recorrido.
Foi empregue, assim, no inquérito um meio com preponderância sobre os restantes indícios de prova que foi destruído antes de ser possível validá-lo através do contraditório no julgamento, a fase soberana processual.
Facto que comprometeu inexoravelmente os direitos de defesa do arguido consignados na C.R.P., artº 32°, n.º 5.
5ª - O Acórdão recorrido ao ter dado como não provados os mesmos factos que foram alegados na acusação e na contestação, provocou uma contradição insanável entre eles, cfr. artº 410º, 2. a) do C. P. Penal.
6ª - O arguido como militar da G .N .R no activo não tem dificuldade em arranjar uma arma de fogo, seja revólver ou pistola, comprando ou requisitando-a à sua Unidade.
A explicação que deu sobre a arma dos autos que foi encontrada no seu carro, que foi corroborada por uma testemunha, não foi aceite pelo tribunal recorrido.
A conclusão tirada sobre a existência da referida arma deixa transparecer, residualmente, dúvidas sobre a real intenção do arguido ao transportá-la no seu carro.
Houve, assim, violação do princípio in dubio pro reo que pode e deve ser tratado em sede de erro notório na apreciação da prova, artº 410º, n.º 2. c), do C. P. Penal, por o colendo tribunal recorrido, na dúvida, ter decidido contra o arguido.
7ª - A sentença recorrida não deu, e devia ter dado, destino à pistola dos autos, violando, assim, o disposto no artº 374°, n.º 2. c) do C. P. Penal.
8ª - O arguido requer sejam conhecidas e declaradas todas as ilegalidades atrás invocadas, com todas as legais consequências.
9ª- Caso assim não venha a ser doutamente entendido, o arguido pede que sejam atendidas as circunstâncias endógenas e exógenas que rodearam a prática dos factos que lhe são imputados, com vista à suspensão da pena que eventualmente lhe venha ser aplicada.
Por sua vez, o MP encerrou a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1ª- O arguido foi condenado pela prática de um crime de corrupção do artº. 372°, n° 1 do Código Penal e pela prática de um crime do art. 275°, n° 3 do Código Penal, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, tendo sido absolvido da prática de um crime de abuso de poder do art. 382° do Código Penal;
2ª- O arguido foi absolvido da prática do crime de abuso de poder já que se considerou que os factos provados não integravam tal ilícito;
3ª- Neste aspecto, de acordo com a douta decisão, deu-se como provado que o arguido tinha em seu poder cheques "auto" provenientes de várias empresas de construção civil e de transporte;
4ª- No entanto, no douto acórdão considerou-se que não se provou que a posse desses cheques se destinasse à não autuação dessas empresas por parte do arguido, enquanto cabo da GNR-BT, razão pela qual o crime referido foi afastado;
5.ª- Porém, o douto acórdão não ponderou nos elementos típicos do crime de abuso de poder, na configuração de cada um deles e não analisou se estes estavam ou não preenchidos face aos factos provados;
6ª- Para preenchimento do tipo legal do crime de abuso de poder do art. 382° do Código Penal, a lei exige a verificação dos seguintes elementos: 1º- abuso de poderes ou violação de deveres pelo funcionário, em ambos os casos, inerentes à sua função; 2°- intenção de obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa; 3°- existência de dolo do agente;
7ª- Face aos factos provados estão preenchidos todos os elementos deste crime, independentemente de não se ter provado que o arguido com tal actuação visava a não autuação das empresas legitimamente detentoras desses cheques;
8ª- Na verdade, em primeiro lugar foi violado o dever de isenção a que o arguido estava submetido, enquanto funcionário do Estado e cabo da GNR-BT, consistente no não recebimento de vantagens decorrentes das funções públicas que desempenhava;
9ª- Por outro lado, ocorreu prejuízo para as empresas detentoras de tais cheques, já que estes foram utilizados fora da sua finalidade e sem comprovada contrapartida;
10ª- Finalmente, não é necessário para a consumação do crime que o agente pratique qualquer acção ou omissão concreta, pois para tal basta que o agente pratique acto ou facto abusivo das suas funções, sendo irrelevante a efectiva verificação de dano ou vantagem para o agente ou para terceiro;
11ª- Pelo exposto, entende-se que os factos provados integram o crime de abuso de poderes do art. 382° do Código Penal, nada mais exigindo a lei que obste à sua verificação;
12ª- O arguido deverá ser condenado na pena de prisão de 1 ano, pela prática deste aludido crime, de acordo com os critérios estabelecidos no douto acórdão para a fixação das penas relativas aos outros crimes, procedendo-se ao pertinente cúmulo jurídico;
13ª- Para além da pena de prisão deverá ainda ser aplicada a pena acessória de proibição do exercício de funções prevista no art. 66°, n° 1 do Código Penal, face ao teor do douto acórdão;
14ª- Com efeito, estão preenchidos todos os requisitos legais para a aplicação desta pena acessória, a saber: a) o crime foi cometido pelo arguido no exercício da sua actividade de agente de autoridade, enquanto cabo da GNR-BT; b) o crime de corrupção passiva praticado é punido com a pena abstracta de 1 a 8 anos de prisão; e c) na douta decisão considerou-se, face aos factos praticados, que houve um grau de violação muito intenso dos deveres funcionais;
15ª- Assim sendo, atenta a graduação da pena principal para o crime de corrupção, entende-se que a pena acessória de proibição do exercício de função não poderá ser inferior a 2 anos;
16ª- O douto acórdão recorrido violou o disposto nos artºs 382° e 66°, n° 1, al. a) do Código Penal, ambos por não terem sido aplicados ao caso dos autos;
17ª- O douto acórdão recorrido interpretou o disposto no art. 382° do Código Penal, no sentido de não estar verificado tal crime em face dos factos provados, quando tal norma deveria ter sido interpretada no sentido de estarem preenchidos todos os elementos do mesmo crime face ao que se provou no douto acórdão;
18ª- O douto acórdão recorrido interpretou o disposto no art. 66°, n° 1, al. a) do Código Penal no sentido de não aplicação da pena acessória aí consagrada ao caso dos autos, quando tal norma deveria ter sido interpretada no sentido da sua aplicação ao caso dos autos já que a arguida cometeu o crime de corrupção do art. 372°, n° 1 do Código Penal, no exercício das suas funções como cabo da GNR-BT e com grave violação dos seus deveres funcionais.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, alterado o douto acórdão recorrido, condenando-se o arguido pela prática do crime de abuso de poderes do artº 382°, n° 1 do Código Penal na pena de 1 ano de prisão e na pena acessória de proibição do exercício da função de cabo da GNR pelo período de 2 anos nos termos do art. 66°, n° 1. al. a) do Código Penal.

MP e Arguido contramotivaram, pugnando o MP pela improcedência do recurso interposto pelo Arguido, e este pelo não provimento do recurso interposto pelo MP.
O Exº Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação emitiu douto parecer no sentido de que “a manutenção do Mº Juiz Pedro Cunha Lopes no Tribunal colectivo que procedeu ao julgamento, numa altura em que tinha sido já nomeado dirigente da P.J. [...] acarreta [...] a sua recusa e a consequente nulidade do julgamento, nos termos do art. 43º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P [...]”
Cumprido o disposto no artº 417º, n.º 2 do CPP, o arguido remeteu-se ao silêncio.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
*
II-a) A factualidade dada como provada e a considerada não provada pelo tribunal a quo e respectiva motivação são as que a seguir se transcrevem:
Factos provados
1. No dia …de … de …, cerca da … hora e … minutos, B conduzia o veículo automóvel de matrícula francesa …, propriedade do seu companheiro, pela EN…., no sentido de marcha …-… . O arguido e o soldado C, encontravam-se de serviço de patrulha na Estrada Nacional n.º… . Ao passar por …, B transpôs um semáforo com sinal vermelho. Pouco depois surgiu o veículo da BT da GNR daquela patrulha, que a interceptou. B foi então interpelada pelo arguido, que lhe solicitou a documentação pessoal e do veículo. No decurso da fiscalização, tendo entretanto a condutora saído do veículo por o arguido a instruir nesse sentido, o arguido informou-a que estava sujeita a uma coima de valor superior a esc. 100.000$00 por conduzir um veículo de matrícula estrangeira, não registado em seu nome, de que revertia para o autuante uma quantia correspondente a 25% e que ainda estava sujeita a outra autuação por ter transposto o sinal vermelho. Durante a conversa, que se arrastou por mais de 30 minutos, o soldado C aconselhou o arguido a devolver os documentos à condutora e deixá-la partir. Concluída a fiscalização o arguido não elaborou o respectivo auto, restituiu toda a documentação excepto o livrete e o título de registo de propriedade, e solicitou à B um contacto pessoal, o que ela negou, tendo fornecido apenas o n.º de telefone do seu local de trabalho.
2. No dia … de…de …, pelas … horas o arguido, fazendo-se transportar no veículo de matrícula GNR-… da BT da GNR, deslocou-se ao local de trabalho da B a fim de a contactar, o que não conseguiu por não se encontrar de serviço. Pelas … horas do mesmo dia, o arguido, fazendo-se igualmente transportar num veículo da BT da GNR, retornou ao aludido restaurante, insistindo contactar com B, o que de novo não conseguiu. No dia … de … de … o arguido, numa viatura da GNR-BT, voltou de novo ao local de trabalho da B para a contactar, tendo sido informado que aquela estava de folga. Na ocasião o arguido deixou o seu número de telemóvel (…) e solicitou que a B o contactasse, alegando que ela precisava de assinar uns documentos. No dia …de …de … B telefonou ao arguido informando-o do seu propósito de ir assinar os autos no posto da GNR, mas o arguido disse-lhe que se encontrariam antes no dia … de …de … e que ligasse mais tarde. Às …horas do mesmo dia B ligou-lhe novamente, e no decurso da conversação mantida, o arguido exigiu o pagamento da quantia da mencionada percentagem (que disse então ser 30% de 130.000$00), para que as infracções da B fossem esquecidas e não fossem levantados os respectivos autos, ficando combinado a entrega dessa quantia pelas … horas do dia seguinte junto ao …de … e que na ocasião o arguido lhe restituiria os documentos do veículo de matrícula … . Conforme combinado, no dia … de … de …, pelas … horas, em …, B encontrou-se com o arguido. Nesse encontro B entregou ao arguido e este recebeu 40.000$0 em dinheiro, para o pagamento da percentagem que o arguido lhe tinha exigido para não a autuar pelas infracções estradais em causa e lhe restituir os documentos do veículo de matrícula ….
3. De seguida o arguido foi interceptado por agentes armados da PJ, que o retiraram para fora do carro, tendo encontrado na posse do arguido uma pistola de alarme de marca "Tanfoglio Giuseppe", modelo GT 28, sem número de série, de fabrico italiano, adaptada a fazer fogo com bala de calibre 6,35 mm Browning (seis vírgula trinta e cinco milímetros) mediante introdução de um cano e na qual foi aposta a inscrição "Star Cal 6,35", munida do respectivo carregador. A aludida arma não se encontrava manifestada ou registada, nem o poderia ser por se tratar de arma adaptada.
4. Na posse do arguido ou da mulher foram achadas senhas e cheques de combustíveis, sendo pelo menos:
    10 cheques auto do "BPSM" no valor unitário de esc. 2.500$00
    6 cheques "GALP" no valor unitário de esc. 3.000$00
    15 cheques "GALP" no valor unitário de esc. 2.000$00
Todos esses cheques eram oriundos de empresas de construção civil ou de transporte, nomeadamente "D", "E", "F", G", H", "I", J", "K" e "L".
5. O arguido, previu e quis, na qualidade de cabo da GNR- BT, ao guardar os documentos do veículo, assediar a B no intuito de a levar a aceder a manter com ele um relacionamento sexual como contrapartida para ele não a autuar pela prática dos ilícitos estradais e lhe restituir os documentos, e ainda, para o caso de não se consumar o relacionamento sexual, lhe exigir o pagamento da quantia de 40.000$00, como fez. O arguido mais previu e quis ter consigo a aludida arma, sabendo que não se encontrava manifestada ou registada, nem o poderia ser por se tratar de arma adaptada. O arguido sabia que tais condutas lhe estavam vedadas por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições ainda assim não se inibiu de as realizar.
6. O arguido é agente da GNR há mais de 24 anos, tendo obtido anteriormente um louvor e uma sanção disciplinar. Tem a 4ª classe. Vive com a mulher e três filhos, de 21, 14 e 7 anos de idade, em vivenda própria, com rés-do-chão, 1 ° e 2° andar, que edificou em …. Além da vivenda em que vive tem 4 veículos automóveis e explora, com a mulher, um bar de alterne no …, onde trabalham 10 mulheres, entre as quais uma stripper. É tido pelos colegas por cumpridor das suas obrigações. Nada consta do seu CRC.
*
A prova resultou de:
1) Testemunhal
-B, que narrou como os factos ocorreram, quer no dia da abordagem na estrada (em que a mandou sair do carro e lhe fez um extenso interrogatório de natureza pessoal) quer posteriormente, os diversos contactos e tentativas de entrar em contacto do arguido, as suas pretensões, a intervenção da PJ e a entrega do dinheiro (disse-lhe que era o que estava combinado e ele aceitou);
-M, que acompanhava a B e corroborou o seu depoimento, esclarecendo designadamente que foi o arguido quem mandou sair do veículo a B, para falar com ela (e não o contrário), bem como as tentativas do arguido de estabelecer contacto no dia …;
-N, colega da B, que viu o arguido à porta do restaurante onde trabalham e que o viu deixar o n.º de telefone para aquela o contactar;
-O, que se referiu à matéria concernente aos Transportes P;
-Q, que se pronunciou quanto às senhas da K;
-C, soldado da GNR- BT, que acompanhava o arguido na patrulha, o qual deu conta das circunstâncias em que o arguido resolveu abordar a B (o que lhes chamou a atenção foi a matrícula estrangeira), como lhe disse para irem embora, deixando os documentos à condutora, ao que ele não acedeu, o tempo que durou a conversa, como o acompanhou no dia em que ele foi 2 vezes ao restaurante procurá-la, e ainda quando ele deixou o n.º de telefone; referiu que pode acontecer reterem documentos, mas também que ele procedeu mal em não deixar os documentos quando a foi procurar ao local de trabalho, e que o arguido queria obter favores sexuais dela, o que é pior do que deixar de autuar nos devidos termos;
-R, representante da D, que se pronunciou quanto aos cheques da mesma;
-S, que se pronunciou em termos similares mas quanto à G;
-T, idem, à E;
-U, idem à empresa com o seu nome;
-V, Inspector-Chefe da PJ de…, que descreveu como decorreram as investigações, as diligências efectuadas, incluindo escutas telefónicas, a actuação da B após a PJ assumir a investigação, PJ que lhe entregou o envelope com 40.000$00 para a data em que ficou assente que ela entregaria o dinheiro, bem como o sucedido no dia da entrega (nomeadamente que o arguido pôs o envelope na bolsa), o que encontraram ao arguido, bem como no bar, e a sua situação patrimonial;
-W, Inspector da PJ de …, que depôs nos termos do anterior. Fez as escutas, viu a entrega, revistou o veículo, encontrou o envelope e deparou com a arma descrita, e também referiu as listagens, cheques e senhas encontrados;
- X e Y, agentes da PJ, com intervenção limitada à altura da detenção, que a descreveram e o que o arguido tinha consigo;
-Z, empregada no bar formalmente da mulher do arguido (que era gerido pelo casal e actua1mente só pelo arguido), que o descreveu, o seu movimento, clientela, receitas, formas de pagamento, preço de serviços, que se pronunciou quanto às listagens (cuja letra é do arguido), embora sem explicar de forma clara o seu sentido, já que, ultrapassado o plano das generalidades revelou dificuldades em esclarecer o seu conteúdo. Diz não falar actualmente com o arguido por motivos de ordem "sexual";
- Z1, inspector do IGAI, que lavrou o auto de notícia de folhas 4 e ss., que descreveu como o fez e em que circunstâncias soube o que aí mencionou;
-Z2, cabo da BT da GNR, que referiu as circunstâncias em que, na prática, os agentes daquela força por vezes retêm os documentos sem lavrar imediatamente o auto (deixando então um "aviso para apresentação de documentos" de modelo oficial), a percentagem para o autuante nas infracções aduaneiras, referindo no entanto que se não encontrarem o automobilista em 8 dias devem fazer o relatório ao superior;
-Z3, cabo da BT, que se pronunciou quanto à personalidade do arguido, bem como à "praxis" de por vezes reterem os documentos e nem sempre levantarem autos às infracções;
-Z4, soldado da BT, pronunciou-se também quanto à personalidade do arguido;
-Z5, construtor civil, referiu-se à situação económica do arguido.
As testemunhas depuseram com clareza, relevando em especial a B e a acompanhante M, que depuseram com precisão, pormenor e rigor e de forma credível.
2) Pericial
- Autos de exame pericial de fls. 123,621 a 623
- Autos de exame directo de fls. 436 a 439
- Auto de intercepção e escuta telefónica de fls. 453 a 462 e auto de escuta e transcrição de áudio, de fls. 466 a 468.
3) Documental
- Documentos de fls. 29 a 31,39 a 94, 127,131,170, 226
- Auto de Apreensão de fls. 37 e 38
- Fotografias de fls. 139 e 140, 218
- CRC, folhas 860.
4) Declarações do arguido, na audiência e em primeiro interrogatório judicial, nos termos que lhe foram lidos - o arguido acabou por admitir que queria manter relações de sexo com a B em troca dos documentos, embora afirmando que não sabia ser ilícito e que ela própria o assediou também. Admitiu ter retido os documentos (contra o conselho do C), ter feito as várias diligências para a contactar, que no dia em que foi detido entregou os documentos e recebeu dela um envelope; confessou também a posse da pistola, ainda que por a ter "achado". Quanto aos cheques e senhas referiu serem do bar (do qual fez o apuramento dos créditos sobre os clientes pelo seu punho). Pronunciou-se ainda quanto à sua situação pessoal e económica.
*
Não se provaram os demais factos :
- o arguido e outros elementos da GNR-BT, aproveitando-se do seu ascendente como agentes de fiscalização, abordam empresas com frotas de veículos, nomeadamente empresas de construção civil e de transportes, às quais exigem o pagamento de quantias em numerário, senhas e cheques de combustível, sob pena de, não o pagando, os seus veículos serem objecto de constantes e sucessivas fiscalizações. As empresas que não pagam o que lhes é exigido são objecto de represálias por parte desses elementos da GNR-BT através de constantes e sucessivas fiscalizações e paralisações dos seus veículos o que põe em crise a sua actividade comercial e industrial e sua viabilidade financeira. Cientes dessas represálias e receosas das mesmas, essas empresas vêem-se obrigadas a pagar aquilo que lhes e exigido. Que dessa forma, em circunstâncias de tempo e lugar não concretamente apuradas, mas no ano de 2000, o arguido conseguiu obter, valores não determinados, mas no montante mínimo de esc. 1.039.000$00.
- o facto de uma mulher estar a conduzir àquela hora com excesso de velocidade criou de imediato suspeição, razão porque o arguido decidiu interceptar o referido veículo. Ao ser interpelada a sua condutora, verificou-se que apenas tinha consigo o livrete e o título de registo de propriedade do veículo a favor de terceiro. A senhora, atrapalhada e bastante nervosa, tomou a iniciativa de sair do carro e encaminhar-se para a traseira deste ao mesmo tempo que lhe perguntava: "podemos falar?" Que da sua conversa torrencial, ao jeito brasileiro, que durou cerca de vinte minutos, fez-lhe um relato da sua vida em Portugal que recheou de dificuldades e má sorte à medida que foi implorando para lhe ser perdoada a multa. Que o arguido, à cautela, ao invés de devolver os documentos, combinou com ela resolver a situação mediante a apresentação da sua carta de condução, bilhete de identidade e o seguro do veículo no prazo de dois dias no posto da BT em … . A senhora, visivelmente recomposta da situação, começou por dizer não saber como agradecer tamanha compreensão acabando por convidar o arguido a tomar uns copos e a sair com ela na melhor oportunidade. Que o arguido se sentiu assediado sexualmente e anuiu ao convite e, ao mesmo tempo, informou-a que a mulher tinha um bar nocturno que era frequentado por muitas brasileiras. A senhora ficou encantada e com curiosidade de conhecer o dito bar, cujo endereço lhe foi de imediato facultado. Que a B ao invés de se deslocar ao posto da G.N.R. de … para exibir os documentos em falta conforme combinado, foi ao dito bar nocturno procurar o arguido. Desde então, por ter havido várias tentativas de contacto com o arguido, este por sua iniciativa resolveu passar pelo restaurante onde a dita senhora lhe disse que trabalhava e não a encontrou. Por ter simplesmente "chalaceado" com uma das senhoras do restaurante o dono deste ficou furiosíssimo. O dono do restaurante não gostou de o ver falar com a empregada e a perguntar pela outra porque lhe foram dizer que o arguido terá afirmado que o restaurante por ele explorado seria a determinadas horas um bar de "alterne".
- que as duas deslocações que fez ao restaurante, onde trabalha a senhora, no dia …de … de …, foi com a única intenção de, pessoalmente, devolver a esta os seus documentos; o arguido pensando que os telefonemas dela seriam um pretexto para um encontro íntimo, diferiu este para o dia da sua folga, ou seja para o dia … de …de…; que na data, hora e local combinados, a senhora aproximou-se do carro do arguido, recebeu os seus documentos, e, ao invés de nele entrar para irem dar uma "volta" conforme a expectativa que ela ajudou a formar, lançou para dentro uma coisa que lhe pareceu de imediato ser um bocado de papel. Surpreendido com o inesperado comportamento e confuso sobre o que estava a acontecer, mal pôs o carro em movimento caíram-lhe em cima uma série de pessoas aos gritos e de armas em punho.
- quem determinou a prática do crime foi a senhora, como agente manipulador, que conquistou a confiança do arguido e o conduziu para um cenário onde este pensou tirar, única e simplesmente, dividendos sexuais. Que se trata de uma cabala, e que foi montada pelo dono do restaurante onde trabalha a senhora, ressabido com o que julgou ser assédio do arguido às suas empregadas e receoso deste as encaminhar para o dito clube nocturno. Que a carteira de pele castanha e respectivo conteúdo que lhe foram apreendidas são de sua esposa. A pistola foi encontrada no dia anterior à sua detenção à porta do bar nocturno explorado pela esposa do arguido e este tinha-a guardada para depois a entregar quando fosse trabalhar. Que o arguido nunca tenha abordado empresas com frotas de veículos para exigir quantias em numerário, senha e cheques de combustível. Que os cheques, auto do "BPSM" e "GALP" foram entregues no bar nocturno explorado pela esposa do arguido para os pagamentos dos consumos ali verificados.
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Não se provaram os factos supra mencionados face à prova produzida.
No que toca ao pretenso assédio da B ao arguido toda a prova, a começar no depoimento da companheira de viagem M, passando pela colega de trabalho até às escutas, aponta no sentido de que nunca existiu, tendo sido apenas o arguido quem quis um relacionamento dessa natureza. Por isso lhe fez um extenso interrogatório pessoal, a mandou sair do carro, decerto para a M não poder ouvir toda a conversa (o próprio soldado C deixou-se ficar no carro da BT, o que sugere que as suas intenções não constituíam surpresa), a procurou repetidamente, mantendo-se na posse dos documentos como forma de a ter "na mão". Obviamente nenhum sentido faz que um agente da autoridade procure encontros com infractores inclusivamente nos períodos de folga, como procurou o arguido (o qual até com uma empregada do bar se incompatibilizou por motivos de natureza "sexual").
Quanto à imputada exigência de valores para não autuar empresas, os representantes das mesmas negaram alguma vez ter contribuído para esse efeito, e muito menos terem sido abordados pelo arguido para isso. A maior parte nem o conhecia e foram peremptórios em negar qualquer relação entre os brindes e ofertas e as autuações de que os seus veículos são objecto. O arguido também o negou e a explicação que aventou - que eram forma de pagamento no bar -, ainda que duvidosa, é melhor do que a afirmação, sem qualquer suporte probatório, de que se tratava de benesses para não serem autuadas.
No que concerne à arma, é óbvio que a explicação do arguido - de que achara a arma - não tem qualquer sentido nem suporte algum. Ninguém mais se apercebeu do tal “achado”, sendo certo que a experiência mostra não se "acham armas transformadas; mas mesmo que não fosse assim é óbvio que o arguido, agente da autoridade, tinha de a entregar, e não o fez, antes a transportava no veículo (e não serve de explicação dizer que "achara” na véspera. o que torna mais inverosímil a situação, e obviamente, absurda: se a achasse cabia-lhe guardá-la e entregá-la na primeira oportunidade. e não passeá-la na viatura. em dia de folga. para pretensos encontros).
A prova produzida é, no seu conjunto, clara e não deixa dúvidas que os factos ocorreram do modo exposto.
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Não se diga que se trata de prova proibida, ou a qualquer título nula.
Não há actuação sub-reptícia. capciosa ou provocadora alguma da PJ. que se limita a controlar a actuação do arguido e não a lançar, como ele pretende, uma agente provocadora. Não é a B que provoca a actuação do arguido; ele é que a assedia repetidamente, lhe guarda indevidamente os documentos, lhe faz o interrogatório extenso sob a sua vida pessoal (que tem com isso um agente policial? Nada!), é ele que lhe sugere outras formas (embora sem as concretizar, até porque a “podiam ofender”) de não ter de pagar em dinheiro a sua “comissão” de que não prescinde (cfr. escutas telefónicas).
Também não se diga que há qualquer nulidade ou inconstitucionalidade na selecção do material destas escutas telefónicas, pois o arguido pode sempre pronunciar-se e esclarecer o seu conteúdo e circunstâncias e sentidos das conversas. O arguido não ignora que no processo criminal militam e se confrontam interesses e valores vários, cuja compatibilização se impõe, mormente a descoberta da verdade material, a perseguição dos infractores, a defesa dos arguidos. Nenhum destes valores é absoluto no sentido de prevalecer sempre sobre os demais. (cfr. artº 24º e ss. da CRP, em especial 32º); e compreende-se num quadro de respeito pela dignidade da pessoa humana (art.º 1º, 8º, 13º e 18º da Constituição). É por isso que a verdade não pode ser buscada a qualquer preço e que também o arguido não pode pretender uma tutela de tal forma absoluta que, na prática, brigue com a dignidade dos demais membros da sociedade, cujos direitos só o são verdadeiramente se puderem ser vindicados, com a consequente punição dos infractores. É neste quadro geral que o processo penal prevê uma fase de instrução (latu sensu), visto que é insuportável que alguém possa ser submetido a julgamento sem prévia verificação da existência de indícios suficientes da prática do crime. Contudo, nesta averiguação, existe segredo de justiça (art.º 86º do Código de Processo Penal), a direcção cabe a uma entidade pública vocacionada para o efeito (o MºPº - art.º 48º), e ao arguido não cabem mais do que os direitos cominados no art.º 61º, definidos com a latitude própria de um Estado de Direito baseado na dignidade da pessoa humana. É, aliás, intuitivo que não se pode ir muito além deste regime, sob pena de tornar inviável a pretensão punitiva do Estado e, por esta via, pôr em crise o fim último e critério legitimador do Direito que é a Justiça. Se o arguido médio soubesse que estava a ser sujeito a escutas, por exemplo, obter-se-ia mais algum resultado por este meio? Certamente que não. E os exemplos poder-se-iam multiplicar num cenário em que o princípio estruturante do inquérito fosse o do contraditório pleno. E não se diga que interessa limitar apenas a questão à possibilidade de o arguido se pronunciar sobre o seu conteúdo para validar o meio de obtenção de prova. A realização do contraditório, que é, no fundo, o que subjaz à ideia de selecção das conversações pelo arguido, pode sempre ter lugar em audiência, visto que este tem a possibilidade de esclarecer aí o sentido e alcance das suas conversas, o que queria dizer e as circunstâncias em que falou. De modo que, e em suma, não se surpreende qualquer nulidade pelo facto de a selecção ter sido feita sem a colaboração, sindicância e anuência do arguido.
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Quanto ao assédio sexual do arguido, que esteve na base da sua conduta, tal resultou dos factos alegados na sua própria contestação, confessado por ele e confirmados, designadamente, pelo soldado C. E provou-se isso (o que não se provou foi um"minus", uma fracção, em relação à sua versão: que tenha havido assédio de parte a parte, com a B a actuar dessa forma). Assim, nada impede que seja aqui tido em conta (art.º358/2, CPP).

II-b) Exposta a matéria de facto dada como provada e a considerada como não provada bem como a respectiva fundamentação, vejamos qual a solução a dar a cada uma das questões suscitadas nas conclusões que os Recorrentes extraem da motivação dos respectivos recursos (pois que, conforme jurisprudência pacífica do STJ, são elas que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum).
Em homenagem aos princípios da precedência lógica e da prejudicialidade, consagrados na lei adjectiva, há que começar pelo conhecimento do recurso do Arguido, no qual suscita, entre outras, as seguintes questões: Incompetência do tribunal comum para conhecer do crime de corrupção passiva e participação intervenção de um dos juízes no julgamento, após ter tomado posse como Director da Polícia Judiciária, concretamente, da Direcção Central de Combate ao Banditismo.

II-c) É inquestionável que a excepção da incompetência (material) do tribunal foi atempadamente deduzida podendo-devendo igualmente, aliás, ser conhecida e declarada oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão final, ou seja, até ser proferida decisão que ponha termo ao processo (artº 32º, n.º 1 do CPP).
Para excepcionar a incompetência do tribunal louva-se o Arguido na seguinte fundamentação: “O arguido é militar da Guarda Nacional Republicana.
A conduta que lhe é imputada na douta acusação para além de violar, flagrantemente, o dever militar, foi levada a cabo em acto de serviço.
Tal conduta é, ainda, susceptível de integrar o crime de corrupção passiva previsto e punido pelo artº 191° do Código de Justiça Militar.
Facto que nos coloca na presença de um crime essencialmente militar atento ao disposto no art.º 1°, n.º 2 do diploma legal atrás referido.
Assim sendo, compete ao tribunal militar e não aos tribunais comuns a competência para conhecer o crime de que o arguido vem acusado, cfr. artº 313° do C.J.Militar.”
Antecipando a resposta à questão que reclama solução dir-se-á que o entendimento, aliás douto, do Arguido/Recorrente não pode ser acolhido.
Vejamos.
Em consonância com o artº 218º da Constituição (versão originária, correspondente ao artº 215º, após a 2ª revisão constitucional) estabelece o artº 309º do CJM que “aos tribunais militares compete, além de quaisquer outras funções determinadas na lei, o conhecimento dos crimes essencialmente militares e dos crimes dolosos que, por lei, vierem a ser equiparados àqueles.”
Critério definidor da competência dos tribunais militares é, pois - não o da qualidade militar do agente do crime - mas o da natureza do crime cometido.
Pelo simples facto de o agente do crime ser militar não fica sujeito à jurisdição castrense. O foro militar, pura e simplesmente, expurga de consideração a qualidade do agente do crime, dando apenas relevância à natureza deste.
É que a Constituição de 1976 veio (re)colocar a jurisdição militar no plano material.
Num breve excurso histórico, dir-se-á que as primeiras referências ao foro militar remontam às Ordenações Afonsinas, conhecendo a matéria desenvolvimentos diversos nas Ordenações subsequentes e na legislação extravagante, vindo a separação efectiva do foro civil do foro militar a consumar-se em meados do século XVIII, mais concretamente a partir do Alvará de 18 de Fevereiro de 1763, que aprovou o Regulamento para a Instrução e Disciplina da Infantaria e Praças que Constituem as Barreiras do Reino. Neste instrumento, que compreendia os “artigos de guerra”, determinava-se a constituição de “conselhos de guerra” nas unidades do Exército, “artigos” aqueles que constituem os primeiros antecessores (na forma e no espírito) dos Códigos de Justiça Militar que, mais tarde, viriam a ser publicados [1] .
“De 1763 a 1875 vigorou entre nós o critério então generalizado na Europa e que viria a ser consagrado pelo direito napoleónico, segundo o qual a jurisdição castrense só imperava em relação aos delitos específicos da disciplina militar. O Código de 1875 veio, todavia, substituir este critério pelo inverso: à jurisdição castrense ficavam subordinados todos os militares só pelo facto de o serem e fosse qual fosse a natureza do delito cometido. O foro militar passara a foro pessoal.”
Foi este o critério que vigorou entre nós, até à Constituição de 1976 que, como se referiu, “veio colocar de novo a jurisdição militar no plano do foro material. O cidadão, militar ou civil, só estará a ele sujeito enquanto violador de interesses especificamente militares. Caso negativo, sobrepõe-se-lhe o foro comum, por força da supremacia natural deste. Daqui que os militares já não respondam por delitos comuns perante o seu antigo foro especial, mas perante os tribunais ordinários, como qualquer outro cidadão. Daqui também que o cidadão não militar, ao violar os interesses superiores das forças armadas consagrados na Constituição, fique sujeito à jurisdição destas.
Ao foro militar é indiferente a qualidade do agente do crime; é a natureza deste que passa a contar, conforme expressamente refere a Constituição no seu artº 218º [versão originária].” [2]
O artº 213º da Constituição da República, após a revisão constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20SET, restringiu a competência dos tribunais militares ao julgamento dos crimes de natureza estritamente militar e apenas durante a vigência do estado de guerra.
Estatui, porém, o artº 197º da cit. Lei n.º 1/97 que “os tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no n.º 3 do artº 211º da Constituição”, o que significa que, por um lado, se mantém transitoriamente inalterada a competência daqueles tribunais, até à entrada em vigor da legislação que vier a regulamentar a composição dos tribunais judiciais que julguem crimes estritamente militares e, por outro lado, que se mantém em vigor o Código de Justiça Militar (CJM), pois que contém disposições legais vigentes,
O crime de corrupção passiva para a prática de acto ilícito, p. e p. pelo artº 372º, n.º 1 do CP, pelo qual o Arguido/Recorrente foi condenado, encontra-se igualmente contemplado no artº 191º, n.º 1 do Código de Justiça Militar, que reza assim: “Aquele que, integrado ou ao serviço das forças armadas, se deixar corromper, recebendo, por si, ou por interposta pessoa, dádivas ou presentes, ou simplesmente aceitando promessas de recompensa para praticar um acto injusto ou para se abster de praticar um acto justo das suas atribuições, ou for constrangido à prática de qualquer desses actos por meio de violência ou ameaça, não ocorrendo circunstâncias justificativas do seu procedimento, será condenado, no primeiro caso, a prisão maior de dois a oito anos e, no segundo, a presídio militar de dois a quatro anos.”
À parte a exigência de que o agente do crime p. e p. no artº 191º do CJM esteja “integrado ou ao serviço das forças armadas”, a estrutura essencial deste crime e a do crime p. e p. no artº 372º, n.º 1 do CP são, pois, coincidentes.
Não fornece a Constituição o conceito de crimes essencialmente militares, deixando tal tarefa para a lei ordinária, o que, como salientam J.J Gomes Canotilho/Vital Moreira [3] , não significa, obviamente, que os possa definir de forma arbitrária, “devendo o critério definidor estar de acordo com a função do instituto, que é a de proteger por meios próprios (a justiça e os tribunais militares) a organização militar.”
Nos termos do artº 1º, n.º 2 do CJM, “consideram-se crimes essencialmente militares os factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina das Forças Armadas, bem como os interesses militares da defesa nacional, e que como tal sejam qualificados pela lei militar.”
Não obstante o CJM de 1977 ter substituído, por imperativo Constitucional, como se referiu, o foro pessoal pelo material e eliminado a referência aos crimes acidentalmente militares, tal não significa, em boa verdade, que estes tenham desaparecido, “pois passaram, na sua generalidade, a estar incluídos nos crimes essencialmente militares. Com efeito, utilizando-o embora, o CJM não se limitou a transpor aquele conceito pré-constitucional, nem efectuou uma simples correspondência com o anterior Código. Antes operou uma modificação substancial, ao passar a incluir nesta noção de crime essencialmente militar a generalidade dos crimes anteriormente qualificados como crimes acidentalmente militares, e, ainda, passando a aí incluir outros crimes que, anteriormente, só por via da competência do foro pessoal eram sujeitos a essa jurisdição.” [4]
Curiosamente, como se escreveu no Ac. n.º 47/99/TC, publicado do DR, II série, de 26MAR99, a maior parte dos crimes que, no Código anterior tinham apenas o carácter de crimes militares - o que de algum modo significava que os factos incriminados não violavam deveres militares ou ofendiam a segurança e a disciplina das Forças Armadas - passam a ser no Código vigente «crimes essencialmente militares». É precisamente o caso do crime de crime de corrupção passiva, p. e p. no artº 191º do actual CJM, correspondente ao artº 216º do anterior CJM, onde era considerado “crime militar” (pois que incluído no capítulo II do título II do Livro I). Aliás, o novo CJM prevê (novas) categorias de crimes que nem sequer constavam do antecedente diploma (cfr., a título de exemplo, os artºs 95º, 111º e 207º).
Urge, pois, recortar o conceito de crime essencialmente militar, com vista a averiguar se a descrita conduta do arguido consubstanciadora do crime de corrupção passiva, p. e p. no artº 191º, n.º 1 do actual CJM se enquadra naquele conceito.
O CJM aprovado pelo Decreto n.º 11.292, de 26 de Novembro de 1925, previa no seu artº 1º:
“1º Os factos que constituem crimes essencialmente militares, por violarem algum dever militar ou ofenderem a segurança e a disciplina do exército ou da armada;
2ª Os factos que, em razão da qualidade militar dos delinquentes, do lugar ou doutras circunstâncias, tomam o carácter de crimes militares.”
Crimes essencialmente militares eram, pois, por definição legal, os factos que violavam algum dever militar ou ofendiam a segurança e a disciplina do Exército ou da Armada; o “carácter de crimes militares” provinha da “qualidade militar dos delinquentes, do lugar ou doutras circunstâncias.”
O anteprojecto do actual CJM não continha, deliberadamente, qualquer definição de crimes essencialmente militares. “Além de ser sempre delicado e, até, perigoso definir legalmente um tal conceito, duvidava-se da sua utilidade, pois, ao fim e ao cabo, seriam crimes essencialmente militares aqueles que o legislador enumerasse ao longo do Código.
No entanto, face à inexistência de uma qualquer definição no texto constitucional e à possibilidade de o legislador ordinário criar novos tipos de crimes além dos enumerados no Código, optou-se pela formulação de uma definição que balizasse o conceito do delito tipicamente militar, em termos precisos, mas suficientemente amplos, de forma a permitir a protecção dos interesses superiores das Forças Armadas, para o cumprimento da missão específica que a Constituição lhes confere (cfr. artº 273º).” [5]
Como observam Silvino Villa Nova/Luciano Patrão/Cunha Lopes/Castel-Branco Ferreira [6] , o legislador militar de 1977 quis dar, porém, um novo sentido ao conceito de crime essencialmente militar - aliás constitucionalmente acolhido - concedendo-lhe um âmbito mais vasto que o anterior, havendo que interpretar o actual artigo 1º “no sentido de que criou um novo conceito de crime essencialmente militar, diverso, no seu conteúdo, daquela outra figura que, com a mesma designação, constava do Código anterior».
Igual entendimento expendeu o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República no seu Parecer n.º 181/80 [7] , como se alcança do seguinte excerto:
    [...] o legislador do Código quis conferir maior alcance àquela expressão, embora, como atrás se ponderou, não resulte dos trabalhos preparatórios da Constituição que a expressão «crimes essencialmente militares» tivesse no pensamento dos constituintes esse maior alcance que afinal lhe veio a ser conferido.
    Em todo o caso, compreende-se [que] a visível preocupação de definir a competência do foro militar com base num critério material tenha conduzido a incluir no elenco infracções que não se enquadram rigorosamente no conceito do Código precedente, sob pena de deixar de fora factos ou comportamentos que, violando interesses semelhantes, nenhuma razão de política legislativa aconselhava a que fossem excluídos.”
Várias vezes chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de diversas normas do Livro I (Dos Crimes e das Penas) do CJM, o Tribunal Constitucional tem abordado a questão da delimitação do conceito de crime essencialmente militar, não se afastando daquela linha.
Assim, no Acórdão n.º 347/86, [8] após se concluir pela não coincidência dos conceitos nos dois Códigos e procurando surpreender no actual o núcleo do conceito de crime essencialmente militar, escreveu-se:
“Ou seja: o legislador só pode submeter à jurisdição militar aquelas infracções que - no dizer de Pablo Casado Borbano, Iniciación al Derecho Constitucional Militar, Madrid, 1986, p.85 - «afectam inequivocamente interesses de carácter militar». Infracções que, por isso mesmo, hão-de ter com a instituição castrense uma qualquer conexão relevante, quer porque exista um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque esse nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa nacional.
.................................................................................................................
Entende-se, pois, que crimes essencialmente militares não serão apenas aqueles que não têm qualquer correspondência com os crimes comuns, sendo as normas que os prevêem excepcionais em relação às normas de direito penal comum, com elas se encontrando numa relação de sic e aliter. Para além desses crimes, a que a doutrina chama «crimes exclusivamente militares» (cf. Beleza dos Santos, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 71º, pp. 241 e seguintes), serão também essencialmente militares aqueles que certa doutrina denomina como «crimes objectivamente militares», «mistos» ou «pluriofensivos» (cf. G. Landi, V. Ventro, P. Stellacci e P. Verri, Manuale di Diritto e di Procedura Penale Militare, pp. 160 e seguintes), ou seja, aqueles que, sendo fundamentalmente idênticos aos crimes comuns, por representarem um dano ou perigo de dano para os interesses comuns da comunidade, constituem, a mais do que isso, violações de algum dever militar, ofensa à segurança ou à disciplina das Forças Armadas ou aos interesses militares da defesa nacional. São crimes comuns que possuem um plus (um mais) de censura ética que não cabe na sua configuração como crime comum; crimes, pois, cujas normas tipificadoras, correspondentemente, também se encontram numa relação de minus a plus com as normas penais comuns.
O que, na definição dos crimes essencialmente militares, o legislador não poderá fazer é definir como tais crimes comuns cujo único elemento de conexão com a instituição militar seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório (como, por exemplo, o lugar da sua prática), pois que isso seria consagrar o foro pessoal. E isso, manifestamente, é que o texto constitucional quis proscrever.”
E no Acórdão n.º 271/97 [9] considerou-se:
«Seja como for, é consensual a ideia de que o punctum saliens dos “crimes essencialmente militares” se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares. Como sublinha J. Figueiredo Dias, “tal como sucede com o direito penal comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico, pelo que o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão” (cfr. Justiça Militar, in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, pp. 25 e 26).”
Poderá, assim, dizer-se, como no Ac. n.º 680/94 do TC, de 21DEZ94 [10] , que “a CR, no seu artº 215º, n.º 1 da CRP [correspondente ao artº 218º da versão originária] ao atribuir aos tribunais militares competência para o conhecimento dos crimes essencialmente militares e só destes (foro material), e não se identificando o conceito de «crime essencialmente militar» com o correspondente conceito do Código de Justiça Militar de 1925, é sobretudo pela análise dos bens jurídicos violados por cada crime que se concluirá se ele é ou não essencialmente militar, sendo-o só nos casos em que, exclusivamente ou não, sejam violados os interesses específicos constantes do n.º 2 do artigo 1º, ou seja, algum dever militar , a segurança e a disciplina das Forças Armadas ou os interesses militares da defesa nacional, além de como tal terem de ser qualificados pela lei militar.
Nesta conformidade, in casu, como se ponderou no Ac n.º 49/99/TC, de 19JAN99, “haveria que encontrar um interesse militar específico protegido pela incriminação em causa, que transcenda a mera tutela indirecta e mediata da disciplina das Forças Armadas, a qual, no fundo, sempre se encontrará ainda naqueles casos em que a conexão com esse interesse reside apenas na qualidade do agente ou em outros elementos acessórios.
[...] tal implica que não possam ser considerados crimes essencialmente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consista no facto de se conexionarem, de qualquer forma, com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas.
É que, para que uma conduta possa ser qualificada como crime essencialmente militar, e não apenas acidentalmente militar, é necessário algo mais que a referida conexão; é necessário que haja uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional.
Se assim não fosse, quase sempre a simples qualidade militar, ou o mero facto de a conduta ter sido praticada num espaço afecto à instituição militar, conduziriam à possibilidade de a lei vir a qualificar qualquer crime comum como essencialmente militar. Com efeito, raras vezes não estaríamos também, em tais casos, perante a violação de um dever militar ou difícil seria, pelo menos, não descortinar, aí, a existência de uma conexão com a segurança ou a disciplina militares.”
E a simultânea qualificação de um ilícito criminal como “essencialmente militar” e ilícito criminal comum, como é o caso vertente, não altera o critério: saber se, de algum modo, está em causa a organização militar - e inerentes valores -, fim último justificativo da existência autonomizada de uma justiça e de tribunais militares.
Por outro lado, como faz notar a Ex.ª Conselheira Maria Fernanda Palma nas suas declarações de voto aos Acórdãos do TC n.ºs 679/94 e 408/93, pode haver crimes “essencialmente militares” que não constituam, em geral, ilícitos criminais. “Isso resulta, em última instância, da especificidade e importância da instituição militar num Estado de direito.
[...] Em todos os casos - de crimes «essencialmente militares» em sentido estrito e de crimes exclusivamente militares -, a legitimidade da qualificação jurídica terá de se confrontar com o princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança derivados do Estado de direito democrático (artigos 18º, n.º 2, e 2º da Constituição). Só serão crimes essencialmente militares os que afectarem bens jurídicos militares - «direitos e interesses» tutelados constitucionalmente conexionados com a preservação e a subsistência das Forças Armadas. Adicionalmente, valerão todos os restantes princípios constitucionais de política criminal, incluindo a culpa - ante o disposto nos artigos 1º (essencial dignidade da pessoa humana), 25º, n.º 1 (integridade moral), e 27º, n.º 1 (liberdade), da Constituição, só poderão ser incriminadas condutas dotadas de relevância ética.”
À luz do entendimento doutrinal e jurisprudencial exposto, não se vislumbra qualquer relevante conexão da descrita conduta do arguido com os específicos interesses tutelados pelo CJM, sendo idêntico ao de qualquer funcionário o regime a que o Arguido, pese embora a sua qualidade de militar, se encontra sujeito. Aliás, como se decidiu no Ac. do STJ, de 18ABR91, [11] o conceito de funcionário público, para efeitos penais, previsto no artº 437º do CP de 1982 [correspondente ao artº 386º, após a revisão operada pelo DL n.º 48/95, de 15MAR], abrange o funcionário militar, ponto de vista que resulta até reforçado do conteúdo do n.º 2 daquele artº.
A qualidade militar do Arguido, por ele invocada para defender a competência do foro militar para conhecer do crime de corrupção, constitui a única ligação - meramente indirecta ou remota, porém - à instituição militar surgindo, pois, como simples elemento acidental do crime.
Com efeito, ao incorrer no crime de corrupção que lhe é imputado, violou o Arguido a autonomia intencional do Estado, ou seja, em sentido material, infringiu as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de direito, sempre têm de presidir ao desempenho das funções públicas, quaisquer que, concretamente, elas sejam. [12]
A violação deste bem jurídico é susceptível de atingir - mas apenas remotamente, - interesses da instituição militar.
Tal, porém, não basta para a qualificação do crime como essencialmente militar. É que, como se referiu, não podem ser considerados crimes essencialmente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consista no facto de se conexionarem, de qualquer forma, com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas. Para que uma conduta possa ser qualificada como crime essencialmente militar, e não apenas acidentalmente militar, é necessário algo mais que a referida conexão; é necessário, repete-se, que haja uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional, ligação essa que, in casu, não existe.
Conclui-se, pois, que - não sendo essencialmente militar - é competente para conhecer do crime de corrupção ao arguido imputado o foro comum.
Improcede, assim, a suscitada questão da incompetência do foro comum para conhecer daquele crime.

II-d) Melhor sorte não merece, salvo o devido respeito, a questão da alegada “ilegalidade” da intervenção de um dos juízes no julgamento, após ter tomado posse como Director da Polícia Judiciária, concretamente, da Direcção Central de Combate ao Banditismo, questão essa que o Arguido suscita sob a epígrafe de “vício de essência da sentença”, com o aplauso do Exº Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação, mas com fundamentação não inteiramente coincidente.
Em abono da sua tese, desenvolve o Arguido a seguinte argumentação: “O Tribunal Colectivo que julgou o arguido, era constituído pelo Meritíssimo Juiz Presidente, Dr. Sérgio de Almeida e Meritíssimos Juízes, Assistentes, Dr. João Moreira e Dr. Pedro Cunha Lopes.
No decurso do julgamento o Mº Juiz Auxiliar Dr. Pedro Cunha Lopes tomou posse na Polícia Judiciária como Director da Direcção Central de Combate ao Banditismo, acumulando, assim, esta função policial, que lhe tolhe a independência, com a que tinha como juiz na Vara com Competência Mista do Tribunal Judicial de … e fora das situações previstas no artº 69° da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
As duas funções, em nosso modesto entender, são incompatíveis tanto mais que foram exercidas simultaneamente enquanto decorria o julgamento do arguido.
Com efeito, o exercício destas duas funções, de que o arguido só tomou conhecimento depois do seu julgamento e a propósito das demissões ocorridas na Polícia Judiciária que foram badaladas nos meios de comunicação social, viola o disposto no artigo 119°, a) do C.P.Penal e o art.º 216° da Constituição da República Portuguesa.”
Sustenta, por sua vez, o Exº Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação que “a manutenção do Mº Juiz Pedro Cunha Lopes no Tribunal colectivo que procedeu ao julgamento, numa altura em que tinha sido já nomeado dirigente da P.J. com efeitos desde 28/5/2002, conforme publicado no D. R. II série, n.º 160, de 13/7/2002, se enquadra no artigo 43º, n.º 1 do CPP [...] tal motivo de recusa resulta directamente do n.º 5 do artigo 32º da Constituição, o qual estatui que "o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório" [...] Resultando, assim, a intervenção do Dr. Pedro Cunha Lopes incompatível, segundo o art. 13º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30/7, com alterações posteriores, afigura-se que a sua participação na audiência de julgamento, numa altura em que exercia já funções dirigentes na PJ, não podia ser abrangida pelo n.º 2 do art. 70º do citado Estatuto, o qual apenas é aplicável quando o Juiz transita de comarca, com a manutenção do seu estatuto funcional, o que não acontece naquele período, em que o dito se integrou na PJ, a qual, para além do mais, depende, segundo o art. 56º do C.P.P., do próprio Ministério Público [...] tal acarreta, pois, a sua recusa e a consequente nulidade do julgamento, nos termos do art. 43º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P., não se afigurando ainda bastante que os outros 2 juízes mantivessem o seu estatuto na íntegra, atenta a estrutura do próprio processo de deliberação constante dos artºs. 365º e ss do mesmo diploma que culmina com a assinatura da sentença por todos os juízes, sinal da essencialidade da intervenção daquele com semelhante estatuto, o que como referido foi não aconteceu.”

Ambos, Arguido e Exº Magistrado do MP nesta Relação, estão de acordo quanto ao seguinte: a intervenção do Mº Juiz Dr. Cunha Lopes no julgamento é incompatível com o exercício das funções de Dirigente da PJ, cargo para que fora nomeado após se ter iniciado o julgamento, o qual “lhe tolhe a independência”.
Entende, porém, o Arguido que o exercício cumulativo daquelas funções viola o disposto no artº 216º da Constituição da República Portuguesa e gera a nulidade insanável prevista na al. a) do artº 119º do CPP, enquanto o MP nesta Relação sustenta que tal exercício cumulativo ofende o preceituado nos artºs 13º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais e 32º, n.º 5 da Constituição, constitui fundamento de recusa daquele Mº Juiz, nos termos do artº 43º, n.º 1 do CPP e, finalmente, determina a nulidade do julgamento.
Liminarmente, observar-se-á que, no requerimento através do qual, no último dia do respectivo prazo, juntou a motivação do recurso (interposto por declaração na acta respectiva), solicitou igualmente que “seja informado da data em que o Mº Juiz Auxiliar tomou posse na Polícia Judiciária como Director da Direcção de Combate ao Banditismo, uma vez que não conseguiu obter tal informação junto das secretarias desse tribunal, requerimento que, nessa parte, viria a ser indeferido.
A informação ora pretendida destina-se à instrução do presente recurso.”
Ora, como se referiu, na motivação do recurso (apresentada, repete-se, com aquele requerimento), afirma o Arguido que “no decurso do julgamento o Mº Juiz Auxiliar Dr. Pedro Cunha Lopes tomou posse na Polícia Judiciária como Director da Direcção Central de Combate ao Banditismo”.
Assim, ou o Arguido sabia qual a data da posse do Mº Juiz Dr. Cunha Lopes, como Director da Direcção Central de Combate ao Banditismo”, ou tal informação, contrariamente ao que alegou, não era necessária para a instrução do recurso - sendo, pois, em ambas as hipóteses, manifestamente inútil tal requerimento, o que não é curial - ou, finalmente, é pura e simplesmente gratuita a afirmação, feita na motivação do recurso, de que “no decurso do julgamento o Mº Juiz Auxiliar Dr. Pedro Cunha Lopes tomou posse na Polícia Judiciária como Director da Direcção Central de Combate ao Banditismo”, o que não é igualmente curial.
E, na verdade, o despacho de nomeação do Mº Juiz de Direito, Dr. Pedro Miguel da Cunha Lopes como Director Nacional-Adjunto na Directoria Nacional da Polícia Judiciária, em comissão de serviço, foi publicado no DR, II Série, de 13JUL02 (sábado), data a partir da qual produziu efeitos o respectivo despacho, tendo o acórdão recorrido sido publicado em 15JUL03 (segunda-feira).
Por outro lado, dir-se-á que, contrariamente ao que defende o Exº Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação, o artº 13º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais (aprovado, pela Lei n.º 21/85, de 30JUL), não proíbe que os juízes sejam nomeados para comissões de serviço de natureza não judicial. O que o artº 53º do mesmo Estatuto - em consonância, aliás, com o estatuído no n.º 4 do artº 216º da Constituição da República, pelo Arguido invocado - proíbe é que os magistrados judiciais em exercício sejam nomeados para comissões de serviço sem autorização do Conselho Superior da Magistratura, não podendo a autorização ser concedida relativamente a magistrados com menos de cinco anos de efectivo serviço (n.º 2 do mesmo artº), o que não é o caso.
Também contrariamente ao que sustenta o mesmo Ilustre Magistrado, o caso vertente cai na previsão do n.º 2 do artº 70º daquele Estatuto, o qual apenas exclui da sua aplicação os casos de cessação de funções por aposentação por limite de idade, desligação de serviço [als. a) e b) do n.º 1, respectivamente] e de mudança de situação resultante de acção disciplinar, o que também não é o caso. Por outras palavras: a expressão “mudança de situação”, constante do n.º 2 daquele artº 70º abrange todos os casos não contemplados nas als. a) e b) do n.º 1 do mesmo artº e, portanto, também os casos de promoção e nomeação para comissão de serviço, e não apenas os casos de transferência de comarca (ubi lex non distinguit, nec nobis distinguere licet).
A expressão comarca ou lugar onde servem, inserta na al. c) do n.º 1, conjugada com aqueloutra expressão mudança de situação, corrobora este entendimento.
Resta averiguar se a intervenção do Mº Juiz Dr. Cunha Lopes no julgamento (cuja audiência teve início em 6MAI02), após a publicação da sua nomeação, no Diário da República, como Director Nacional-Adjunto na Directoria Nacional da Polícia Judiciária, em comissão de serviço, constitui motivo de recusa, nos termos do artº 43º, n.º 1 do CPP, como defende o Exº Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação, motivo esse que, no entender do mesmo Douto Magistrado “resulta [ainda] directamente do n.º 5 do artº 32º da Constituição”.
Como se referiu, o despacho de nomeação do Mº Juiz de Direito, Dr. Pedro Miguel da Cunha Lopes como Director Nacional-Adjunto na Directoria Nacional da Polícia Judiciária, em comissão de serviço, foi publicado no DR n.º 160, II série, de 13JUL02. E porque o dia 13JUL03 foi sábado, esse número do Diário da República não pode ter chegado à comarca antes de 15JUL03 (segunda-feira).
Ora, de harmonia com o disposto no n.º 1, al. c) do cit. artº 70º, os magistrados judiciais cessam funções no dia imediato àquele em que chegue à comarca ou lugar onde servem o Diário da República com a publicação da nova situação, o que vale por dizer que o Mº Juiz em questão cessou funções em 16JUL03.
Tendo o acórdão recorrido sido publicado em 15JUL03, há que concluir que à data da publicação daquele acórdão, ainda o Dr. Cunha Lopes estava em funções como Juiz de Direito nas Varas Mistas do Tribunal Judicial da Comarca de … (situação que determinou a sua intervenção, como Juiz Adjunto no julgamento do processo em questão), mas havia já sido publicado, no Diário da República, o despacho da sua nomeação como Director Nacional-Adjunto na Directoria Nacional da Polícia Judiciária, em comissão de serviço.
Constituirá a intervenção do Mº Juiz Dr. Cunha Lopes no julgamento, após a publicação da sua nomeação, no Diário da República, como Director Nacional-Adjunto na Directoria Nacional da Polícia Judiciária, em comissão de serviço, fundamento de recusa, nos termos do artº 43º, n.º 1 do CPP, como defende o Exº Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação?
Em consonância com o disposto no artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclama o artº 203º da CRP que “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.”
Estatui, por sua vez, o n.º 5 do cit. artº 32º que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.”
No Acórdão n.º 124/90 do TC [13] caracteriza-se assim o princípio do acusatório:
Ao consagrar no n.º 5 do artigo 32º uma tal garantia - a garantia do processo criminal de tipo acusatório - o que, pois, a Lei Fundamental pretende assegurar é que a entidade que julga (o juiz) não tenha funções de investigação e acusação: esta última tarefa há-de ser levada a efeito por uma outra entidade (em regra, o Ministério Público); e, no julgamento do feito penal, há-de o juiz mover-se dentro dos limites postos pela acusação. Com isto, como decorre do que atrás se disse, pretende a Constituição que os arguidos, que hajam de ser submetidos a julgamento, acusados da prática de uma infracção criminal, tenham um julgamento independente e imparcial que é, justamente, o que também se lhes garante no artigo 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, quando aí se dispõe como segue:
Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial [. . .].”
É através da independência dos juízes - pressuposto e exigência da independência dos tribunais - que “se asseguram os fundamentos de uma actuação livre dos tribunais, perante pressões que se lhe dirijam do exterior. Isto não basta, porém, para que fique do mesmo passo preservada a objectividade de um julgamento: é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a imparcialidade dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar.
São várias, na verdade, as razões que, perante um caso concreto, podem levar a pôr em dúvida a capacidade de um juiz para se revelar imparcial no julgamento; e o que aqui interessa - convém acentuar - não é tanto o facto de, a final, o juiz ter conseguido ou não manter a sua imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1 ° Vol., pág. 315).
Tal como à mulher de César, não basta ao juiz ser honesto; tem também de o parecer.
Na verdade não importa apenas que o juiz permaneça imparcial: “a justiça não deve ser apenas justa; mas ainda, para obter o geral acatamento, deve parecê-lo.”
Como se escreveu no Ac, n.º 135/88/TC [14] , “a independência dos juízes é, acima de tudo, um dever - um dever ético-social: A «independência vocacional», ou seja, a decisão de cada juiz; de ao «dizer o direito», o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio - e acima - de influências exteriores é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nesta perspectiva, é, sobretudo uma responsabilidade que terá a «dimensão» ou a «densidade» da fortaleza do ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz.
Com sublinhar estes pontos, não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir um quadro 1egal que «promova» e facilite aquela «independência vocacional».
Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de «administrar justiça». Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.”
Dando cumprimento ao referido imperativo constitucional, estatui o cit. artº 43º, n.º 1 do CPP que a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Dispõe o nº 2 do mesmo artº que pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artº 40º.
Conforme jurisprudência constante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a apreciação da imparcialidade deve obedecer a critérios subjectivos e objectivos: no primeiro caso, coloca-se a questão de saber se a convicção pessoal do julgador, em determinado momento, oferece garantias bastantes para afastar qualquer dúvida legítima; no segundo caso, a questão consiste em saber se, independentemente da atitude pessoal do juiz, certos factos verificáveis permitem suspeitar da sua imparcialidade (justice must not only be done; it must also be seen to be done). [15]
Tendo presentes os princípios e considerações expostos, há que concluir que nenhum motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Mº Juiz em causa se descortina.
É que até à publicação do acórdão recorrido exerceu exclusivamente funções judiciais. E, mesmo que tivesse tomado posse do cargo de Director Nacional-Adjunto na Directoria Nacional da Polícia Judiciária no decurso do julgamento, não se divisa que a sua intervenção neste corresse o risco de ser considerada suspeita pois que a fase da investigação do caso a que os autos se reportam, na qual o Mº juiz não interviera, havia já sido ultrapassada.
Daí também que não tenha sido posto em crise o princípio do acusatório, a que, como se referiu, o n.º 5 do artigo 32º da Lei Fundamental confere dignidade constitucional, o que apenas se verificaria se na pessoa do Mº Juiz confluíssem funções animadas de sinal contrário: investigação e/ou acusação e julgamento. Ora, como se referiu, o Mº Juiz não exerceu funções de investigação (ou de acusação), no processo em causa, pois que não só não tomou posse do cargo de Director Nacional-Adjunto na Directoria Nacional da Polícia Judiciária antes da fase do julgamento desse processo como o despacho da sua nomeação para tal cargo só veio a ser publicado na fase do julgamento, mais concretamente, após o encerramento da discussão.
A questão suscitada pelo Arguido, com o aval do MP nesta Relação, apenas poderia colocar-se se o Mº Juiz em questão tivesse sido investido no cargo de Director Nacional-Adjunto na Directoria Nacional da Polícia Judiciária na fase de investigação do presente processo (que foi levada a cabo pela Polícia Judiciária) e viesse a intervir no julgamento do mesmo.
Improcede, pois, tal questão.

II-e) Sustenta o Arguido que “a polícia utilizou meios enganosos, usando para o efeito um agente provocador [B], que acabaram por determinar a prática, pelo arguido, dos alegados crimes constantes da acusação.
O método utilizado pela polícia para mais tarde justificar a condenação do arguido é manifestamente ilegal atento ao disposto no artº 126°, 2. a) do C. P. Penal.”
Para concluir que “a B foi utilizada como agente provocador”, alega o Arguido, em síntese, que, “compulsado o depoimento da B [...] verifica-se que ela mesma afirma ter sido orientada pela PJ, que foi esta polícia que se encarregou de tudo e até do dinheiro que não contou e apenas viu no envelope que lhe entregaram para dar ao arguido; e que a PJ obrigou-a a interromper as férias que ela estava a gozar no norte do país para tratar do assunto com o arguido.
Dos depoimentos transcritos, designadamente das testemunhas B, C e Z verifica-se que o que não passava de um puro assédio sexual e mais da parte dela, como já se referiu, viria descambar em matéria criminosa lançada contra o arguido.
Compulsados tais depoimentos transcritos [...] igualmente se verifica que foram utilizados meios enganosos que acabaram por determinar a prática dos alegados crimes da acusação contra ele movida.
E para o efeito a B foi utilizada como agente provocador.”
A factualidade que, no entendimento do Arguido, seria susceptível de consubstanciar a figura do “agente provocador” foi pelo tribunal a quo dada como não provada, “face à prova produzida.”
Com efeito, não se provou, nomeadamente, que “quem determinou a prática do crime foi a senhora, como agente manipulador, que conquistou a confiança do arguido e o conduziu para um cenário onde este pensou tirar, única e simplesmente, dividendos sexuais. Que se trata de uma cabala, e que foi montada pelo dono do restaurante onde trabalha a senhora, ressabido com o que julgou ser assédio do arguido às suas empregadas e receoso deste as encaminhar para o dito club nocturno.”
Indicando e analisando criticamente a prova em que se baseou para dar como não provada tal facticidade, escreveu-se no acórdão ora posto em crise: “No que toca ao pretenso assédio da B ao arguido toda a prova, a começar no depoimento da companheira de viagem M, passando pela colega de trabalho até às escutas, aponta no sentido de que nunca existiu, tendo sido apenas o arguido quem quis um relacionamento dessa natureza. Por isso lhe fez um extenso interrogatório pessoal, a mandou sair do carro, decerto para a M não poder ouvir toda a conversa (o próprio soldado C deixou-se ficar no carro da BT, o que sugere que as suas intenções não constituíam surpresa), a procurou repetidamente, mantendo-se na posse dos documentos como forma de a ter "na mão". Obviamente nenhum sentido faz que um agente da autoridade procure encontros com infractores inclusivamente nos períodos de folga, como procurou o arguido (o qual até com uma empregada do bar se incompatibilizou por motivos de natureza "sexual") [...]
Não se diga que se trata de prova proibida, ou a qualquer título nula.
Não há actuação sub-reptícia. capciosa ou provocadora alguma da PJ. que se limita a controlar a actuação do arguido e não a lançar, como ele pretende, uma agente provocadora. Não é a B que provoca a actuação do arguido; ele é que a assedia repetidamente, lhe guarda indevidamente os documentos, lhe faz o interrogatório extenso sob a sua vida pessoal (que tem com isso um agente policial? Nada!), é ele que lhe sugere outras formas (embora sem as concretizar, até porque a “podiam ofender”) de não ter de pagar em dinheiro a sua “comissão” de que não prescinde (cfr. escutas telefónicas)”.
Ao insistir na tese do “agente provocador”, alegando que (contrariamente ao entendimento do acórdão sindicado) se provaram os factos que sustentam esta figura, invocando, a propósito, designadamente, os depoimentos das testemunhas B, C e Z, o Arguido mais não faz que impugnar a convicção do tribunal, esquecendo-se, que em processo penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 127º do CPP, princípio este ao qual estão, de todo em todo, submetidas as declarações das testemunhas, do assistente, das partes civis e do arguido [16] .
Por força do princípio da livre apreciação da prova - não estando em causa, como in casu não está, prova tarifada ou legal - o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova é insindicável pelo tribunal de recurso, havendo apenas que indagar se é contrariado pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica. Não se mostrando (como, no caso vertente, se não mostra) que, de harmonia com tais critérios, seja arbitrária, infundada ou manifestamente errónea, prevalece, nos termos do cit. artº 127º, sendo irrelevante a visão pessoal com que o Arguido/Recorrente ou outros intervenientes processuais tenham ficado.
Face ao aludido princípio da livre apreciação da prova, o tribunal não tem de formar a sua convicção a partir do depoimento desta ou daquela testemunha ou atribuir maior credibilidade ao depoimento desta ou daquela testemunha. Ao invés, o juiz é livre de louvar a sua convicção no depoimento desta ou daquela testemunha, no depoimento de uma testemunha em desfavor de várias testemunhas cujos depoimentos sejam contrários, no depoimento do assistente em desfavor de testemunhos contrários, inclusive do arguido. Ponto é que a prova produzida não seja arbitrária, discricionária ou caprichosamente valorada, de todo em todo imotivável.
E porque ao perseguir, através da livre apreciação da prova, a verdade material - que, como todas as normas da vida, não tem carácter absoluto, sofrendo os limites impostos pela necessidade de convivência com outros princípios, o mesmo é dizer que a verdade que se persegue no processo penal é, como escreve o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, p. 194) “uma verdade que, não sendo «absoluta» ou «ontológica», há-de ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida - e porque ao perseguir, através da livre apreciação da prova, a verdade material, dizíamos, o juiz deve obediência a regras de experiência comum e da lógica do homem médio, a norma do artº 127º do CPP está a salvo de qualquer juízo de inconstitucionalidade (Cfr. AC. do TC, de 19NOV96, in BMJ, 461-93).
E não se perca de vista, por outro lado, que é na audiência de julgamento na 1ª instância que se realiza em toda a sua plenitude o princípio da imediação da prova, aqui intervindo elementos que se recusam a ser racionalmente explicados (v.g., a credibilidade atribuída a um determinado meio de prova).
E dúvidas não restam de que a matéria factual dada como provada não comporta a figura do “agente provocador”. Basta atentar nos contornos do respectivo conceito, de há muito conhecido na doutrina jurídico-penal. Assim, para Eduardo Correia, [17] agente provocador é “[...] aquele que procura provocar outrem a executar uma actividade criminosa, não porque a queira, mas só porque pretende arrastar aquele que determina para a punição [...]. E Manuel Augusto Alves Meireis, [18] cit. pelo MP junto da 1ª instância, na contramotivação, define-o como “aquele que, sendo um cidadão particular ou entidade policial, convence outrem à prática de um crime, não querendo o crime a se, e sim, pretendendo submeter esse outrem a um processo penal e, em último caso, a uma pena [...] essencial para o direito penal e processual penal na actividade de provocação é, acima de tudo, o animus do provocador e do provocado. Nestes termos, entendemos como irrelevante o facto de o provocador ser um agente de polícia, ou de qualquer outra força da autoridade pública, ou um cidadão particular. Exige-se sim, por um lado, que o agente provocador tenha a vontade e intenção de, através da sua actuação, determinar outrem à prática de um crime, e por outro, exige-se que o agente provocador não queira o crime que determina outrem a praticar. Por outras palavras: o agente provocador deve ter dolo de determinar outrem à prática de um crime, deve querer convencer alguém a praticá-lo, mas não pode ter dolo de crime, ou seja, não pode querer a sua realização».
Essencial à caracterização da figura do agente provocador é, pois, a adopção de uma conduta de impulso ou instigação de uma actividade criminosa.
Não é este, manifestamente, o caso vertente, desde logo pela simples razão de que a actuação da PJ, com a colaboração de B, é posterior à consumação do crime de corrupção ao arguido imputado. [19]
Como observa Lourenço Martins [20] , “[...] há que distinguir entre provocar uma ocasião para descobrir um crime que já existe, daquela em que se suscita uma intenção criminosa que ainda não existia.”
Há, portanto, que concluir que não foram utilizados quaisquer métodos proibidos de prova, nomeadamente, meios enganosos.

II-f) Alega o Arguido que “relativamente às conversas gravadas [...] jamais o arguido teve oportunidade de se pronunciar sobre o seu conteúdo com vista à sua validação.
Acresce a tudo que tais conversas foram truncadas e a selecção do que se transcreveu foi levada a cabo sem o seu conhecimento, colaboração e anuência, como implicitamente vem reconhecido no acórdão recorrido
No inquérito não houve sequer a preocupação mínima no sentido das vozes serem identificadas como sendo as do arguido e/ou da B.
Empregou-se, assim, no inquérito um meio com preponderância sobre os restantes indícios que foi destruído antes de ser possível validá-lo através da contradita no julgamento, a face processual soberana.
A não possibilidade, da realização do contraditório, relativamente a tais elementos de prova comprometeu inexoravelmente os direitos de defesa do arguido consignados na C.R.P, artº 32°, n.º 5.”

Sobre esta questão dir-se-á que o n.º 3 do artº 188º do CPP confere ao juiz o poder-dever de seleccionar os elementos recolhidos através da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas sem o conhecimento, colaboração ou anuência do arguido, não se vislumbrando que daí advenha nulidade ou inconstitucionalidade, designadamente por violação do invocado artº 32º, n.º 5 da Lei Fundamental.
Com efeito, se o Juiz, considerando-os relevantes para a prova, ordenar a sua transcrição em auto e junção ao processo, o arguido terá ensejo de exercer o seu direito de defesa quanto a eles; se ordenar a sua destruição, por os considerar irrelevantes para a prova, é óbvio que não podem ser utilizados contra o arguido (ou contra quem quer que seja). A destruição dos elementos recolhidos, por irrelevantes para a prova, é uma exigência do princípio de que a restrição dos direitos (intimidade da vida privada e familiar, in casu) deve limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artº 18º, n.º 2 da CRP) e visa impedir a divulgação de elementos irrelevantes para o thema decidendum, ficando todos os participantes nas operações ligados ao dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento (artº 188º, n.º 3, cit.).
Ocorrendo a destruição numa fase em que, como é o caso, impera o segredo de justiça, o acesso do arguido às gravações, não só entraria em conflito com a sua proibição legal, como comprometeria seriamente o êxito da investigação, sendo certo que, como se referiu, nos casos nela expressamente previstos, as restrições legais dos direitos, liberdades e garantias são pela Lei Fundamental consentidas, embora limitadas ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Ora a Constituição permite a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, nos casos previstos na lei em matéria de processo penal (artº 34º, n.º 4) [21] e o CPP (artº 187º do CPP) autoriza a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas quanto a certos crimes, atendendo à sua gravidade.
Também a apontada finalidade (obstar à sua divulgação) aconselha a que se proceda à imediata destruição dos elementos recolhidos considerados irrelevantes para a prova, sem aguardar pela fase a partir da qual o processo é público.
Diga-se, por último, que a intervenção de um juiz nesta matéria constitui garantia bastante da criteriosa selecção dos elementos relevantes para a prova bem como da conformidade da sua transcrição, tratando-se de um acto que depende da livre resolução do juiz.
Pelas razões expostas justifica-se que a selecção dos elementos a transcrever em auto (ou seja, os considerados relevantes para a prova) se faça sem o “conhecimento, a colaboração e a anuência” do arguido, estando afastada a verificação de qualquer nulidade ou inconstitucionalidade.

II-g) Assaca o Arguido ao acórdão recorrido o vício da contradição insanável da fundamentação, referido no art. ° 410°, n° 2, al.b) do C. P. Penal.
Alega, para tanto, que “o acórdão recorrido deu como não provados os seguintes factos alegados na contestação: «Que o arguido nunca tenha abordado empresas com frotas de veículos para exigir quantias em numerário, senha e cheques de combustível. Que os cheques, auto do "BPSM" e “'GALP” foram entregues no bar nocturno explorado pela esposa do arguido para os pagamentos dos consumos ali verificados.»
No entanto, mais à frente o referido acórdão deu como não provado os mesmos factos alegados na acusação “quanto à imputada exigência de valores para não autuar empresas, os representantes das mesmas negaram alguma vez ter contribuído para esse efeito, e muito menos terem sido abordados pelo arguido para isso. A maior parte nem o conhecia e foram peremptórios em negar qualquer relação entre os brindes e ofertas e as autuações de que os seus veículos são objecto. O arguido também o negou e a explicação que aventou - que eram forma de pagamento no bar - ainda que duvidosa, é melhor do que a afirmação, sem qualquer suporte probatório, de que se tratava de benesses para não serem autuadas.»
Existe, assim, contradição insanável entre os factos, que são os mesmos, dados como não provados alegados na acusação e na contestação.”
Da simples leitura da argumentação pelo Arguido aduzida assoma à evidência a inexistência da invocada contradição.
Com efeito, tal vício, referido na al.b) do n.º2 do cit. artº 410º, consiste na afirmação de factos (relevantes para a decisão), animados de sinal contrário, cuja coexistência é, pois, inexoravelmente, inconciliável ou na irremediável conflituosidade entre a fundamentação e a decisão.
Todavia, na tese do Arguido, a contradição existe porque os mesmos factos que foram dados como não provados foram alegados pela acusação e pela defesa.
Ora, um facto é verdadeiro ou falso em si mesmo e não porque tenha sido alegado só pela acusação ou só pela defesa ou pela acusação e pela defesa. Por outras palavras: a verdade (histórica) não deixa de o ser só porque foi dita pela acusação ou pela defesa ou pela acusação e pela defesa. Estranho seria que o tribunal, na decisão da matéria de facto, tivesse em conta quem alegou os factos.
Acontece, porém, que o tribunal a quo nem sequer deu como provado o segundo dos pretensos factos. Na realidade, aquilo que o Arguido diz ser um facto mais não é que a motivação do - esse sim - facto (não provado) alegado na contestação (“que o arguido nunca tenha abordado empresas...”). No entendimento do Arguido, a alegada contradição existiria, assim, entre um facto dado como não provado e um suposto facto (também dado como não provado).
Inexiste, pois, o alegado vício da contradição pelo Arguido imputado ao acórdão recorrido.

II-h) Para defender que o acórdão sindicado enferma do vício do erro notório da apreciação da prova e houve violação do princípio in dubio pro reo, desenvolve o Arguido o seguinte raciocínio: “O arguido como militar da G .N .R. no activo não tem nenhuma dificuldade em arranjar uma arma de fogo, seja pistola ou revólver, comprando-a ou requisitando-a à sua Unidade.
Podendo ter, assim, na sua posse e com a maior facilidade uma arma devidamente legalizada para o seu uso pessoal fora do serviço, não faz sentido nenhum a acusação de que «previu e quis ter consigo a aludida arma, sabendo que não se encontrava manifestada, nem o poderia ser por se tratar de arma adaptada» tanto mais que era de operacionalidade duvidosa por ser deficiente.
A explicação que o arguido deu sobre a referida arma não foi aceite pelo tribunal a quo por «não ter qualquer sentido nem suporte algum e mais ninguém se ter apercebido do tal achado”, sendo certo que não se acham armas transformadas», apesar de ter sido corroborada pela testemunha Z (cfr. depoimento desta transcrito) e ser um facto notório que só os marginais e as pessoas que não têm possibilidades de adquirir uma arma de fogo é que recorrem às armas de fogo transformadas.
Existe, assim, erro notório na apreciação da prova porque do texto da decisão recorrida por si conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal recorrido. Conclusão esta que deixa transparecer, ainda que residualmente, uma certa dúvida sobre a real intenção do arguido ao transportar a referida arma no seu carro.
Houve, assim, violação do princípio in dubio pro reo que pode e deve ser tratado em sede de erro notório na apreciação da prova, art.º 410°, 2. c ), do C. P. Penal, por o colendo tribunal recorrido, na dúvida, ter decidido contra o arguido.”
Não colhe a argumentação pelo Arguido expendida.
Liminarmente dir-se-á que, por imposição do normativo do n.º 2 do cit. artº 410º, para que possam constituir fundamento de recurso, qualquer dos vícios a que aludem as diversas alíneas daquele n.º 2 tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que afasta, de todo em todo, a possibilidade de apelar a elementos exteriores ao texto da mesma decisão, como faz o Arguido, ao invocar o depoimento da testemunha Z.
Por outro lado, para ser relevante, o erro notório - que é um vício do raciocínio na apreciação da prova - tem de ser de tal modo evidente que salte aos olhos do comum dos observadores, da simples leitura da sentença sem necessidade de qualquer exercício mental,
Notório é o facto de que todos se apercebem directamente (uma guerra, um ciclone, um eclipse total, um terramoto, etc), ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (Ac. do STJ, de 6ABR94, CJ/STJ, t II-1994, pg. 185).
É óbvio que o facto em que o Arguido alicerça o erro notório não se enquadra no conceito de facto notório tal como acima foi recortado
Na verdade, não é normal achar armas de fogo e, por outro lado, o Arguido arranca do pressuposto, não demonstrado, de que “só os marginais e as pessoas que não têm possibilidades de adquirir uma arma de fogo é que recorrem às armas de fogo transformadas.” É que, ensina a experiência comum, nem “todos os marginais e pessoas que não têm possibilidades de adquirir uma arma de fogo recorrem às armas de fogo transformadas” e há não marginais e pessoas que têm possibilidade de adquirir armas de fogo que possuem armas de fogo transformadas, pelas mais diversas razões.
O princípio in dubio pro reo - que surge associado ao da presunção de inocência do arguido, constituindo ambos “a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena” [22] - impõe ao juiz que, na decisão de factos incertos, relevantes para a solução da causa, se pronuncie em sentido favorável ao arguido, bem como proíbe, em processo penal, a inversão do ónus da prova em detrimento do arguido.
A “dúvida razoável” subjacente ao princípio in dubio pro reo é, porém, aquela que persiste no espírito do juiz, que não na mente da recorrente ou de qualquer outro interveniente processual.
E, como se decidiu no Ac. do STJ, de 24MAR99 (CJ/STJ, t. I, p.247), “a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o Colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”, o que não é, manifestamente, o caso.
Enfim, a discordância com a decisão do tribunal recorrido no que respeita à forma como este teria apreciado a prova produzida em audiência de julgamento, não legitima a invocação do princípio in dubio pro reo.

II-i) Quanto ao destino da pistola aprendida, há que declará-la perdida a favor do Estado devendo ser entregue no Comando Distrital de Setúbal da PSP (artº 7º, n.º 1 do DL n.º 207-A/75, de 17ABR).

II-j) Por último, “pede o arguido que sejam atendidas as circunstâncias endógenas e exógenas que rodearam a prática dos factos que lhe são imputados, com vista à suspensão da pena que eventualmente lhe venha ser aplicada.”
Esta questão nem uma palavra, na especificação dos fundamentos do recurso, mereceu ao arguido. Daí que - sendo as conclusões da motivação do recurso a síntese das razões do pedido - não devesse ser considerada a questão da suspensão da execução da pena.
Não obstante, dir-se-á que carece de apoio a pretendida suspensão da execução da pena.
Com efeito, estatui o artº 50º do CP que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Por sua vez, o artº 40º, n.º1 do mesmo Cód. assinala às penas e medidas de segurança as seguintes finalidades: protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade.
Fixada em dois anos e quatro meses a pena de prisão imposta ao arguido (adianta-se, desde já que, pelas razões que então serão expostas, improcede o recurso pelo MP interposto, no que concerne à pretendida condenação do Arguido pelo crime de abuso de poder) é inquestionável que se verifica o pressuposto formal de que depende a pretendida suspensão da execução da pena: que a pena de prisão aplicada não seja superior a 3 anos.
As dúvidas só podem surgir ao nível do pressuposto material: que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão bastarão para assegurar, de forma adequada e suficiente, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
O Prof. Figueiredo Dias [23] propõe o seguinte critério geral de escolha e de substituição da pena: “o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, que não finalidades de compensação de culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação”.
Compreende-se que a culpa seja pura e simplesmente ignorada na questão da escolha da espécie e da substituição da pena, pois que exerce, em todo o processo de determinação da pena, o papel de limite inultrapassável da medida daquela, aqui se esgotando a sua função.
No que concerne às exigências de prevenção, na fase da escolha e da substituição da pena, há que dar prevalência a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva politico-criminal (e histórica), todo o movimento de luta contra a pena de prisão, sobretudo contra as curtas penas de prisão.
À prevenção geral como princípio integrante do critério geral de substituição da pena (e a suspensão da execução da pena é, segundo este Autor, uma pena de substituição em sentido próprio) assinala o Prof. Figueiredo Dias [24] o seguinte papel: “Desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”.
O prognóstico (favorável) que está na base da suspensão da execução da pena deve, pois, passar pela probabilidade de a suspensão se revelar adequada e suficiente à realização das finalidades da punição e, portanto, prevalentemente, da prevenção especial de socialização e, num segundo momento, da prevenção geral positiva, com exclusão de todas e quaisquer considerações de culpa.
Ora a suspensão da execução da pena não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Mais concretamente, a opção pela pena de prisão (efectiva) é reclamada pelas prementes necessidades de prevenção geral (positiva ou de integração), isto é, pelas muito sentidas necessidades de assegurar a protecção dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias.

III- Recurso interposto pelo MP
O MP circunscreve expressamente o seu recurso a duas questões: absolvição do Arguido quanto ao crime de abuso de poder que lhe era imputado na acusação e não aplicação da pena acessória de proibição do exercício de funções, prevista no art66º, n.º 1 do CP.
III-a) Entende o Douto Recorrente que o Arguido cometeu o crime de abuso de poder, p. e p. pelo artº 382º, consubstanciado na seguinte factualidade: “Na posse do arguido ou da mulher foram achadas senhas e cheques de combustíveis, sendo pelo menos:.10 cheques auto do "BPSM" no valor unitário de esc. 2.500$00; 6 cheques "GALP" no valor unitário de esc. 3.000$00; 15 cheques "GALP" no valor unitário de esc. 2.000$00. Todos esses cheques eram oriundos de empresas de construção civil ou de transporte, nomeadamente "Cimentrans" "Transportes Nobre", "Construtora do Lena", J. Marques Gomes Galo, Lda", Raporal - R. de Portugal, SA ", "Irmãos Cavaco", João Manuel Carvalho Dias, Lda.", "Transpataiense" e "Transalvisil".
Salvo o devido respeito, tal entendimento, aliás douto, não pode ser acolhido.
Com efeito, para o preenchimento do tipo legal de crime em causa exige-se: a) que o funcionário abuse de poderes ou viole deveres inerentes às suas funções; b) e actue com intenção de obter para si ou para terceiro, benefício - necessariamente - ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa; c) dolo específico. [25]
Da matéria factual imputada ao Arguido, na acusação, com interesse para esta questão, apurou-se, em substância, que na posse do arguido ou da mulher foram achadas senhas e cheques de combustíveis, oriundos de empresas de construção civil ou de transporte.
Apenas com base nestes factos - desconhecendo-se, pois, nomeadamente, se as senhas e os cheques estavam em poder do arguido ou da mulher; se, nesta última hipótese, o arguido tinha conhecimento de que a esposa tinha em seu poder tais senhas e cheques; em que circunstâncias as senhas e os cheques foram parar às mãos do arguido ou da sua esposa; se, injustificadamente, deixou de autuar as empresas de que provinham as senhas e cheques; se, enfim, na hipótese afirmativa, existe alguma relação entre a omissão da autuação e as senhas e os cheques - pretende o Exº Magistrado do MP junto da 1ª Instância que o Arguido seja condenado pela prática do aludido crime de abuso de poder.
Ora, para concluir pela verificação do crime em questão, o MP mais não faz do que, a partir daquela singela factualidade, presumir a violação de um dever funcional (“o dever de isenção”) e a intenção de causar prejuízo a outra pessoa, sendo certo que os elementos constitutivos do crime não se presumem; têm de provar-se.
Consabidamente, para a condenação não basta a mera suspeita ou a probabilidade da prática de um crime; exige-se a certeza.

III-b) Pugna igualmente o Douto Recorrente pela aplicação da pena acessória de proibição do exercício de funções, prevista no artº 66º, n.º 1 do CP.
Sem razão, porém.
Desde logo porque não se verifica o pressuposto formal de que depende a aplicação da pena acessória em questão: que o agente tenha sido condenado por crime concretamente punido com pena de prisão superior a três anos, não bastando, contrariamente ao que sustenta o Douto Recorrente, que este seja punível, em abstracto, com aquela pena.
Valem aqui inteiramente as considerações que o Prof. Figueiredo Dias [26] tece sobre a pena acessória de demissão da função pública, prevista na versão originária do artº 66º do CP: “Apesar de uma certa equivocidade da redacção do artº 66º, n.º 3, não parece poder ser outra a sua interpretação, quando se atenta em que aquele preceito modificou a expressão inequívoca («pena aplicável ao crime») que a propósito constava do artº 77º, §1º, do ProjPG de 1963. Ao que acresce que, tratando-se de um efeito da pena, que não do crime - o crime cometido pode ser, em princípio, Um qualquer e sob qualquer forma (tentativa, participação) -, torna-se compreensível que se confira papel decisivo à pena concretamente aplicada. Desta forma, aliás, se obtém mais uma limitação, politico-criminalmente desejável, do âmbito da pena de demissão”.
Assim, condenado o arguido na pena de dois anos de prisão pelo aludido crime de corrupção passiva, afastada está, liminarmente, a possibilidade legal de lhe ser aplicada a pena acessória de proibição do exercício de função, prevista no artº 66º do CP, na versão resultante da revisão operada pelo DL n.º 48/95, de 15MAR.

IV- Resta apreciar a questão, suscitada pelo MP na resposta ao recurso interposto pelo Arguido, aliás de conhecimento oficioso, de o Acórdão recorrido ter sido proferido contra a seguinte jurisprudência fixada pelo Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 1/2002, de 16OUT02, publicado in DR, I série-A, de 5NOV02 (sem que o tribunal a quo, acrescentamos nós, tenha fundamentado minimamente tal decisão ou sequer feito qualquer alusão a este acórdão): “Uma arma de fogo com 6,35 mm de calibre resultante de adaptação ou transformação, mesmo que clandestina, de uma arma de gás ou de alarme não constitui uma arma proibida, para efeito de poder considerar-se abrangida pela previsão do artº 275º, n.º 2 do Código Penal”.
Não se descortinam razões para divergir desta jurisprudência.
Entende-se, deste modo, que a conduta do Arguido, no concernente à posse da pistola que lhe foi apreendida, integra - não o crime p. e p. pelo artº 275º, n.º 3 do CP, pelo qual foi condenado - mas o crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artº 6º da Lei n.º22/97, de 27JUN (redacção originária) para o qual se comina em abstracto, a mesma pena que cabe ao crime p. e p. pelo cit artº 275º, n.º 3, mantendo-se, por isso, a pena concretamente aplicada pelo tribunal a quo.

V- Face ao exposto:
a) Nega-se provimento ao recurso interposto pelo MP;
b) Na parcial procedência do recurso interposto pelo Arguido declara-se perdida a favor do Estado a pistola aprendida;
c) Revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou o Arguido pela prática de um crime p. e p. pelo artº 275º, n.º 3 do CP, condenando-se o mesmo pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artº 6º da Lei n.º22/97, de 27JUN (versão originária), mantendo-se, porém, a pena concretamente aplicada no acórdão recorrido;
d) Confirma-se, em tudo o mais, o acórdão recorrido.

Custas pelo Arguido, fixando-se em 12 UCs a taxa de justiça

Évora, 1 de Julho de 2003

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Manuel Nabais
Sérgio Poças
Sousa Magalhães
Ferreira Neto




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[1] Cfr. Ac. n.º 680/94/TC, de 21DEZ94, in DR, II série, de 25FEV95 e bibliografia aí indicada.
[2] Exórdio do DL n.º 141/77, de 9ABR
[3] Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 3ª ed., 1993, p. 816.
[4] Ac. n.º 49/99/ TC, de 19JAN99, in DR, II Série, de 29MAR99.
[5] Silvino Villa Nova/Luciano Patrão/Cunha Lopes/Castel-Branco Ferreira, Código de Justiça Militar Actualizado e Anotado, Coimbra, p. 17
[6] Op. cit, p.14
[7] Publicado no Diário da República, II série, de 10ABR82.
[8] Publicado no DR, II série, de 20MAR87.
[9] Publicado no DR, I série-A, de 15MAI97.
[10] Publicado no DR ,II série, de 25FEV95.
[11] BMJ, 406-351.
[12] Cfr. A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, t. III, p. 661.
[13] Publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º Vol., pp. 407 e ss, cit. no Ac. n.º186/98/TC,de 18FEV98, publicado in DR, I Série-A, de 20MAR98.
[14] Publicado in DR, II Série, de 8SET88
[15] Cfr. Ac. do STJ, de 6NOV96, CJ/STJ, 1996, t. III, p. 190.
[16] No concernente à confissão do arguido dos factos que lhe são imputados, releva a fase processual e a forma da confissão para determinar os seus efeitos probatórios, muito embora seja sempre válido o princípio de que o valor probatório da confissão será sempre livremente apreciado pelo tribunal. É que, mesmo nos casos em que a lei atribui efeitos especiais à confissão integral e sem reservas, com a consequente dispensa de produção de outra prova, tal apenas sucede num momento posterior ao funcionamento do princípio da livre apreciação da confissão pelo tribunal para determinar se a mesma reveste ou não características de «confissão livre, integral e sem reservas», como diz o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, Pgs. 169/170).
[17] Direito Criminal, Colecção Studium, p. 132.
[18] O Regime das Provas Obtidas pelo Agente Provocador em Processo Penal, p.155-156.
[19] A consumação da corrupção “terá de coincidir com o momento da «solicitação» ou «aceitação» do suborno (ou da sua promessa) pelo empregado público. Consistindo o bem jurídico em causa na «autonomia intencional» do Estado, a sua violação ocorre logo que o funcionário emita uma declaração de vontade de que resulte a inequívoca intenção de mercadejar com o cargo, i. é, de «vender» o exercício de uma actividade (lícita ou ilícita, passada ou futura) compreendida nas suas atribuições ou, pelo menos, nos seus «poderes de facto» - António Manuel de Almeida Costa, Sobre o Crime de Corrupção ( Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra - «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia -1984), p. 95.
[20] Droga e Direito, p.278.
[21] Cfr. Ac. n.º 7/87 do TC, de 9JAN87, in BMJ, 363-110.
[22] J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 204.
[23] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 497
[24] Op. cit., § 501.
[25] Cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, t. III, p. 774, e Acs. do STJ, de 8ABR87, TJ, , n.º 29, p.28, e de 8ABR87, BMJ, 366-276
[26] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 208.