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ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
LEITURA PERMITIDA DE AUTO
Sumário
1. O que a lei pretende impedir ou evitar com o imperativo categórico do art. 356.º n.º7 do CPP, é que, tendo-se o arguido recusado, como é seu direito – art. 343.º n.º1 do CPPP – a prestar declarações, se defraudasse esse direito fazendo ouvir as pessoas que lhe tomaram declarações para elas contarem aquilo que o arguido narrou e se recusara em audiência a narrar de novo pessoalmente.
2. Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
CH. M.
Texto Integral
Processo nº 1405-03-1
Acordam, precedendo audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO
1. Decisão recorrida.
Nos autos de processo comum (colectivo) n.º ... do ... Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de ... o arguido, A. ..., com os sinais dos autos, foi submetido a julgamento, perante tribunal colectivo, acusado da prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível (p.p.) nos termos do disposto nos art.203.º n.º1 e 204.º n.º2, alin. e) do Código Penal, vindo a ser absolvido da prática desse crime, por acórdão de 11 de Dezembro de 2002.
2. Recurso.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso do referido acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. Extrai da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - A nossa discordância centra-se no facto do tribunal a quo não ter valorado o depoimento da testemunha ..., agente da P.S.P., invocando para o efeito o preceituado no art. 356.° n.º 7 do Código de Processo Penal, alegando na defesa de tal posição o facto da confissão do arguido perante tal testemunha, efectuada em conversa informal entre ambos, ter sido posteriormente exarada em auto de declarações (interrogatório) prestadas pelo arguido perante aquele agente e de não ser permitida a leitura de tais declarações na audiência de julgamento.
2.ª - Acontece que, salvo o devido e muito respeito, a interpretação do referido art.356.°, n.º 7 do Código de Processo Penal levada a efeito pelos M.mos Juízes a quo não se louva em qualquer bom princípio de hermenêutica jurídica.
3.ª - O facto de tal norma estar directamente relacionada com o disposto no art. ° 356.º, n.º 3, alin. b) e n.º 6 do Código de Processo Penal, no sentido de que as declarações do arguido anteriormente prestadas apenas podem ser lidas ou referidas quando existirem contradições ou discrepâncias com as que ele prestar em audiência, não impede que possa haver inquirição de órgãos de polícia criminal e, mais que isso, não implica que eles fiquem impedidos de depor sobre factos de que possuam conhecimento directo obtido por meios diferentes das declarações que receberam do arguido no decurso do processo, ainda que também possam ter ouvido declarações do arguido cuja leitura não seja permitida em julgamento.
4.ª - É esse, aliás, o entendimento maioritário da jurisprudência sobre a matéria em apreço ( vide, entre outros, Ac.S.T.J. de 13-05-1992 e 20-05-1992, CJ, III, pág., respectivamente, 19 e 32; Ac. S.T.J. de 24-02-1993, CJSTJ, I, pág. 202; Ac. S.T.J. de 29-03-1995, BMJ 445, pág. 279; Ac. S.T.J. de 30-10-1996, BMJ 460, pág. 425; Ac. S.T.J. de 11-12-1996, BMJ 462, pág. 299; Ac. S.T.J. de 22-01-1997, Proc. 1022/96; Ac. S.T.J. de 05-02-1998, CJSTJ, I, pág. 192; Ac. S.T.J. de 30-09-1998, BMJ 479, pág. 414; Ac. S.T.J. de 15-11-2000, CJSTJ, III, pág. 216).
5.ª - Desta forma, não estava o agente da P. S. P. ... impedido de ser ouvido sobre factos de que tivesse conhecimento directo obtido por meio diferente das declarações por ele recolhidas em auto no decurso do processo, como flúi da supra transcrita norma ao estipular que tais entidades não podem ser inquiridas como testemunhas apenas relativamente ao conteúdo das declarações cuja leitura não for permitida, sendo certo que por tal testemunha foi referido expressamente, como consta na motivação sobre a matéria de facto do douto acórdão recorrido, que o arguido lhe confessou ter-se apropriado da moto-serra, ou seja, o seu depoimento foi no sentido de confirmar o aditamento ao auto de notícia constante de fls. 11 dos autos.
6.ª - E o certo é que dos autos não resulta que o respectivo depoimento tivesse recaído sobre factos por ele conhecidos através de declarações do arguido ou que o arguido, na audiência de julgamento, tivesse posto em causa a legalidade daquele depoimento.
7.ª - Apenas na sequência de tal conversa informal, e precisamente por esse motivo, é que tal agente policial posteriormente procedeu formalmente em auto ao interrogatório do arguido acerca dos factos que lhe eram imputados.
8.ª - Todavia, em audiência de discussão e julgamento tal testemunha limitou-se, como consta na motivação sobre a matéria de facto do douto acórdão recorrido, a relatar os factos de que tinha conhecimento directo através de tal conversa informal com o arguido, que teve lugar em momento anterior ao interrogatório do mesmo nessa qualidade, e não sobre quaisquer declarações do arguido reduzidas a escrito, pelo que nada impedia que o tribunal a quo tivesse tomado em consideração e valorado o depoimento da testemunha em causa, por nenhuma violação legal ocorrer.
9.ª - Ao decidir como decidiu, violou o tribunal a quo o disposto no art. 356°, nº 7 Código de Processo Penal.
10.°- Acresce que se o tribunal valorar, ou deixar de valorar, a prova contra todos os ensinamentos da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou apesar de proibições legais, ou invocando critérios legais que no caso sejam inaplicáveis, incorre, inquestionavelmente, em erro na apreciação da prova.
11.ª - Ora, se esse erro for notório e resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, como é o caso da decisão ora recorrida, consubstanciará vício da matéria de facto que, podendo ser invocado como fundamento do recurso mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal ad quem à matéria de direito - art.410°, n.º 2, alin. c) do Código de Processo Penal.
12.ª - Face ao exposto, ao deixar de valorar prova alegando proibição legal da sua valoração, quando tal proibição, nos termos supra expostos, inexistia, tudo como inequivocamente resulta do próprio texto da decisão recorrida, o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, que determina a anulação do acórdão recorrido e reenvio do processo para novo julgamento, afim de ser proferida nova decisão em que seja tomado em consideração o depoimento da testemunha ...
3. Admitido o recurso, o arguido visado não respondeu.
4. Subidos os autos ao STJ, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que um dos fundamentos do recurso versava matéria de facto – erro notório na apreciação da prova – pelo que os autos deveriam ser remetidos a este Tribunal da Relação de Évora, o que o STJ veio decidir no seu aresto de 8 de Maio do ano em curso (v.fls.365 a 367.
5. Nesta instância a Ex.ma Procuradora -Geral Adjunta emitiu parecer a fls.372 a 376 no sentido de que o recurso deve ser provido, determinando-se a anulação do julgamento.
6. Objecto do recurso. Questões a decidir. Poderes de cognição do tribunal «ad quem».
Colhidos os vistos e realizada a audiência com o formalismo legal, cumpre decidir.
As principais questões a decidir são as seguintes:
1.ª – Se o tribunal “a quo” desrespeitou o comando ínsito no art.356.º n.º7 do CPP, ao não valorar o depoimento da testemunha ...;
2.ª - Se o acórdão recorrido enferma do vício de erro notório na apreciação da prova
No presente recurso, este Tribunal conhece apenas de direito, sem prejuízo do conhecimento do vício invocado, porquanto, apesar da audiência ter sido documentada, não foi efectuada a respectiva transcrição, nem o recorrente cumpriu satisfatoriamente o disposto no art. 412.º n.º 3 e 4, do CPP.
II. FUNDAMENTAÇÃO
7. Julgamento da matéria de facto, em 1.ª instância.
O Tribunal recorrido ajuizou a matéria de facto nos seguintes (transcritos) termos:
7.1. Factos julgados provados.
Em dia e hora não concretamente apurados do início de Março de 1997, indivíduo ou indivíduos não identificados, dirigiram-se a um barracão anexo à residência de ...
Tal barracão é fechado e situa-se num recinto cercado a toda a volta por rede, tendo colocado um portão normalmente fechado à chave.
Tal indivíduo ou indivíduos, tendo logrado introduzir-se no aludido barracão de forma não concretamente apurada, de lá retirou uma moto serra de marca “...”, no valor de 58.000$00 (cinquenta e oito mil escudos) que levou consigo.
Tal moto serra viria a entrar na posse do arguido A. ... de forma não concretamente apurada.
Este, uma vez na sua posse, dirigiu-se juntamente com outro indivíduo não identificado, a um estabelecimento de Restaurante denominado “...” em data situada próximo do dia 10 de Março de 1997, vindo a propor a sua venda a B. ..., que então explorava tal estabelecimento, pelo preço de 7.000$00 (sete mil escudos), negócio a que esta acedeu.
A moto serra em causa viria a ser apreendida à B. ... no dia 17 de Março de 1997 e entregue ao respectivo proprietário.
7.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não resultaram provados outros factos de entre os alegados na douta acusação e acima não descritos ou que com eles estejam em contradição.
Designadamente não resultou provado que o arguido A. ... tenha sido o indivíduo, ou um dos indivíduos, que se dirigiu ao barracão anexo à residência de ... e de lá retirou a moto serra que ele viria a vender a B. ...
7.3. JUSTIFICAÇÃO DA CONVICÇÃO
“A convicção do Tribunal em relação aos factos provados e não provados acima descritos fundou-se no conjunto da prova produzida em audiência. O arguido não prestou inicialmente declarações na audiência de julgamento, vindo depois a negar a prática dos factos. O agente da Polícia de Segurança Pública ... esclareceu o Tribunal acerca das diligências por si efectuadas, nomeadamente junto do arguido A. ... e que culminaram na apreensão do objecto furtado, sua recuperação e entrega ao respectivo proprietário. O mencionado agente referiu efectivamente ao Tribunal que o arguido lhe confessou ter-se apropriado da moto - serra, não se tendo ele deslocado ao local a constatar as circunstâncias em que o crime teria sido cometido. Acontece, porém, que o Tribunal não pode valorar tal depoimento face ao preceituado no artigo 356º n.º 7 do Código de Processo Penal, atenta a circunstância de tal confissão ter sido exarada em auto de declarações (interrogatório) prestadas pelo arguido perante aquele agente e de não ser permitida a leitura de tais declarações na audiência de julgamento (cfr. artigo 356º n.º 1 b). A testemunha ..., apesar de algumas hesitações e dúvidas quanto ao conhecimento pessoal que tinha acerca da pessoa do arguido e que ressaltaram das declarações lidas na audiência de julgamento, acabou por convencer o Tribunal que foi o arguido ... quem lhe propôs a venda do moto serra, nada sabendo esclarecer acerca da sua real proveniência e do modo como tal objecto entrou na posse do arguido.
O Tribunal considerou ainda o teor do auto de apreensão, exame e entrega de fls. 4 a 6 dos autos”.
8. Questões a examinar. Apreciação.
Vejamos as questões suscitadas pelo recorrente, sobre alinhadas.
8.1. Desrespeito do disposto no art. 356.º n.º7 do CPP.
O recorrente assenta o seu desacordo na circunstância de o acórdão recorrido não ter valorado o depoimento da testemunha ..., alegando proibição legal da sua valoração, quando tal proibição não ocorre.
Determina o art.356.º n.º7 do CPP que “os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas”.
Deste preceito decorre que não é permitida a reprodução do conteúdo das declarações cuja leitura não é autorizada, com o recurso a quem as tiver recolhido. E tem sido objecto de interpretações várias, no concernente ao âmbito do depoimento em audiência dos órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não seja permitida, bem como de quaisquer outras pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha.
No acórdão do STJ de 29 de Janeiro de 1992, publicado na CJ, ano XVII, tomo 1.º, pag. 20, foi decidido que: “As declarações, escritas ou não, prestadas por uma pessoa, informalmente, antes da sua constituição formal como arguida num processo que contra ela já está a correr, obrigam à sua imediata constituição como arguida, sob pena de nulidade da utilização da prova resultante de tais declarações e da impossibilidade de tal prova ser utilizada contra ela”.
No acórdão do STJ de 13.5.92, publicado na CJ, ano XVII, tomo 3.º pag. 13 foi decidido que : “o agente policial não está impedido de depor sobre factos de que possua conhecimento directo obtido por meios diferentes das declarações que recebeu do arguido no decurso do processo, mesmo nos casos do art. 356.º n.º7 do CPP, ou seja, ainda que tenha obtido declarações do arguido cuja leitura não seja permitida em julgamento”;
No acórdão do STJ de 27.04.94, in Proc. n.º 43.145, decidiu-se que: “ Desde que o arguido, no início do julgamento, tenha feito a declaração de que não pretende prestar declarações, já não pode ser admitido o depoimento de testemunha acerca daquilo que terá ouvido o arguido dizer. …. Porém, mesmo o órgão de polícia que tenha ouvido o arguido em auto pode depor sobre factos de que tiver conhecimento directo por meios diferentes das declarações do arguido no decurso do processo”.
No acórdão do STJ de 29.03.95, proferida no proc. n.º 46.393, foi decidido que: “Os órgãos de polícia criminal estão proibidos de serem inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo de declarações que tenham recebido e cuja leitura não seja permitida e não de o serem sobre o relato de conversas informais que tenham tido com os arguidos, salvo se se provar que o agente investigador escolheu deliberadamente este meio de conversas informais para evitar a proibição da leitura das declarações do arguido em audiência”.
No acórdão do STJ de 22 de Janeiro de 1997, proferido no proc.1022/96, foi decidido que: “nada impede que os órgãos de polícia criminal possam depor como testemunhas sobre factos de que tenham conhecimento directo adquirido por outras vias, que não as resultantes das declarações por si recebidas em inquérito”.
No acórdão do STJ de 22 de Maio de 1997, proferido no processo n.º 152/97, foi decidido que: “O agente policial não está impedido de depor sobre factos de que tenha conhecimento directo obtido por meios diferentes das declarações do arguido no decurso do processo, ainda que as tenha ouvido e que elas não possam ser lidas em audiência”.
No acórdão do STJ de 11 de Julho de 2001, in CJSTJ, ano IX, tomo 3, pag.166, foi decidido que: “Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas”. [1]
… Esta constatação vale, mesmo, para as chamadas “conversas informais”, pois não há conversas informais com validade probatória à margem do processo, sejam quais forem os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados”.
Neste último aresto, relatado pelo Ex.mo Juiz – Conselheiro, Dr.Lourenço Martins, foi referido ainda o seguinte: “Na jurisprudência compilada por Maia Gonçalves e Leal Henriques/Simas Santos colhe-se a indicação de que não há impedimento de audição dos agentes dos Órgãos de Polícia Criminal (doravante designados pela sigla OPC) se a prova tiver sido colhida por meios diferentes das declarações do arguido.
"Dessa audição - diremos - só está excluído o conteúdo das declarações prestadas pelo arguido perante o agente do OPC, ou seu auxiliar material, por ex. aquele que as escreve, dactilografa ou grava ou o que, por hipótese, auxilia no interrogatório, ou ainda porventura algum particular que excepcionalmente tiver participado. O que constitui, aliás, algo de muito próximo da letra do preceito do n.º 7 do artigo 356º mencionado, aplicável às declarações do arguido por força do n.º 2 do artigo 357º, ambos do C.P. Penal: ter recebido declarações ou ter participado na sua recolha significa ficar impedido de depor sobre o conteúdo de tais declarações.
E logo adiante, agora mais próximo do nosso tema, dizia-se no mesmo aresto: “É permitida a narração de diligências em que cada um dos agentes do OPC interveio: buscas, apreensões, escutas telefónicas ordenadas judicialmente. Os agentes dos OPC podem depor sobre factos de que tomem conhecimento por outras vias (que não as declarações do arguido): no caso, o agente OPC havia assinado um aditamento ao auto de notícia, o auto de reconhecimento, o auto de apreensão e o termo de entrega.
Para a hipótese o arguido ter decidido prestar declarações em julgamento, designadamente, se antes admitiu a prática dos factos e agora a nega, também podem ser ouvidos os agentes de OPC, sempre que a leitura das declarações prestadas seja efectuada, quer porque o arguido a solicita, e seja qual for a entidade perante a qual foram prestadas, quer porque tendo sido feitas perante o juiz houve contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas sem tal leitura – alin b) do n.º1 do art.357.º. Mas se o arguido se remete ao silêncio na audiência de julgamento, já não poderão depor as pessoas que recolheram ou auxiliaram na recolha das suas declarações – v. g., acórdãos do STJ de 26.6.91, in CJ, XVI, tomo 3, pag.34; de 7.10.93, in Proc.n.º 43.825; de 14.5.97, in Proc. 1478/96.
Aqui não se poderá falar em contradição ou discrepância com as anteriores declarações: o silêncio não pode ter esse significado, pois, em direito, como princípio, o silêncio não tem o valor de sim (quem cala consente), de não ou talvez, é mesmo a ausência de declaração, o que não pode ser considerado contraditório ou discrepante da prestação anterior de declarações, num ou noutro sentido. O oposto do silêncio consiste em falar ou expressar-se de modo inteligível.
Este tipo de depoimento dos agentes dos OPC aparece ainda, na jurisprudência, ligado ao testemunho de ouvir dizer, posto que haja dúvidas sobre tal catalogação quando ligada à reprodução de conversas recolhidas sem o estatuto formal de arguido [2] .
Mais agitada tem sido a discussão sobre a valia de "conversas informais" havidas por parte dos agentes dos OPC com o suspeito ou alguém em vias de ser arguido, ou mesmo já depois de assim constituído, fora portanto da elaboração de autos de inquérito, em conexão ou não com o "denominado" testemunho de ouvir dizer.
E tem havido posições divergentes.
Porque se trata de conversas informais - diz-se em defesa da sua admissão - não há que falar em "declarações cuja leitura é proibida", logo os agentes (OPC, entenda-se) podem ser ouvidos. Ressalvando-se, porém, se houver prova de que os agentes procuraram aquele meio para fugir à proibição da leitura em julgamento.
E acrescenta-se: os arguidos estiveram presentes na audiência e tiveram oportunidade de tomar posição perante os depoimentos prestados pelos agentes podendo minar a sua credibilidade, aliás, já de si reduzida [3] . E isto será assim ainda que tivessem optado pelo direito ao silêncio. (...).
Mas em contrário da tese daquele aresto, reafirmou-se recentemente no Ac. do STJ de 7.02.01, in Proc. 4/00-2, na sequência de anterior jurisprudência,que não podem ser tidas em conta conversas informais do arguido com agentes da PJ. Tais conversas informais, a propósito de factos em averiguação, estão sujeitas ao princípio da legalidade, ínsito no artigo 2º do C P Penal, proveniente do artigo 29º da CRP (nulla poena sine judicio), só em processo penal podendo ser aplicada uma pena ou medida de segurança.
O processo, organizado na dependência do M.º P.º, tem de obedecer aos ditames dos artigos 262º e 267º. Por isso as ditas "conversas informais" só podem ter valor probatório se "transpostas para o processo em forma de auto e com respeito pelas regras legais de recolha de prova". E mais adiante: "...não há conversas informais, com validade probatória, à margem do processo, sejam quais forem as formas que assumam desde que não tenham assumido os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados..." (as diligências são reduzidas a auto - artigo 275º, 1, do C.P. Penal).
Haveria fraude à lei se se permitisse o uso de conversas informais não documentadas e fora de qualquer controlo.
Claro que as “conversas informais”, uma vez transpostas para o processo, deixarão de ser… informais.”
Foi esta última a posição seguida nesse acórdão e também no Acórdão. do STJ de 7 de Maio de 2002, a que já aludimos em nota de rodapé.
Também o Prof. Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, vol.II, pag.140, sustenta que as declarações de uma pessoa prestadas a um órgão de polícia criminal antes da sua constituição formal como arguido, mas quando já o deveria ter sido, não podem ser utilizadas no processo e por isso também que o órgão de polícia criminal não possa ser admitido a depor sobre o conteúdo dessas declarações.
No caso sub iudice o arguido A. ... usou do direito de não prestar declarações no início da audiência de julgamento, mas fê-lo, após a prolação das alegações orais, resultando do douto acórdão que terá negado a prática dos factos.
Resulta do douto acórdão recorrido que o agente da PSP ..., cujo depoimento o tribunal recorrido não valorou, esclareceu o Tribunal acerca das diligências por si efectuadas, nomeadamente junto do arguido A. ... e que culminaram na apreensão do objecto furtado, sua recuperação e entrega ao respectivo proprietário, tendo o mencionado agente referido ao tribunal que o arguido lhe confessou ter-se apropriado da moto-serra, tendo essa confissão sido exarada em auto de declarações prestadas pelo arguido perante tal agente.
Emerge da fundamentação do recurso que o arguido, antes de ter sido constituído como tal, e na sequência de diligências investigatórias, foi abordado pelo agente da PSP ..., e confrontado com os factos em causa, terá confessado a este a subtracção do bem, que veio a ser recuperado.
Esse agente ouviu o arguido em declarações, como resulta do auto de interrogatório de fls.7, datado de 14 de Março de 1997, e, em 17 de Março de 1997, elaborou novo aditamento ao auto de denúncia dando conta que, pelas 11,30 horas, do dia 14 de Março de 1997, na Rua ..., na cidade de ..., localizou o arguido ... (que havia sido apontado como suspeito pelo denunciante), e conduziu-o à secção de investigação, onde após ter sido confrontado com os factos e lhe ter sido perguntado se fora o autor dos mesmos, este de livre e espontânea vontade e fora de qualquer medida de coacção, confirmou ter sido ele de facto quem subtraiu a referida moto-serra de uns anexos da residência do denunciante, tendo ainda esclarecido que a mesma foi vendida por si e por indicação de ...num café desta cidade denominado “...”, sito no ..., de que é responsável e proprietária ...
Como se referiu supra, o arguido na audiência de julgamento optou por não prestar declarações iniciais, mas veio a prestar declarações, antes do encerramento da discussão, após as alegações orais, resultando da sentença que terá negado os factos.
Será que deverá valorar-se o depoimento da testemunha ..., em contrário da decisão do colectivo?
Afigura-se-nos que não.
Com efeito, resulta patente que foi através do interrogatório do arguido sobre quem já recaíam suspeitas da prática do crime, que a testemunha ..., agente da PSP, encetou as diligências tendentes à recuperação do bem e identificação dos demais intervenientes.
Assim, não poderia valorar-se o depoimento do agente da PSP ... em tudo o que respeita à alegada confissão do arguido A. ... perante aquele. A testemunha só poderia depor validamente sobre as diligências por si realizadas com vista à investigação do crime, mas não sobre o que o arguido lhe disse e confessou.
Como se escreveu no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 2001, supra citado, “ se o resultado a que se chegou pode dizer-se de algum modo em contrapé com o interesse público na perseguição dos criminosos, da segurança dos cidadãos e das garantias que devem provir de um Estado de direito, bem como da confiança nas instituições, não é menos verdade que cabe aos tribunais agir com total independência na interpretação da lei no caso concreto, sendo que o fim do processo, como tem sido sublinhado com insistência, não é apenas o da descoberta da verdade a todo o transe, mas a descoberta usando regras processualmente admissíveis e legítimas”.
O que a lei pretende impedir ou evitar com o imperativo categórico do art. 356.º n.º7 do CPP, é que, tendo-se o arguido recusado, como é seu direito – art. 343.º n.º1 do CPPP – a prestar declarações, se defraudasse esse direito fazendo ouvir as pessoas que lhe tomaram declarações para elas contarem aquilo que o arguido narrou e se recusara em audiência a narrar de novo pessoalmente.
Se a lei proíbe tal prova, ela não é admissível nos termos do disposto no art.125.º do CPP.
Assim, apesar de não ter sido invocada pelo arguido em audiência a irregularidade da inquirição da testemunha sobre a matéria incidente sobre as declarações por ele prestadas em fase de inquérito, não estava vedado ao tribunal conhecer da mesma, nos termos do art. 123.º n.º2 do CPP.
Assim, não merece censura a decisão recorrida que desconsiderou o depoimento da testemunha ... na parte respeitante à confissão dos factos pelo arguido no decurso do inquérito.
8.2 – Do erro notório na apreciação da prova.
Sustentou ainda o Ministério Público que o acórdão recorrido enferma do vício em epígrafe, tendo alegado para o efeito que o tribunal ao deixar de valorar a prova alegando proibição legal da sua valoração, quando tal proibição inexistia, incorreu em erro notório na apreciação da prova, que determina a anulação do acórdão e reenvio do processo para novo julgamento, a fim de ser proferida nova decisão em que seja tomado em consideração o depoimento da testemunha ....
A propósito deste vício da decisão, é referido por Leal Henriques e Simas Santos, in Código de Processo Penal Anotado, II Volume, pag.740 e 741, o seguinte:
“ …temos o erro notório na apreciação da prova a que alude aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador se apercebe com facilidade, que é patente.
Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro.
Da leitura da fundamentação não resulta que o Tribunal tenha deixado de valorar totalmente o depoimento da testemunha. Com efeito, decorre da fundamentação que:
“ A convicção do Tribunal em relação aos factos provados e não provados acima descritos fundou-se no conjunto da prova produzida em audiência.
O arguido não prestou inicialmente declarações na audiência de julgamento, vindo depois a negar a prática dos factos.
O agente da Polícia de Segurança Pública ... esclareceu o Tribunal acerca das diligências por si efectuadas, nomeadamente junto do arguido A. ... e que culminaram na apreensão do objecto furtado, sua recuperação e entrega ao respectivo proprietário.
O mencionado agente referiu efectivamente ao Tribunal que o arguido lhe confessou ter-se apropriado da moto-serra, não se tendo ele deslocado ao local a constatar as circunstâncias em que o crime teria sido cometido.
Acontece, porém, que o Tribunal não pode valorar tal depoimento face ao preceituado no artigo 356º n.º 7 do Código de Processo Penal, atenta a circunstância de tal confissão ter sido exarada em auto de declarações (interrogatório) prestadas pelo arguido perante aquele agente e de não ser permitida a leitura de tais declarações na audiência de julgamento (cfr. artigo 356º n.º 1 b).
De uma leitura global do exarado quanto aos meios de prova e justificação da convicção do tribunal colectivo parece resultar que só não foi valorado o depoimento do agente da PSP no que tange à alegada confissão de apropriação da moto-serra.
E não podendo ser valorado o essencial do que a testemunha disse, nada resta para fundar a convicção do tribunal a quo no tocante à identidade do autor da subtracção do bem, pelo que outra saída não restava que ter os factos relativos à subtracção e apropriação do bem como não fundamentados.
Não se verifica, pois, o alegado vício “erro notório na apreciação da prova”, pelo que o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura.
Improcedendo as conclusões apresentadas pelo recorrente e delimitando as mesmas a matéria sobre que se deve debruçar a Relação, é de julgar o recurso não provido.
III. DISPOSITIVO
9. Decisão.
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes que constituem esta secção criminal, em negar provimento ao recurso, confirmando-se in integrum o douto acórdão recorrido.
Sem tributação (art. 522.º do CPP).
Pagar-se-á ao Ex.mo defensor oficioso do arguido pelo Cofre Geral dos Tribunais os honorários previstos na tabela anexa à Portaria n.º 150-C/2002, de 19 de Fevereiro.
(Processado em computador pelo relator, que assina e rubrica as restantes folhas).
Évora, 2003.12.02
F.Ribeiro Cardoso Onélia Madaleno Gilberto Cunha
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[1] -No mesmo sentido vai o Ac.STJ de 9 de Maio de 2002, proferido no proc.2804/02, in www.dgsi.pt/jstj, relatado pelo Ex.mo Juiz Conselheiro, Dr. Pereira Madeira. [2] A dúvida é pertinentemente aflorada no ac. de 29.3.95, in BMJ n.º 445, pag.279. [3] Ac. de 29.3.95, já citado e Ac. do STJ de 13.5.99, in Proc.n.º 201/99;