CONTRA-ORDENAÇÃO
COIMA
PAGAMENTO VOLUNTÁRIO
EFEITOS
Sumário

Do acórdão
I – O pagamento voluntário da coima nos termos do artº 172º e ss. do Código da Estrada consente que na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de condu­zir se discuta a existência da infracção.
Do Voto de Vencido
II – Ao efectuar o pagamento, o arguido admite a prática dos factos e o seu desvalor, não sendo necessário o apelo a qualquer presunção; substancialmente, a situação equipara-se ao regime da confissão integral e sem reservas prevista no art. 344 do CPP.
III – Como contrapartida, a lei concede que o pagamento seja feito pelo mínimo legalmente previsto, eximindo-se à possibilidade de vir a ser fixada uma coima concreta mais elevada.
IV – Apenas haverá violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa quando não forem comunicados arguidos os efeitos essenciais do pagamento; não estando em causa direitos essenciais indisponíveis (são distintas a intensidade e a ressonância ética do desvalor das condutas sancionadas pelo direito contra-ordenacional, quando comparadas com as sancionadas pelo direito penal), nada obsta a que o arguido renuncie à «tutela jurisdicional efectiva» do seu direito (art. 268 nº 4 da CRP), se a sua vontade tiver sido formada de modo esclarecido.

Texto Integral

Após conferência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

TRIBUNAL RECORRIDO
Tribunal Judicial de Braga – 1º Juízo Criminal – Pº nº 6.038/07.0TBBRG

ARGUIDO/RECORRENTE
Manuel

RECORRIDO
O Ministério Público

OBJECTO DO RECURSO
No processo de impugnação judicial de contra-ordenação imposta pelo Exmº Senhor Governador Civil de Braga, foi proferida sentença que, julgando improcedente a impugnação, manteve a condenação do arguido como autor de uma contra-ordenação, p. e p. pelos artºs. 21º, nº 1 e 23º, al. a) do Decreto-Regulamentar 22-A/98 de 1-10 e 138º e 146º, al. n) do Código da Estrada, no que respeita à sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de 30 dias.
O arguido interpôs recurso desta sentença, suscitando-se a questão nuclear de se saber quais os efeitos do pagamento voluntário nas contra-ordenações estradais, defendendo o recorrente que, apesar de ter feito o pagamento, pode discutir a prática da infracção.
Acrescenta que, não tendo a decisão recorrida conhecido dos factos alegados no sentido de que não praticou a contra-ordenação, a mesma enferma da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. c) do CPP.
Invoca a violação das normas dos artºs. 18º, nº 2 e 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

*
Entretanto, o arguido havia interposto recurso intercalar da decisão que no início da audiência de julgamento indeferiu a produção da prova por si arrolada.
Invoca neste recurso que tal decisão, além de importar nulidade insanável, viola os seus direitos de audiência e defesa – cf. artºs. 50º, 64º, nº 2 e 65º do RGCO e 32º da Constituição da República Portuguesa.

MOTIVAÇÃO/CONCLUSÕES
São as seguintes as conclusões do recurso intercalar:
1 - A oposição manifestada pelo recorrente à decisão do recurso por simples despacho decorre do seu direito de audiência e de defesa, consagrado nos artigos 50º, 64º, nº 2 e 65º do RGCO e artigo 32º da C.R.P.
2 – Tendo a Meritíssima Juiz a quo decidido liminarmente, logo no início da audiência de julgamento sem conceder às partes (Ministério Público e recorrente) a possibilidade de debate dos factos e/ou do direito - a questão da admissibilidade do recurso, deu por cumprida a formalidade imposta pelo artigo 64º, nº 2, mas esvaziou de conteúdo e sentido a audiência de julgamento, incorrendo em flagrante violação daqueles direitos.
3 – Semelhante violação acarreta uma nulidade insanável, motivo pelo qual deve anular-se o despacho recorrido, ordenando-se em sua substituição, a realização da audiência de julgamento, com produção de toda a prova requerida e discussão jurídica dos factos alegados.
4 – O despacho recorrido violou, entre outras, as disposições legais dos artigos 50º, 64º e 65º do RGCO e artigo 32º da C.R.P.

No recurso final, o recorrente conclui assim:
1 – Ao omitir pronúncia sobe os factos concretos alegados pelo recorrente nos artigos 5º a 9º do recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, a sentença recorrida enferma da nulidade prevista nº artº 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal.
2 – Subjaz a essa omissão de pronúncia uma presunção judicial “juris et de jure””, consubstanciada no entendimento de que o pagamento voluntário da coima, atento o disposto no artº 172º, nº 5 do C.E., impede o infractor de, posteriormente, discutir a prática da contra-ordenação.
3 – Essa interpretação do artigo 172º, nº 5 do C.E. é manifestamente inconstitucional, dado violar o direito de defesa consagrado nos artigos 18º, nº 2 e 32º, nº 2 da C.R.P.
4 – Diversamente, a presunção judicial estabelecida no artº 175º, nº 4 do C.E., contrariamente à interpretação do Tribunal recorrido, é uma presunção elidível, conferindo ao infractor o direito de impugnar a contra-ordenação sem quaisquer restrições, mesmo tendo pago voluntariamente a coima.
5 – A decisão recorrida viola, entre outras, as disposições legais dos artigos 64º e 65º do RGCO, os artºs 172º e 175º do C.E. e os artºs 18º e 32º da C.R.P.

RESPOSTA
O Ministério, na 1ª instância, defende o julgado, dizendo que no âmbito dos processos da natureza do dos autos ao arguido é garantida, apenas, a necessária audição e possibilidade de defesa.

PARECER
Nesta instância, o Ilustre PGA também é de parecer de que o recurso não merece provimento, invocando diversa jurisprudência nesse sentido.

PODERES DE COGNIÇÃO
O objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação – artº 412º do C.P.Penal, sem prejuízo do conhecimento oficioso nos termos do artº 410º, nº 2 do mesmo Código, do qual serão as citações sem referência expressa.

FUNDAMENTAÇÃO
A decisão intercalar é do seguinte teor:
Conforme resulta dos autos, o recorrente efectuou o pagamento voluntário da coima, pelo que, face ao disposto no artº 172º, nº 5 do Código da Estrada, não pode ser posta em causa a prática da contra-ordenação, podendo tão só ser discutida a possibilidade de suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir.
Assim sendo, e tendo o arguido praticado uma contra-ordenação muito grave, não é admissível a suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir, nos termos do artº 141º, nºs 1, 2 e 3 do Código da Estrada.
Acresce ter sido aplicada ao arguido o período de 30 dias, resultante da atenuação especial, pelo que não pode o Tribunal fixar período inferior ao que foi fixado ao arguido por decisão administrativa.
Pelo exposto, as questões suscitadas resumem-se a questões jurídicas a serem discutidas na sentença.
Finalmente, face ao exposto, afiguram-se-nos as diligências requeridas nos autos inúteis porque insusceptíveis de alterar a decisão administrativa, na parte em que o pretendiam e, consequentemente, indeferem-se tais diligências.

Por seu lado, na sentença, além de se julgarem improcedentes as nulidades arguidas, reitera-se que, tendo sido aplicada sanção pelo mínimo possível, nada havia a determinar.
+++
Como se vê das decisões recorridas e das respectivas conclusões, a questão, toda ela, resume-se à discutida questão dos efeitos do pagamento voluntário das coimas por infracções estradais, no que respeita ao âmbito da defesa sobre a sanção acessória de inibição de conduzir, pois é certo que as invocadas nulidades têm como pressuposta a posição assumida nas decisões e, por isso, nem devem ser conhecidas.
Com efeito, ao conhecer sem audiência de discussão (audiência, afinal, houve) e, por consequência, ao não admitir as provas nem conhecer dos factos alegados, a Mmª Juíza mais não fez do que invocar o seu entendimento sobre a questão controvertida, de acordo com o qual, de facto, e atendendo a que já tinha sido aplicada sanção pelo mínimo possível, era inútil a realização da discussão da causa.
Sobre a questão em apreço, o ora relator vinha a entender (cf. Pº nº 1.159/07) que apesar do pagamento ocorrer voluntariamente, se podia discutir a existência da contra-ordenação quando for aplicada uma sanção acessória, atento o disposto no nº 4 do art.°175° do C. Estrada, que estabelece que o pagamento voluntário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.
Argumentava que o pagamento voluntário determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que, mantendo-se o “arquivamento” quanto à coima, o processo prossegue restrito à aplicação da sanção acessória - artº 172º, nº 5 do Código da Estrada, ou seja, por outras palavras, o pagamento voluntário não fazia nascer qualquer presunção de comissão indiscutível da materialidade da infracção, mas antes, deixando tal questão arrumada sobre a coima, permitia discutir a infracção no que toca à gravidade da mesma, e quanto à sanção de inibição de conduzir, em toda a sua extensão, incluindo sobre a existência ou não da infracção.
Salientava, até, que no momento do pagamento (ou depósito) da coima, ainda nem sequer existe processo ou procedimento contra-ordenacional, pelo que aquele acto não podia ter reflexos na posterior instauração de processo para aplicação da medida acessória.
Mais dizia que o pagamento (ou depósito) nas situações em que à infracção é também aplicável sanção acessória, mais não é do que, por um lado, um modo de o Estado arrecadar imediatamente a respectiva receita e, por outro, o aproveitamento por parte do indiciado infractor do mínimo da coima aplicável, confiante que está em que lhe é lícito discutir a alegada infracção para efeitos de sanção acessória.
Que isto é assim no caso de depósito do montante (mínimo) da coima, parece que não suscitará dúvidas a ninguém e, se em caso de depósito não há “confissão” dos factos, não fazia sentido que tal se considerasse no caso de pagamento imediato, que ocorre, como vimos, no interesse do Estado e do próprio (ainda só) autuado.
Aliás, se não fosse possível discutir-se a existência da infracção, estaríamos em face de norma violadora do n.° 1 do artº 32° da CRP e, por isso, inconstitucional já que se estariam a restringir direitos fundamentais.
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Porém, no Pº nº 1996/07, veio o signatário a reduzir aquele entendimento, considerando que as alternativas, a do pagamento imediato ou a do depósito de garantia, são livremente eleitas e aceites pelos condutores, aduzindo então o seguinte:
«Com exclusão dos sublinhados, diz-se no artº 173º do Código da Estrada:
Garantia de cumprimento
1 - O pagamento voluntário da coima deve ser efectuado no acto da verificação da contra-ordenação.
2 - Se o infractor não pretender efectuar o pagamento voluntário imediato da coima, deve prestar depósito, também imediatamente, de valor igual ao mínimo da coima prevista para a contra-ordenação praticada.
3 - O depósito referido no número anterior destina-se a garantir o cumprimento da coima em que o infractor possa vir a ser condenado, sendo devolvido se não houver lugar a condenação.
A melhor leitura destes preceitos parece sugerir, de facto, que os autuados são livres de escolher uma das modalidades previstas e de que, aliás, o modelo de auto (cf. fls. 5 vº) dá esclarecimento bastante (ainda que não totalmente claro), não valendo a invocação da falta de comunicação ou o desconhecimento da lei.
Quanto às consequências da prossecução do processo é que, parece-nos, importa esclarecê-las, o que só pode ser feito através da interpretação das regras sobre o pagamento voluntário, em especial do disposto no nº 4 do artº 175º, que diz o seguinte:
O pagamento voluntário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.
Há que se notar que, para os casos em que o autuado não é de imediato identificado e notificado, vale o disposto no artº 172.º, que estipula assim:
Cumprimento voluntário
1 - É admitido o pagamento voluntário da coima, pelo mínimo, nos termos e com os efeitos estabelecidos nos números seguintes.
2 - A opção de pagamento pelo mínimo e sem acréscimo de custas deve verificar-se no prazo de 15 dias úteis a contar da notificação para o efeito.
(…)
4 - Em qualquer altura do processo, mas sempre antes da decisão, pode ainda o arguido optar pelo pagamento voluntário da coima, a qual, neste caso, é liquidada pelo mínimo, sem prejuízo das custas que forem devidas.
5 - O pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma.
Segue-se, então, que temos na lei dois regimes diferentes para duas idênticas situações: numa, o autuado não foi identificado e, por isso, não pode escolher pagar ou fazer depósito, instaurando-se o respectivo processo e dando-se-lhe apenas a faculdade de pagamento voluntário posterior, com possibilidade de discussão restrita à aplicação da sanção acessória; na outra, o autuado está presente e, por isso, pode escolher pagar ou fazer depósito, subordinando-se então à possibilidade de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.
Como parece fácil de intuir, os dois regimes, afinal, para idênticas situações, e com as mesmas finalidades, são incongruentes, a não ser que se entendesse que em ambos era possível vir a discutir-se a materialidade da infracção com toda a amplitude, o que parece ser expressamente contrário à letra da lei, pois em ambos os regimes se põem restrições ao âmbito da acção processual após o pagamento.
Vejamos em pormenor.
No caso artº 172º, o condutor não é posteriormente à infracção notificado para, querendo, efectuar depósito porque só paga se quiser e, se não o fizer, pode impugnar tanto a coima como a sanção.
Se pagar, parece que não pode discutir a essência da infracção, pois se diz que o processo prossegue restrito (isto é, limitado) à aplicação da mesma, ou seja, deve entender-se que, ao pagar de livre vontade, irá apenas discutir o âmbito da sanção acessória, isto é, a sua duração e condições (suspensa ou não).
Neste caso, tudo indica que o autuado se conforma com a natureza da infracção, grave ou muito grave (o legislador, que é o mesmo do artº 175º, estranhamente, não incluiu aqui a faculdade de discussão da gravidade), incluindo com as consequências disso no seu registo de condutor e, assim sendo, também não poderá reaver qualquer quantia ou diferencial do que tiver pago.
No caso do artº 175º, se, como se disse, o autuado escolheu uma das modalidades ao seu alcance e elegeu a do pagamento, então apenas poderá apresentar a sua defesa, restrita (isto é, limitada) à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.
Quer dizer, neste caso, e tendo pago por querer, tal como no caso anterior, não podendo também reaver qualquer quantia ou diferencial, pode discutir duas coisas: a gravidade da infracção e a sanção acessória aplicável, como resulta da copulativa sublinhada.
Deste modo, à identidade de situações (aceita-se a diferença da existência das duas alternativas no caso do artº 175º porque, estando presente, o autuado ou paga ou garante) corresponde a incongruência de, tendo havido pagamento em qualquer dos casos, apenas no caso do artº 175º se poder ver reduzida uma infracção muito grave para grave (ou, pelos vistos, até para leve), com a consequência de relevo que é o registo do condutor.
Apesar desta incongruência, esta leitura leva-nos a alterar a posição que vínhamos a assumir, aceitando que a intervenção posterior ao pagamento da coima é a que resulta do acima exposto para cada uma das situações analisadas».
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Agora, foi publicado o acórdão nº 45/08 (Pº nº 676/07) do Tribunal Constitucional, proferido sobre decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que declarou inaplicável o contido no artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, na versão que actualmente lhe confere o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Feve­reiro, sustentando a inconstitucionalidade especificamente incidente sobre o segmento da redacção que constitui o último parágrafo da mencionada norma estradal por integrante da presunção inilidível que acarreta a derrogação do direito de defesa ampla do arguido enquanto restrito à possibilidade de abranger o âmbito delineado pela gravidade da infrac­ção e aplicável sanção de inibição de conduzir”.
A motivação do recurso da recorrente para o Tribunal da Relação de Coimbra terminava com a formulação das seguintes conclusões:
I – A arguida, no dia, hora e local em causa, parou ao sinal STOP que se encontrava no cruzamento em questão [e], tendo verificado que não circu­lava qualquer veículo na outra via, iniciou novamente a sua marcha com a cor­recta e devida segurança, pelo que não cometeu qualquer infracção.
II – A arguida só pagou voluntariamente a coima, como consta da deci­são recorrida, porque pensou assim estar obrigada, mas não reconheceu nem reconhece ter cometido a infracção por que foi condenada.
III – O Tribunal a quo não concedeu provimento ao recurso de con­tra-ordenação interposto pela arguida por basear a sua decisão no facto de a coima ter sido paga voluntariamente, não podendo agora ser questionada a prá­tica da contra-ordenação, devendo antes dar-se como assente – artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada –, e não admitindo a alegação de factos que possam pôr em causa a existência do ilícito contra-ordenacional.
IV – Esta interpretação e aplicação das normas do RGCO restringe direi­tos de defesa da arguida e os direitos à tutela efectiva, na dimensão de garante de controlo judicial das decisões administrativas que lesem direitos e interesses legítimos, mostrando-se ferida de ilegalidade e de inconstitucionali­dade, pois viola o disposto nas normas conjugadas dos artigos 55.º, 59.º, n.ºs 1 e 3, do RGCO e dos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
V – No processo de contra-ordenação valem os direitos e garantias cons­titucionalmente consagrados de direito de audiência e de defesa dos argui­dos e de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na dimensão da garantia de controlo das decisões finais administrativas que lesem direitos e interesses legalmente protegidos, caso contrário estar-se-ia a violar a Constitui­ção.
VI – Apesar de paga voluntariamente a coima, pode-se discutir a existên­cia de contra-ordenação quando for aplicada uma sanção acessória.
VII – O Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questões que deve­ria ter apreciado, o que torna a sentença nula – alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.
VIII – Se não fosse possível discutir a existência da infracção, estamos perante uma inconstitucionalidade por restrição dos direitos fundamentais – violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão ora recorrido, desenvolveu a seguinte fundamentação jurídica:
(…)
No acórdão recorrido diz-se, além do mais, o seguinte:
“Ora, a nosso ver, a falada restrição apenas pode ser aportada a uma mera presunção – juris tantum – de que o pagamento voluntário da coima implica a prática da contra-ordenação, mas não a de que tal pagamento implica necessariamente a presunção inilidível – juris et de jure – do cometimento da infracção.
Deste modo, a consagrada presunção constitucional de inocência é afas­tada, e de modo inilidível, por normativo estradal!
A aplicação de normas sobre direitos, liberdades e garantias faz-se de modo directo, sendo que essa «aplicação directa não significa apenas que os direitos, liberdades e garantias se aplicam independentemente da intervenção legislativa (cf. artigos 17.º e 18.º, n.º 1). Significa que eles valem directamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade com a Constituição (cf. CRP, artigo 18.º, n.º 3)» [Direito Constitucional e Teoria da Constituição, de J. J. Gomes Canotilho, 7.ª edição, p. 1179].
O segmento do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, em que se diz que depois de paga a coima apenas se pode apresentar defesa «restrita à gravi­dade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável», sem discutir a verificação/cometimento da infracção, é inconstitucional, por afastamento injustificado da garantia de todos os direitos de defesa, «devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses cons­ti­tucionalmente protegidos» – artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
Em nosso entender, o indiciado infractor pode defender-se, sem quais­quer restrições, alegando mesmo a não verificação/prática da infracção, ainda que tenha ele mesmo (quiçá, outrem, a fortiori) procedido ao pagamento voluntário da coima.
Destarte que o parágrafo último do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, na versão actual do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, é inconstitucional, face ao estabelecimento de uma presunção inilidível, que acarreta a derrogação do direito de defesa ampla do arguido.
Termos em que se acorda, em consonância e na procedência do recurso, em anular o julgamento, devendo proceder-se a nova audiência, com observân­cia de todas as garantias de defesa do arguido/recorrente”.

Na fundamentação do acórdão do Tribunal Constitucional considera-se o seguinte:
«(…)
Apesar de as normas referidas (artigos 154.º e 155.º da versão originária, arti­gos 153.º e 155.º das versões de 1998 e de 2001 e artigos 172.º e 175.º da versão de 2005) estarem inseridas na regulamentação da fase administrativa do procedimento con­tra-ordenacional em causa e, portanto, a “defesa” neles referida respeitar à defesa apresentada pelo arguido perante a autoridade administrativa competente para proferir a decisão sancio­natória, o certo é que a restrição desta defesa, primeiro, para os “efeitos do disposto nos artigos 143.º, 144.º e 145.º” (ou seja, para efeitos de alcançar a dispensa de aplicação da san­ção acessória, a sua atenuação especial ou a suspensão da sua execução) e, desde 1998, “à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir [ou sanção acessória] aplicável” tem sido jurisprudencialmente entendida como implicando também uma restrição da defesa que o arguido pretenda deduzir perante os tribunais, no âmbito da impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória.
(…)
Diversamente, segundo o critério normativo cuja aplicação a decisão ora recor­rida recusou com fundamento em inconstitucionalidade, o pagamento voluntário da coima implica inexoravelmente a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, estando vedado ao arguido discutir a existência da infracção, mas tão-só a sua gravidade, relevante para a fixação da duração da inibição.
Este entendimento não pode deixar de ter-se como constitucionalmente insol­vente. Não se questiona a possibilidade de o legislador, mesmo em matéria sancionatória (inclusive penal) estabelecer presunções e, portanto, seria lícito fazer presumir do pagamento voluntário da coima a ocorrência da infracção. Mas o que é intolerável é a inilidibilidade dessa presunção, ao proibir-se que o arguido faça prova, perante o tribunal, da sua não verifi­cação. No sentido da admissibilidade de presunções, desde que ilidíveis, cf. os Acórdãos n.ºs 63/85, 447/87, 135/92 e 922/86 (sobre a responsabilidade criminal dos directores de periódi­cos) e 252/92 (sobre presunção de origem estrangeira de determinadas mercadorias).
Não se ignorando que serão menos intensas as preocupações garantísticas em processos contra-ordenacionais em comparação com o processo criminal (cf. Acórdãos n.ºs 269/87 e 313/2007), aquelas não podem, contudo, ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria efectividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equi­tativo.
Mesmo que não se transponham para o processo contra-ordenacional as aperta­das regras de que o artigo 344.º do Código de Processo Penal rodeia a relevância da confissão do arguido em processo criminal, não pode, porém, deixar de considerar-se que não pode valer como confissão da prática da infracção – em termos de postergar em definitivo qualquer hipótese de retratação – o pagamento voluntário da coima, designadamente feito no próprio acto da autuação, por arguido normalmente desprovido da possibilidade de aconselhamento jurídico e que poderá não se ter apercebido das consequências dessa opção - Neste Tribunal da Relação tem sido maioritariamente seguido entendimento contrário ao agora debitado pelo Tribunal Constitucional, sendo exemplo o acórdão proferido no Pº nº 1.659/07 desta Relação de Guimarães, de que foi relatora a Venª Desembargadora, Drª Nazaré Saraiva, onde se diz o seguinte:
(…)
O pagamento voluntário consubstancia, pois, uma conformação do arguido com os factos relativos à contra-ordenação.
A possibilidade legal de liquidação da coima pelo mínimo traduz-se, afinal, na contrapartida concedida, pelo ordenamento jurídico, ao arguido que se conforma com a prática da infracção, renunciando à possibilidade de discutir a respectiva existência, sem prejuízo de, no caso de lhe corresponder também sanção acessória, lhe ser sempre admitida a defesa restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.
E nem se diga que assim fica prejudicado o direito de defesa do arguido. Na verdade, a opção é sempre sua. E trata-se de uma opção esclarecida. Para isso, é que o artº 175º regula o conteúdo da comunicação da infracção.
Se, pelo contrário, o arguido quiser discutir a existência da infracção, então não procederá ao pagamento voluntário e discutirá quer a verificação da contra-ordenação, no aspecto substantivo, quer a regularidade e validade do processo, no aspecto adjectivo, usufruindo de todas as garantias que a lei lhe concede.
O que não pode, seguramente, é pagar voluntariamente a coima e depois vir discutir a verificação da infracção. Seria a total subversão do sistema legalmente consagrado!
Com o devido respeito, a opção dos condutores não é assim tão esclarecida e, afinal, como a seguir se vê do acórdão do Tribunal Constitucional, …enquanto na redacção originária do Código da Estrada de 1994 se impunha que na notificação da autuação fosse entregue ao arguido um exemplar do auto de notícia “donde conste a possibilidade de pagamento voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória” (artigo 155.º, n.º 2), a partir das alterações intro­duzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o interessado passou a ser notificado “da possibilidade do pagamento voluntário da coima pelo mínimo (…), e das consequências do não pagamento” (artigo 155.º, alínea d)); isto é: o interessado deixou de ser informado das consequências do pagamento voluntário, designadamente da inevitabilidade da aplicação da sanção acessória de inibição de condução e da impossibilidade de discutir, quer na fase admi­nistrativa, quer na fase judicial do procedimento contra-ordenacional, a existência da infrac­ção..
Como já no Acór­dão n.º 337/86 se admitiu, no domínio de anterior legislação, “o arguido pode ter liquidado a multa apenas para evitar o incómodo de ir a tribunal discutir a prática da própria contra­venção, mas sem sequer se ter lembrado de que poderia vir a ficar privado, por algum tempo, do direito de conduzir (…), ou sem que, ao menos, essa consequência se lhe apresentasse como provável (…)”. Eventualidade de desconhecimento esta que, no regime legal ora em apreço, ganha plausibilidade, pois, enquanto na redacção originária do Código da Estrada de 1994 se impunha que na notificação da autuação fosse entregue ao arguido um exemplar do auto de notícia “donde conste a possibilidade de pagamento voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória” (artigo 155.º, n.º 2), a partir das alterações intro­duzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o interessado passou a ser notificado “da possibilidade do pagamento voluntário da coima pelo mínimo (…), e das consequências do não pagamento” (artigo 155.º, alínea d)); isto é: o interessado deixou de ser informado das consequências do pagamento voluntário, designadamente da inevitabilidade da aplicação da sanção acessória de inibição de condução e da impossibilidade de discutir, quer na fase admi­nistrativa, quer na fase judicial do procedimento contra-ordenacional, a existência da infrac­ção.
Neste contexto, o entendimento em causa não pode deixar de ser considerado como determinando um encurtamento intolerável das garantias exigidas pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e do processo equitativo.
Representando esse entendimento uma interpretação admissível dos preceitos legais em causa e sendo seguido, como se referiu, por significativa corrente jurisprudencial, não se justifica, no caso, o uso do mecanismo da interpretação conforme à Constituição pre­visto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC (usado no Acórdão n.º 276/2004 – que impôs a interpreta­ção do artigo 152.º, n.º 1, do Código da Estrada “no sentido de que se limita a estabelecer uma presunção ilidível de que o proprietário ou possuidor do veículo é o seu condutor, desde que não identifique outrem como tal” – por entender que o preceito em causa “não comporta a interpretação feita pela decisão recorrida, no sentido de que está consagrada a responsa­bilidade contra-ordenacional de quem, não sendo proprietário nem possuidor do veículo, ainda conste no registo como tal, quando resulte provado nos autos que foi um terceiro devi­damente identificado o responsável pela contra-ordenação em causa”), optando-se antes pela emissão de um juízo de inconstitucionalidade.

3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, segundo a qual, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de condu­zir, discutir a existência da infracção.»
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Em conformidade com a doutrina propugnada neste douto aresto, e melhor convencido das garantias que há que conceder a casos como o dos autos, não tem o ora relator dúvidas em aderir plenamente a tal posição mais ajustada à gama de direitos que mesmo em processo contra-ordenacional se reclama e, sobretudo, mais consentânea com a realidade - Por mera curiosidade - e também pela pertinência -, iniram-se aqui dois dos muitos comentários que, a propósito do citado aresto do Tribunal Constitucional, se podem ler no site da Verbo Jurídico.
Dizem assim:
«Cavenon
Certíssimo.
Concordo plenamente com a decisão do TC, os argumentos estão expostos de forma clara e perfeitamente entendível. Viola preceitos postulados na Constituição, ponto final. E aqui não vale argumentar que, se deve entender que o condutor está informado sobre todos os mecanismos processuais e legais das eventuais consequências dos seus actos, e concluir portanto se paga aceita a coima. Acontece manifestamente por parte dos agentes de autoridade, uma constante "pressão psicológica" para que o condutor pague a coima ou então fica sem os documentos, é a mais comum dentro de outras possíveis.
Sobre a teoria conspirativa de que quem conduzia era o falecido, ou um outro sujeito é uma outra questão: se no processo civil o Juiz é na prática mera figura presente, que tem apenas poder para ler e ouvir o que os intervenientes alegam e sujeitar-se meramente a essa matéria, no processo penal tem um papel interventivo, pode intervir no processo para o apuramento da verdade material, investigando os factos.
Só não podemos desculparmo-nos com eventuais conspirações factuais, se existem e não são detectáveis é um problema que diz respeito ao Tribunal. A honestidade intelectual deve imperar sobre o "soberano", se na vida do dia-a-dia dos particulares essas adulterações factuais existem, devem ser descobertas em Tribunal quando aí submetidas e, não tomar o todo pela parte, esse juízo é falacioso e tendencioso: vive ao sabor do subjectivismo de quem julga, sabendo os possíveis resultados de daí podem advir para a certeza e objectividade de quem recorre à justiça.
Jamais formava um juízo sobre alguém, orientado por premissas que poderiam ser falaciosas e correr o risco de ser precipitado e apontarem-me o dedo, de que falhei no juízo formado porque actuei como um vertiginoso desconfiado da sociedade. Não é cultura que cultivo. Acredito nas pessoas até que de alguma forma categórica me provem o contrário. Mas não sou ingénuo».

E assim:
«predador
O grande problema advém da inconstitucionalidade que é permitir-se ao poder administrativo a apreensão dos documentos da viatura, o que à partida quase que obriga ao pagamento "voluntário" da coima. É uma enormidade a que o Estado teve de recorrer devido á incapacidade gritante em processar as contra-ordenações.
Ainda diziam mal dos processos que corriam nos tribunais...
Meus Senhores o cidadão paga porque tem de pagar e porque é coagido. Não existe nenhuma confissão tácita, e sobretudo porque o pagamento "voluntário" é feito pelo mínimo (há que arrecadar dinheiro).
Numa situação destas retirar-lhe a possibilidade de recurso é uma aberração a que os Tribunais não deviam aceder.
Será porque os Sr.s Juízes nunca ficaram sem os documentos? Preferia pensar que não...
Nunca se viu o privilégio de execução prévia tão desproporcional e exagerado».
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Tem que se consignar, por fim, que não colhe o argumento de que no âmbito da revisão constitucional de 1997, foi rejeitada uma proposta no sentido de se assegurar ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitu­cional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466), pois como resulta da discussão parlamentar, a questão foi remetida para as leis ordinárias e, consequentemente, para a doutrina e para a jurisprudência, que ponderará, como foi o caso do citado acórdão do Tribunal Constitucional, os limites de garantia em cada caso concreto.

ACÓRDÃO
Nos termos expostos, acorda-se em se revogar a decisão recorrida, a substituir por outra que, admitindo as provas indicadas pelo arguido, designe dia para audiência de julgamento e conheça do mérito da impugnação com o âmbito pretendido pelo recorrente e agora definido pelo Tribunal Constitucional.
Sem custas.
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Guimarães, 7 de Abril de 2008
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Voto de Vencido

Negaria provimento ao recurso pelas razões que indiquei no projecto que elaborei como relator.
A questão nuclear dos recursos está em saber quais os efeitos do pagamento voluntário nas contra-ordenações estradais.
Nesta parte, o projecto que elaborei seguia no essencial a fundamentação do acórdão proferido no recurso nº1.659/07 desta Relação de Guimarães, de que foi relatora a sra. desembargadora Nazaré Saraiva, para a qual remeto.
No mais, defende o recorrente que se trata uma presunção judicial “juris et de jure”, inilidível, que violaria o direito de defesa consagrado nos arts. 18 nº 2 e 32 nº 2 da CRP.
Mas entendo que nenhuma presunção existe. «Presunções» são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (v. art. 349 do Cod. Civil). A lei não tira do pagamento a «ilação» de que o arguido praticou os factos.
Ao efectuar o pagamento, o arguido admite a prática dos factos e o seu desvalor, o que é diferente. A lei concede-lhe como contrapartida pagar o mínimo legalmente previsto, eximindo-se à possibilidade de vir a ser fixada uma coima concreta mais elevada.
Substancialmente, nada de diferente existe relativamente ao regime da confissão integral e sem reservas prevista no art. 344 do CPP. Também nesta existe uma “compensação” para quem confessa os factos – a redução da taxa de justiça para metade. É certo que o pagamento previsto no Código da Estrada não é rodeado dos mesmos cuidados e formalismos da confissão em processo penal, que é feita perante o juiz. Mas esse não é um argumento decisivo, porque o direito contra-ordenacional não é um mero ramo do direito penal, tendo-se dele autonomizado. São bem distintas as categorias dos ilícitos tutelados pelos dois direitos, quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos, quer pela desigual ressonância ética que envolvem – v. preâmbulo do Dec.-Lei 433/82 de 27-10. Tutelando a lei penal bens jurídicos mais relevantes (destina-se a punir as ofensas intoleráveis aos valores ou interesses fundamentais à convivência humana), é natural que o processo penal tenha envolvido de maiores cuidados o reconhecimento de factos desfavoráveis.
É certo que alguns cuidados terão de existir, de molde a assegurar que, no momento em que é feito o pagamento, o arguido está consciente das consequências do mesmo. Sem ser necessária a presença de um juiz, têm de lhe ser comunicados os contornos essenciais dos efeitos do acto que pratica, “de modo a não precludir a demonstração pelo impugnante de que ocorreu falta ou vício da vontade, necessariamente subjacente àquela confissão tácita, susceptível de impedir aquele acto de reconhecimento voluntário da responsabilidade contra-ordenacional”.
Ou seja, não subscrevo o entendimento de que, sob pena de violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, ao arguido que paga voluntariamente a coima é sempre consentido discutir a existência da infracção (como parece ter sido decidido no já referido ac. TC 45/08 de 23-1-08), mas o de que apenas haverá violação dos mencionados preceitos quando não lhe forem comunicados os efeitos essenciais do pagamento. Não estando em causa direitos essenciais indisponíveis (repete-se: são distintas a intensidade e a ressonância ética do desvalor das condutas sancionadas pelo direito contra-ordenacional, quando comparadas com as sancionadas pelo direito penal), nada obsta a que o arguido renuncie à «tutela jurisdicional efectiva» do seu direito (art. 268 nº 4 da CRP), se a sua vontade tiver sido formada de modo esclarecido.
Ora, o recorrente nunca configurou assim a sua pretensão, invocando que, quando pagou, ocorria uma falta ou vício da vontade susceptível de impedir o acto de reconhecimento voluntário da responsabilidade contra-ordenacional.
A sua postura foi outra. Na impugnação judicial limitou-se a impugnar os factos da decisão administrativa, alegando outros em sentido contrário. No recurso para a relação invoca a violação das normas dos arts. 18 nº 2 e 32 nº 2 da CRP, baseando a sua argumentação na alegação de inobservância das garantias próprias do processo penal. Porém, como já se disse, o nº 10 do art. 32 da CRP não estende aos processos de contra-ordenação as garantias do processo penal, tendo, inclusivamente, o legislador constitucional de 1997 rejeitado uma proposta nesse sentido.
Não sendo questão suscitada, não podia, afigura-se-me, a relação conhecer dela, porque os recursos não se destinam a que os juízes do tribunal ad quem, depois de lerem o processo, digam a decisão que teriam proferido se tivessem estado no lugar do tribunal recorrido. Como referem Simas Santos e Leal Henriques em Recursos em Processo Penal, pag. 47, “Os recursos concebidos como remédios jurídicos (...) não visam unicamente a obtenção de uma melhor justiça, tendo o recorrente que indicar expressa e precisamente, na motivação, os vícios da decisão recorrida, que se traduzirão em error in procedendo ou in judicando”. E alegar não é só afirmar que se discorda da decisão recorrida, mas sim atacá-la, especificando não só os pontos em que se discorda dela, mas também as razões concretas de tal discordância. A motivação limita o âmbito do recurso.
Fernando Monterroso