CONTRA-ORDENAÇÃO
COIMA
PAGAMENTO VOLUNTÁRIO
EFEITOS
Sumário

I – No cumprimento da disposição do artigo 175º do Código da Estrada, o arguido é logo informado, nomeadamente, dos factos constitutivos da infracção, das sanções que lhe correspondem (nomeadamente da sanção acessória de inibição de conduzir, quando for o caso) e de que pode pagar voluntariamente a coima.
II – A visão de que o arguido deixou de ser informado das consequências do pagamento voluntário, com invocação do disposto no art. 155.º, d), do CE, a partir da versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, supõe a interpretação de que ao optar pela expressão do prazo e do modo de o efectuar, na al. e) do n.º 1 do art.º 175.º, a lei limitou o âmbito da notificação a realizar ao arguido e deu lugar à possibilidade de o mesmo não ser, antes do pagamento voluntário, informado do teor do n.º 5 do art.º 172.º do CE, na parte em que dispõe que no caso de à contra-ordenação ser aplicável sanção acessória, o processo prossegue, restrito à aplicação da mesma.
III – Aquela interpretação não pode prescindir de uma leitura das disposições legais que seja tão atomística dos elementos sintácticos e tão literal dos sentidos semânticos que desfigure o sentido natural de uma compreensão mais abrangente e integradora.
IV – Ora, quando, no art.º art.º 175.º, n.º 1 e sua alínea d), se diz que o arguido deve ser notificado da possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo, desta expressão não deva ser entendido que ele deve ser notificado de todas as circunstâncias e condições relevantes para a sua situação que se contêm no art.º 175.º.
V – É que não podemos passar por alto os termos em que está redigido o n.º 1 do art.º 172.º que impõe que se conclua que todos os números do referido artigo definem o acto jurídico designado por pagamento voluntário, nos seus termos e consequências e que, além disso, a referida alínea d) do art. 175.º se refira, individualizadamente, ao prazo ao modo de efectuar o pagamento voluntário, bem como das consequências do não pagamento, não se pode estranhar, uma vez que se trata de circunstâncias que interessam ao arguido e que não estão necessariamente compreendidas no teor do art.º 172.º.
VI – Note-se, aliás, que o prazo a que se refere a alínea e) do art.º 175.º, é o prazo concreto, o que se refere ao pagamento a que a notificação se refere e em relação ao qual pretende esclarecer o destinatário – pode V. proceder desta e daquela maneira para proceder ao [desta coima] pagamento, e para isso dispõe de um prazo com início no dia X e termo no dia Y. Nessa medida se distingue da referência ao prazo, que consta do n.º 2 do art.º 172.º, que é o prazo abstracto que a lei comina para pagamento voluntário da coima, pelo que, aquilo que parece uma redundância não o é: trata­-se de um complemento, em ordem a concretizar, no caso, o comando abstracto do art.º 172.º.
VII – Relativamente ao facto da o pagamento voluntário implicar a admissão da prática da contra-ordenação – ressalvadas as circunstâncias susceptíveis de determinar o aumento ou diminuição da sua gravidade – não vemos em que é que tal facto diminui as possibilidades de o arguido contraditar e se defender.
VIII – Trata-se, mais do que de uma confissão de uma transacção. A confissão está, no direito criminal, ligada, podemos dizê-lo de forma esquemática, nos planos subjectivo e material, à assunção da culpa e ao arrependimento e, nos planos objectivo e adjectivo à manifestação de um desejo/ actividade de colaboração com a justiça. E tem, a confissão, uma ressonância ético-jurídica que torna desproporcio­nado falar-se dela a respeito do pagamento voluntário na contra-ordenação.
IX – As contra-ordenações são factos de um modo geral simples – a mais das vezes simplesmente culposos e, em muitas destas, fruto de uma mera negligência inconsciente – que são imediatamente constatados por observação directa. É estultício pretender assimilar-lhes os critérios e conceitos que relevam na investigação criminal.
X – No caso concreto, o arguido viu indeferida a possibilidade de discutir a materialidade da prática da contra-ordenação, mas, no sentido de elidir a presunção derivada do pagamento voluntário da coima, apenas alegou que “não se recordava de no dia e hora indicados ter conduzido à velocidade de 141 Km/hora” e que “tal facto é estranho face à natureza do veículo que conduzia – veículo comercial de mercadorias [que] não obtém [/alcança?!] uma velocidade máxima superior a 120-130 Km/hora”, pelo que tais alegações são insusceptíveis de impugnar a prova por documento da velocidade a que o arguido fazia circular o seu veículo no momento da verificação da contra-ordenação.
XI – O facto está documentalmente comprovado, nos termos que a lei estabelece para tal comprovação. E se de todo em todo houvesse um erro cuja possibilidade não se descortina e, de facto, o veículo do arguido não alcançasse a velocidade a que se lhe imputa ir a conduzi-lo, bastar-lhe ia fazer a prova desse facto excepcional pela apresentação do livrete do mesmo ­– identificando a marca e o modelo – e de documentação técnica idónea a informar sobre a velocidade máxima alcançada, o que o arguido recorrente não fez, sequer, menção de ter pensado em fazer.
XII – Assim, na real nudez dos factos, a decisão de recusa da discussão sobre a prática da infracção em nada interferiu com a decisão da causa.

Texto Integral

Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães,

I.
1. Por decisão, de 2007/02/09, da autoridade administrativa – Delegado de Viação de Braga, com competência delegada do Director de Viação do Norte – foi, no processo de contra-ordenação n.º 250220660, da Delegação de Viação de Braga da Direcção Geral de Viação aplicada a Luís, arguido e ora recorrente, devidamente identificado no processo, sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias pela violação do disposto no artigo 28.º, n.º 1, alínea b), e n.º 5, 138.º e 145.º, alínea b), todos do Código da Estrada (CE) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
2. Inconformado com essa decisão, o arguido interpôs dela recurso de impugnação judicial, para o Tribunal Judicial de Braga, que veio a ser distribuído e autuado como recurso de contra-ordenação n.º 3704/07.3TBBRG, do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga.
3. Neste último processo, veio a ser proferida, em 2007/06/29, sentença que julgou improcedente o recurso, mantendo nos seus precisos termos a decisão administrativa recorrida.
4. Ainda inconformado com esta decisão, o arguido interpôs da mesma o presente recurso.
Terminou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:

« A - O Recorrente pagou voluntariamente a coima que lhe foi aplicada no âmbito do processo administrativo objecto da contra-ordenação,
« B - O artigo 172° n° 5, do C.E. (Código da Estrada) não permite a discussão em juízo da matéria que consubstancia a infracção quando tenha sido paga voluntariamente a coima,
« C - A decisão sob recurso, seguiu a disciplina daquele normativo do C.E.
« D - Porém, o disposto no artigo 172° n° 5, do C.E. é inconstitucional, porque viola o disposto nos artigos 18° n° 2, e 32° n° 5 e 10, da Constituição da Republica Portuguesa.
« E - Foram violados por isso os direitos constitucionalmente consagrados do princípio do contraditório e de defesa.
« F - Não foram ou estão colocadas em crise, pelo comportamento do Recorrente, a segurança rodoviária e a circulação automóvel.

Encerrou pelo pedido de revogação da sentença recorrida e repetição da audiência de discussão e julgamento.
5. Admitido o recurso, o Ministério Público (MP) apresentou resposta no sentido de lhe ser negado provimento.
6. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto (Pga) foi de parecer de que o recurso não merece provimento.
7. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente não respondeu.
6. Em exame preliminar foi determinado processar e julgar o recurso em obediência às normas processuais vigentes antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em homenagem ao disposto no n.º 2, do art.º 5.º do Código de Processo Penal (CPP), na parte em que refere que a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resulta agravamento sensível da situação processual do arguido.
Efectuado o referido exame e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito da questão posta no recurso.

II.
1. 1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, a única questão posta no recurso é a seguinte:
– A inconstitucionalidade da norma do artigo 172.º, n.º 5, do CE. por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.os 5 e 10, da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), com a, consequente, violação dos direitos do arguido, constitucionalmente consagrados, de exercício do contraditório e de defesa.
2. O MP, na sua resposta em primeira instância teceu, com respeito à questão suscitada, as seguintes, para nós judiciosas, considerações:

« Dispõem as normas invocadas pelo recorrente (transcrição do texto legal):
« – «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (n.º 2 do art.º 18.º);
« – «O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório» (n.º 5 do art.º 32.º); e
« – «Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa» (n.º 10 do mesmo art.º 32.º).
« Atente-se, no entanto, que nenhum desses princípios é violado pela norma em causa, pois o auto de contra-ordenação é notificado ao arguido e, perante ele, pode o arguido efectuar depósito-caução ou efectuar o pagamento da coima pelo montante mínimo, caso em que terá de se sujeitar a que a questão de facto relativa à contra-ordenação não possa ser mais discutida, embora possa discutir a questão relativa a eventual sanção de inibição de conduzir.
« Quer dizer, se o arguido pretende impugnar perante a autori­dade administrativa os factos que se acham indiciados no auto de con­tra-ordenação, fá-lo no prazo estabelecido para tal, como é explicado no auto que recebe (o que de resto está explícito no caso dos autos – v. fls. 4 v°).
« Porém, se o arguido não quer mais discutir esses factos, impugnando-os perante a autoridade administrativa, efectua o paga­mento da coima pelo montante mínimo, podendo sempre requerer a suspensão da execução da sanção acessória (() Conclusão esta que deixou de ser totalmente exacta, face às alterações introduzidas no Código da Estrada (CE), pela Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro; cfr. art.º 141.º do CE.. ).
« Não vemos, por isso, que aquela norma estradal viole os invo­cados princípios, tanto mais que decorre dos presentes autos – e assim deve ser em todos os casos – que o arguido foi notificado para apresentar, querendo, impugnação/oposição perante a autoridade administrativa, sendo explicadas as consequências das possibilidades que o arguido pode tomar.
« Sucede que, in casu, o arguido optou por efectuar o pagamento voluntário e tomou conhecimento que tal opção implicava que poderia apresentar a sua defesa, requerendo eventualmente a atenuação espe­cial ou a suspensão da sanção acessória ou até requerer que, no caso de inibição de conduzir, a mesma pudesse ser substituída por presta­ção de caução (() Idem.).
« Portanto, os princípios invocados pelo recorrente estão plena­mente consagrados nas normas estradais.
« Só que, o arguido veio tardiamente apresentar a sua defesa, perante o tribunal em sede de impugnação da decisão administrativa, o que já não era possível, pois não tomou qualquer atitude em sede de defesa, após a notificação da contra-ordenação.
« É caso para dizer que, aquando da impugnação, já era tarde para discutir a matéria de facto. E foi o que o M° Juiz a quo se limitou a dizer, invocando o mencionado art.º 172°., n.º 5, do CE.
« Na douta decisão recorrida não se vislumbra, por isso, qual­quer contradição nem qualquer nulidade.»

3. Por seu turno, o Ex.mo Pga, nesta Relação, no seu douto parecer, além do mais citou, em reforço da argumentação do Ex.mo Procurador-adjunto, o Acórdão da Relação do Porto de 2007/09/19, proferido no processo n.º 2214/07, 4.ª secção, relatado pelo Ex.mo Desembargador António Gama, nos termos que, a seguir, transcrevemos:

« "O n.º 5 do art. 172.° do Código da Estrada prescreve que: o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores, determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma." /sublinhado nosso/.
« Por sua vez, o art 175° n.° 4 da CE estabelece ainda que "o pagamento voluntário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita a gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável" Ora, face à análise destes preceitos e considerado, nomeadamente, o destino que neles se que traça ao processo de contra-ordenação no caso de pagamento voluntário da coima pele mínimo legal - o arquivamento do processo nessa parte -, parece ser de concluir de imediato, que a resposta à pergunta suscitada é negativa. E isto porque se nos afigura óbvio, desde logo, que por efeito daqueles normativos o processo já seguiu para a presente fase de impugnação judicial limitado à aplicação da sanção acessória, sendo essa a questão que delimita o objecto deste recurso e como ta/ os poderes cognitivos do Tribunal
« Na verdade, à luz duma análise do primeiro preceito transcrito logo se vé que, ao ter optado pelo pagamento da coima pelo mínimo, o arguido aceitou e conformou-se com a prática da contra-ordenação e desencadeou como que um arquivamento parcial do processo. Fica, assim, prejudicado, em sede recurso de impugnação, o conhecimento das questões ligadas à verificação dos elementos integradores da contra-ordenação que /he foi imputada e que na impugnação trouxe à luz do dia. Aliás, face ao disposto no art 175 ° n.° 4, supra citado, logo se vé que tais fundamentos de defesa nem sequer poderiam ter sido invocados pelo arguido no âmbito do exercício do seu direito de defesa perante a entidade administrativa, pois que no caso de pagamento voluntário da coima, esta defesa, como ali se prevê está restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável
« Resulta do ratio destes normativos que a possibilidade legal de liquidação da coima, pelo mínimo, traduz uma contrapartida concedida ao arguido que se conforma com a prática da infracção, implicando por isso, logicamente, a renúncia à possibilidade de discutir a sua existência - tudo sem embargo de /he ser sempre admissível impugnar a sanção acessória, a sua medida ou os termos em que foi fixada, como já foi decidido neste tribunal [1] e é realçado na sentença e pelo o Ex.mo Procurador Geral Adjunto.
« Como muito bem se realça na decisão recorrida também do ponto de vista sistemático se deve convir que a resposta negativa é a mais adequada. Admitir que o arguido que pagasse a coima pelo mínimo, ao abrigo do art 172°, n.º 1, do Código da Estrada, pudesse vir, de seguida, discutir a verificação da contra-ordenação, traduzir-se-ia, em termos práticos, na total subversão do sistema lega/mente consagrado. Isto porque permitiria garantir ao acoimado a impossibilidade de agravamento da coima - mercê da proibição da "reformatio in pejus' consagrada no art. 72°-A do Decreto Lei n.° 433/82 - para depois poder vir discutir a verificação da contra-ordenação que, implicitamente, aceitou ter cometido ao ter feito aquele pagamento. Ora o legislador é depositário de razoabilidade no desenho das soluções jurídicas!
« E o acoimado não tem de que se queixar a não ser das suas opções: a opção pelo pagamento voluntário, com a consequente renúncia à discussão da existência da infracção, mas com o benefício da liquidação pelo montante mínimo da coima aplicável, foi sua. Se, porventura, entendia que não praticou a infracção e que a aplicação da coima era injusta, então não a deveria ter pago voluntariamente. Procederia, ou não, ao depósito e, depois, discutiria a verificação da contra-ordenação, usufruindo de todas as garantias que a lei lhe concede. Agora o que não pode querer é as duas vantagens, o sol na eira e a chuva no nabal..
« Assim, como muito correctamente já foi dito ao acoimado pelo Ex.mo juiz na primeira instância o conhecimento da contra-ordenação, extravasava o objecto legal da impugnação constituindo dado assente a prática de uma contra-ordenação muito grave pelo arguido.
« Se as coisas já eram assim na impugnação judicial, continuam a ser no recurso da decisão judicial: do âmbito do recurso e do poder cognitivo deste tribunal, está excluído o cometimento da contra-ordenação, pelo que nessa parte não se conhece do recurso.
« Concorda-se, pois, com o vertido neste aresto que, como facilmente se retira, também dá adequada resposta à pretensa violação dos princípios atrás referidos pelo julgador da causa agora sob sindicância.

Nos textos aqui trazidos à colação pelo MP, estão as razões que temos sufragado.
Não desconhecemos que a doutrina em que se fundou a decisão do Acórdão do Tribunal Constitucional (ATC) n.º 45/2008, de 2008/01/23, proferido no processo n.º 676/07, 2.ª secção, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Mário Torres (() Consultável em «http//w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos08/1-100/4508.htm»). Ressalvado o devido respeito por tal decisão, duas notas se nos afiguram oportunas.
– A primeira é a de que o referido ATC não enuncia, pelo menos por ora, doutrina com força obrigatória geral;
– A segunda carece de um pouco mais de extensão para, ainda que com brevidade, ser expressa:
Pensamos não falsear a realidade se dissermos que o direito de mera ordenação social, se gerou e desenvolveu no espaço de tensão originado, por um lado, na retracção correspondente ao movimento de descriminalização, de que são bandeiras, v. g., as ideias de necessidade e de subsidiariedade, e, por outro, na progressiva expansão da intervenção da administração pública, tendente, esta, a radicar-se – onde os diversos fins de política social do Estado se confrontam com variadas formas de ilicitude ­– num direito penal administrativo (() Cfr. quanto a este ponto, v. g., Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, p 63 e ss.; e, mesmo autor, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pp. 144 e ss. ).
Corresponde-lhe, assim, a função complexa de preencher um potencial hiato normativo com propensão a ser, na sua falta, ocupado por um sistema anómalo – quando referido ao complexo e valores e princípios que informam o direito penal – e de, por essa via, ser catalisador de uma antinomia tendencialmente resolúvel num refluxo normativo hostil – ou, se não tanto, pelo menos, menos sensível – à preservação e tutela daquele núcleo de direitos em que se analisam as liberdades e garantias individuais.
Dito de outro modo, o direito de mera ordenação social tende a afirmar-se progressivamente como um ramo de direito, com identificáveis áreas de autonomia, na charneira entre o direito penal e o direito administrativo, e cuja essencial importância advêm de, numa sociedade de crescente complexidade, não ser possível nem desejável ampliar a tutela penal, ao arrepio da natureza subsidiária do direito penal, nem, por outro lado, abandonar ao direito administrativo amplas zonas de intervenção sancionatória das condutas individuais, em que a ideia de ilícito eticamente referido à culpa não pode ser abandonada.
Se assim é, cumpre-nos assimilar esta realidade e conviver pacificamente com ela. Não, interiorizando um princípio de desconfiança na intervenção da entidade administrativa no processo sancionatório do direito de mera ordenação social, para, a partir dele, reforçar a tutela jurisdicional sobre essa intervenção, a ponto de a descaracterizar, rejurisdicionalizando o processo. Isto, numa espécie de neo-adjectivo-criminalização da aplicação das sanções contra-ordenacionais.
É, ao contrário, mediante uma progressiva exigência de incremento da dimensão ética da intervenção da administração que a questão se deve resolver.
Não ousaríamos afirmar que sobre o ATC acima referido se projecte qualquer sombra, da ordem das prevenções que tentámos enunciar.
Há que admitir, porém, que a doutrina que afirma nos cria algumas perplexidades.
Assim, diz-se no ATC em questão que «não se ignorando que serão menos intensas as preocupações garantísticas em processos contra-ordenacionais em comparação com o processo criminal (cf. Acórdãos n.ºs 269/87 e 313/2007), aquelas não podem, contudo, ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria efectividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equi­tativo.»
E prossegue:
Mesmo que não se transponham para o processo contra-ordenacional as aperta­das regras de que o artigo 344.º do Código de Processo Penal rodeia a relevância da confissão do arguido em processo criminal, não pode, porém, deixar de considerar-se que não pode valer como confissão da prática da infracção – em termos de postergar em definitivo qualquer hipótese de retratação – o pagamento voluntário da coima, designadamente feito no próprio acto da autuação, por arguido normalmente desprovido da possibilidade de aconselhamento jurídico e que poderá não se ter apercebido das consequências dessa opção. Como já no Acór­dão n.º 337/86 se admitiu, no domínio de anterior legislação, “o arguido pode ter liquidado a multa apenas para evitar o incómodo de ir a tribunal discutir a prática da própria contra­venção, mas sem sequer se ter lembrado de que poderia vir a ficar privado, por algum tempo, do direito de conduzir (…), ou sem que, ao menos, essa consequência se lhe apresentasse como provável (…)”. Eventualidade de desconhecimento esta que, no regime legal ora em apreço, ganha plausibilidade, pois, enquanto na redacção originária do Código da Estrada de 1994 se impunha que na notificação da autuação fosse entregue ao arguido um exemplar do auto de notícia “donde conste a possibilidade de pagamento voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória” (artigo 155.º, n.º 2), a partir das alterações intro­duzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o interessado passou a ser notificado “da possibilidade do pagamento voluntário da coima pelo mínimo (…), e das consequências do não pagamento” (artigo 155.º, alínea d)); isto é: o interessado deixou de ser informado das consequências do pagamento voluntário, designadamente da inevitabilidade da aplicação da sanção acessória de inibição de condução e da impossibilidade de discutir, quer na fase admi­nistrativa, quer na fase judicial do procedimento contra-ordenacional, a existência da infrac­ção.»
Esta argumentação vale-nos dois comentários:
Não conseguimos vislumbrar em que onde é que, nela, encontram tradução as referidas menos intensas as preocupações garantísticas em processos contra-ordenacionais. Nomeadamente quando, para apoiar a solução a que se chega, se invoca, ficcionando-o, o caso limite de um condutor que é tão desprendido que paga a multa de imediato, apenas para evitar o incómodo de ir a tribunal (?!) e tão pouco informado que poderá não se ter apercebido das consequências dessa opção. Passa por alto, esta argumentação, que a condução de veículos é uma actividade perigosa, que exige licenciamento público para poder ser praticada, e que esse licenciamento supõe uma pessoa com o grau de instrução adequado a conhecer e interpretar os comandos legais. É, mesmo, preambular da concessão dessa licença que o candidato demonstre, por exame público, o conhecimento das normas do Código de Estrada. Por outro lado, essa visão do condutor pródigo, confiante e desinformado tem muito pouco que ver com a realidade normal das pessoas que conduzem veículos automóveis numa sociedade moderna.
A afirmação de que o arguido deixou de ser informado das consequências do pagamento voluntário, com invocação do disposto no art. 155.º, d), do CE, a partir da versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, parece verdadeira, mas deixa na sombra a globalidade do regime de garantias dado ao arguido na versão actualmente em vigor do CE. Assim, este no seu artigo 175.º, que dispõe que:

« Artigo 175.º
« Comunicação da infracção
« I – Após o levantamento do auto, o arguido deve ser notificado:
« a) Dos factos constitutivos da infracção;
« b) Da legislação infringida e da que sanciona os factos;
« e) Das sanções aplicáveis;
« d) Do prazo concedido e do local para a apresentação da defesa:
« e) Da possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo do prazo e do modo de o efectuar, bem como das consequências do não pagamento;
« f) Do prazo para identificação do autor da infracção, nos termos e com os efeitos previstos nos n.os 3 e 5 do artigo 171.º
« 2 – O arguido pode, no prazo de 15 dias úteis, a contar da notificação, apresentar a sua defesa, com a indicação de testemunhas, até limite de três, e de outros meios de prova, ou proceder ao pagamento voluntário da coima pelo mínimo, nos termos e com os efeitos estabelecidos no art.º 172.º.
« 3. No mesmo prazo o arguido pode ainda requerer a atenuação especial ou a suspensão da execução da sanção acessória.
« 4 – O pagamento voluntário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.

No cumprimento da disposição do referido artigo o arguido é logo informado, nomeadamente, dos factos constitutivos da infracção, das sanções que lhe correspondem (nomeadamente da sanção acessória de inibição de conduzir, quando for o caso) e de que pode pagar voluntariamente a coima.
Dissemos, pouco acima, que a afirmação de que o arguido deixou de ser informado das consequências do pagamento voluntário, com invocação do disposto no art. 155.º, d), do CE, a partir da versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, parece verdadeira.
Esta visão das coisas supõe a interpretação de que ao optar pela expressão do prazo e do modo de o efectuar, na al. e) do n.º 1 do art.º 175.º, a lei limitou o âmbito da notificação a realizar ao arguido e deu lugar à possibilidade de o mesmo não ser, antes do pagamento voluntário, informado do teor do n.º 5 do art.º 172.º do CE, na parte em que dispõe que no caso de à contra-ordenação ser aplicável sanção acessória, o processo prossegue, restrito à aplicação da mesma. E que, por isso, não assegura que o arguido esteja plenamente informado de que o pagamento não só não determina o termo do processo na parte relativa à aplicação da sanção acessória (() O que não seria o mais grave, desde que tivesse havido um correcto cumprimento do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 175.º do CE. ) como tem nos termos das disposições conjugadas dos n.os 5, proposição final, do art.º 172.º e 4 do art.º 175.º, ambos do CE o efeito de reduzir o âmbito do objecto do processo, dando como fixado o facto, nuclear, de o arguido ter cometido a contra-ordenação,
Porém, esta interpretação não pode prescindir de uma leitura das disposições legais que seja tão atomística dos elementos sintácticos e tão literal dos sentidos semânticos que desfigure o sentido natural de uma compreensão mais abrangente e integradora.
Revisitemos o que dizem as normas:

« Artigo 172.º
« Cumprimento voluntário
« 1 - É admitido o pagamento voluntário da coima, pelo mínimo, nos termos e com os efeitos estabelecidos nos números seguintes.
« 2 - A opção de pagamento pelo mínimo e sem acréscimo de custas deve verificar-se no prazo de 15 dias úteis a contar da notificação para o efeito.
« 3 - A dispensa de custas prevista no número anterior não abrange as despesas decorrentes dos exames médicos e análises toxicológicas legalmente previstos para a determinação dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas, as decorrentes das inspecções impostas aos veículos, bem como as resultantes de qualquer diligência de prova solicitada pelo arguido.
« 4 - Em qualquer altura do processo, mas sempre antes da decisão, pode ainda o arguido optar pelo pagamento voluntário da coima, a qual, neste caso, é liquidada pelo mínimo, sem prejuízo das custas que forem devidas.
« 5 - O pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma.
« Artigo 175.º
« Comunicação da infracção
« 1 - Após o levantamento do auto, o arguido deve ser notificado:
« a) Dos factos constitutivos da infracção;
« b) Da legislação infringida e da que sanciona os factos;
« c) Das sanções aplicáveis;
« d) Do prazo concedido e do local para a apresentação da defesa;
« e) Da possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo, do prazo e do modo de o efectuar, bem como das consequências do não pagamento;
«

f) Do prazo para identificação do autor da infracção, nos termos e com os efeitos previstos nos n.ºs 3 e 5 do artigo 171.º.
« 2 - O arguido pode, no prazo de 15 dias úteis, a contar da notificação, apresentar a sua defesa, por escrito, com a indicação de testemunhas, até ao limite de três, e de outros meios de prova, ou proceder ao pagamento voluntário, nos termos e com os efeitos estabelecidos no artigo 172.º.
« 3 - No mesmo prazo o arguido pode ainda requerer a atenuação especial ou a suspensão da execução da sanção acessória.
« 4 - O pagamento voluntário da coima não impede o arguido de presentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.

Ora, quando, no art.º art.º 175.º, n.º 1 e sua alínea d), se diz que o arguido deve ser notificado da possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo, desta expressão não deva ser entendido que ele deve ser notificado de todas as circunstâncias e condições relevantes para a sua situação que se contêm no art.º 175.º.
É que não podemos passar por alto os termos em que está redigido o n.º 1 do art.º 172.º que impõe que se conclua que todos os números do referido artigo definem o acto jurídico designado por pagamento voluntário, nos seus termos e consequências.
Que, além disso, a referida alínea d) do art. 175.º se refira, individualizadamente, ao prazo ao modo de efectuar o pagamento voluntário, bem como das consequências do não pagamento, não se pode estranhar, uma vez que se trata de circunstâncias que interessam ao arguido e que não estão necessariamente compreendidas no teor do art.º 172.º. Note-se que o prazo a que se refere a alínea e) do art.º 175.º, é o prazo concreto, o que se refere ao pagamento a que a notificação se refere e em relação ao qual pretende esclarecer o destinatário – pode V. proceder desta e daquela maneira para proceder ao [desta coima] pagamento, e para isso dispõe de um prazo com início no dia X e termo no dia Y. Nessa medida se distingue da referência ao prazo, que consta do n.º 2 do art.º 172.º, que é o prazo abstracto que a lei comina para pagamento voluntário da coima. Aquilo que parece uma redundância não o é. Trata­-se de um complemento, em ordem a concretizar, no caso, o comando abstracto do art.º 172.º.
Aliás, nem se compreende como poderia a autoridade autuante informar o arguido das consequências do não pagamento, sem previamente o informar das do pagamento, em toda a sua extensão. A não ser que se prefigure uma autoridade policial ou administrativa, que actue sistematicamente de má fé, sonegando ao arguido todas as informações e esclarecimentos que ele não tenha argúcia para pedir. E mesmo assim …!
Ora, não é essa a realidade objectiva com que nos defrontamos. As autoridades policiais e administrativas estão vinculadas ao dever de lealdade e não há motivo para pensar que não o respeitam. Cada vez mais as autoridades interiorizam um sentimento de serviço e, mesmo, de protecção dos seus concidadãos, o que é próprio de um Estado democrático de direito.
Se é como pensamos, as eventuais omissões de informação da entidade autuante, relativamente às consequências do pagamento voluntário da coima, devem resolver-se no quadro legal das irregularidade e nulidades processuais e não no da inconstitucionalidade da lei.
Relativamente ao facto da o pagamento voluntário implicar a admissão da prática da contra-ordenação – ressalvadas as circunstâncias susceptíveis de determinar o aumento ou diminuição da sua gravidade – não vemos em que é que tal facto diminui as possibilidades de o arguido contraditar e se defender.
Trata-se, mais do que de uma confissão de uma transacção. A confissão está, no direito criminal, ligada, podemos dizê-lo de forma esquemática, nos planos subjectivo e material, à assunção da culpa e ao arrependimento e, nos planos objectivo e adjectivo à manifestação de um desejo/ actividade de colaboração com a justiça. E tem, a confissão, uma ressonância ético-jurídica que torna desproporcio­nado falar-se dela a respeito do pagamento voluntário na contra-ordenação.
As contra-ordenações são factos de um modo geral simples – a mais das vezes simplesmente culposos e, em muitas destas, fruto de uma mera negligência inconsciente – que são imediatamente constatados por observação directa. É estultício pretender assimilar-lhes os critérios e conceitos que relevam na investigação criminal.
Por outro lado, a dimensão material da prevenção e repressão da prática de contra­-ordenações não tem nada a ver, felizmente, com a da área da criminalidade. Estamos num universo de uma ordem de grandeza incomparavelmente maior,
Por outro lado, ainda, não pode dizer-se que os bens jurídicos hoje tutelados através do direito contra-ordenacional sejam de ordem inferior, como são os casos da saúde pública e ordem e segurança no trânsito, tutelados no direito contra­-ordenacional viário.
Ora, sendo sabido que os meios económicos e físicos – em pessoal e instrumentos – que é possível afectar a tais fins de tutela são, mais do que finitos, exíguos, torna-se necessário, a bem da comunidade, agilizar os procedimentos, sem ofensa dos direitos individuais, até onde se justifique protegê-los.
Pois, bem, neste quadro, não tem qualquer justificação proteger-se um indivíduo de reconhecer, a troco de um benefício na gravidade da sanção, de forma totalmente voluntária, ter praticada uma contra-ordenação, que, no momento em que tal declara, tem todos os meios de saber se cometeu ou não!
Falar-se, nesta contingência, da possibilidade de a pessoa que assim procede agir em erro sobre as consequências da sua declaração é levar os escrúpulos relativos à garantia dos direitos individuais demasiado longe. Bem demais conhecem os utentes do trânsito as consequências das contra-ordenações que cometem. Não é por acaso que existe toda uma parafernália de meios para tentar iludir a vigilância das autoridades, desde os tradicionais sinais de luzes, passando pelos, ainda legais, modernos GPS com indicação da localização dos “radares” fixos, até aos, ilegais, detectores de “radares” móveis.
É, em conclusão, a transacção a que nos referimos perfeitamente justa e equilibrada, vistas a contrapartida assegurada ao arguido pelo pagamento voluntário, a importância do bem jurídico tutelado, e os demais valores sociais envolvidos, como sejam a libertação de agentes da autoridade dos tempos de comparência nos processos, para a sua natural função de fiscalizadores do trânsito.
Tal “transacção” mostrar-se-ia perversa e eticamente inaceitável se não resultasse de um “contrato” limpidamente proposto e aceite, o que, como tentamos demonstrar, não acontece.
Salvo o devido respeito, que não regateamos, aceitar-se a tese do ATC acima referido traduz-se em devolver de forma praticamente integral à esfera do penal o que justamente havia sido entregue ao contra-ordenacional e fazê-lo com a limitação, a nosso ver sem justificação ética, de, nessa esfera, a discussão ser restringida, à partida, pelo benefício prévio do arguido, que lhe é assegurado pelo pagamento voluntário. O Tribunal – que deveria ser de recurso – vê-se vinculado ser nele discutida, como primeira instância real dessa discussão, se uma contra-ordenação foi ou não praticada. Isto agravado por intervir desprovido do poder de aplicação do que, no quadro original da previsão abstracta, constitui a sanção principal, peado como fica pela concreta aplicação, previamente estabelecida, de uma coima pelo mínimo abstractamente admissível.
Acresce ao já dito que, no presente recurso, o arguido recorrente invocou a inconstitucionalidade do art.º 172.º, n.º 5, do CE e não do art. 175.º, n.º 4, do mesmo diploma legal, com base em que aquele impede o contraditório a que tem direito.
Ora o artigo em causa, por si, não tem a virtualidade de impedir o exercício do contraditório, porque a redução no âmbito do objecto do processo que implica é, apenas, a consequência de uma das opções que a lei faculta ao arguido para, em liberdade, encarar o processo de contra-ordenação. Ou seja, encontra-se a jusante do momento processual em que o arguido opta por exercer ou não o contraditório relativamente aos factos constitutivos da contra-ordenação.
Bastará a este v. g., apresentar a defesa perante a autoridade administrativa e prestar depósito nos termos do disposto no art.º 173.º, para que, conservando a possibilidade de conduzir e utilizar o veículo sem restrições, o seu direito ao contraditório se mantenha íntegro. E mesmo não apresentando a referida defesa, tem-se entendido que lhe é lícito pôr em causa a materialidade do auto de notícia, no recurso de impugnação que apresente da decisão condenatória da autoridade administrativa, quando não tenha procedido ao pagamento voluntário. E isto sem que sobre ele recaia qualquer presunção da autoria da contra-ordenação!
Não é, portanto, no art.º 172.º, n.º 5, do CE que está o problema.
Mas, ainda que a posição do arguido procedesse quanto à inconstitucionalidade, dar-lhe ia isso razão no recurso? Ainda assim cremos que não.
Como se fez decisivamente notar, com acerada argúcia, no voto de vencido do Ex.mo Juiz Desembargador Fernando Monterroso, no Acórdão da Relação de Guimarães de 2008/04/07, proferido no recurso n.º 78/07, com semelhanças com o presente a justificar a citação:

« «(..) o recorrente nunca configurou (…) a sua pretensão, invocando que, quando pagou, ocorria uma falta ou vício da vontade susceptível de impedir o acto de reconhecimento voluntário da responsabilidade contra-ordenacional.
« A sua postura foi outra. Na impugnação judicial limitou-se a impugnar os factos da decisão administrativa, alegando outros em sentido contrário. No recurso para a relação invoca a violação das normas dos arts. 18 nº 2 e 32 nº 2 da CRP, baseando a sua argumentação na alegação de inobservância das garantias próprias do processo penal. Porém, como já se disse, o nº 10 do art. 32 da CRP não estende aos processos de contra-ordenação as garantias do processo penal, tendo, inclusivamente, o legislador constitucional de 1997 rejeitado uma proposta nesse sentido.
« Não sendo questão suscitada, não pode a relação conhecer dela, porque os recursos não se destinam a que os juízes do tribunal ad quem, depois de lerem o processo, digam a decisão que teriam proferido se tivessem estado no lugar do tribunal recorrido. Como referem Simas Santos e Leal Henriques em Recursos em Processo Penal, pag. 47, “Os recursos concebidos como remédios jurídicos (...) não visam unicamente a obtenção de uma melhor justiça, tendo o recorrente que indicar expressa e precisamente, na motivação, os vícios da decisão recorrida, que se traduzirão em error in procedendo ou in judicando”. E alegar não é só afirmar que se discorda da decisão recorrida, mas sim atacá-la, especificando não só os pontos em que se discorda dela, mas também as razões concretas de tal discordância. A motivação limita o âmbito do recurso.»

Mas, estendendo os argumentos ao limite, ainda que isto se não aceitasse e se entendesse que haveria que permitir, em qualquer caso, que o arguido deduzisse a mais ampla defesa perante o tribunal de recurso sempre haveria que ter presente, pelo menos a restrição, também ela aflorada no mesmo voto de recurso, onde se disse:

« Nenhuma violação houve do direito de audição e defesa, pois ao arguido foi dada a oportunidade de, dentro dos prazos fixados pela lei, perante o órgão próprio (o tribunal) expor as suas razões e oferecer a prova que julgasse pertinente.
« Mas isto não significa que os diversos sujeitos processuais tenham o direito a produzir toda a prova que entendam, protelando o processo e os trabalhos dos tribunais, na medida subjectiva das suas conveniências, ainda que seja evidente a inutilidade da prova, nomeadamente por não haver factos relevantes a provar. Pelo contrário, o artigo 137 do CPC proíbe a realização de «actos inúteis». Afigurando-se à sra. juiz que a lide, tal como estava configurada, não comportava a produção de prova sobre qualquer facto, não podia ter tomado outra decisão. Se tivesse deixado que a prova se produzisse, teria colaborado numa mera encenação processual, não tratando, sequer, seriamente as partes. Teria violado o princípio da lealdade que a todos obriga.
« A questão não está, pois, em a sra. juiz poder indeferir a produção de prova, mas em saber se foram alegados factos relevantes para a decisão, sobre os quais haveria de ser produzida prova.

É que mesmo para quem, hoje, põe em causa a legalidade do estabelecimento, com base no pagamento voluntário da coima, de uma presunção da prática da contra-ordenação, a questão não se põe relativamente a uma presunção iuris tantum, mas tão só a uma presunção, iuris et de iure, juridicamente inilidível desse facto.
O que, para ser efectivo, importa que na defesa admissível se contenha, na materialidade invocada, a potencial superação da referida presunção ilidível. Sem isso, estar-se-á, apenas, a contemporizar com um procedimento tendente a prolongar artificialmente o processo, numa jurisdição em que a “prescrição do procedimento” está sujeita a prazos encurtados, justamente no pressuposto de que se trata de uma área de processo desprovida de complexidade.
Pois bem, no nosso caso, o arguido viu indeferida a possibilidade de discutir a materialidade da prática da contra-ordenação.
Mas que alegou ele no sentido de elidir a presunção, derivada do pagamento voluntário da coima, de que praticou a contra-ordenação?
– Que não se recordava de no dia e hora indicados ter conduzido à velocidade de 141 Km/hora; e que
– Tal facto é estranho face à natureza do veículo que conduzia – veículo comercial de mercadorias [que] não obtém [/alcança?!] uma velocidade máxima superior a 120-130 Km/hora.
Ora tais alegações são insusceptíveis de impugnar a prova por documento da velocidade a que o arguido fazia circular o seu veículo no momento da verificação da contra-ordenação. O facto está documentalmente comprovado, nos termos que a lei estabelece para tal comprovação. E se de todo em todo houvesse um erro cuja possibilidade não se descortina e, de facto, o veículo do arguido não alcançasse a velocidade a que se lhe imputa ir a conduzi-lo, bastar-lhe ia fazer a prova desse facto excepcional pela apresentação do livrete do mesmo ­– identificando a marca e o modelo – e de documentação técnica idónea a informar sobre a velocidade máxima alcançada. O que o arguido recorrente não fez, sequer, menção de ter pensado em fazer.
Assim, na real nudez dos factos, a decisão de recusa (() Embora a sentença recorrida seja, de certo modo, confusa na sua organização sistemática, percebe-se, da leitura da sua fundamentação de direito, que o seu prolator, julgou como verdadeira questão prévia a questão da não admissão a discussão sobre os factos relativos à materialidade da contra-ordenação e que foi em função desse juízo prévio que tais factos foram levados à matéria de facto provada da sentença.) da discussão sobre a prática da infracção em nada interferiu com a decisão da causa.
Ou seja, a discussão foi artificialmente deslocada para o plano constitucional, sendo que não foi, na realidade, em função de qualquer aplicação inconstitucional da lei que o recorrente foi impedido de levar por diante uma defesa que, pelo seu próprio teor, estava necessariamente votada ao insucesso.
Não nos cabe pronunciarmo-nos sobre a adequação da sanção acessória aplicada, o que faríamos ex offício, já que a mesma foi fixada no mínimo legal.
Por todas as razões invocadas, o recurso tem de improceder.

III.
Nos termos expostos,
Acordamos em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Condena-se o requerente em 5UC de taxa de justiça.

Guimarães, 2008/04/07