JULGAMENTO NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
FALTA DO ARGUIDO
ADIAMENTO
ATESTADO MÉDICO
IN DUBIO PRO REO
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Sumário


I. Estando o arguido sujeito a termo de identidade e residência e tendo sido regularmente notificado para a audiência de julgamento, deve iniciar-se a audiência sem a presença do arguido - seja qual for o motivo da ausência - se o tribunal considerar que a presença daquele desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, sendo o arguido, para todos os efeitos, representado pelo seu defensor.

II. Dada sem efeito a primeira data marcada para a audiência de julgamento, por razões não imputáveis ao arguido e iniciada a audiência na ausência do arguido, por o tribunal considerar que a presença deste desde o início da audiência não era absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material ou porque a falta do arguido teve como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artº 117º do CPP, só há que designar nova data para o arguido prestar declarações se o tribunal o considerar necessário ou se o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido requerer que este seja ouvido.

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I. Submetido a julgamento em processo abreviado, no Tribunal Judicial da Comarca de …, mediante acusação deduzida pelo MP, foi o arguido A condenado como autor material de um crime de injúrias agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 181º, nº 1, 184º e 132º, nº 2, al. j), do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 600,00 (seiscentos euros) a que, subsidiariamente, correspondem 66 (sessenta e seis) dias de prisão.
Inconformado, interpôs recurso o arguido, sintetizando o seu inconformismo nas seguintes conclusões, que extrai da respectiva motivação:

    I. A douta sentença que ora se impugna fundamenta-se tão-somente nos indícios carreados para os autos durante a fase do inquérito e que serviram de base à acusação.
    II. A nova audição do arguido pelo tribunal permitiria esclarecer que expressões tinham sido efectivamente proferidas pelo arguido, dotando a prova da necessária clareza.
    III. Deverá proceder-se a renovação da prova testemunhal já produzida e bem assim, proceder-se à audição do arguido, relativamente aos factos dado como provados na douta sentença que ora se impugna, concretamente, o proferimento das expressões de carácter injurioso atribuídas ao arguido, e bem assim, o enquadramento sócio-económico do arguido, atribuindo-lhe bens que não são sua propriedade.
    IV. Nos termos do art. 333°, n° 1 e 2 do C. Processo Penal e face aos elementos de prova reunidos, entende-se que o tribunal deveria ter optado pelo adiamento do julgamento;
    V. Em conformidade, entende-se ainda que não estavam reunidos os elementos necessários à boa decisão da causa, sendo imprescindível a presença do arguido.
    VI. Estamos perante duas versões antagónicas sobre os factos que constituem o cerne da sentença que ora se impugna e como tal, não pode deixar de invocar-se o princípio do "in dubio pro reo" em conjunção com o princípio da presunção de inocência até trânsito em julgado de sentença, pelo que na dúvida, o arguido deverá ser absolvido dos factos relativamente aos quais é acusado.

Contramotivou o Exº Magistrado do MP junto da 1ª instância pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
Nesta Relação, o Exº Procurador-Geral-Adjunto emitiu Douto Parecer no sentido de que “deverá anular-se o julgamento e, nos termos do artº 326º, n.º 1 do CPP, determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento sobre a totalidade do objecto do processo”.
Para assim concluir, louva-se o Exº Procurador-Geral-Adjunto, em substância, na seguinte argumentação:
[...] nunca antes tendo havido qualquer efectivo adiamento da audiência [...] tendo o arguido feito apresentar em audiência o atestado médico comprovativo da sua impossibilidade de estar presente, julgamos temerária a decisão judicial de determinar o início da audiência sem a presença do arguido, ainda que a pretexto de que a sua presença não se mostrasse imprescindível à descoberta da verdade.
[...] em face da não contestação do arguido nem apresentação de Rol de Testemunhas, pese embora se pudesse iniciar o julgamento sem a presença do arguido [...] sempre se deveria designar nova data para o prosseguimento da audiência, com a convocação do arguido para eventual interrogatório.
Não o tendo sido feito [...] não se verifica o necessário pressuposto da absoluta imprescindibilidade da presença do arguido para a descoberta da verdade material exigida pelo art.º 333.º, n.º 2 do C.P.P., pelo que [...] foi efectivamente cometida a nulidade do artº 119º, al.c) do CPP [....]
Não se entendendo assim, em face da matéria de facto dada como assente [...] no que toca às demais questões suscitadas pelo arguido, sufragando a esse propósito a resposta à motivação de recurso [...]”, é de parecer que “também não lhe assistirá qualquer razão”.
Cumprido o disposto no artº 417º, n.º 2 do CPP, o arguido remeteu-se ao silêncio.
Oportunamente foi decidido não admitir a requerida renovação da prova.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
*
II.a) É a seguinte a decisão proferida sobre a matéria de facto e respectiva justificação:
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia … de …de …, cerca das … horas e … minutos, o arguido conduzia o seu veículo automóvel no …, em ….
2. Nessa altura, foi mandado parar pela G.N.R. de … que ali se encontrava a efectuar uma operação de fiscalização e que o chamou à atenção por transportar uma criança no banco traseiro sem cadeira de segurança.
3. Perante isto o arguido dirigiu-se ao agente da autoridade B e, elevando o tom de voz, proferiu as seguintes expressões “É pá, se quiser multar multe, que se foda, vocês andam-me só a perseguir”, “eu não mostro documentos nem o caralho” e “tome lá a merda dos documentos, estes gajos andam só a foder-me os cornos, perseguem-me foda-se. Eu com uma idade destas tenho que os aturar”.
4. O arguido ao proferir as expressões referidas agiu livre, deliberada e conscientemente, ofendendo, como pretendia, a honra e dignidade do ofendido, sabendo que o mesmo era guarda da G.N.R. e que se encontrava no exercício das suas funções.
4. Sabia o arguido que a sua descrita conduta era proibida.
5. O arguido é dono de uma farmácia e de um automóvel marca Mercedes com cerca de 3 a 4 anos.
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Não se provou qualquer outro facto com relevância para a decisão da causa.
Motivação da decisão sobre a matéria de facto
O Tribunal fundou a sua convicção, para dar como provados os factos constantes da acusação, que resultaram provados, na apreciação conjugada, critica e, em confronto, de toda a prova produzida em audiência, designadamente nos depoimentos das duas testemunhas de acusação, as quais depuseram de forma credível e isenta.
Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se no C.R.C. de fls. 42.

II.b) Sendo as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum, conforme jurisprudência pacífica do STJ, a primeira questão que reclama solução, por exigência dos princípios da precedência lógica e da prejudicialidade, consagrados na lei adjectiva, é a de saber se a audiência de julgamento não deveria ter sido adiada, face à ausência do arguido.
Para responder a esta questão importa reter o seguinte quadro circunstancial:
O arguido prestou termo de identidade e residência, em conformidade com o disposto no artº 196º do CPP (diploma a que pertencem todas as disposições legais que vierem a ser citadas sem menção de origem), na redacção introduzida pelo DL n.º 320-C/2000, de 15DEZ.
Inicialmente marcada para 27MAR03, a audiência de julgamento foi adiada para 1ABR03, por motivo de doença da Mª Juiz titular do processo (data em que viria a realizar-se, na ausência do arguido, como se verá).
Regularmente notificado de que as datas anteriormente designadas no despacho previsto no artº 312º (27MAR03 e 10ABR03) ficavam sem efeito e bem assim da nova data marcada para a realização da audiência, com a advertência de que, “faltando, poderia a audiência ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos possíveis pelo seu defensor”, o arguido não compareceu à audiência de julgamento [1] .
Antes do início da audiência foi junto ao processo um atestado médico, datado de 1ABR03 (data da realização da audiência), em que se refere que o arguido “não pode comparecer no Tribunal por se encontrar doente a partir do dia 1/4/03 com duração provável de cinco dias”.
Aberta a audiência, considerando que “não se encontra presente e não informou o local onde se encontra, conforme o artº 117º do CPP e ao abrigo do artº 116º do mesmo código”, o Mª Juiz condenou o arguido na multa processual de 2UCs e, por outro lado, entendendo que “a presença do arguido não se mostra imprescindível à descoberta da verdade material”, determinou “o início da audiência de julgamento na sua ausência, sendo, para todos os efeitos, representado pela sua Ilustre Defensora Oficiosa”, bem como ordenou “a gravação da prova a produzir”.
Finda a produção da prova e concedida a palavra, sucessivamente, à Digna Representante do MP e à Ilustre Defensora do arguido para alegações orais, o Mº Juiz proferiu imediatamente a sentença ora posta em crise.
Sustenta o arguido, em síntese - com o aplauso do o Exº Procurador-Geral-Adjunto nesta instância - que o julgamento na sua ausência lhe “retirou a possibilidade de defesa quando se encontrava impossibilitado de comparecer ao julgamento por razões de saúde, conforme comprova atestado médico oportunamente junto aos autos.
Deverá ainda referir-se em abono da verdade - prossegue o arguido - que estávamos perante uma primeira marcação de audiência de julgamento, não havendo qualquer precedente de ausência por parte do arguido ou suspeição da sua intenção de se «furtar à mão da justiça», estando ainda o tribunal perante um cidadão sem quaisquer antecedentes criminais.”
Passadas em revista as vicissitudes do processo que importa ter presentes, a fundamentação em que se ancora a decisão de realizar a audiência, na ausência do arguido, bem como os argumentos que, em substância, aduzem o recorrente e o Exº Procurador-Geral-Adjunto, em abono da sua tese, aliás douta, vejamos qual a resposta a dar à questão que nos ocupa.
Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o inicio da audiência, o presidente toma todas as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
É o que estatui o n.º 1 do artº 333º, na redacção introduzida pelo cit. DL n.º 320-C/2000.
Nos termos do n.º 2 do mesmo artº, se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artº 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artº 341º. Sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artº 117º.
E o n.º 3 do mesmo art.º estabelece que, no caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artº 312º, n.º 2.
Antes do início da audiência de julgamento, foi junto ao processo, como se referiu, um atestado médico dando conta da impossibilidade de comparência do arguido no tribunal, por motivo de doença, a partir de 1ABR03 (data designada para a audiência de julgamento) com duração provável de cinco dias, sobre o qual o tribunal não se pronunciou expressamente, mas do qual tomou conhecimento, como se conclui do despacho proferido após a abertura da audiência: “Uma vez que o arguido não se encontra presente e não informou o local onde se encontra, conforme o artº 117º do CPP, ao abrigo do artº 116º do mesmo código, condeno o arguido na multa processual de 2UCs”.
Decorre igualmente do mesmo despacho que o tribunal não atribuiu relevância àquele atestado médico, quiçá por ser omisso quanto à indicação do local onde o arguido podia ser encontrado, ou porque não especifica a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento do arguido. [2]
Não estando o arguido presente na hora designada para o início da audiência - tendo sido, porém, regularmente notificado e estando sujeito a termo de identidade e residência - e, por outro lado, considerando o tribunal que a presença daquele desde o início da audiência não era absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, não se questiona o acerto da decisão do Mº juiz de iniciar a audiência sem a presença do arguido, sendo representado, para todos os efeitos, pela sua ilustre Defensora nomeada. Tal decisão colhe apoio no disposto nos n.ºs 1 e 2 do cit artº 333º. E a mesma decisão continuaria a não ser passível de reparo mesmo que a falta do arguido tivesse como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artº 117º, nomeadamente a doença, conforme consta do referido atestado médico.
A circunstância de nunca antes ter havido “qualquer efectivo adiamento da audiência” não constitui factor a que a lei (artº 333º, n.ºs 2 e 3) mande atender na decisão de adiar ou não a audiência.
Sublinhe-se que, nos termos do n.º 1 do artº 333º, o adiamento da audiência só é permitido se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido desde o início da audiência.
Flui claramente da expressão “absolutamente indispensável”, utilizada pelo legislador, que para o adiamento da audiência não basta que a presença do arguido desde o início da audiência seja útil ou mesmo indispensável para a descoberta da verdade material; a lei exige mais: exige que seja absolutamente indispensável.
O juiz deve, pois, ser particularmente exigente no que concerne à verificação deste pressuposto do adiamento da audiência, um dos principais entraves ao normal andamento dos processos.
Com se pondera na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 41/VIII, que deu origem ao cit. DL n.º 320-C/2000, “atendendo ao facto de uma das principais causas da morosidade processual residir nos sucessivos adiamentos das audiências de julgamento por falta de comparência do arguido, limitam-se os casos de adiamento da audiência em virtude dessa falta, nomeadamente quando aquele foi regularmente notificado.
Com efeito, a posição do arguido no processo penal é protegida pelo princípio da presunção de inocência, previsto no n.º 2 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa, que surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo [...].
Se o arguido já beneficia deste regime processual especial, não pode permitir-se a sua total desresponsabilização em relação ao andamento do processo, ou ao seu julgamento, razão que possibilita, por um lado, a introdução da modalidade de notificação por via postal simples [...] e por outro lado permite que o tribunal pondere a necessidade da presença do arguido na audiência, só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a sua presença desde o início da audiência se afigure absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material.
Se tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artº 117º, a audiência não é adiada, podendo o tribunal inverter a ordem de produção de prova prevista no artº 341º, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas e as suas declarações documentadas, sem prejuízo da possibilidade de aplicação do disposto no n.º 5 do artº 117º [...]”.
Bem andou, pois, o Mº Juiz em não adiar a audiência.

II.c) Também a decisão de realizar a audiência (e não apenas de a iniciar) na ausência do arguido não é passível de censura.
Dispõe o n.º 3 do artº 333º que, “no caso referido no número anterior [não adiamento da audiência por o tribunal considerar que pode começar sem a presença do arguido, ou por a falta do arguido ter como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artº 117º], o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artº 312º, n.º 2.”
Não tendo a audiência sido realizada na primeira data designada no despacho previsto no artº 312º - por razões não imputáveis ao arguido - não pode este ser privado do direito de requerer, através do seu advogado constituído ou do seu defensor nomeado, que seja ouvido numa segunda data, que a lei (n.º 2 do artº 312º) exige seja marcada justamente “para a realização da audiência em caso de adiamento, nos termos do artº 333º, n.º 1, ou para audição do arguido a requerimento do seu advogado ou defensor nomeado ao abrigo do artº 333º, n.º 3”.
Por outras palavras: tendo sido dada sem efeito, pelas razões apontadas, a primeira (com, aliás, a segunda, como se referiu) tudo se passa como se a audiência tivesse sido realizada na primeira data marcada no despacho previsto no artº 313º, podendo, pois, a ilustre Defensora do arguido requerer que este fosse ouvido em data a designar ad hoc já que, repete-se, a segunda data designada ao abrigo e para os finas a que alude o disposto no artº 312º, n.º 2 havia sido dada sem efeito.
Só que a ilustre Defensora do arguido não requereu, como podia - e devia se entendesse útil para a defesa do arguido - que este fosse ouvido. Nada tendo sido requerido nesse sentido nem tendo o tribunal a quo considerado necessário ouvir o arguido, redundaria em pura inutilidade a marcação de data para ouvir o arguido.
O árbitro da necessidade de ouvir o arguido, com vista à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, é o tribunal. Se a Ilustre Defensora nomeada ao arguido entende que “não estavam reunidos os elementos necessários à boa decisão da causa, sendo imprescindível a presença do arguido”, deveria ter requerido a audição deste em data a designar. E se o tribunal indeferisse a hipoteticamente requerida audição do arguido, deveria a sua Ilustre Defensora interpor o atinente recurso. De salientar, a este propósito, que o arguido não apresentou contestação nem rol de testemunhas. “A existência de duas versões antagónicas sobre os factos que constituem o cerne da sentença que ora se impugna”, só agora, na motivação do recurso, é invocada.
O referido atestado médico não altera os dados do problema.
Efectivamente, seja porque o tribunal considere que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, seja porque a falta do arguido tem como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artº 117º (nos quais se inclui a doença), a consequência é sempre a mesma: a audiência não é adiada (n.º 2 do artº 333º); em ambas as situações o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido, pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artº 312º, n.º 2, como resulta do n.º 3 do artº 333º. Vale isto por dizer que a lei equipara as duas situações para aqueles efeitos.
E a ausência do arguido ou do seu defensor só constitui a nulidade (insanável) prevista na al.c) do artº119º, pelo MP nesta instância invocada, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência, o que, como vimos, não é o caso. Tal questão apenas poderia colocar-se se a ilustre Defensora do arguido tivesse requerido a audição deste ou o tribunal a considerasse necessária para a descoberta da verdade.
Anular, in casu, o julgamento seria fazer tábua rasa dos dispositivos legais dos n.ºs 1, 2 e 3 do artº 333º e das razões que lhes subjazem, explicitadas na exposição de motivos da referida Proposta de Lei n.º 41/VIII e no ponto 6 da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, de que emergiu a Lei n.º 59/98, de 25AGO; o mesmo é dizer que seria negar a possibilidade da realização de audiências de julgamento na ausência do arguido, naquele artigo consagrada e constitucionalmente legitimada no cit. artº 32º, n.º 2.
Improcedem, assim, as suscitadas questões do não adiamento e realização da audiência na ausência do arguido.

II.d) Melhor sorte não merece, salvo o devido respeito, a questão da alegada fundamentação da sentença “tão-somente nos indícios carreados para os autos durante a fase do inquérito e que serviram de base à acusação.”
Para concluir pelo infundado desta questão basta atentar na motivação da decisão sobre a matéria de facto.
Se o recorrente pretende argumentar que os meios de prova em que o tribunal louvou a sua convicção são os mesmos que serviram de base à acusação, ou que as testemunhas inquiridas na audiência se limitaram a reafirmar os depoimentos prestados na fase do inquérito, dir-se-á que tal circunstância não coloca em crise a credibilidade de tais depoimentos (ao invés) nem permite sustentar que a sentença recorrida “fundamenta-se tão-somente nos indícios carreados para os autos durante a fase do inquérito e que serviram de base à acusação.” Produzidos em julgamento, ficaram submetidos ao contraditório, neles podendo, pois, o tribunal alicerçar a sua convicção (artº 355º).

II.e) Defendendo que “estamos perante duas versões antagónicas sobre os factos que constituem o cerne da sentença que ora se impugna”, invoca o arguido, por último, o princípio in dubio pro reo “em conjunção com o princípio da presunção de inocência até trânsito em julgado de sentença, pelo que na dúvida, o arguido deverá ser absolvido dos factos relativamente aos quais é acusado.”
Sem razão, porém.
O princípio in dubio pro reo - que surge associado ao da presunção de inocência do arguido, constituindo ambos “a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena” [3] - impõe ao juiz que, na decisão de factos incertos, relevantes para a solução da causa, se pronuncie em sentido favorável ao arguido, bem como proíbe, em processo penal, a inversão do ónus da prova em detrimento do arguido.
A “dúvida razoável” subjacente ao princípio in dubio pro reo é, porém, aquela que persiste no espírito do juiz, que não na mente do recorrente ou de qualquer outro interveniente processual.
E, como se decidiu no Ac. do STJ, de 24MAR99 (CJ/STJ, ano VII, t. I, p.247), “a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o Colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”, o que não é, manifestamente, o caso.
Enfim, a discordância com a decisão do tribunal recorrido no que respeita à forma como este teria apreciado a prova produzida em audiência de julgamento, não legitima a invocação do princípio in dubio pro reo.

III- Face ao exposto, na improcedência do recurso, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em cinco UCs a taxa de justiça.

Évora, 3 de Fevereiro de 2004

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Manuel Nabais
Sérgio Poças
Orlando Afonso
Ferreira Neto




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[1] O arguido foi igualmente advertido de que, caso faltasse e não justificasse a falta “no prazo legal (por motivo previsível: com cinco dias de antecedência; por motivo imprevisível: no dia e hora designados - art.º 117°, n.º 2 do C.P.P.)”, ficava sujeito “ao pagamento de uma soma entre 2 e 10 UCs (U.C = € 79,81), bem como a detenção pelo tempo estritamente necessário à realização da diligência ou a aplicação da medida de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível, nos termos do art.º 116.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal”.
[2] Como defende Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed, p.300), continua válida a doutrina que emana do Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ, de 3ABR91, publicado in DR, I série-A, de 25MAI91, segundo o qual o atestado médico, para justificar a falta de comparência perante os serviços de justiça de pessoa regularmente convocada ou notificada, não tem de indicar o motivo concreto que impossibilita essa comparência ou a torna gravemente inconveniente, mas apenas atestar que o faltoso se encontra doente e impossibilitado ou em situação de grave inconveniência, por doença, de comparecer.
Esta doutrina deve, porém, agora ser adaptada aos novos textos, maxime ao do n.º 4 do cit. artº 117º, o que significa que o atestado médico deve descrever, mesmo sumariamente, o estado em que o doente se encontra e que o impede de comparecer, mas não se exige em caso algum que o atestado diga qual é, concretamente, a doença de que o faltoso padece, pois que isso afectaria ou poderia afectar a privacidade, violando comandos constitucionais, normas da deontologia médica e até relativas ao segredo profissional.
[3] J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 204.