SERVIÇO DOMÉSTICO
CASEIRO
Sumário


1. O contrato de serviço doméstico para além das actividades de confecção de refeições e lavagem e tratamento de roupa, limpeza e arrumo da casa, também pode abranger outras actividades ligadas ao tratamento de animais domésticos, execução de serviços de jardinagem e outras tarefas externas relacionadas com aquelas actividades.
2. As funções de um caseiro integram a execução trabalhos necessários à exploração de produtos agrícolas e hortícolas podendo dirigir ou contratar trabalhadores de acordo com instruções da entidade patronal.
3. A categoria profissional em que melhor se enquadram as funções de um trabalhador cujo núcleo essencial esteja relacionado com a limpeza e arrumo da casa, lavagem e tratamento de roupa da casa, confecção de algumas refeições, cultivo de uma pequena horta e jardim, pequena criação de galinhas e coelhos e um porco por ano, é de trabalhador do serviço doméstico e não a de caseiro.

Chambel Mourisco

Texto Integral

Processo nº 2977/03-2
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:


A. ...., instaurou acção com processo comum emergente de contrato individual de trabalho, contra B.... e C...., pedindo a condenação destes no pagamento:
a) da quantia de 8.682.556$00 de diferenças salariais, subsídios de férias e de Natal desde 1987 a Junho de 2000, com juros de mora à taxa legal desde o vencimento de todas as quantias que à data da propositura da acção ascenderiam a 6.222.242$50;
b) da quantia de 1.990.550$00 de indemnização pela violação do direito a férias, também com juros de mora à taxa legal desde o vencimento de todas as quantias peticionadas, que à data da propositura da acção ascenderiam a 1.210.741$50;
c) e ainda juros de mora à taxa legal sobre as quantias referidas em a) e b) desde a citação até integral pagamento.
Para tanto, alega, fundamentalmente, o seguinte:
- foi admitida ao serviço dos R.R. em 8/01/1987 para trabalhar de 2ª a sábado sem qualquer horário preestabelecido, exercendo as funções de feitor/encarregado de exploração e caseiro, mediante o salário mensal de 1.740$00 com direito a habitar casa, utilizar o veículo ligeiro da casa e fornecendo-lhe os alimentos com que confeccionava as respectivas refeições;
- tal situação manteve-se até 26/07/2000, data em que a Autora fez cessar a relação laboral por carta registada com aviso de recepção;
- o trabalho por si desempenhado durante o período que mediou entre 7/01/1987 e 1/03/1990 é enquadrável na categoria de feitor pelo que tinha direito aos seguintes salários mensais: 33.650$00, em 1987; 38.250$00, em 1988, 1989 e 1990;
- a partir de 1991, as suas funções passaram a ser de caseiro pelo que lhe assistia o direito ao seguinte salário: 42.900$00, em 1991; 48.000$00, em 1992, 1993 e 1994; 55.700$00, em 1995; 58.200$00, em 1996 e 1997, 62.000$00, em 1998; 63.900$00, em 1999 e 2000;
- atento o salário pago e aquele a que linha direito os Réus devem-lhe as seguintes diferenças a título de salário e subsídios de férias e de Natal: 450.220$00, em 1987; 511.470$00, em 1988; 502.710$00, em 1989; 495.990$00, em 1990; 552.960$00, em 1991; 619.260$00, em 1992; 614.040$00, em 1993; 610.320$00, em 1994; 713.851$00, em 1995; 752.005$00, em 1996; 740.820$00 em 1997; 790.150$00, em 1998; 881.460$00, em 1999; e 447.300$00, em 2000, diferenças essas a que agora acrescem juros desde a data do vencimento de cada prestação;
- Porque durante o período de execução do contrato nunca gozou férias, nem os Réus as marcaram seja por acordo seja unilateralmente, é-lhe devida a indemnização cor-respondente ao triplo da retribuição por férias a que tinha direito, o que perfaz a quantia global de 1.990.550$00, a que acrescem os juros legais.

Tentada uma conciliação que não logrou êxito, vieram os Réus contestar a acção, pugnando pela total improcedência da mesma e pedindo a condenação da Autora, como litigante de má-fé, em indemnização a liquidar em execução de sen-tença. No essencial alegam que a Autora nunca foi trabalhadora dos Réus, mas apenas empregada doméstica dos pais do Réu; por morte destes o Réu deixou que a Autora continuasse a habitar na casa em que havia trabalhado, não lhe exigindo qualquer renda nem a prestação de qualquer tarefa; para fazer face às despesas da casa os Réus enviavam-lhe cheques e tratavam-na como pessoa de família, tendo passado vários Natais com eles em Lisboa e gozado por várias vezes férias numa casa dos Réus no Algarve.

Procedeu-se à audiência de julgamento e o Sr Juiz consignou a matéria de facto que resultou provada, proferindo depois a sentença, de fls. 288 a 294, julgan-do a acção totalmente improcedente e absolvendo os Réus do pedido.

Inconformada, a A. interpôs recurso dessa decisão para este Tribunal da Relação de Évora, que pelo acórdão de fls. 362 a 370, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recor-rida.

Novamente inconformada a A. interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça que decidiu reenviar o processo ao Tribunal recorrido para que fosse ampliada a matéria de facto, com a especificação dos concretos serviços prestados pela A. aos R.R. e que resultam dos documentos de fls. 68 a 87 e 89 a 91.

O Tribunal da Relação de Évora decidiu anular a decisão da primeira instância para, na repetição do julgamento, ser esclarecida e ampliada a matéria de facto que ficou vertida no ponto 10. da matéria de facto, por forma a que fiquem especificados os concretos serviços que a A. prestou aos Réus em face dos documentos de fls. 68 a 87 e 89 e 91 dos autos, tendo em atenção o alegado pela A. nos art. 6º a 53º da respectiva petição, e, além disso, expurgar outros pontos da matéria de facto do indicado vício de pura remissão para documentos, podendo ainda a apreciação do tribunal abranger outros pontos da matéria de facto por forma a evitar contradições na decisão.

O Tribunal recorrido efectuou novo julgamento tendo julgado a acção parcialmente procedente, por provada e consequentemente, condenou os R.R. a pagarem à A. a quantia de € 11.250,89, acrescida de juros, contados à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento.

Inconformadas com a sentença, apresentaram recurso de apelação a A. e os R.R..
A A. nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
a) A ponderação de todos os factos apurados em sentença, nomeadamente, os vertidos em documento para o qual se remete, como expressamente reproduzido no teor da sentença recorrida, constitui matéria essencial para análise de todas as questões postas em recurso;
b) A apreciação destes factos, tendo em conta o pedido de classificação profissional da A., reconduz-se a uma questão de direito por, para a sua determinação se ter de apreciar se as tarefas concretamente exercidas, correspondem ou não ao núcleo essencial das funções que, pelo instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, integram a função prevista para a pretendida categoria;
c) A sentença recorrida violou o disposto no art. 5º, da L.C.T. e o disposto no BTE, 1ª Série, nº14, de 15/4/1998, ao classificar a actividade desenvolvida pela A. como de empregada doméstica, quando a mesma é integrável no período que respeita a 1987/1990 na categoria de encarregado de exploração ou feitor e no período de 1990/2000 na categoria de caseiro;
d) A sentença recorrida violou o disposto no art. 22º da L.C.T., ao reconhecer que a A. prestou serviços que não se encontram integrados na sua categoria profissional sem lhes fazer corresponder o respectivo tratamento mais favorável;
e) A sentença recorrida violou o princípio de a trabalho igual salário igual, ao pretender reconduzir o núcleo da actividade desenvolvida pela A. ao de empregada doméstica, consideração que nunca se poria caso a A. fosse um homem;
f) A sentença recorrida violou o disposto no art. 13º da Lei das férias, feriados e faltas ao não reconhecer que não tendo a entidade patronal zelado por que a A. gozasse férias, beneficiando da prestação do trabalho desta, incorria na cominação indemnizatória prevista no art. 13º do DL nº 874/76 ( cfr. Ac. do STJ de 3/5/89, Acs. Dout., nº334, pág. 1280).
g) A Sentença recorrida violou o disposto no art. 2º do DL nº 69/85, de 18/03 quando absolveu os R.R. dos juros vencidos desde a data da sua constituição em mora por falta do pagamento integral dos salários, férias e subsídio de férias devidos à A..
Termina pedindo a revogação da decisão que deve ser substituída por outra que condene os R.R. nos exactos termos peticionados na acção.

Por seu turno, os R.R., formularam, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
1. Os recorrentes nunca celebraram qualquer contrato com a recorrida, seja de serviço doméstico, seja de qualquer outro tipo;
2. Caso venha a ser considerado ter existido um contrato de serviço doméstico, era à Autora/Recorrida que cabia provar que o mesmo havia sido celebrado a tempo inteiro, por tal ser um facto constitutivo do direito às diferenças salariais por si peticionadas;
3. Dos factos provados não resulta qual o horário de trabalho da Autora/Recorrida, apenas se podendo concluir que o alegado contrato foi celebrado a tempo parcial;
4. Sendo o contrato a tempo parcial, o valor de referência a ter em consideração para apuramento de eventuais diferenças salariais, deverá ser proporcional ao horário de trabalho da Recorrida;
5. Ainda que o contrato de trabalho houvesse sido celebrado a tempo inteiro, deveria ser adicionado ao montante pago em dinheiro, o valor correspondente ao fornecimento de alojamento e alimentação, os quais cumprem as proporções máximas legalmente permitidas;
6. A soma dos valores em dinheiro e em espécie excedem claramente o montante legalmente estabelecido para a remuneração mínima garantida para o trabalho doméstico, quer no ano 2000, quer nos anos anteriores;
7. Os Réus/ Recorrentes não devem à Recorrida qualquer quantia a título de retribuição, de diferenças salariais, ou de proporcionais de férias, subsídios de férias ou subsídio de Natal.
Terminam pedindo que seja dado provimento ao recurso e, em consequência, a sua absolvição do pedido.

A A. contra-alegou pugnando pela improcedência da apelação dos R.R..
O R.R. também contra-alegaram, tendo terminado por pedir a improcedência do recurso da A. e que seja mantida a decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente o pedido da A..

Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência das apelações.

Os autos foram com vista aos Ex.mos Juízes-adjuntos.
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões do recorrente temos que as questões a decidir são as seguintes:
1. Determinar se entre a A. e os R.R. existia um vínculo de natureza laboral;
2. Saber, face às funções desempenhas pela A., qual a sua categoria profissional;
3. Saber se são devidas diferenças salariais;
4. Saber se é devida indemnização por violação do direito a férias durante o período da execução do contrato.

Na sentença recorrida foram consignados como provados os seguintes factos:
a) A autora, ainda jovem, foi trabalhar para casa dos pais do réu como empregada doméstica;
b) Após o falecimento da mãe do réu a autora passou a viver maritalmente com o pai do réu, o que aconteceu até à morte daquele em 1987, mas continuando a trabalhar como empregada doméstica;
c) Após a morte do pai do réu continuou a viver na casa que fora daquele, sita no...;
d) Cuidando da casa, lavando a roupa da casa, plantando uma pequena horta no quintal da casa, criando galinhas e coelhos e num ano um porco e cuidando das flores e árvores do quintal da dita casa;
e) Quintal esse que tem cerca de 832 m2;
f) E tratando ainda, a pedido do réu, de assuntos relacionados com os diversos prédios que o réu herdou de seu pai, constantes dos documentos de fls. 10 a 35;
g) Assuntos esses que foram diminuindo com o desenrolar do tempo;
h) O rebanho de ovelhas foi abatido em 1988, o prédio “principal”, a herdade do ..., foi arrendado em 1990 (doc. de fls.223 a 226) e os outros prédios votados quase ao abandono, por os réus não terem praticamente nenhuma actividade agrícola nesses prédios;
i) Resumindo-se essa actividade agrícola, após o arrendamento da Herdade do ..., a esporádicas apanhas de azeitona e negociação do azeite, podas das oliveiras, a dois cortes de árvores (eucaliptos) e pouco mais;
j) Sendo certo que antes desse arrendamento a autora tratou de assuntos relacionados com o pastor do rebanho que foi abatido e com diversos serviços relacionados a sua maioria com a Herdade do ..., que se acham descritos nos docs. de fls. 68 a 87, 89 e 91, que aqui se dão por reproduzidos e que são nomeadamente os seguintes:

I) – 1988 (docs. De fls. 68 a 72, 80 a 83 e 86 e 87):
1) – Pagamento a diversos trabalhadores que laboravam nos prédios do R, nomeadamente aos trabalhadores do R. J. ... (tractorista e pai da A), e J. ... (pastor da casa) e a trabalhadores esporádicos, rabejadores das ovelhas, A. ... (limpar o curral, barracão etc.), tosquiador, limpadores de oliveiras, etc., sendo certo que era a A. que normalmente falava com os trabalhadores esporádicos para irem prestar serviços ao R;
2) – Pagamento da Caixa de Providência, normalmente da A. no valor actual de 7.800$00, seguro do tractor, reparação do tractor, etc.
3) – Compra de diversos produtos para a actividade das propriedades do R., nomeadamente gasóleo, adubos, sulfato de cobre, terramicina, embalagens de leite e velas vaginais, óleo para o tractor, feijão frade, etc..
4) – Venda de produtos da Herdade do ... (borregos, ovelhas, palha e azeitonas descriminados a fls. 72)
5) – Recebeu a notificação de fls. 80;
6) – Fez a compra dos produtos descriminados a fls. 81 a 83;
7) – Fez a compra, para o R., dos produtos descriminados fls. 86 e 87.
II) – 1989 (docs. de fls. 73, 74, 75, 76, 89, 90 e 91).
1) – Pagamento a diversos trabalhadores que laboravam nos prédios do R, nomeadamente aos trabalhadores do R J. ... (tractorista e pai da A,) e J. ... (pastor da casa) e a trabalhadores esporádicos, M. ..., J. ... e A. ..., sendo certo que era a A que, normalmente falava com os trabalhadores esporádicos para irem prestar serviços ao R;
2) – Pagamento da Caixa de Providência, seguro do tractor, reparação do tractor e da charrua, etc.
3) – Compra de diversos produtos para a actividade das propriedades do R, nomeadamente gasóleo, gasolina, petróleo, terramicina, óleo para o tractor, etc..
4) – Venda de produtos da Herdade do ... (carneiros, borregos, palha, azeite descriminados a fls. 74 e lenha descriminada a fls, 91)
III) – 1990 (doc. De fls. 77).
1) – Pagamento ao trabalhador do R J. ... (tractorista e pai da A,).

l) Os réus, no período compreendido entre 1987 e 2000, vinham cerca de uma vez por mês, passar o fim de semana à casa onde a autora vivia;
m) Dormindo numa cama feita com roupa lavada pela autora;
n) Comendo refeições normalmente confeccionadas pela autora;
o) Refeições essas que eram preparadas com produtos da horta que a autora plantava, com criação que a autora criava no quintal da casa e com produtos que os réus traziam de Lisboa;
p) Sendo certo que os réus levavam, por vezes, produtos da horta e da criação atrás referidos;
q) Pagando-lhe os réus pelos serviços atrás referidos uma quantia mensal, que nos últimos anos era de 30.000$00 por mês e pagando ainda as despesas da casa, nestas se incluindo as despesas de água, luz e telefone, com produtos para a horta do quintal da casa e com a criação;
r) Entre 1987 e 1999 os recibos do telefone da casa onde a autora habitava, foram emitidos em seu nome;
s) A autora era considerada pelos réus como pessoa de família, tendo uma boa relação pessoal e comendo à mesa com os réus;
t) A autora tratava o réu por Sr. ... e a ré por Sr.ª Dr.ª, sendo certo que tratava os filhos destes por “tu”, mesmo quando estes eram maiores;
u) Foram efectuados em nome do réu os descontos para a Segurança Social constantes de fls.119 a 131, que aqui se dão por reproduzidos;
v) Em 1999 a autora frequentou um curso para Ajudante de Lar;
x) A autora enviou ao réu a carta de fls. 115, que aqui se dá por reproduzida;
z) Tendo-lhe o réu enviado a carta de fls. 118, que aqui se dá por reproduzida;
aa) A casa em que a autora vivia e o respectivo quintal, constam das fotografias de fls. 267 a 272.

Feita esta enumeração, e delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações do recorrente, passaremos a apreciar as questões a decidir.

I. Determinar se entre a A. e os R.R. existia um vínculo de natureza laboral.
Nos termos do art. 1º. do DL nº. 49408, de 24/11/69, contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.
Resulta da matéria de facto provada que a A. ainda jovem, foi trabalhar para casa dos pais do R. como empregada doméstica. Após o falecimento da mãe do R. a A. passou a viver maritalmente com o pai do R., o que aconteceu até à morte deste em 1987.
Após a morte do pai do Réu marido, a A. continuou a viver na casa que fora daquele, sita no ..., e foi mantida como empregada dos R. R., que tinham a sua residência permanente em Lisboa, mas deslocavam-se uma vez por mês à casa onde a A. vivia.
A A. cuidava da casa e lavava a roupa da casa, plantava uma pequena horta no quintal da casa, cuidava das flores e árvores do dito quintal, criava galinhas e coelhos e um porco por ano.
Os réus, no período compreendido entre 1987 e 2000, deslocavam-se, cerca de uma vez por mês, a passar o fim de semana à casa onde a autora vivia, onde pernoitavam numa cama feita com roupa lavada pela A.. Comiam refeições normalmente confeccionadas pela A., que eram preparadas com produtos da horta que a autora plantava, com criação que a autora criava no quintal da casa e com produtos que os réus traziam de Lisboa.
Os R.R. levavam para a sua residência, por vezes, produtos da horta e da criação atrás referidos.
Como contrapartida pelos serviços atrás referidos, os R.R. pagavam à A. uma quantia mensal, que nos últimos anos era de 30.000$00 por mês e pagando ainda as despesas da casa, nestas se incluindo as despesas de água, luz e telefone, com produtos para a horta do quintal da casa e com a criação.
Perante esta factualidade temos de concluir que entre a A. e os R.R. se manteve uma relação laboral que já perdurava desde o tempo em que a A. foi trabalhar para a casa dos pais do R. marido.
Na verdade, da matéria de facto provada resulta que, após a morte do pai do R. marido, verificou-se uma continuidade nas funções que eram desempenhadas pela A..
A subordinação económica da A. em relação aos R.R. é patente pois vivia na casa destes, com as despesas da água, luz e telefone pagas, produzia produtos hortícolas e tinha criação, a expensas dos réus, pagando-lhes estes ainda uma quantia mensal que nos últimos anos era de 30.000$00.
Quanto à subordinação jurídica temos de ter presente que apesar de a autora ser considerada pelos R.R. como pessoa de família, toda a matéria de facto deixa transparecer um estado de dependência potencial, resultante da disponibilidade da A. a quem os R.R. pagavam para executar o trabalho. Esse estado de dependência potencial manifestado na disponibilidade da A. para cuidar da casa dos R.R. e servi-los é suficiente para caracterizar o elemento subordinação jurídica.
Temos assim, que entre a A. e os R.R. existia um verdadeiro contrato de trabalho pois a A. encontrava-se numa situação de sujeição em relação à vontade dos R.R. no que diz respeito a prestação da sua actividade dependendo economicamente deles.

II. Saber, face às funções desempenhas pela A., qual a sua categoria profissional;
A A., defende que a natureza das funções que desempenhou por conta dos R.R., no período que mediou entre 7/1/87 e 1/3/90, é enquadrável na categoria de feitor, e que nos anos de 1991 e seguintes, as funções que exerceu se limitavam à categoria de caseiro.
Os R.R., por seu turno, defendem que a existir contrato de trabalho era um contrato de serviço doméstico.
Encarregado de exploração ou feitor é o trabalhador que coordena a execução dos trabalhos de todos os sectores da exploração agrícola, pecuária ou silvícola, sendo responsável pela gestão da respectiva exploração.
Caseiro é o trabalhador que, habitando uma casa situada numa determinada propriedade ou exploração tem a seu cargo vigiar e zelar por esta, executando trabalhos necessários à exploração de produtos agrícolas e hortícolas, e pode dirigir ou contratar trabalhadores de acordo com instruções da entidade patronal – cfr. CCT aplicável ao sector (BTE, 1ª série, nº14, de 15/4/98.
Resulta do art. 2º do DL nº 235/92, de 24/10 e anteriormente do art. 2º do DL nº 508/80, de 21/10, que o contrato de serviço doméstico para além das actividades de confecção de refeições e lavagem e tratamento de roupa, limpeza e arrumo da casa, também pode abranger outras actividades ligadas ao tratamento de animais domésticos, execução de serviços de jardinagem e outras tarefas externas relacionadas com aquelas actividades.
Da matéria de facto provada, resulta que os R.R. nunca chegaram a ter uma exploração agrícola, tendo apenas, após a morte do pai do R. marido, gerido a desactivação da exploração agrícola que aquele tinha desenvolvido. Assim, logo em 1988, o rebanho foi extinto, em 1990 foi arrendado o prédio principal da exploração, a herdade do ..., tendo os restantes prédios sido votados ao abandono.
A A., no período que mediou entre 1987 e 1990, após a morte do pai do R. marido, tratou de assuntos relacionados com as propriedades que o R. herdou do pai ( cfr. al. f) a j) da matéria de facto).
Tais assuntos, não foram assim tão relevantes, em termos de poder considerar-se que a A. geria as referidas propriedades ou estava encarregada da respectiva exploração.
A A., a pedido do R. marido, limitou-se no período que se seguiu à morte do pai deste, a tratar de alguns assuntos relacionados com a desactivação da exploração agrícola e pecuária que até então existia, assuntos esses que foram diminuindo com o desenrolar do tempo ( al. f) e g) dos factos provados).
A actividade desenvolvida pela A., nesse domínio, até é compreensível pois tinha vivido maritalmente com o pai do R. marido e tinha relações quase familiares com os R.R..
Desactivada a exploração agrícola restou apenas algumas actividades sazonais como a apanha da azeitona, a negociação do azeite, a poda das oliveiras e cortes de árvores ( cfr. al. i), relativamente às quais a intervenção da A. se limitava a satisfazer alguns recados que os R.R. lhe transmitiam, no âmbito da relação quase familiar que entre eles existia.
A matéria de facto provada não permite qualificar as relações entre A. e R.R. como de trabalho agrícola, abrangidas pela PRT para a agricultura, publicada no BTE, 1ª série, nº21 de 8/6/1979 ou a qualquer contrato colectivo de trabalho aplicável ao sector da agricultura, e muito menos a qualificação da A. como encarregado de exploração ou caseiro, conforme CCT para a agricultura aplicável na área do distrito de Portalegre, publicado no BTE, 1ª série, nº7, de 22/2/1988 com sucessivas alterações.
A actividade desenvolvida pela A enquadra-se perfeitamente, e tão só, no âmbito do contrato de serviço doméstico pois o núcleo essencial das suas funções estavam relacionadas com a limpeza e arrumo da casa, lavagem e tratamento de roupa da casa, confecção de algumas refeições, cultivo da horta e jardim criação de galinhas e coelhos e um porco por ano.
Estas funções, são no fundo as desempenhadas por qualquer dona de casa da província rural. A dimensão das mesmas fica aquém das funções de um caseiro que integram a execução trabalhos necessários à exploração de produtos agrícolas e hortícolas podendo dirigir ou contratar trabalhadores de acordo com instruções da entidade patronal.
No caso concreto não existia qualquer exploração, a horta era pequena e a criação de animais reduzida. Como resulta da al. p) dos factos provados os R.R. só às vezes levavam produtos da horta e da criação.
Todos estes factos denotam que a actividade desenvolvida na casa dos R.R. não era assim tão intensa que exigisse um caseiro.
A categoria profissional em que melhor se enquadram as funções de um trabalhador cujo núcleo essencial esteja relacionado com a limpeza e arrumo da casa, lavagem e tratamento de roupa da casa, confecção de algumas refeições, cultivo de uma pequena horta e jardim, pequena criação de galinhas e coelhos e um porco por ano, é de trabalhador do serviço doméstico e não a de caseiro.
Assim, a sentença recorrida não merece censura na parte em que considerou estarem as relações entre a A. e os R.R. sujeitos ao regime jurídico do contrato de serviço doméstico.
A A., defende que a sentença recorrida violou o art. 22º da L.C.T., ao reconhecer que a A. prestou serviços que não se encontram integrados na sua categoria profissional sem lhes fazer corresponder o respectivo tratamento mais favorável.
Não nos parece que lhe assista razão pois como já se referiu, o núcleo essencial das funções que a A. desempenhava enquadravam-se no âmbito do contrato de serviço doméstico. As demais funções eram efectuadas, esporadicamente, a pedido dos R.R., e devido ao facto de existir uma relação quase familiar, a que não era estranha a relação marital que existiu entre a A. e o pai do R. marido.
Alega ainda a A. que a sentença recorrida violou o princípio de a trabalho igual salário igual, ao pretender reconduzir o núcleo da actividade desenvolvida pela A. ao de empregada doméstica, consideração que nunca se poria caso a A. fosse um homem.
Esta alegação carece em absoluto de fundamento pois no caso dos autos foi apreciada a situação de facto concreta da A., que é mulher, não sendo legítimo especular qual a solução que o tribunal encontraria caso se tratasse de um homem a desempenhar as referidas funções.
Não nos parece legítimo utilizar o preconceito como arma de arremesso para atacar uma decisão judicial que nem sequer foi chamada a tomar posição sobre a questão.

III. Saber se são devidas diferenças salariais;
Não tendo sido reconhecido à A. a categoria de feitor e caseiro, como pretendia, também lhe não pode ser reconhecido o direito ao salário correspondente, nem às diferenças salariais pedidas em função daquelas categorias.
No entanto, a sentença recorrida entendeu serem devidas à A. as diferenças salariais, entre a quantia que lhe era paga mensalmente de 30.000$00 e os valores da remuneração mínima anualmente garantida para o serviço doméstico desde 1991 até 26/6/2000, data da cessação do contrato. Foram assim os R.R. condenados a pagar à A. a quantia de € 11. 250,89, acrescida de juros, contados à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento.
Os R.R., nas suas conclusões, defendem que não são devidas diferenças salariais pois em seu entender tem de se concluir que o contrato foi celebrado a tempo parcial e ainda que fosse a tempo inteiro deveria ser adicionado ao montante pago em dinheiro, o valor correspondente ao fornecimento de alojamento e alimentação.
Por seu turno, a A. defende que a Sentença recorrida violou o disposto no art. 2º do DL nº 69/85, de 18/03 quando absolveu os R.R. dos juros vencidos desde a data da sua constituição em mora por falta do pagamento integral dos salários, férias e subsídio de férias devidos à A..
Resulta dos factos provados que a A. vivia na casa cedida pelos R.R.. Estes pagavam-lhe o salário mensal de 30.000$00 pagando ainda as despesas da casa, nestas se incluindo as despesas de água, luz e telefone e também as despesas com produtos para a horta e criação ( cfr. al. c) e q) dos factos provados).
Segundo o disposto no nº3 do art. 1º do DL nº 69-A/87, de 9/2 “no montante da remuneração mínima mensal é incluído o valor da alimentação, alojamento e outras prestações em espécie e que, nos termos do nº2 do art. 91 do regime jurídico aprovado pelo DL nº 49408 de 24/11/1969, estejam incluídos no conceito de remuneração”, sendo que a totalidade das prestações em espécie não pode ir além de 50% da remuneração mínima mensal garantida ( art. 1º, nº4, al. e) do DL nº 69-A/89).
Uma vez que os R.R. pagavam à A. mensalmente, em dinheiro, a quantia de 30.000$00 e que, além do alojamento, lhe forneciam variadas prestações em espécie, vê-se que o limite de redução legalmente permitido ( 50% da retribuição mínima mensal garantida) nunca foi excedido, pelo que não pode reconhecer-se à A. o direito a diferenças salariais mesmo no domínio do contrato de serviço doméstico.
Por outro lado, beneficiando a A. de um regime bastante livre, uma vez que os R.R. só se deslocavam à casa onde a A. vivia uma vez por mês, o que até lhe permitiu frequentar no ano de 1999 um curso para ajudante de lar, seria injusto e no mínimo excessivo que se impusesse aos R.R. que remunerassem a A. como se tratasse de uma trabalhadora a tempo inteiro.
Não sendo devidas diferenças salariais, fica prejudicada a questão, suscitada pela A., relativa à não condenação em juros vencidos desde a data da constituição da mora por falta do pagamento integral dos salários, férias e subsídio de férias devidos á A..

IV. Saber se é devida indemnização por violação do direito a férias durante o período da execução do contrato.
A A. defende que a sentença recorrida violou o art. 13º do DL nº 874/76, de 28/12.
Aplicando-se às relações de trabalho entre a A. e R.R. o regime jurídico do contrato de serviço doméstico ( DL nº 235/92, de 24/10) a violação do direito a férias faz incorrer a entidade patronal na obrigação de indemnizar o trabalhador em montante equivalente ao dobro da retribuição correspondente ao período em falta, caso obste ao gozo das férias pelo trabalhador ( art. 21º).
No entanto, para que possa reconhecer-se ao trabalhador o direito a tal indemnização é necessário que resulte provada a prestação de trabalho durante o período que deveria ser de férias e que a entidade patronal é responsável pelo não gozo das férias pelo trabalhador, cabendo a este o ónus da prova de tais factos já que constitutivos do direito àquela indemnização.
Dos factos provados nada resulta quanto ao trabalho da A. no período que deveria ser de férias e que a eventual falta de gozo de férias se ficou a dever a actuação dos R.R..
Assim, a pretensão da A. quanto à indemnização por violação do direito a férias durante o período da execução do contrato, tinha de improceder.

Pelo exposto, a Secção Social do Tribunal da Relação de Évora acorda em:
- julgar totalmente improcedente a Apelação da A.;
- julgar procedente a apelação dos R.R. e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, na parte em que condenou os R.R. a pagar à A. a quantia de € 11. 250,89, acrescida de juros, contados à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento, a título de diferenças salariais;
- manter na parte restante a sentença recorrida.

Custas a cargo da A..

( Processado e revisto pelo relator que assina e rubrica as restantes folhas).

Évora, 2004/03/ 2


Chambel Mourisco
Gonçalves Rocha
Baptista Coelho