ACÇÃO CAMBIÁRIA
CHEQUE
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário


I - Prescrita a acção cambiária, a ordem de pagamento constante do cheque – negócio puramente abstracto – não passa a valer, por força daquela prescrição, como uma declaração negocial concreta, nem se transmuda de “negócio abstracto” para “negócio com causa presumida”.
II - Para que o cheque, enquanto quirógrafo duma obrigação, pudesse sobreviver como título executivo à prescrição da obrigação cartular (abstracta) que ele titula, necessário seria que esta nova qualidade derivasse dum “mais” que dele teria que constar.
III - A entender-se doutro modo, ficaria letra morta a questão da prescrição do cheque, decorrente da LUC.
IV - Por outro lado, não se vê razão para conferir ao credor que deixou prescrever a acção cambiária uma segunda oportunidade executiva, com base no mesmo título, lido doutra forma, bastando-lhe invocar no requerimento executivo a causa da obrigação.
V - Como decorre do artº 45º-1 do CPC, é pelo título que serve de base à execução que se determinam o fim e os limites da acção executiva (artº 45º do CPC). E não pelo requerimento executivo.

Texto Integral

PROCESSO Nº 70/04
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I - "A", residente na Rua ..., nº ..., em ..., deduziu embargos de executado por apenso à execução para pagamento de quantia certa, em que é exequente "B", com sede na Rua ..., nº ..., no ..., pretendendo que se julgue prescrito o direito exequendo, ou ilegítimo o seu exercício, por força do disposto no artº 334º do CC, com a consequente extinção da execução.
Como fundamento do seu pedido o embargante alega, em síntese, o seguinte:
Fundando-se a execução num cheque datado de 8/11/91 e tendo a acção sido interposta em 12/05/98, o direito de accionar o dito cheque há muito que prescreveu;
Não tem aqui aplicação o disposto no artigo 46º, al. c), do Código de Processo Civil, na sua mais recente redacção introduzida pelo Decreto-Lei, nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, por se manter aplicável o disposto na Lei Uniforme sobre Cheques, nomeadamente quanto aos prazos de apresentação a pagamento do título de crédito;
O cheque dos autos destinou-se à conclusão do pagamento de um automóvel a si vendido pela embargada, automóvel que foi apreendido pelas autoridades policiais no próprio dia em que o cheque foi emitido, no âmbito de um processo crime pelo qual viriam a ser condenados os sócios gerentes da exequente em pena de prisão;
Tendo ficado desapossado da viatura pela qual já pagara Esc. 2.000.000$00, constitui um abuso de direito por parte da embargante, nove anos depois, tentar despojá-lo de mais Esc. 2.000.000$00.

Na contestação, a embargada sustenta o seguinte:
Se o direito de accionar o cheque enquanto título de crédito se encontra prescrito, o direito de o accionar enquanto documento particular de reconhecimento de dívida não prescreveu;
Além disso, se é verdade que o veículo foi apreendido no âmbito de um processo crime, também é certo que no dia 24/06/97, por requerimento do próprio embargante, o veículo foi-lhe entregue, tendo o mesmo recebido uma indemnização do Estado no valor de Esc. 491.702$00.
Conclui pela improcedência dos embargos.

No saneador, a excepção de prescrição foi julgada improcedente.

Seleccionados os factos assentes e controvertidos, o processo prosseguiu
para julgamento.

Em sede de audiência de discussão e julgamento, os ilustres mandatários
das partes acordaram nas respostas a dar aos quesitos da base instrutória.

Por fim , foi proferida sentença julgar os embargos totalmente improcedentes.

Inconformado o embargante interpôs recurso, tanto do despacho saneador como da sentença final.

Eis as conclusões do 1º recurso:

a - Tendo em conta que a Execução só foi interposta quase sete anos depois da data de emissão do cheque em que se funda, o agravante deduziu a excepção da prescrição do direito exequendo;
b - Na decisão recorrida, julgou-se improcedente essa excepção com o fundamento em que o cheque sempre valerá como documento particular a que se deve atribuir força executiva;
c - A primeira questão que se coloca é a de saber se pode reconhecer-se força de título executivo a um cheque prescrito à luz do artº 52º da LU;
d - De acordo com a jurisprudência do STJ, não pode reconhecer-se força de título executivo a esse cheque (ver ac.os do STJ de 04.05.99, 29.02.00, 18.01.01 e 16.10.01);
e - Acresce que o cheque dos autos não faz qualquer referência à relação subjacente, nem incorpora nenhuma constituição ou reconhecimento de obrigação fora do quadro da LUC;
f - E está vedado às partes o poder de atribuir força executiva a um documento (cheque prescrito à luz do artº 52º da LUC) que, por si só, a lei não reconhece que tenha eficácia de título executivo;
g - Ainda que se reconhecesse força executiva ao cheque dos autos, o direito exequendo sempre estaria prescrito por força do artº 317º do Cód. Civil;
h - Com efeito, resulta dos factos assentes que a agravada, no exercício da sua actividade comercial, vendeu um veículo ao agravante em 08.11.91; contudo só intentou a execução depois de decorrido o prazo de 2 anos de prescrição previsto no citado artº 317º;
i - Na decisão recorrida, confundiram-se e unificaram-se questões diversas: a da exequibilidade do cheque e a da prescrição do direito exequendo;
j - A questão da prescrição foi levantada nos embargos e o juiz não está amarrado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – artº 664º do CPC;
k - Uma vez que essa questão não foi apreciada, a decisão recorrida é nula – artº 668º - d) do CPC.
l - Violou, além das citadas disposições, os artºs 45º do CPC e 310º do Código Civil.

Conclusões do 2º recurso (apelação da sentença final):

aa - Em 1991, o Recorrente foi vítima de uma tremenda deslealdade por parte da Recorrida – que lhe vendeu um veículo omitindo as várias apreensões de veículos a que fora sujeita devido a crimes praticados pelos seus sócios-gerentes;
bb - No dia da venda (8.11.91), o Recorrente ficou desapossado do veículo que comprou e sem os Esc. 2.000.000$00 que já pagara pelo mesmo, por ter sido apreendido pelas autoridades policiais no decurso de um processo crime em que foram condenados os sócios-gerentes da Embargada;
cc - O referido veículo só foi entregue ao Apelante quase seis anos após a compra do mesmo: em 24.6.97;
dd - A Recorrente causou ao Recorrido danos patrimoniais e não patrimoniais (decorrentes da privação do uso do veículo durante quase seis anos; da imobilização do capital de Esc. 2.000.000$00; da impossibilidade de usufruir dos respectivos juros; da desvalorização do veículo e das angústias e frustrações sofridas) muito superiores ao crédito exequendo;
ee - Decorridos sete anos após a venda, a recorrida veio reclamar o remanescente do preço do veículo (Esc. 1.000.000$00) acrescida de juros reportados a um período em que o recorrente nem sequer estava na posse da coisa vendida;
ff - A justiça não pode patrocinar um tal desequilíbrio das prestações e premiar quem agiu de má-fé e serviu de instrumento para a prática de crimes;
gg - É manifesto que existe o abuso do direito invocado na petição de embargos;
hh - O tribunal recorrido entendeu o contrário porque partiu do pressuposto errado de que a Apelada cumpriu as suas obrigações de vendedora e procedeu de boa-fé;
ii - Mas a recorrida excedeu escandalosamente os limites impostos pela boa-fé, violando o dever de agir legalmente, honestamente, correctamente e de forma a evitar prejuízos ao comprador – artº 762º-2 do CC;
jj - E não cumpriu o seu dever de entregar a coisa vendida no estado em que ela se encontrava ao tempo de venda;
kk - Com a sua conduta, a Apelada criou no espírito do Apelante a legítima confiança de que jamais lhe iria exigir o remanescente do preço, pelo que não pode agora venire contra factum proprium;
ll - O tribunal recorrido não considerou prejuízos que reconheceu terem sido sofridos pelo Recorrente (como a desvalorização do veículo) por não conhecer o seu valor;
mm - Mas o tribunal deveria ter-se socorrido de factos notórios (que não carecem de alegação nem de prova) para chegar à conclusão de que os prejuízos sofridos pelo Recorrente foram muito superiores à quantia exequenda;
nn - Deveria ter-se julgado que o exercício do direito da exequente excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito – artº 334º do CC;
oo - A irrisória indemnização paga pelo Estado não afasta o facto de a Recorrida ter agido com clamoroso abuso de direito;
pp - A sentença recorrida violou o disposto nos artos 334º, 762º-2, 879º e 882º do Cód. Civil e 514º do CPC.

Houve contra-alegações.

II - O que importa resolver

A – Se prescrita a obrigação cartular, o cheque, como mero quirógrafo, ainda pode valer como título executivo;
B - Sendo a resposta afirmativa, se há abuso de direito.

III - Factos
1 - A exequente/embargada é uma sociedade que se dedica à compra, venda e reparação de veículos automóveis usados – alínea A dos factos assentes.
2 - No exercício da sua actividade comercial a exequente/embargada vendeu, em 8 de Novembro de 1991, ao embargado/executado um veículo de marca ..., modelo ..., com a matrícula ... – alínea B dos factos assentes.
3 - O cheque junto à execução, a fls. 6, destinou-se a pagamento de um automóvel de marca ..., modelo ..., de matrícula ..., vendido pela exequente/embargada ao embargante/executado – alínea C dos factos assentes.
4 - Este veículo foi apreendido pelas autoridades policiais no dia 08 de Novembro de 1991 – alínea D dos factos assentes.
5 - No decurso do processo comum colectivo nº ..., do ... Juízo do Tribunal do ..., em que foram julgados e condenados os sócios-gerentes da exequente/embargada – alínea E dos factos assentes.
6 - O cheque referido em 3 e a quantia nele titulada destinaram-se à conclusão do pagamento do veículo ... – resposta positiva ao quesito nº 2 da base instrutória.
7 - O embargante/executado havia já pago Esc. 2.000.000$00 pelo referido veículo – resposta positiva ao quesito nº 3 da base instrutória.
8 - O embargante/executado ficou desapossado desse veículo – resposta positiva ao quesito nº 4 da base instrutória.
9 - E sem os Esc. 2.000.000$00 que já pagara – resposta positiva ao quesito nº 5 da base instrutória.
10 - Em 24 de Junho de 1997, a requerimento do proprietário, foi restituída a posse do veículo ... ao embargante/executado – resposta positiva ao quesito nº 6 da base instrutória.
11 - Que recebeu uma indemnização do Estado no montante de Esc. 491.702$00 – resposta ao quesito nº 7 da base instrutória.
12 - O embargante/executado nunca pagou a totalidade do veículo com a matrícula ... à embargada/exequente – resposta ao quesito nº 8 da base instrutória.

Com interesse para a decisão, importa ter presente:
13 - Os dizeres e carimbos constantes do cheque dado à execução:
Entidade Bancária: ... (.....) - Titular da conta: "A"
«Pague por este cheque Escudos: 1.000.000$00 ... Local de emissão: ... Data: 91.11.08 ... Assinatura: "A"
À ordem de: "B" A quantia de: um milhão de escudos»
Carimbo aposto na face anterior do cheque: «”C” – 12 Nov 1991»
Carimbo aposto na face posterior: «Devolvido na Compensação do Banco de Portugal - Em 15 Nov 1991 – Motivo ... Extravio»
14 - No requerimento executivo, a requerente alega que o valor do cheque – Esc. 1.000.000$00 - corresponde a parte do preço da venda de um automóvel e conclui pedindo o pagamento daquela quantia, acrescida de juros moratórios, vencidos vincendos, juros que, em 31.05.98, já somavam o montante de Esc. 983.836$00.

IV – Apreciando

Como já se referiu, no saneador a excepção de prescrição foi julgada improcedente.
Considerou o tribunal que o cheque dado à execução foi apresentado como mero documento particular de reconhecimento de dívida, no entendimento de que, prescrita a obrigação cartular, o cheque ainda pode valer como título da obrigação causal.
Prosseguindo o processo os embargos foram, a final, julgados improcedentes.
O tribunal entendeu que a exigência de pagamento do valor que constava do cheque, correspondente a uma parte do preço, ainda por pagar, dum veículo vendido pela embargada ao embargante, não excedia, de forma “ostensivamente clamorosa os ditames da boa fé, da ética e dos poderes que ao vendedor são concedidos”, não obstante resultar provado que o dito veículo, por razões inteiramente alheias ao embargante e derivadas dum processo crime que correu termos contra os sócios gerentes da embargada, foi apreendido pelo tribunal no próprio dia em que foi emitido o cheque (em 8.11.91) e só foi restituído ao executado no dia 24 de Junho de 1997, ou seja, cinco anos e 8 meses depois.
Considerou o Mmº Juiz que o embargante devia – e não o fez - ter alegado factos demonstrativos de que os prejuízos decorrentes da paralisação do veículo excediam a indemnização paga pelo Estado ao autor, no montante de Esc. 491.702$00, e de que a viatura sofrera, no período em que esteve apreendida, uma desvalorização justificativa da redução do preço.

O embargante discorda de ambas as decisões.

A – Começando pelo recurso do saneador.
A 1ª questão reconduz-se a saber se, prescrita a acção cartular com base num cheque, este poderá ainda valer como título executivo, nos termos do artº 46º-c) do CPC.
Estabelece este preceito (na redacção introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro):
«À execução apenas podem servir de base:
.....
c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artº 805º ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto[1];
.....»
A propósito da questão em apreço, há, fundamentalmente, duas correntes.
Uma que defende que o cheque cartularmente prescrito continua a valer como título particular de dívida, invocando-se a seu favor os seguintes argumentos:
- o cheque, enquanto quirógrafo, não é um nada jurídico, mantém a relevância própria de qualquer documento particular;
- a ordem dada ao banco de pagamento de uma certa importância implica o reconhecimento tácito da correspondente obrigação – artº 217º do CC; - o DL nº 329-A/95 visou expressamente a ampliação significativa do elenco dos títulos executivos (relatório preambular) e um número indeterminado de leis avulsas propôs-se o mesmo objectivo (por ex., dando força executiva às actas do condomínio – artº 6º do DL nº 268/94, de 25.10; às facturas hospitalares – DL nº 194/92, de 8.09; ....);
- um título executivo não pretende ser a prova sine qua non do direito, mas ter o valor, em termos de economia processual, de dispensar o trabalho da acção declarativa;
- corresponde a uma garantia minimamente fiável de que o direito existe, sendo certo que, quando assim não for, haverá sempre a válvula de segurança dos embargos;
- o cheque, prescrito ou não, corporiza “uma declaração unilateral que promete uma prestação ou reconhece uma dívida, sem indicação da respectiva causa (artº 458º-1 do CC)”, donde resulta ficar “o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”;
- prescrito o cheque ele não pode valer menos do que a carta que o cliente escreve ao banco, dando-lhe a ordem de pagar ao portador uma certa importância (neste sentido, ac. RL de 20.06.02, in CJ XXVII, 3, 121);.
- não é necessário que do cheque, enquanto documento particular conste a razão da ordem de pagamento que enuncia, para se poder afirmar que constitui ou reconhece uma obrigação pecuniária; basta que a causa debendi tenha sido alegada no requerimento inicial da execução (entre outros, acs. STJ de 29.01.02, in CJ-S, X, 1, 66; de 11.05.99, in CJ-S 1999, 2, 88).

Outra que defende que, prescrita a obrigação cambiária, o título/cheque não pode continuar a valer como título executivo, agora “travestido” de título particular, consubstanciando a obrigação subjacente.
Argumentam:
- À luz da LUC o cheque é um título de crédito que, observados certos requisitos, vale como ordem de pagamento dirigida a um banqueiro, no sentido do pagamento duma quantia determinada por conta de uma provisão feita em benefício do emitente, independentemente da causa jurídica desse pagamento;
- Para que o seu pagamento seja exigido judicialmente – designadamente em acção executiva – é necessário que se haja observado o disposto nos artºs 29º e 40º da citada Lei Uniforme;
- Figurando o cheque como mero quirógrafo, ou título de dívida assinado pelo devedor, a obrigação exigida não é uma obrigação cambiária ou cartular caracterizada pela literalidade e abstracção, mas a obrigação causal, subjacente ou fundamental;
- Afastada a pretensão abstracta, o cheque - sem menção da obrigação subjacente que visava satisfazer - assume a natureza de simples documento particular em que não há incorporação da pretensão;
- Prescrita a obrigação cartular, a demonstração da existência actual da obrigação de pagar a quantia a que o cheque se refere passa pela invocação e demonstração do acordo que conduziu à sua emissão, sendo a causa de pedir não a emissão do cheque, mas aquele acordo;
- Logo, enquanto mero quirógrafo, não tem força bastante para importar o reconhecimento da obrigação pecuniária do sacador, anteriormente constituída (neste sentido, entre outros, acs STJ de 29.02.00, in CJ-S, ano 2000, 1, 124, de 18.01.01, in CJ- S IX, 1, 71, de 16.11.01, in CJ-S IX, 3, 89; de 4.05.99, in CJ-S 1999, 2, 82; ac. da RC de 6.02.01, in CJ XXVI, 1, 28; ac. RE, de 8.03.01, in CJ, XXVI, 2, 249).

Impõe-se optar.
Não há dúvida que o título dado à execução, formalmente, é um cheque: contém uma ordem dada a um banqueiro, no sentido do pagamento duma quantia determinada por conta de uma provisão feita em benefício do sacador ... – artº 1º da LUC.
É também sabido que a prescrição da obrigação cartular, enquanto não for invocada, não afecta a exequibilidade do título. Daí que o respectivo requerimento executivo não possa ser indeferido liminarmente, com aquele fundamento (ver A. Reis, in Comentário, 1, 78).
No caso dos autos, é seguro que a acção cambiária não foi exercida no prazo de 6 meses, após o termo do prazo para apresentação – artºs 29º, 40º e 52º do citado diploma.
Daí a razão dos presentes embargos.
Tudo está em saber se o negócio unilateral abstracto incorporado no cheque/título de crédito - declaração cambiária/ordem de pagamento -, pode, prescrita a acção cartular, manter a sua força executiva, mas agora por força do disposto no artº 458º do CC.
Entendemos que não.
Como é sabido, a acção cambiária emerge directamente do cheque e a respectiva pretensão é accionável independentemente da alegação e demonstração da causa da sua subscrição.
Contudo, a natureza abstracta da obrigação cambiária não significa que esta seja assumida sem causa. “O significado da abstracção está em que a causa é separada do negócio cambiário, decorre, não dele próprio, mas de uma convenção subjacente, extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental”.[2]
Prescrita a acção cambiária, afigura-se manifesto que a ordem de pagamento constante do cheque – negócio puramente abstracto – continua a manter a mesma natureza. Não passa a valer, por força daquela prescrição, como uma declaração negocial concreta, nem se transmuda de “negócio abstracto” para “negócio com causa presumida”.[3]
Com efeito, como é entendimento corrente, a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida admitidos pelo citado artº 458º não constituem actos abstractos propriamente ditos, mas negócios causais, em que apenas se verifica a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental”.[4]
Nesta perspectiva, a prescrição da obrigação cartular nunca poderia ter a consequência de imprimir novo folgo executivo ao mesmo acto abstracto (ordem de pagamento a um Banco ...).
Para que o cheque, enquanto quirógrafo duma obrigação, pudesse sobreviver como título executivo à prescrição da obrigação cartular (abstracta) que ele titula, necessário seria que esta nova qualidade derivasse dum “mais” que dele teria que constar. De contrário, seria como que admitir uma causa a um negócio abstracto e defender-se que a situação se enquadra no citado artº 458º (que, como já referimos, não consagra o princípio do negócio abstracto).
Aliás, a entender-se doutro modo, ficaria letra morta a questão da prescrição do cheque, decorrente da LUC.
Lembremos o que se passou quando uma lei interna (DL nº 262/83, de 16.06) veio permitir que o portador de letras, livranças ou cheques pudesse exigir, como indemnização pela mora, os juros legais: o que se escreveu, a polémica gerada e tudo o que foi preciso invocar para justificar a alteração/substituição do Direito Internacional Convencional, em sede de juros moratórios.
Por isso, não pode uma simples alteração do artº 46º do CPC justificar o afastamento da regra contida no artº 52º da Lei Uniforme sobre Cheques.
Até porque a alteração não é relevante, já que a anterior redacção não era obstáculo a uma interpretação conforme àquela que actualmente se faz derivar do facto de ter desaparecido da alínea c) do artº 46º a referência expressa a “letras, livranças, cheques .....”. Perspectivando o cheque dos dois ângulos - como título de crédito e como mero quirógrafo – ele poderia cair na previsão, tanto da 1ª, como da 2ª parte da citada alínea (na redacção anterior à reforma de 1995/1996). Aliás, já havia quem defendesse tal opinião.
E não se diga que através dos embargos de executado, o sacador poderá sempre defender-se, invocando a relação subjacente (também o pode o executado relativamente a cheques não prescritos).
É que não é coisa de pouca monta a inversão do ónus da prova. Por outro lado, não se vê razão para conferir ao credor que deixou prescrever a acção cambiária uma segunda oportunidade executiva, com base no mesmo título, lido doutra forma, bastando-lhe invocar no requerimento executivo a causa da obrigação.
Como decorre do artº 45º-1 do CPC, é pelo título que serve de base à execução que se determinam o fim e os limites da acção executiva (artº 45º do CPC). E não pelo requerimento executivo.
Ora, do cheque dado à execução, decorre apenas a constituição ou reconhecimento duma obrigação cartular – artº 40º da LUC.
Para que o cheque, despojado da natureza de título de crédito, pudesse valer como documento particular para efeitos do citado artº 46º-c) teria que conter outros elementos para além daquela ordem de pagamento.
Subscreve-se, assim, a argumentação da corrente que defende que o cheque prescrito, enquanto mero quirógrafo, não tem força bastante para importar o reconhecimento da obrigação pecuniária do sacador, anteriormente constituída.

B – Face a esta tomada de posição, ficam prejudicadas outras questões levantadas: prescrição da obrigação subjacente e abuso de direito. E, consequentemente, também o conhecimento da apelação da sentença final.

V – Decidindo

Nestes termos, julgando o recurso do despacho saneador procedente, acordam em revogar a decisão recorrida e em considerar prejudicado o conhecimento da apelação da sentença final.
Consequentemente, considerando prescrito o direito de accionar com base no cheque dado à execução, julgam procedentes os embargos de executado e determinam a extinção da execução.

Custas, nas duas instâncias, pela embargada/recorrida.

Évora, 22 de Abril de 2004




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[1] A alteração introduzida pelo DL nº 38/2003, de 8 de Março, limitou-se a retirar da alínea c) o adjectivo “móvel”, ficando a parte final desta alínea com a seguinte redacção: « ... obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto».
[2] Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial – Letra de Câmbio, III (1966), pg 47.
[3] Castro Mendes, in Direito Civil, III, pgs 420 e sgs; na ed, póstuma, II, pg 189 e sgs.
[4] M. J. de Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 6ª ed., pg 388; Pires de Lima e A. Varela, in CCA e Pessoa Jorge, in Lições do Direito das Obrigações, nº 96.