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CONTRA-ORDENAÇÃO
NOTIFICAÇÃO POR VIA POSTAL
Sumário
I. Em processo de contra-ordenação, a notificação da decisão final proferida pela autoridade administrativa deve ser efectuada por carta registada expedida para o domicílio ou sede do notificando. II. Se - e apenas se - a carta registada for devolvida à entidade remetente, é possível a notificação do arguido através de carta simples.
Sénio Alves
Texto Integral
Processo nº 783/04
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I. Em 4 de Junho de 2002, ao arguido A. ..., foi aplicada, pela Direcção-Geral de Viação, a coima de € 45, pela prática de uma contra-ordenação ao disposto no artº 49º, nº 1, al. g) do CE, punível pelo nº 3 do mesmo dispositivo.
Inconformado, o arguido impugnou judicialmente tal decisão.
Distribuído o Recurso ao ... Juízo Criminal de ..., onde recebeu o nº ..., o Mº Juiz viria a rejeitar o mesmo, invocando a sua intempestividade.
Desse despacho vem interposto o presente recurso, onde o arguido/recorrente extrai, da respectiva motivação, as seguintes conclusões (a seguir transcritas):
1 - O despacho ora recorrido, quanto à rejeição do recurso (da decisão administrativa), não se encontra totalmente fundamentado de facto e de direito, logo viola o disposto no art° 97°, n° 4 do CPP. Apesar de estarmos eventualmente perante uma mera irregularidade, uma vez que ora vai impugnada e nos prazos a que alude o art° 123°, n° 1 do mesmo diploma legal, deverá o Tribunal adquem considerá-la não sanada (se antes da subida deste articulado não o for pelo Tribunal aquo) e agir em conformidade.
2 - Porque o Tribunal aquo faz prevalecer um regime processual geral (Dec. Lei n.° 433/82) sobre um regime processual especial (art.° 150.°, n.° 1 do Código da Estrada), viola o princípio de que uma norma geral não prevalece sobre uma norma especial. Ou melhor, um regime geral não pode prevalecer sobre um regime específico (muito menos uma Directiva emanada da PGR).
3 - Porque manifesta o Tribunal aquo entendimento diferente de que apenas e só, se, por qualquer motivo, a carta prevista no n.° 3 do art.° 156.° do CE (carta registada) for devolvida à entidade remetente, a notificação é reenviada ao notificando, para o seu domicílio ou sede, através de carta simples, viola frontalmente o disposto no art.° 156.°, n.° 4 do Código da Estrada.
4 - Ainda que nos presentes autos existisse um comprovativo de que havia sido devolvida à entidade administrativa uma carta registada, que manifestamente não existe, entender-se como válida uma notificação feita por carta simples, não é mais que interpretar deficientemente o princípio constitucional da proibição de indefesa consagrado no art.° 20.° da CRP. Logo,
5 - Também deve ser desaplicada a norma que considere válida uma notificação feita por correio simples, em observância também do princípio constitucional da efectividade dos direitos fundamentais, ínsito, v.g., no art.° 18.°, n.° 1 da CRP.
6 - Por fim, importa salientar que, no modesto entendimento do ora Recorrente, a Directiva da PGR a que alude o Tribunal a quo, não desaplica a norma constante no art.° 156.°, pois que se refere exclusivamente à validade de uma notificação por carta simples, mas exclusivamente nos termos do n.° 4 do aludido artigo; Entendimento que o ora Recorrente nunca pôs em causa nestes autos, nem sequer questionou qualquer entendimento relacionado com a identificação da pessoa que recebe(u) as notificações referidas em tal normativo e em causa nestes autos.
Pede, a concluir, que com a procedência do recurso, seja determinado ao tribunal a quo que conheça da impugnação judicial interposta da citada decisão administrativa.
Admitido o recurso, respondeu o Digno Magistrado do MºPº pugnando pela sua improcedência e formulando as seguintes conclusões (também transcritas):
1. Das conclusões apresentadas pelo recorrente resulta que o mesmo não põe em causa que foi notificado a 31/12/2002, apenas discorda da forma em que foi efectuada a notificação.
2. Tal notificação foi efectuada de acordo com o estipulado no artº 156º do Código da Estrada.
3. Ora, tendo o recurso sido apresentado em Setembro de 2003, é completamente extemporâneo, pelo que é manifesta a sua improcedência, devendo assim ser rejeitado.
4. Deve também o recorrente ser condenado ao pagamento de uma quantia não inferior a 6 UC’s (artº 420º, nº 4 do CPP).
5. Mesmo que se entenda que o recurso não deve ser rejeitado, deve o mesmo improceder.
6. Porque nenhuma disposição leal foi violada, nem nenhuma inconstitucionalidade se verifica,
7. nenhum reparo nos merece o despacho recorrido.
8. Deve assim manter-se o mesmo.
II. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, o arguido respondeu, reafirmando o seu entendimento de que o recurso merece provimento.
Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.
III. O douto despacho recorrido é do seguinte teor:
“Veio o arguido, A. ...impugnar judicialmente a decisão da Direcção Geral de Viação que lhe aplicou uma coima.
Tal recurso foi enviado para a autoridade administrativa por meio de carta registada, entregue nos correios em 09/09/03 (cfr. fls. 12).
Compulsados os autos, verifica-se que o recorrente foi notificado da decisão que lhe aplicou a coima por via postal simples, tendo a carta sido depositada em 31/12/02 (cfr. fls. 7).
Segundo o art. 59º, nº 3 do DL nº 3 do DL nº 433/82, de 27/10, na redacção dada pelo DL nº 224/95, de 14/09, o recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa “é feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo conter alegações e conclusões”. A contagem do prazo indicado não é contínua, suspendendo-se aos sábados, domingos e feriados (art. 60º, nº 1 do cit. Diploma legal).
Se apresentado fora de prazo, deve o recurso ser rejeitado (art. 63º, nº 1 do mesmo diploma legal).
Ora, face às datas de notificação da decisão administrativa e de interposição do recurso, não restam dúvidas de que o recurso é extemporâneo.
Na verdade, nada obsta que se considere o mesmo regularmente notificado da decisão da autoridade administrativa pelo facto de a notificação ter sido efectuada por via postal simples. Como se observa nas conclusões a Directiva nº 2/2002 da Procuradoria-Geral da República (publicada no Diário da República, II série, nº 82, de 08 de Abril de 2002, p. 6543), emitida na sequência do Parecer nº 19/2001, com as quais se concorda inteiramente, e que se passam a transcrever:
“As contra-ordenações previstas no Cód. da Estrada e na legislação complementar regem-se pelas normas processuais do regime geral das contra-ordenações, e, subsidiariamente, pela lei geral do processo penal, com as adaptações constantes dos arts. 151º a 157º daquele primeiro diploma (art. 150º, nº 1 do Cód. da Estrada e 41º, nº 1 do DL nº 433/81, de 26/09). A partir da revisão efectuada pelo DL nº 2/98, de 3 de Janeiro, o Cód. da Estrada, através da nova redacção dada ao seu art. 156º, passou a prever um regime próprio de notificação por carta registada a enviar para o domicílio do condutor; pelo que se considera presumidamente feita a notificação no dia em que for assinado o aviso de recepção; Pelo seu carácter inovador, essa medida só poderia revestir um efeito útil se interpretada no sentido de afastar a aplicação subsidiária da correspondente norma do art. 133º, nº 1, al. B) do C. P. P., na redacção então vigente, que continuava a exigir notificação postal por via registada que o aviso de recepção fosse pessoalmente assinado pelo destinatário; Nos mesmos termos, na vigência daquele art. 156º, não era aplicável, o procedimento de identificação da pessoa a quem tenha sido entregue a carta ou aviso, para o caso de o destinatário não Ter sido encontrado no local, que havia sido instituído pela alínea c) do nº 4 do art. 113º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 59/98, de 25/08. A nova redacção dada ao art. 156º do C. E. pelo DL nº 265-A/2001, de 28/09, preserva o regime da presunção de notificação – que passa a abranger a notificação por carta registada ou por carta simples, sendo de excluir por identidade de razão a aplicação subsidiária das disposições da lei processual penal previstas para as mesmas formas de identificação (cfr. Art. 113º, nº 6, al.c) do C. P. P.). Em conformidade com as antecedentes conclusões, e segundo o regime actual, a notificação efectuada, no âmbito do processo de contra-ordenação rodoviária, por meio de carta expedida para o domicílio ou sede do notificando, considera-se feita no 3º dia ou 4º dia posterior ao do seu envio, consoante se trate de carta registada ou carta simples, desde que a correspondência seja entregue ou depositada nesse local, independentemente de identificação, da pessoa que tenha recebido”.
Pelo exposto, rejeita-se o recurso interposto pelo recorrente A. ....
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, a reduzir a metade (art. 93º, nº 3 do DL 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelo DL 224/95, de 14/09 e arts. 87º, nº 1, al. c) e 14º, al. j), ambos do Código das Custas Judiciais).
Notifique e comunique à D. G. V.”.
IV. Como é sabido, são as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que delimitam o âmbito do recurso - artº 412º, nº 1 do CPP.
São, no essencial, duas as questões em discussão nos presentes autos: o saber se, em concreto, o despacho recorrido carece de fundamentação e, de outro lado, se é tempestiva a impugnação judicial interposta pelo arguido da decisão administrativa que o condenou no pagamento de uma determinada coima.
A) Da alegada falta de fundamentação do despacho recorrido:
Dispõe-se no artº 97º, nº 4 do CPP que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
A exigência de fundamentação das decisões judiciais tem, aliás, assento constitucional (artº 205º, nº 1 da CRP) e a respectiva violação importa na sua nulidade relativa (tratando-se de sentença ou acórdão) ou na sua irregularidade (tratando-se de despacho).
Afirma o recorrente que na decisão recorrida se não vislumbra a respectiva fundamentação legal, “a não ser que uma Directiva emanada pela PGR seja constitucionalmente considerada como um acto normativo, com força de lei”.
Não tem, contudo, qualquer razão.
Do despacho recorrido constam, de forma clara e explícita, os fundamentos de facto da decisão (a notificação, ao arguido, da decisão administrativa em 31/12/02 e a interposição do recurso apenas em 9/9/2003), bem como os respectivos fundamentos de direito (o artº 59º, nº 3 do DL 433/82, de 27/10, que fixa em 20 dias, contados sobre o conhecimento pelo arguido da decisão da autoridade administrativa, o prazo para apresentar a impugnação judicial, os artºs 60º, nº 1 - que regula a forma de contagem desse prazo - e 63º, nº 1 do mesmo diploma - que comina com a rejeição o recurso apresentado fora de tempo).
As conclusões da Directiva nº 2/2002 da PGR, citada no despacho recorrido, são - apenas - elemento doutrinário invocado (bem ou mal, é questão diversa, que adiante se analisará) pelo Mº Juiz a quo em abono do seu entendimento de que a notificação ao arguido da decisão proferida pela autoridade administrativa pode ser feita, alternativamente, através de carta registada ou através de carta simples (considerando-se o destinatário notificado no 3º ou no 5º dias posteriores ao do envio do expediente, conforme os casos).
E tão só.
Há, pois, que concluir que não padece a decisão recorrida da arguida irregularidade consistente na falta de fundamentação que, assim, se julga improcedente.
B) Da tempestividade da impugnação judicial interposta pelo arguido:
Para a decisão desta questão, essencial se torna a delimitação da factualidade a este propósito relevante
1. Em 4 de Junho de 2002, a Direcção-Geral de Viação aplicou ao arguido uma coima no montante de € 45, pela prática - em 14/02/2002 - de uma contra-ordenação prevista no artº 49º, nº 1, al. g) do CE, punível nos termos do nº 3 do mesmo dispositivo legal.
2. Tal decisão foi comunicada ao arguido através de via postal simples depositada no seu receptáculo postal domiciliário em 31/12/2002.
3. Invocando ter tomado conhecimento dessa decisão, através de consulta efectuada pessoalmente na DGV ..., em 8/9/2003, o arguido impugnou judicialmente a mesma em 9/9/2003.
4. Em 1/10/2003, a Chefe de Divisão de Contra-Ordenações da DGV de ... manteve a decisão, sustentando encontrar-se o arguido notificado da decisão administrativa desde 31/12/2002, por carta simples.
Vejamos, então:
Estatui-se no artº 150º, nº 1 do Código da Estrada (CE) que “às contra-ordenações previstas neste Código (...) são aplicáveis as normas gerais que regulam o processo das contra-ordenações, com as adaptações constantes dos artigos seguintes”.
Ora, nos termos do estatuído no artº 156º, nº 1 do Cod. Estrada (CE), as notificações efectuam-se:
“a) Por contacto pessoal com o notificando (...);
b) Mediante carta registada expedida para o domicílio ou sede do notificando;
c) Mediante carta simples expedida para o domicílio ou sede do notificando”.
E acrescenta-se nos nºs 3 e 4 do mesmo artigo:
“3. Se não for possível, no acto de autuação, proceder nos termos do número anterior (notificação por contacto pessoal)ou se estiver em causa qualquer outro acto a notificação pode ser efectuada através de carta registada expedida para o domicílio ou sede do notificando.
4. Se, por qualquer motivo, a carta prevista no número anterior for devolvida à entidade remetente, a notificação é reenviada ao notificando, para o seu domicílio ou sede, através de carta simples” (negr. nosso).
Entende o Mº Juiz a quo que a impugnação judicial da decisão administrativa proferida nestes autos foi interposta pelo arguido, para além do prazo de 20 dias previsto no artº 59º, nº 3 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo DL 433/82, de 27/10, na redacção introduzida pelo DL 244/95, de 14/9. E isto porque, em seu entendimento, “nada obsta (a) que se considere o mesmo regularmente notificado da decisão da autoridade administrativa pelo facto de a notificação ter sido efectuada por via postal simples”.
Invoca o Mº Juiz, pretensamente em abono da sua posição, o conteúdo da Directiva nº 2/2002 da PGR (acessível em www.pgr.pt), emitida na sequência do Parecer nº 19/2001 do Conselho Consultivo daquela Procuradoria.
Em rigor, não vemos que do teor dessa Directiva resultem contributos doutrinários que sufraguem a posição do Mº Juiz a quo, porquanto o objecto da mesma consiste em saber se a notificação do arguido em processo contra-ordenacional por infracção rodoviária, através de carta registada ou de carta simples, produz efeitos com a singela entrega ou depósito do expediente ou se, para além disso e por força da aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Penal e, particularmente, da prevista no artº 113º, nº 6, al. c) do CPP, é ainda necessária a identificação, pelos serviços postais, da pessoa que recebeu a carta ou o aviso.
Mais nada do que isso.
Ora, ressalvado sempre o devido respeito por diversa opinião, temos para nós como seguro que o artº 156º do CE não permite, contrariamente ao entendido pelo Mº Juiz a quo, a notificação ao arguido da decisão final proferida pela autoridade administrativa através de carta simples, sem que antes se tenha tentado e gorado a sua notificação por carta registada.
Ou, dito de outro modo, o uso de carta registada ou de carta simples não é deixado ao livre arbítrio da autoridade administrativa.
A notificação da decisão final proferida pela autoridade administrativa é, sem dúvida, uma daquelas situações em que está “em causa qualquer outro acto” que não o da autuação - nº 3 do artº 156º do CE.
E porque assim é, deve a mesma ser efectuada - como desse preceito inequivocamente resulta - por carta registada expedida para o domicílio ou sede do notificando.
Se - e apenas se - a carta registada for devolvida à entidade remetente, é possível a notificação do arguido através de carta simples.
É isso que expressamente se estatui no nº 4 do artº 156º do CE e só assim, aliás, se entende a expressão aí contida - “a notificação é reenviada ao notificando”: só se reenvia aquilo que previamente foi enviado...
Mais: que essa era a intenção do legislador resulta claramente do Preâmbulo do DL 265-A/2001, de 28/9: “Procedeu-se também à simplificação do regime das notificações, contemplando-se a notificação através de carta simples enviada para o domicílio do infractor, no caso de não ter sido possível proceder à notificação pessoal ou por carta registada” (negr. nosso).
Ora, dos autos não resulta que alguma vez haja sido tentada, sem sucesso, a notificação do arguido através de carta registada (referimo-nos, obviamente, à sua notificação da decisão final proferida pela autoridade administrativa). Bem pelo contrário, é a autoridade administrativa quem reconhece - no despacho de fls. 15 - que apenas foi efectuado o envio de uma carta simples.
Mas se isto é assim, como é, então há que concluir que o arguido não foi regularmente notificado da decisão administrativa em 31/12/2002. E que, consequentemente, só tomou conhecimento da mesma em 8/9/2003 - como alegou - razão pela qual não havia fundamento legal para rejeitar o recurso, por manifesta extemporaneidade (neste sentido e em situação idêntica à dos presentes autos, cfr. o Ac. desta Relação de 09/03/2004, proferido no Proc. 8/04-1).
V. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes desta Secção Criminal em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogando o despacho recorrido, ordenam que o mesmo seja substituído por outro que admita o recurso interposto pelo arguido da decisão final proferida pela autoridade administrativa, seguindo-se os ulteriores termos.
Sem tributação.
(processado e revisto pelo relator).
Évora, 25 de Maio de 2004