ARGUIDO
TRÂNSITO EM JULGADO
CONSENTIMENTO
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
Sumário


1. A qualidade de arguido conserva-se apenas durante o decurso do processo, em conformidade com o disposto no art.57 n.º2 do CPP;

2. O estatuto de arguido terminará com qualquer decisão que ponha termo ao processo no qual ele tiver sido adquirido pelo virtual agente da infracção.

3. A exigência do consentimento expresso de um arguido de um mesmo crime ou de um crime conexo, para poder depor como testemunha, em caso de separação de processos, pressupõe que essa testemunha mantenha ainda a qualidade de arguido, ou seja, que o processo em que é arguido se mantenha em curso;

4. Assim sendo, no caso de separação de processos, cessada a qualidade de arguido de um mesmo crime ou de um crime conexo – por já ter sido julgado e com decisão transitada em julgado num dos processos separados – nenhuma razão existe para que o ex-arguido não preste obrigatoriamente o respectivo depoimento como testemunha no outro processo, se tal for julgado necessário;

5. O n.º3 do art. 356 do CPP permite a leitura de declarações anteriormente prestadas nos autos – por testemunhas ou outros intervenientes processuais, que não o arguido sujeito a julgamento (para este rege o art. 357 do CPP) – posto que o tenham sido perante o juiz e ocorra uma das situações especificadas nas alin.a) e b).

Texto Integral


Acordam, precedendo audiência, na Relação de Évora:

I
1. Nos autos de processo comum (colectivo) n.º …, do Tribunal Judicial de …, os arguidos, A e B. foram submetidos a julgamento sob acusação da prática, em concurso efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, na forma consumada, e de um crime de associação criminosa, previstos e punidos pelos artigos 21 n.º1, 24, alin. c), 28 n.º1 e 3 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e o arguido A. ainda de um crime de furto de uso, p. e p. pelo art. 304 do Código Penal, e vieram a ser absolvidos da prática desses crimes, por acórdão proferido a 15 de Julho de 2003, a fls.4934 a 4947.

2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso daquele acórdão, bem como das deliberações tomadas na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 12 de Junho de 2003 e que constam de fls.4842 a 4844 - que consideraram aplicáveis às testemunhas C., D., E. e F. o regime previsto no art. 133 n.º2 do CPP e denegaram a pretensão do Ministério Público, ao não admitirem a leitura das declarações prestadas por essas testemunhas perante o juiz de instrução criminal, então na qualidade de arguidos.

    3. No recurso intercalar o Ministério Publico concluiu a sua motivação que consta de fls.4886 a 4899 nos seguintes termos:

    I. Tendo havido separação de culpas, um arguido já julgado no processo inicial, tem plena capacidade para ser testemunha no julgamento de outro co-arguido, não lhe sendo aplicável o disposto no art. 133 n.º1 e 2 do CPP e podendo o seu depoimento ser utilizado como meio de prova na formação da convicção do tribunal;

    II. Uma vez que o art. 356 n.º3 do CPP não restringe a sua aplicabilidade a um interveniente processual concreto, a leitura aí prevista é admissível em relação a qualquer um, desde que as declarações tenham sido prestadas perante o juiz – única exigência legal prevista na norma;

    III. O tribunal pode proceder à leitura de declarações prestadas na fase de inquérito, desde que o hajam sido perante o juiz e houver entre elas e as prestadas em audiência contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de outra forma;

    IV. As deliberações do tribunal colectivo ora recorridas violaram assim o disposto nos art. 133 n.º2 e 356 n.º3 do CPP, ao interpretar tais normas da forma como o fizeram, quando deveriam ser interpretadas no sentido defendido nas conclusões acima enunciadas.

    V. Cometeu-se assim nulidade ou irregularidade processual que conduz à invalidade do julgamento e dos actos subsequentes, nos termos das disposições conjugadas dos art. 120 n.º2, alin. d), 122 e 123 do CPP.

Termina pedindo sejam as decisões recorridas revogadas e substituídas por outras que decidam nos termos das conclusões acima enunciadas, declarando-se inválido o julgamento efectuado e todos os actos subsequentes.

4. No recurso interposto do acórdão absolutório o Ministério Público extraiu da respectiva motivação as seguintes conclusões:
    a) Mantém interesse o conhecimento do recurso já interposto pelo Ministério Público das decisões proferidas em audiência, o que se declara nos termos do disposto no art. 412 n.º5 do CPP.

    b) Dão-se aqui por reproduzidas todas as conclusões e respectivos fundamentos, constantes da motivação do aludido recurso.

    c) Ao permitir a recusa do depoimento de algumas testemunhas e ao não permitir, quanto às que depuseram, a leitura de declarações anteriores prestadas perante um juiz (inviabilizando também quanto às primeiras a leitura de anteriores declarações também prestadas perante juiz) o tribunal incorreu em omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, cometendo assim a nulidade prevista no art. 120 n.º2, alin. d) do CPP.

    d) Tal nulidade não se encontra sanada e torna inválido o julgamento e todos os actos que dele dependem, conduzindo assim também à nulidade do acórdão ora recorrido, nos termos das disposições conjugadas dos art. 121, 122 e 410 n.º3 do CPP.

    e) Não realizando as diligências referidas o tribunal incorreu igualmente em erro notório na apreciação da prova, ao ter fundamentado a absolvição na existência de dúvidas conducentes à aplicação do princípio “in dubio pro reo”, dúvidas cujo esclarecimento não realizou por omissão de diligências essenciais e legalmente admissíveis.

    f) Mostram-se pois violadas as normas dos art. 120 n.º2, alin. d), 121, 122, 133 n.º1 e 2, 356 n.º3 e 410 n.º2, alin. c) e n.º3 do CPP, as quais deverão ser interpretadas no sentido defendido pelo Ministério Público na presente motivação e na motivação do recurso já interposto.

    g) Mostram-se incorrectamente julgados todos os factos constantes do ponto 2. do acórdão, em que considerou como não provados todos os factos descritos na acusação, dado que a realização das diligências omitidas conduziria a decisão diversa da recorrida.

Termina pedindo seja declarado nulo e de nenhum efeito o acórdão recorrido, em consequência da nulidade da audiência de julgamento, ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento e julgando-se assim procedentes ambos os recursos interpostos.

5. Tais recursos foram admitidos a fls.4900 e 4985, respectivamente.

6. Apenas o arguido A. veio responder ao recurso interlocutório, nos termos constantes de fls.4970 a 4972, pugnando para que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se o acórdão recorrido, tendo concluído a sua motivação nos termos seguintes:
  • Dispõe o art. 25 n.º1 da Constituição que: “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”;
  • Dispõe, também, o art. 26 n.º1 da Constituição que: “A todos são reconhecidos os direitos …ao bom nome e reputação…”,
  • O crime que havia sido imputado à testemunha C. é o mesmo que o imputado ao ora arguido;
  • Ao serem ouvidos sobre factos criminosos de que haviam sido acusados os arguidos do mesmo crime já condenados no processo principal, ora testemunhas, tinham que expressamente consentir em depor, nos termos do art. 133 n.º2 do CPP para falar sobre factos que, sem qualquer dúvida, ofendiam a sua integridade moral e o seu bom nome e reputação;
  • Ora, sobre tais factos, por consubstanciarem direitos pessoais constitucionalmente garantidos, não podiam as mencionadas testemunhas ser ouvidas;
  • Ora, o art. 356 n.º3, alin.b do CPP só se aplica aos casos em que houver discrepâncias sensíveis, que não possam ser esclarecidas doutro modo, entre as declarações prestadas anteriormente no processo e as feitas em audiência;
  • Ora, como bem se diz no acórdão recorrido o disposto no art. 356, maxime no seu n.º3, alin. b), é no pressuposto de que os intervenientes processuais aí em causa são-no de modo homogéneo no mesmo processo, quer dizer, tal preceito só faz sentido quando interpretado no sentido de que as contradições e discrepâncias eventualmente existentes o são quando tiverem sido prestadas quando o interveniente processual está sujeito aos mesmos deveres de conduta;
  • Assim sendo e, uma vez que a requerida leitura de declarações prestadas pela testemunha C. perante Juiz de Instrução Criminal o foram, não enquanto testemunha – e, portanto, não estava obrigada aos deveres de conduta exigidos processualmente a todas as testemunhas – mas enquanto arguido, e, portanto, usufruindo de um estatuto processual específico e distinto daquele de que dispunha em audiência de julgamento;
  • Assim, as eventuais discrepâncias estão esclarecidas pela diferença de estatuto em que umas declarações foram prestadas – as prestadas enquanto arguido – e as prestadas em audiência pelo que não havia que determinar a leitura das anteriores;
  • O acórdão em crise, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou correctamente a Lei, designadamente os art. 25 n.º1 e 26 n.º1 da Constituição e o art. 133 n.º1, alin. a) e n.º2 e 356 do CPP;

7. Relativamente ao recurso do acórdão absolutório, o recorrido A. veio a fls.5003 declarar não pretender fazer uso do direito de resposta, dando por reproduzidas as conclusões apresentadas na resposta à motivação apresentada no recurso dos despachos proferidos em audiência de julgamento.

8. Subidos os autos a esta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer que consta de fls.5050 a 5055, sustentando que o recurso não merece provimento na parte em que a Digna Recorrente que sustenta que a situação prevista no art. 133 do CPP só ocorre quando o depoente ainda não foi julgado no processo conexo ou separado, mas deverá ser provido no que respeita à violação do art. 356 n.º3 do CPP, devendo ser anulado o despacho que indeferiu as leituras e os termos subsequentes, sendo substituído por outro que as determine, sendo as testemunhas instadas sobre as discrepâncias, seguindo-se os termos subsequentes.

9. Cumprido o disposto no art. 417 n.º2 do CPP, nenhum dos arguidos respondeu.

10. Colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência prevenida no art. 423 do CPP.

11. O objecto de cada recurso é demarcado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da respectiva minuta – art. 412 n.º 1 do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Os poderes cognitivos deste Tribunal cingem-se ao reexame da matéria de direito, na dissidência aportada pela ilustre recorrente, bem como aos vícios do art. 410 n.º2 do CPP.

Nestes termos, e atenta a conformação que a ilustre recorrente atribui ao objecto dos recursos, importa examinar por ordem preclusiva as seguintes questões:
    a) Se, no caso de separação de processos, ao arguido já julgado no processo inicial, é aplicável ou não o disposto no art. 133 n.º 1 e 2 do CPP, quando chamado a depor no julgamento de outro co-arguido, podendo o seu depoimento ser utilizado como meio de prova na formação da convicção do tribunal;

    b) Se a leitura prevista no n.º3 do art. 356 do CPP é admissível em relação a qualquer interveniente processual;

    c) Se as declarações prestadas perante o juiz de instrução na fase de inquérito podem ser lidas em audiência se houver entre elas e as prestadas em audiência contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de forma diferente;

    d) Se a não leitura das declarações de co-arguido já julgado no processo inicial e prestadas na fase de inquérito perante juiz, importa nulidade do julgamento e actos subsequentes nos termos do disposto nos art. 120 n.º2, alin. d), 122 e 123 do CPP;

    e) Se a permissão de recusa de depoimento de co-arguido já julgado no processo inicial importa omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade e nulidade do art. 120 n.º2, alin. a) do CPP, do julgamento e actos subsequentes;

    f) Se a não realização da leitura dos depoimentos referidos e a permissão de recusa de depoimento consubstancia erro notório na apreciação da prova e impõe o reenvio do processo para novo julgamento.

II

12. As deliberações do tribunal colectivo, objecto do recurso intercalar são do seguinte teor:

“Os presentes autos de processo comum colectivo surgem na sequência da separação de processos ordenada no Processo Comum Colectivo … deste Tribunal. Ora nestes últimos autos referidos (de que os presentes autos se separaram) a presente testemunha C. apresentava-se então como arguido, tendo nessa qualidade sido julgado e condenado.

Entende este colectivo que a norma constante no n.º2 do art. 133 do CPP está precisamente configurado para fazer face às situações em que, como a actual, quem depõe como arguido em virtude da separação processual entretanto ocorrida passa a poder depor noutro processo – separado do original – como testemunha.

Aliás, a não se entender assim o n.º1, alin. a) do art. 133 do CPP veria atingida, em grande parte, a sua finalidade.

Nestes termos, e reconhecendo não se ter dado cumprimento aquando do início da inquirição da presente testemunha, ao exposto no art. 133 n.º2 do CPP, como muito bem é salientado pelo ilustre defensor do arguido A., decide-se suprir tal irregularidade perguntando-se agora à testemunha se pretende depor enquanto tal, uma vez que noutra ocasião já respondeu como arguido no processo comum colectivo 308/97”.

(…)

“Em face da disponibilidade mostrada por C. em prestar depoimento como testemunha, ganha acuidade apreciar o doutamente requerido pela Digna Procuradora da República, no que diz respeito à possibilidade de ser a actual testemunha confrontada com as declarações por si prestadas, enquanto arguido perante o juiz de instrução criminal.

Entende o colectivo de juízes que compõem este Tribunal que o disposto em todo o art. 356 do CPP, maxime o que dispõe o n.º3, alin. b) de tal preceito, é no pressuposto de que os intervenientes processuais aí em causa são-no de modo homogéneo no mesmo processo, quer dizer, tal preceito só faz sentido quando interpretar, salvo melhor opinião, no sentido de que as contradições ou discrepâncias eventualmente existentes o são quando tiverem sido prestadas quando interveniente processual está sujeito exactamente aos mesmos deveres de conduta.

Assim sendo e, uma vez que a requerida leitura de declarações prestadas pela actual testemunha perante juiz de instrução criminal, o foram, não enquanto testemunha (e, portanto, não estava obrigada aos deveres de conduta exigidos processualmente a todas as testemunhas) mas enquanto arguido (e portanto usufruindo de um estatuto processual específico e distinto daquele de que agora dispõe) decide-se não admitir a leitura de tais declarações”.

As referidas deliberações foram renovadas em relação às promoções do Ministério efectuadas após a audição das testemunhas D., E., F. e G. arguindo ainda o Ministério Público a irregularidade da aplicação do art. 133 n.º2 do CPP.

13. No acórdão final recorrido e no que tange à deliberação sobre a matéria de facto, nomeadamente quanto aos factos provados, factos não provados e fundamentação da convicção do Tribunal, consignou-se o seguinte:

a. Factos provados

Não se provaram quaisquer factos constantes da acusação pública que implicassem a participação dos arguidos A. e B.

b. Factos não provados:

Desde data indeterminada mas ocorrida antes do ano de 1992, o arguido A., decidiu dedicar-se à compra de "heroína", "cocaína" e "haxixe", substâncias estas que o arguido A. venderia a quem quer que lhas quisesse comprar.

Porque se tratava de operações que este arguido pretendia fossem de grande envergadura, numa primeira fase, o arguido conluiou-se com o arguido D., o arguido F. e a arguida H. a fim de, numa distribuição de tarefas, prepararem tais negócios.

Assim, enquanto os arguidos A., D. e F. tratavam de estabelecer os pormenores em que decorreriam tais negócios, a arguida H. procedia aos diversos contactos que era necessário efectuar para se levar a cabo as operações com êxito.

No âmbito dessa actividade, em data indeterminada mas ocorrida no início do ano de 1992, o arguido A. decidiu realizar um novo negócio de "haxixe".

Para tanto e por forma não apurada, contactou com o arguido I, indivíduo de nacionalidade espanhola cujo modo de vida era similar ao do A. já anteriormente descrito, tendo ambos combinado comprar em Marrocos cerca de 2 200 (dois mil e duzentos) quilos de haxixe.

Assim, enquanto o arguido A. estabeleceria os trâmites da operação que decorreriam em Portugal, o arguido I. não só entraria com o dinheiro necessário para tal, como estabeleceria os contactos para a compra do produto em Marrocos.

Na parte que decorreria em Portugal, o arguido A., tal como era seu hábito, conluiou-se com arguidos H., D. e F.

Contudo, como necessitavam de mais pessoas, dada a natureza da operação os arguidos supra referidos decidiram recrutar outros indivíduos.

Assim, surge o arguido G.

Este arguido conheceu o arguido D. em datas indeterminadas mas ocorridas ou em Abril ou em Maio do ano de 1991

O arguido G., na altura, consumia "cocaína".

O arguido D. começou então a vender ao arguido G. cerca de dois gramas de "cocaína", por semana, cerca de Esc. 10.000$00, por cada grama, situação esta que se manteve até Março de 1992.

Se a princípio o arguido G. pagava prontamente a "cocaína" ao arguido D., a certa altura este propôs-lhe que ficasse com o produto à consignação, tendo o arguido G. aceitado.

Dessas quantidades de "cocaína", o arguido G. apenas chegou a pagar duas entregas, ficando a dever ao arguido D. cerca de Esc. 400.000$00.

Em datas indeterminadas, mas ocorridas entre os meses de Outubro e Dezembro de 1991, o arguido D. pediu ao arguido G. que lhe guardasse na sua residência, na Parede, cerca de cinco quilos de "haxixe", tendo este acedido.

Como durante algum tempo o arguido D. não apareceu, o arguido G. decidiu abrir um dos pacotes, contendo cerca de um quilo de haxixe, que utilizou em seu proveito próprio.

Posteriormente e na base deste relacionamento, em Abril de 1992, os arguidos D. e A., dirigiram-se à residência do arguido G., na Parede a quem propuseram participar e colaborar no desembarque de cerca de duas toneladas de haxixe que iria ser efectuado no Algarve, recebendo como contrapartida quantia que não chegou apurada, mas na qual seria computada a quantia ainda devida pelo arguido G. ao D., pelos fornecimentos de "cocaína" e "haxixe" e utilizado.

O arguido G. aceitou, então, fazer parte da equipa que iria proceder ao descarregamento do "haxixe".

Igualmente, surge o arguido E., já conhecido de A.

Quanto ao arguido E. ficou este incumbido de arranjar um barco que possibilitasse o transporte de Marrocos para Portugal, tendo para tanto, recebido do arguido A., a quantia de 50 mil escudos.

Após efectuar diligências o arguido Vítor encontrou uma embarcação denominada "N. N.", em bom estado, na Marina de Vilamoura, cujo custo era de nove milhões de escudos.

Contactou então o arguido A. a quem transmitiu tal notícia tendo este se deslocado ao Algarve a fim de observar a dita embarcação.

Cerca de oito dias mais tarde o arguido A. com a arguida H. , veio novamente ao Algarve onde contactou o arguido Vítor a fim de entregar a quantia necessária para a compra do barco, dinheiro esse pertença do arguido I.

Tal quantia no valor de Esc.: 4 milhões de escudos, foi entregue pela arguida H. -que bem sabia o fim a que se destinava o N. N., para sinalizar a compra do barco e em nome deste, devendo também o arguido E. entregar ao vendedor três cheques, dois no valor de dois milhões de escudos cada outro no valor de um milhão de escudos.

O arguido E. comprou assim o iate "N. N.".

O arguido A. propôs ainda ao arguido E. que fizesse parte da equipa que iria proceder ao desembarque do "Haxixe", recebendo em troca quantia que não foi possível apurar.

Este, a fim de ganhar mais algum dinheiro aceitou a tarefa proposta.

A fim de executar a operação supra descrita, nos primeiros dias de Abril de 1992, os arguidos A., D., B. e G. fazendo-se transportar num veículo marca Renault Clio, deslocaram-se ao Algarve.

Dirigiram-se a Olhão, onde almoçaram, após o que se dirigiram a Tavira, onde, no Eurotel, alugaram dois quartos, em nome do D., onde pernoitaram.

No dia seguinte os arguidos G. e A. dirigiram-se a Faro onde, na Europcar, alugaram uma viatura, marca Renault Traffíc, de cor verde, a fim de, na mesma transportarem para o local do desembarque o material necessário para a operação, em terra, e de posteriormente transportarem para local não apurado os sacos de "haxixe" que iriam ser descarregados.

Nesse mesmo dia, os arguido G e A. compraram em Faro vários records e em Vilamoura depósito de gasolina próprio para motor de barco.

No dia 15 de Abril de 1992, os arguidos G. e D., dirigiram-se para Altura, Castro Marim, local onde o haxixe iria ser desembarcado, fazendo-se transportar na já mencionada Renault Traffíc.

Lá chegadas dirigiram-se ao Eurotel, em cujo parque de estacionamento deixaram o veículo.

Os arguidos A., B. e E. já se encontravam na praia.

Conforme o acordado entre eles, o arguido E. ficou ao cimo das dunas a vigiar quem aparecia no local.

Por sua vez, os arguidos D. e B. escavaram na areia da praia um buraco a fim de ali enterrarem os sacos de "Haxixe" que iriam ser transportados pára terra e que não pudessem ser transportados na Renault Traffíc já referida.

Cerca de meia hora depois de chegarem à praia, os arguidos avistaram o "N. N.", que ancorou a cerca de cem metros da praia.

O "N. N." trazia na altura como capitão o arguido B., o arguido C. e dois outros indivíduos não identificados, os quais tinham sido chamados a colaborar na operação por forma não apurada, sendo certo que foram tais indivíduos que se dirigiram a Marrocos e compraram o "haxixe" que pretendiam descarregar.

O arguido A. entrou em contacto através um Walkie-Talkie, com o arguido B., dando-lhe indicações para que iniciasse o descarregamento.

Nessa altura o arguido B. disse ao arguido A. que o motor do barco de borracha que o N. N. trazia consigo estava avariado.

Os arguidos apoderaram-se, então, de um bote em fibra que se encontrava na praia, perto deles, bote esse onde entrou o arguido D., a fim de dar início ao transporte do haxixe.

Quando o bote referido já se encontrava na água, o arguido D. apercebeu-se que estava a entrar água, pelo que regressou a terra novamente, juntamente com o arguido A. e B., apoderaram-se de uma embarcação denominada "Popeye", pertença de J., id. a fls. 44.

Os arguidos A., D. e B., puxaram a embarcação "Popeye" e puseram-na na água.

O arguido A. ordenou então aos arguidos B., D. e G. que entrassem na embarcação e se dirigissem ao "N. N.", a fim de averiguarem o que se passava com o já referido motor avariado.

Logo na primeira viagem ao "N. N.", o arguido G. ficou a bordo do iate "N. N.", tendo os restantes arguidos, juntamente com o arguido C., retornado para terra.

O desembarque do "Haxixe" efectuou-se da seguinte forma: Os arguidos prenderam a barcaça "Popeye" a uma corda que na outra extremidade tinha uma fateixa, a qual por sua vez estava presa e colocada na areia da praia, possibilitando assim que a barcaça pudesse ser puxada para a areia da praia, sem ser efectuado qualquer ruído, ou seja, criaram um "by-pass"; assim, para transportar os sacos para a praia, o indivíduo que estava dentro da "Popeye", dirigia-se ao iate, onde lhe colocavam os sacos na barcaça. Após, tal barcaça era puxada para a praia, onde os sacos eram entregues aos restantes, que, por sua vez, os levavam para à referida vala a fim de posteriormente os cobrirem com areia de forma a que ninguém os visse.

Enquanto tal operação decorria o arguido E. ficou ao cimo das dunas sempre a vigiar quem pudesse chegar ao local. Tal prática foi sendo efectuada até cerca das 01 horas, já do dia 16 de Abril de 1992, altura em que elementos da Guarda Nacional Republicana de …, e da Guarda Fiscal, alertados, ali se deslocaram.

Lá chegados detectaram a vala aberta na areia, melhor identificada a fls. 78 a 84, e que junto à mesma se encontravam três indivíduos, sendo um deles o arguido C.

Os restantes dois, que se veio a apurar tratarem-se dos arguidos D. e B., ao avistarem os referidos elementos da Guarda Nacional Republicana e da Guarda-Fiscal, puseram-se em fuga, bem como o arguido A. e o arguido E.

Quanto ao "N.N.", pôs-se em fuga levando a bordo os arguidos B., G. e os dois outros indivíduos já referidos.

Logo no início da fuga, o arguido B. ordenou aos restantes indivíduos que atirassem para o mar os sacos de "haxixe" que ainda estavam a bordo, após o que se dirigiu para Vilamoura.

Por sua vez os elementos da Guarda Nacional Republicana Guarda-Fiscal constataram que junto à dita vala se encontravam 33 sacos, contendo substância que se suspeitou tratar-se de "droga", pelo que de imediato a apreenderam.

Posteriormente os referidos elementos da Guarda Nacional Republicana e da Guarda-Fiscal detectaram a fateixa com a dita corda atada e puxaram a barcaça para a areia que se encontrava à deriva e onde também já não se encontrava o indivíduo que desde o começo a tinha dirigido e que entretanto fugira.

Quando a barcaça chegou a terra constatou-se que no seu interior se encontravam mais 14 sacos idênticos aos que se encontravam junto à vala que por esse facto foram imediatamente apreendidos bem como a barcaça.

Enviado tal produto para o laboratório da polícia, científica da Polícia Judiciária, a fim de ser submetido aos competentes exames laboratoriais, deles resultou conforme fls.1505 a 1508, tratar-se de 1241, 8 quilos de "haxixe".

Posteriormente elementos da Armada Portuguesa, acompanhados por elementos da Polícia Judiciária efectuaram diligências ao largo da Praia de Altura, tendo ainda sido encontrados três volumes contendo cerca de 94 quilos, de haxixe.

Dias depois foi contactado o arguido K. pelos arguidos A. (...) no sentido de encontrar uma pessoa que possuísse licença para navegar e pudesse conduzir o "N. N." e fazê-lo sair de Vilamoura.

O arguido K. (...) apresentou-lhes o arguido L., que possuía licença para navegar e que se dispôs a efectuar tal pedido.

Como pagamento de tal serviço os arguidos D. e G., por indicação do arguido A., entregaram, durante um jantar e por baixo da mesa ao K. um saco contendo 50 g de heroína e 50.000$00.

Ao procederem da forma descrita, agiram os arguidos deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.

c. Convicção:

“O tribunal baseou a sua convicção na apreciação de todos os meios de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento valorados na sua globalidade, de modo crítico, como infra se infere.

O decidido funda-se, concretamente, nas declarações prestadas em audiência pelo arguido A. que afirmou, à data dos factos, não residir em Portugal e que não veio ao Algarve entre 1986 e 16 de Abril de 2003; mais esclareceu que no dia em que os factos ocorreram teve uma cólica renal, tendo sido assistido em La Linea, em Espanha: negou a prática dos factos por completo. Relativamente ao barco "N. N." explicou que o mesmo lhe foi dado de garantia como contrapartida de um empréstimo de 2000 contos que fez à mulher do arguido D., de quem era muito próximo, por intermédio do Dr…, não tendo visto a outra pessoa que interveio no contrato (cujo bilhete de identidade era levado pelo Dr….), e, portanto, negando conhecê-la (nesta parte, a testemunha V.N. apresentou a mesma versão dos factos); esclareceu que o dinheiro que emprestou lhe foi devolvido três meses depois.

A restante prova produzida não foi de molde a fazer inverter o sentido das declarações prestadas pelo arguido A.

E certo que a testemunha R. R. afirmou, insistentemente, mostrando certeza, ter visto o arguido na noite em que os factos ocorreram - por duas vezes e em dois momentos distintos: num primeiro, à noite, na companhia de amigos (dois rapazes e uma rapariga) quando se encontravam na conversa junto a uma barraca de praia e quando, depois de sair com esses amigos, regressou à praia, com outros dois amigos, tendo dado uma volta junto ao mar ao longo da praia) e uns dias (cerca de três) depois (narrando que o arguido o perseguiu durante o dia pelas ruas de Altura até à praias). Na noite dos factos, explicou esta testemunha ter visto o arguido A. na companhia de cinco indivíduos: concretizou que um dos indivíduos desse grupo veio ter com o seu grupo e pediu um cigarro, embora este último não tivesse conseguido descrever em audiência; esclareceu que o que lhe chamou a atenção na pessoa do arguido A. foi a circunstância de ser uma pessoa demais idade e com falta de cabelo, tendo-o visto quando ia a sair da praia, juntamente com os seus amigos, passou junto a ele e aos que acompanhavam.

Porém, as testemunhas que consigo estavam na noite do descarregamento da droga e as que caminharam consigo junto ao mar, não conseguiram reconhecer o arguido, alegando a fraca visibilidade do local, por ser de noite.

A testemunha F.A. afirmou mesmo que do local onde ela estava com os amigos não dava para ver fosse quem fosse, só luzes; J.R. afirmou só ter visto 3 indivíduos e que esses 3 foram pedir fogo para o cigarro junto do seu grupo, embora não conseguisse reconhecer o arguido, nem qualquer outro.

As testemunhas A. e M., que afirmaram que foi o Rui quem sugeriu para irem até à praia, afirmaram terem ido com ele até à praia com o intuito de verem as movimentações que por lá havia: não souberam identificar ninguém, baseando-se na falta de visibilidade.

A testemunha C. e, que esteve presente na praia na noite dos factos, tendo sido detido, negou que o arguido A. tivesse estado na praia, não sabendo quem é o arguido B.

A testemunha D. que esteve igualmente presente na noite dos factos, afirmou que o arguido A. não esteve presente no local.

A testemunha V. N. declarou não conhecer o arguido A., nada esclarecendo quanto ao arguido B.
O agente da P.J., C.O., explicou alguns aspectos relativos à investigação, muito embora nada de concreto tenha adiantado quanto aos arguidos objecto da audiência de discussão e julgamento.

As testemunhas J. F., A. B., J.V., J. A., A. R. e A. P., todas com a razão de ciência que se colhe da respectiva acta da audiência de discussão e de julgamento, nada esclareceram quanto à participação dos arguidos.

Por outro lado, as testemunhas inquiridas por carta precatória nada esclarecem quanto à participação dos arguidos na prática dos factos.
Consta ainda do processo um certificado da presença do arguido A. em Espanha numa consulta médica no dia dos factos (cf. fls. 3193 a 3195).

Quer dizer, a prova produzida em audiência provocou no tribunal uma dúvida objectiva, razoável e inultrapassável quanto à participação do arguido A., nomeadamente quanto à sua presença no dia dos factos no descarregamento em causa, a qual, em virtude do princípio in dúbio pró reo não pode valer contra o arguido, mas exclusivamente em seu favor.

Relativamente ao arguido B. nenhuma prova foi produzida em audiência”.
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14. Quanto à 1.ª questão e enunciada em 11.- a) impõe-se conhecer se é ou não aplicável o disposto no art. 133 n.º2 do CPP em relação às testemunhas C., D., F., E. e G.

Dispõe o art. 133 do CPP:

«1. Estão impedidos de depor como testemunhas:
    a) O arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade;

    b) As pessoas que se tiverem constituído assistentes, a partir do momento da constituição;

    c) As partes civis.

2. Em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo podem depor como testemunhas, se nisso expressamente consentirem.»

A Doutrina já respondeu que os arguidos não estão impedidos de produzir prova "por declarações do arguido no decurso do julgamento, nos termos dos art. 140.º e seguintes, como decorre, entre outros, do disposto nos art. 343.º e 345.º, todos do CPP, mas que essas declarações - na decorrência de co-arguição - não podem validamente ser assumidas como meio de prova relativamente aos outros arguidos.

Mas a propósito da mesma questão do depoimento de co-arguido, enquanto meio proibido ou não de prova, também se concluiu pela não proibição, mas lembrando que se trata de um meio de prova frágil, que impõe o controle pela defesa do co-arguido e prefere a corroboração por outras provas.

E concluiu-se igualmente que é a posição interessado do arguido, a par de outros intervenientes citados nesse art. 133.º, que dita o impedimento, o que significa que nada obsta a que preste declarações, nomeadamente para se desonerar ou atenuar a sua responsabilidade, o que acarreta que, não sendo meio proibido de prova, as declarações do co-arguido podem e devem ser valoradas no processo, não esquecendo o tribunal a posição que ocupa quem as prestou e as razões que ditaram o impedimento deste artigo.

E tem sido neste último sentido que se tem formado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

Com efeito decidiu-se que « [1] a crítica feita no sentido de que não seria lícita a utilização das declarações dos arguidos como meio de prova contra os outros, não tem razão de ser em face do art. 125 do CPP; [2] na verdade, este artigo estabelece o princípio da admissibilidade de quaisquer provas no processo penal, estabelecendo o art. 126°, aquelas que são proibidas, não constando deste elenco o caso das declarações dos co-arguidos. Estas são perfeitamente possíveis como meios de prova do ponto de vista da sua legalidade, como o são as declarações do assistente, das partes civis, etc.; o que acontece é que a Lei Processual ao proibir que o arguido seja ouvido como testemunha, pretende, tão só, protegê-lo e impedi-lo, por exemplo, que venha a ser condenado por perjúrio». E que o art. 133 do CPP apenas proíbe que os arguidos sejam ouvidos como testemunhas uns dos outros, ou seja, que lhes seja tomado depoimento sob juramento, mas não impede que os arguidos de uma mesma infracção possam prestar declarações no exercício do direito, que lhes assiste, de o fazerem em qualquer momento do processo.

Nada impede que o arguido preste declarações sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, ou seja, tanto sobre factos que só a ele digam directamente respeito, como sobre factos que respeitem a outros arguidos.

A proibição constante do art. 133 n.º1, alin. a) do CPP, tem um objectivo muito próprio: o de garantir ao arguido o seu direito de defesa, que facilmente se mostraria incompatível com o dever de responder, e com verdade, ao que lhe fosse perguntado, com as sanções inerentes à recusa de resposta ou à resposta falsa.

No caso em apreciação houve separação de processos nos termos do art. 30 n.º1 do CPP, tendo sido extraída do processo 308/95 do Tribunal de …a culpa tocante aos ora arguidos-recorridos.

Naquele processo eram também co-arguidos, além de outros, os cidadãos C., D., F., E. e G. (v.fls.4468 a 4487), que foram pronunciados com os ora recorridos, como co-autores, em concurso real, de um crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes e de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, como melhor consta de fls.4481 a 4484.

Entretanto, no referido processo, foram aqueles julgados e alguns deles condenados, por acórdão transitado em julgado.

E tendo sido indicados oportunamente como testemunhas, nos presentes autos, 53/97.7 TBVRS, que são traslado daqueles, a questão que se coloca em primeiro lugar é a de saber se, nas descritas circunstâncias, ainda se exige o respectivo consentimento expresso para os mesmos poderem depor nessa qualidade (como testemunhas), face ao preceituado no citado n.º2 daquele art. 133 do C. P. Penal, sendo certo que o Tribunal “a quo” entendeu que os mesmos só poderiam ser ouvidos nessa qualidade se nisso consentissem, e, como os cidadãos F. e G. não consentiram, não foi admitida a respectiva inquirição.

Ora, no que a tal respeita, concordamos com o entendimento expresso pela Exma. Procuradora da República do tribunal recorrido, ora recorrente, no sentido de que não se aplica ao caso o disposto naquele normativo, uma vez que as referidas testemunhas foram mas já não são arguidos no processo 308/95, que correu termos contra os mesmos, por este já se encontrar definitivamente julgado e sendo certo que a qualidade de arguido se conserva apenas durante o decurso do processo, em conformidade com o preceituado no art. 57 n.º2 do CPP, pressupondo o referido n.º2, do art. 133, a manutenção da qualidade de arguido, isto é, que o respectivo processo se mantenha em curso.

Assim sendo, no caso de separação de processos, cessada a qualidade de arguido de um mesmo crime ou de um crime conexo, e à semelhança do que indiscutivelmente acontece quando se trata do mesmo processo ou de processos conexos - cf. alin. a) do n.º1 do citado art. 133 – nenhuma razão existe para que não seja, obrigatoriamente, prestado o respectivo depoimento como testemunha ( sublata causa, tollitur effectus).

Já assim decidiram também os acórdãos do STJ de 6.3.96, in CJ STJ, ano IV, tomo 1, pag. 221, de 20.11.2002, in CJ STJ, ano X, tomo III, pag.230/1, da Relação de Lisboa de 18.5.99, in CJ, ano XXIV, tomo 3, pag.140.

E é este também o entendimento de Medina Seiça, em “O conhecimento probatório do co-arguido”, in Boletim da Faculdade de Direito, Studia Juridica 42, pag.91, que sobre a questão em apreciação acaba por defender que, “de facto, ao vincular o impedimento à manutenção da qualidade de co-arguido, a lei não pressupõe por certo que essa qualidade, uma vez adquirida, permaneça qual estatuto inamovível. Por outro lado, quando admite, caso haja consentimento expresso, o testemunho do arguido do mesmo crime ou crime conexo, o mesmo é dizer no nosso entendimento, quando reconhece a persistência do fundamento do impedimento, colocando-o tão só na disponibilidade do arguido, a lei quando admite esta possibilidade, dizíamos pressupõe a manutenção da qualidade de arguido, isto é, que o processo, embora separado, se mantenha em curso”.

Também José António Barreiros, in “Sistema e Estrutura do Processo Penal Português”, a pag. 218, defende que o estatuto do arguido terminará com qualquer decisão que ponha termo ao processo no qual ele tiver sido adquirido pelo virtual agente da infracção.

Tudo a significar que é nosso entendimento que padecem de fundamento legal, violando, por erro de interpretação, o disposto no art. 133 n.º2 do CPP, as deliberações do tribunal colectivo que entenderam ser aplicável esse preceito às testemunhas acima referidas e, por conseguinte, não admitiu que fossem ouvidas as testemunhas F. e G. que, feita a advertência da exigência do respectivo consentimento, optaram por não depor.

Assim, tendo as referidas testemunhas perdido o estatuto de arguidos, impõe-se que dêem obrigatoriamente o seu concurso, como testemunhas, para a descoberta da verdade, se tal for julgado necessário, como acontece com a generalidade dos cidadãos e que esses depoimentos sejam utilizados como meios de prova na formação da convicção do Tribunal.

Procede, pois, o recurso neste conspecto.

15. Passemos à 2.ª questão. Será admissível a leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas pelas testemunhas, ali ouvidas, na fase de inquérito perante o juiz de instrução criminal, na qualidade de arguidos?

Como resulta dos autos, na sessão da audiência de julgamento do dia 12 de Junho de 2003, após ter terminado a audição da testemunha C., a Digna Magistrada do Ministério Público, por entender que se verificava a existência de contradições entre o depoimento acabado de prestar por essa testemunha e as declarações que havia já prestado nos autos na qualidade de arguido, no seu primeiro interrogatório judicial, requereu, ao abrigo do disposto no art. 356 n.º3, alin. b) do CPP, se procedesse à leitura dessas declarações a fim de serem esclarecidas tais contradições.



E renovou essa pretensão relativamente às testemunhas D., F., E. e G., acrescentando a alin. a) do n.º3 do citado art.356.

Ao assim requerido foi deduzida oposição pelos arguidos, havendo então sido proferida deliberação do colectivo de indeferimento, fundado, com base em tal oposição, no artigo 356, nºs 3, alínea a) e b) do Código de Processo Penal.

Como é sabido, o princípio vector de todas as regras sobre produção de prova na audiência de julgamento consta do artigo 355, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo o qual "não valem em julgamento nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tivessem sido produzidas ou examinadas em audiência".

Por influxo deste princípio, como aliás resulta do n.º 2 daquele dispositivo, a prova constante de actos processuais praticados anteriormente muito embora esteja à disposição do tribunal, não pode por este ser utilizada para efeitos de decisão se os respectivos autos não forem lidos em audiência.

A leitura dos autos e declarações autorizada pelo artigo 356 representa uma emanação da oralidade e publicidade da audiência, traduzindo-se porém em excepção ao princípio da imediação da prova, excepção justificada pela impossibilidade ou grande dificuldade da sua produção directa ou por outras razões pertinentes.

Mas, nas situações que, a título taxativo, são previstas naquele preceito houve o evidente propósito de acautelar as garantias de defesa do arguido, nomeadamente o princípio do contraditório estabelecendo-se um regime diferenciado em função, não só da natureza dos actos processuais, como também da autoridade judiciária ou de polícia criminal perante quem foram praticados.

Com efeito, distinguem-se ali, sucessivamente:

(1) Os actos processados com observância das formalidades estabelecidas para a audiência [artigos 356, n.º 1, alínea a) e 318, 319 e 320];

(2) Autos de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas [artigo 356, n.º 1, alínea b)];

(3) Declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas prestadas perante o juiz quando destinadas a memória futura ou obtidas mediante precatórias legalmente permitidas [artigo 356, n.º 2, alíneas a) e c)];

(4) Declarações anteriormente prestadas perante o juiz na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não se recorda de certos factos ou quando houver entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de outro modo [artigo 356, n.º 3];
(5) Declarações prestadas perante o juiz ou o Ministério Público, se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoura [artigo 356, n.º 4];

(6) Declarações do assistente, das partes civis e das testemunhas prestadas perante o juiz e perante o Ministério Público ou órgãos de polícia criminal se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura [artigo 356, nºs 2, alínea b) e 5].


A diferenciação de tratamento estabelecida para a leitura em audiência dos diversos actos ali previstos radica na sua particular natureza e conteúdo mas também, e é esse um ponto que aqui importa sublinhar, nas maiores ou menores garantias processuais com que os mesmos foram praticados (com as formalidades estabelecidas para a audiência, levadas a cabo perante o juiz, perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal).

A norma posta em crise consente a leitura de declarações anteriormente prestadas perante o juiz:

(a) na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou

(b) quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de outro modo.

As declarações cuja leitura foi requerida foram prestadas pelas referidas testemunhas na qualidade de arguidos, estatuto que já não mantinham aquando do julgamento destes autos.

E tais declarações decorreram perante o juiz de instrução criminal.

Assim, não obstante tais declarações terem sido produzidas quando as testemunhas em causa mantinham o estatuto de arguidos, e, por isso, só estavam obrigados a responder com verdade sobre a sua identificação e antecedentes criminais (cf. art. 141 n.º3 do CPP), afigura-se-nos que tal não impede o tribunal de proceder à respectiva leitura, posto que se verifique uma das situações prevenidas nas alíneas a) e b) do n.º3 do art.356 do CPP, que o tribunal recorrido nem sequer considerou.

Aliás, foi a solução adoptada no acórdão do STJ de 6.3.96, publicado na CJ/STJ, ano 4.º, tomo 1, pag.223.

Como sustenta a Exma. Procuradora da República do tribunal recorrido o entendimento acolhido de que as contradições e discrepâncias eventualmente existentes só poderiam ser consideradas quando o interveniente processual está sujeito exactamente aos mesmos deveres de conduta não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.

Na verdade, quanto à leitura de declarações prestadas nos autos por testemunhas rege o disposto no art. 356 n.º2 do CPP e tal leitura só poderá ser efectuada nos casos aí definidos.

O n.º3 do art. 356 do CPP permite a leitura de declarações anteriormente prestadas nos autos – por testemunhas ou outros intervenientes processuais, que não o arguido sujeito a julgamento (para este rege o art. 357) – posto que o tenham sido perante o juiz e ocorra uma das situações especificadas nas alíneas a) e b).

Por isso que procede o recurso intercalar, impondo-se a revogação das deliberações objecto deste recurso.
III

16. Nestes termos, acordam os juízes que constituem a secção criminal, em conceder provimento ao respectivo recurso, revogando-se as referidas deliberações do tribunal colectivo, que devem ser substituídas por outras a admitir a inquirição das testemunhas, independentemente do aludido consentimento, bem com a leitura das declarações que foram prestadas anteriormente pelas testemunhas acima referidas, ainda que na qualidade de arguidos, posto que verificados os requisitos enumerados nas alin.a) e b) do n.º3 do art. 356 do CPP.

E, em consequência, acordam ainda em anular o acórdão proferido, que também vinha recorrido, mostrando-se assim prejudicado o conhecimento desse recurso, bem como em anular o julgamento realizado, que deve ser repetido, pelo mesmo Tribunal, em conformidade com a presente decisão, considerando-se que, dado o tempo já decorrido, perdeu eficácia a produção de prova já realizada – cf. art. 328 n.º6 do CPP.

Sem tributação.

Honorários ao Exmo. Defensor oficioso nomeado em audiência, neste tribunal, de acordo com o ponto 6 da tabela anexa à Portaria n.º 150-C/2002, de 19/2, sem prejuízo do disposto no art. 4.º n.º1 da mesma Portaria.


Évora, 2004.06.30

F. Ribeiro Cardoso (relator) /Onélia Madaleno/Gilberto Cunha


Nota:

Do presente acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional restrito à interpretação do art. 133 n.º2 do CPP, o qual, pelo acórdão n.º 181/2005, de 5 de Abril, relatado pelo Exmo. Conselheiro Paulo Mota Pinto, decidiu “não julgar inconstitucional o art. 133 n.º2 do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não exigir consentimento para o depoimento como testemunha, de anterior co-arguido cujo processo, tendo sido separado, foi já objecto de decisão transitada em julgado”.

Disse-se aí:

“No presente caso, verifica-se uma discordância do recorrente em relação ao tribunal recorrido, quanto à finalidade da norma do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e, consequentemente, quanto ao seu alcance.

Ora, independentemente do juízo que se faça sobre a dimensão normativa que foi apreciada pelo Tribunal Constitucional no citado acórdão n.º 340/04 a qual não está em causa no presente processo –, entende-se que é de reiterar o que então se disse quer sobre a finalidade do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – que este “visa, exclusivamente a protecção dos direitos do co-arguido, enquanto tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não auto-incriminar”, o que, aliás, é também salientado entre nós pela doutrina (veja-se, por todos, António Medina de Seiça, O conhecimento probatório do co-arguido, Coimbra, 1999, pp. 34 e segs., que situa na protecção do próprio co-arguido contra a auto-incriminação o fundamento do “princípio da incompatibilidade entre a posição de (co)-arguido e de testemunha”) –, quer, em obiter dictum, sobre o alcance dessa norma no que diz respeito à cessação do impedimento: isto é, “que o impedimento cessa no caso de o co-arguido deixar de o ser no processo separado, por qualquer forma por que o procedimento criminal se pode extinguir”.

Esta última afirmação só pode, aliás, sair reforçada se se trata de um caso, como o presente, em que o procedimento criminal se extinguiu, no processo separado, por decisão transitada em julgado, com alguns arguidos condenados. E, não estando em causa a defesa do co-arguido neste processo, que já terminou, também não está, pois, em causa a protecção das garantias de defesa em processo criminal desse co-arguido, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

Talvez por isso, o que o recorrente invoca é, antes, a protecção dos direitos à integridade moral e física, ao bom nome e reputação do co-arguido depoente. Ora, não pode negar-se, é certo, que da inexistência de uma obrigação do co-arguido de, sem consentimento, prestar depoimento como testemunha, pode resultar, como efeito, que a honra e reputação (enquanto imagem moral exterior) do arguido depoente, ou de outras pessoas que seriam mencionadas no depoimento, sejam preservadas. Trata-se, todavia, de mera consequência da protecção do depoente resultante dessa disposição, como projecção da inexistência de qualquer obrigação de auto-incriminação em processo penal – protecção, esta, que não está já em causa se o arguido foi já julgado, com decisão transitada em julgado, no processo separado que lhe dizia respeito. E tal afectação desses direitos fundamentais à honra e reputação do depoente, fora do âmbito do processo penal, só poderá, aliás, resultar do conhecimento dos factos tal como resultam do seu depoimento.

Desta forma, não é de considerar incompatível com tais direitos fundamentais, constitucionalmente protegidos, uma compreensão da exigência de consentimento para prestar depoimento como testemunha, prevista no artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, colimada a uma finalidade apenas relativa ao processo criminal, em benefício do co-arguido. Isto é, não é incompatível, nem com as garantias processuais penais, nem com os direitos fundamentais invocados pelo recorrente, o entendimento de que o n.º 2 do artigo 133.º do Código de Processo Penal visa exclusivamente a protecção dos direitos de defesa do co-arguido em processo penal (designadamente, no processo separado), garantindo o seu direito de se não auto-incriminar, e não também proteger direitos fundamentais, como os direitos à integridade moral e física, ao bom nome e reputação, seja do arguido depoente, seja do arguido que é objecto do depoimento ou nele mencionado, seja de quaisquer outras pessoas.

E, assim, tendo o depoente já perdido a qualidade de arguido, por decisão transitada em julgado no processo separado, não é inconstitucional o entendimento de que cessa o impedimento estabelecido, podendo e devendo aquele depor como testemunha, sem nisso ter que consentir.

Pelo que se conclui que é de negar provimento ao presente recurso”.

Évora, 2005.04.26

F. Ribeiro Cardoso.

P.S. - Este Acórdão do Tribunal Constitucional foi publicado no Diário da República de 12/5/2005, II série pág. 7425.




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[1] Rodrigo Santiago (Reflexões sobre “Declarações do arguido” como Meio de Prova no CPP de 1987).
[2] Teresa Beleza, in Revista do MP, ano 19, pag.58 e 59.