PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE SUSPENSÃO DO PODER PATERNAL
Sumário


Para a procedência da providência cautelar de suspensão do poder paternal a lei exige, que os progenitores sejam manifestamente incapazes de cuidar do filho, (isto é, objectivamente verificável) no plano físico ou no aspecto moral, não se bastando com uma incapacidade relativa.

Texto Integral


,Agravo 2291/04-2
1º Juízo do Tribunal da Golegã
(P. Cautelar 20/04.6 TBGLG)



Acordam na Secção Cível da Relação de Évora



RELATÓRIO



AM. e marido AJ., requereram a presente Providência cautelar de suspensão do Poder Paternal e depósito da menor F., contra a mãe da mesma, L., todos melhor identificados nos autos, como , preliminar de acção de inibição do poder paternal, por entenderem que a menor corre perigo para a sua saúde, educação e formação moral, caso seja entregue à mãe, oferecendo a prova dos factos alegados
A requerida deduziu oposição ao peticionado, tendo também oferecido prova testemunhal e documental.
Produzida a prova arrolada e ouvida a Exmª Curadora de Menores, que se pronunciou no sentido do indeferimento do requerido, foi proferida decisão denegatória do peticionado, com base em não se terem apurado factos susceptíveis de justificarem a suspensão do poder paternal.

Inconformados, os Requerentes trouxeram recurso de Agravo da referida decisão denegatória, cuja alegação culmina com as seguintes conclusões:

A.- Os recorrentes não se conformam com a douta decisão, porquanto consideram que a mesma apenas atendeu a critérios de estrita legalidade, postergando os princípios da oportunidade e da conveniência que devem prevalecer nos processos de jurisdição voluntária.

B.- No caso em apreço, não foi dada como assente factos que resultam da prova documental junta aos autos e da prova testemunhal produzida, e que, com a devida vénia, se consideram importantes para a boa decisão da causa;
C.- Nomeadamente, que a requerida e o seu companheiro só começaram a trabalhar após a entrada da presente providência; que a F. requenta a Escola Básica n° l da ……., desde Dezembro de 2003, está perfeitamente integrada na turma, convivendo de forma natural com todos os colegas e demais adultos intervenientes no processo educativo; que, na escola, revela um comportamento calmo, é muito responsável e organizada, não cria qualquer tipo de atritos com as outras crianças que gostam muito dela, que a F. é uma boa aluna, como resulta do relatório de fls. 105;

D.- Também não foi dado relevo ao facto do actual companheiro da requerida – FM. - ter consumido cocaína e heroína durante 17 anos e este preso durante 5 anos e 9 meses, tendo cumprido a pena na totalidade, sem que tenha beneficiado da liberdade condicional; que casa onde mora com a requerida é frequen- tada por amigos que frequentaram o Centro de Recuperação; que o companheiro da requerida tem uma filha de 15 anos, que não o visita, nem frequenta a casa onde este vive com a L.;

E.- Que o pai da F. morreu quando se encontrava a trabalhar, como funcionário da REFER (antiga CP) e que logo após a morte do O. a requerida foi tratar da pensão de sobrevivência, apesar, de estar separada há muito daquele e a viver em união de facto com o FM.;

F.- Que a requerida nunca procurou que fosse cumprido o regime de visitas acordado e homologado por a sentença que proferida no processo de regulação do poder paternal celebrado no processo nº 43/98;

G.- Que na noite em que tomou conhecimento da morte do pai, foi a recorrente mulher que esteve com ela no Hospital e se deitou a seu lado até que a F. conseguisse adormecer e que a F. tem um irmão, fruto da união do falecido pai com a sua companheira C., com quem convive assiduamente na casa dos requerentes.

H.- Da materialidade acabada de referir e da matéria dada como assente resulta que a requerida violou culposamente os seus deveres para com a filha, violação essa culposa e da mesma resultou graves prejuízos para a F., nomeadamente, a ausência da mãe quebrou qualquer relação afectiva e provocou na F. um sentimento de rejeição em relação à mãe que a perturba psicológica e emocionalmente, que aumenta a sua revolta pela perda do pai.

I- Além disso, a requerida pretende retirar a menina do ambiente acolhedor, protector e estável que os recorrentes lhe proporcionam para o convívio com um padrasto que foi (ou ainda é?!) toxicodependente, que esteve preso, para o convívio com uma mãe que durante os seus 7 aninhos de vida esteve mais tempo ausente do que presente e que não passa de uma estranha e que a F. não inclui no elenco das três mães que afirma ter.

J.- O acompanhamento, o apoio, a assistência que os recorrentes proporcionam à F. já começou a dar os seus frutos, nomeadamente, uma integração escolar estupenda e que levou ao seu sucesso escolar.

L.- Perante este quadro factual não há dúvidas que da violação culposa dos deveres por parte da requerida para com a filha houve e há graves prejuízos para a F., que puseram e põe em causa o desenvolvimento psicológico, emocional e até físico da menor.

M.- Também não podemos deixar de dizer que, pelo menos indiciariamente, resultou provado que o repentino interesse pela F. por parte da mãe resultou do grande interesse pela pensão a que a F. tem direito por morte do pai e pela indemnização de um seguro de que vai ser beneficiária.

N.- Porque assim se não decidiu foi violado o disposto no artigo 194° da OTM e 1915° do Cód. Civil, tanto mais que como já decidiu esse Venerando Tribunal, que o conceito de perigo neste tipo de processo não tem de ser um perigo actual ou eminente, podem do ser um perigo meramente potencial, e no caso existe o perigo da F., mais uma vez ser afastada daqueles que a protegem, que a apoiam para ser entregue a uma mãe ausente, a um padrasto com historial de vida conturbado que nunca conheceu, ter graves problemas psicológicos.

O.- Acresce que a douta decisão recorrida só devia ser proferida após a realização de uma exame e relatório pedopsiquiátrico à menor, a fim de ser avaliada a sua actual situação psicológica e as repercussões que a retirada da F. do seio familiar dos requerentes vai ter no seu desenvolvimento psico-emocional.

P- Pelo que deve a douta sentença ser revogada e ser decretada a providência de inibição requerida, pois só desta forma se acautelam os interesses da F. e se pode contrariar o destino que lhe foi adverso, ao ser abandonada pela mãe aos 4 anos e que lhe levou o pai aos 6 anos.

Q- venerandos Juízes, apenas, pedimos que dêem à F. a oportunidade de viver, em toda a sua plenitude, a infância que a vida lhe tem negado, dêem oportunidade à F. de ser FELIZ dando provimento ao presente recurso.

A requerida L. contra-alegou e o mesmo fez a Digna Curadora de Menores, pugnando ambas pela manutenção do decidido.


FUNDAMENTOS

Como é sabido, são as conclusões formuladas nas alegações de recurso que delimitam o respectivo objecto (cfr. artºs 684º nº 3 e 690º nº1 do CPC), à excepção de outras cujo conhecimento oficioso a lei permita ou imponha (art. 660º nº2 do CPC), pelo que, em face das mesmas, cumpre apreciar e decidir.

A decisão, ora em recurso, deu como demonstrados, ainda que indiciariamente, como é característico dos procedimentos cautelares, que se apoiam apenas numa summaria cognitio em sede probatória, como é sabido, os seguintes factos:

1. A menor F., nasceu a 07.06.1997, é filha de O. e de L., cfr. assento de nascimento de fIs. 10.

2. O., faleceu a 13.12.2003, no estado de casado com L., cfr. assento de óbito de fIs. 12.

3. No Proc. n.º 43/98, do Tribunal Judicial do Entroncamento foi regulado o exercício do poder paternal da menor F., por acordo entre os progenitores, nos seguintes termos:

a. A menor é confiada aos cuidados e guarda do pai.

b. A menor passará todos os fins-de-semana na companhia da mãe, podendo ir buscá-la a partir das 18:00 horas de sexta-feira entregando-a no Domingo às 18:00 horas.

c. A mãe poderá no entanto ver a filha sempre que o quiser desde que não prejudique as horas de repouso da menor e avisando previamente o pai.

d. Uma vez que a mãe da menor não tem emprego, não se fixa por ora qualquer prestação de alimentos

4. A requerida e O. casaram quando aquela se encontrava grávida da F., tendo então 18 anos de idade.

5. A vida do casal foi desde o inicio marcada por dificuldade várias que determinaram mudanças de habitação e separações do casal.

6. Na sequência de um desentendimento do casal em 1998 foi regulado o exercício do poder paternal nos termos referidos no ponto 3.

7. Depois da regulação do exercício do poder paternal o casal retomou a vida em comum.

8. Em Março de 2001 a requerida saiu da casa onde o casal habitava, no ……, levando consigo a menor F..

9. Dias depois o pai foi buscar a F., que passou a viver em casa dos avós paternos com o pai.

10. Em Dezembro de 2002 o pai da F. foi viver com uma companheira (C.), numa casa arrendada na ………...

11. A F. passou também a viver com o pai e a companheira deste a partir de Agosto de 2003.

12. Aquando do falecimento do pai, a F. estava em casa dos requerentes, onde ficava juntamente com a companheira do daquele, que se encontrava em fase final de gravidez.

13. O pai da F. deixava a filha e a companheira aos cuidados dos Requerentes, durante o seu horário de trabalho.

14. A F. desde os três anos de idade que conhece os Requerentes, tendo passado cerca de um mês em casa destes aquando de um internamento prolongado do pai no Hospital.

15. Desde o falecimento do pai que a F. vive em casa dos Requerentes.

16. Após a morte do O. a Requerida procurou a F. com intenção de a levar consigo.

17. Desde a separação dos pais a F. manteve contactos esporádicos com a mãe, às escondidas do pai e com a colaboração dos avós paternos.

18. A F. não tem uma relação afectiva com a mãe, a quem trata por "a L.".

19. E refere ter três mães - a tia M., a tia A. e a C..

20. A requerida vive com um companheiro no …………, há cerca de um ano, antes viveram na zona de …..

21. Desta união a requerida tem um filho de nome LL., de 2 anos de idade.

22. O menor LL. é acompanhado no Centro de Saúde de …………….., onde tem feito as consultas de rotina e vacinas.

23. O companheiro da requerida foi consumidor de produtos estupefacientes tendo realizado tratamento de desintoxicação no Centro de tratamento, na …………...

24. De acordo com a informação prestada pelo Centro de Saúde da …….. - "após a realização de exames analíticos, efectuados com o consentimento do interessado, FM, não é portador de doença infecto-contagiosa".

25. Os requerentes acompanham a F. à escola, ajudam-na nos trabalhos de casa, prestam-lhe atenção, carinho, afecto e conferem-lhe estabilidade emocional, principalmente depois do falecimento do pai.

26. A F. nutre uma grande admiração pelo pai.

Embora os Recorrentes afirmem que para além da matéria provada , o Tribunal a quo devia ainda dar como provados outros factos, mas em primeiro lugar os factos que pretendem que fossem acrescentados ao perfil factual apurado, em nada alterariam a decisão ,já que são simples factos do passado, como o caso de o companheiro da mãe da menor ter consumido cocaína ou ter estado preso, sendo certo que presentemente se encontra a trabalhar, tendo feito a desintoxicação e não padecendo de doença infecto-contagiosa.
O facto de a requerida ter tratado da pensão da sobrevivência , logo após a morte do marido, em nada põe em causa a sua idoneidade, pois tratou do exercício de um direito seu e, como se afirma no indesmentido brocardo latino «quis jure suo utitur, neminem facit injuriam» !
Também o facto alegado de a casa onde mora a requerida ser frequentada por amigos que frequentaram o Centro de Recuperação nada tem de estranho, pois se o próprio companheiro de requerida frequentou tal centro para a sua desintoxicação, é natural que tenha contraído amizades e, por outro lado, convenhamos que é de diferente de a casa ser frequentada por actuais tóxico dependentes, que essa, sim, constituiria uma situação de risco para a menor!
Finalmente sempre se dirá, como bem nota o Ministério Público, nas suas contra-alegações, que os recorrentes não deram cumprimento ao disposto no artº 690º-A do CPC , que impõe que sejam especificados nas alegações de recurso, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto, diversa da recorrida.
Na verdade, contentam-se os recorrentes a afirmar que os factos que pretendiam ver provados, resultam da prova documental e testemunhal, o que, por amplo e genérico em demasia não pode ser atendido, como é bom de ver.
Sendo assim, há que considerar assente e suficiente a matéria factual apurada, pelo que se impõe a apreciação de jure.

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Antes do mais importa recordar que não estamos perante uma decisão proferida em processo de inibição do poder paternal, mas em sede de providência cautelar de suspensão do poder paternal e depósito de menor, embora, segundo referem os requerentes no artº 56º do requerimento inicial, tal providência tenha sido instaurada como preliminar da acção de inibição.

Dispõe o artº 199º da OTM que como preliminar ou como incidente da acção de inibição do poder paternal, pode ordenar-se a suspensão desse poder e o depósito do menor, se um inquérito sumário mostrar que o requerido ou requeridos são manifestamente incapazes, física ou moralmente, de cuidar do filho. (sublinhado nosso).
Exige, portanto, a lei, que os progenitores sejam manifestamente incapazes de cuidar do filho, no plano físico ou no aspecto moral.

Esta providência cautelar, segundo alegam os próprios requerentes, é preliminar de futura acção de inibição do pátrio poder relativamente à mãe da menor, ora Agravada, inserindo-se no plano processual da tutela provisória do aparente e, como , de resto, todas as providências cautelares, a acautelar o periculum in mora, que no caso vertente se traduziria numa situação de perigo para a vida, saúde, integridade física ou moral ou educação e inserção social da menor, decorrente de incapacidade da progenitora, ora requerida e aqui recorrida incapacidade essa real e não meramente conjectural, como se colhe da expressão usada pela lei « manifestamente incapaz », isto é, objectivamente verificável!
O facto de a mãe ter saído, do lar conjugal quando a menor tinha cerca de ano e meio, deixando-a aos cuidados do pai, é um facto anódino, que em si mesmo, não fundamenta qualquer situação de abandono, nem de falta de amor da mãe pela filha!
O afastamento do lar apenas pressupõe a impossibilidade ou dificuldade de vivência comum dos pais da menor e a circunstância de não ter levado a filha consigo pode dever-se a factores vários, designadamente à falta de condições para tal, situação que a experiência de vida mostra ser cada vez mais frequente nos dias de hoje, constituindo autêntico id quod plerumque accidit !
Aliás, como se colhe dos factos provados 7º e 8º, o casal retomou vida em comum e quando a ora Agravada, saiu, de novo, em Março de 2001, da casa em que o casal habitava no ……, levou a menor consigo, tendo o pai ido buscá-la.
Doutra banda, vem demonstrado, na perspectiva perfunctória da summaria cognitio, que a menor mantinha contactos esporádicos com a mãe, ora Agravada, às escondidas do pai e com a colaboração dos avós paternos ( facto 17º), o que permite entrever a relação amistosa existente entre ambas, cujos encontros não seriam , certamente , favorecidos pelos próprios pais do progenitor da menor ( não pais da mãe da F. ), se assim não fosse.
Relativamente ao facto de o actual companheiro da mãe da menor ter sido tóxico-dependente, tal facto pertence ao pretérito, pois também vem provado que o mesmo fez tratamento de desintoxicação (facto 23), que tem feito consultas de rotina e vacinas no Centro de Saúde de ………. ( facto 22) e que, por documento emitido pelo Centro de Saúde da ………….. o mesmo não é portador de doença infecto- contagiosa ( facto nº 24).
A prova produzida em sede da presente providência cautelar não autoriza, pois, a conclusão de que a mãe da menor, ora Agravada L., seja manifestamente incapaz, física ou moralmente, de cuidar da filha, o que vale dizer, como bem decidiu a sentença sob recurso, que não se fez prova do pressuposto legal do decretamento da providência requerida.

Não se põe em dúvida que a menor poderia , eventualmente , desfrutar de ambiente mais acolhedor e de melhores condições socio-económicas em casa dos ora Agravantes.
Simplesmente, não se verificando os pressupostos legais para a suspensão do poder paternal e depósito da menor impetrados, não pode a mesma medida ser determinada, por falência da prova dos factos de onde emerge o eventual direito invocado, ou seja da própria causa de pedir.
A concluir se dirá também que o inquérito sumário a que se refere o nº 1 do artº 199 da OTM, só se justificaria se tivessem resultado provados indícios da incapacidade física ou moral da requerida para cuidar da filha, pois de contrário não se justificaria uma devassa da sua privacidade, legal e constitucionalmente tutelada, apenas porque foi peticionada pelos requerentes a suspensão do poder paternal da mãe da criança, não resultando provados os factos pertinentes alegados, na parte em que constituiriam os pressupostos legais.

DECISÃO

Face a tudo quanto exposto fica e sem necessidade de maiores considerações, nega-se provimento ao Agravo interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos Agravantes

Processado e revisto pelo relator.

Évora,