CONTRA-ORDENAÇÃO
PAGAMENTO VOLUNTÁRIO
Sumário

I – Se um arguido, ao mesmo tempo que impugna judicialmente uma decisão administrativa, paga a coima correspondente à contra-ordenação, a tal pagamento não se podem atribuir os efeitos decorrentes do pagamento voluntário, previstos no art.º 172.º, n.º 5 e 175.º, n.º 4, do Código da Estrada nem enquadrar o pagamento na figura do depósito, prevista no art.º 173.º, n.os 2 e 3, do mesmo Código, mas sim interpretar-se com o sentido de que o recorrente pretende antecipar-se a uma admissível execução da coima.
II – Com efeito, dado o disposto no art.º 187.º, do Código da Estrada, que no seu n.º 1, estabelece o efeito devolutivo para os recursos de impugnação judicial interpostos da aplicação da coima e, no seu n.º 2, consagra o efeito suspensivo para os recursos interpostos da aplicação de sanção acessória, não pode ter-se este pagamento por definitivo.
III – É que, tendo o arguido interposto recurso de impugnação da decisão administrativa no prazo legal, não há como não entender que o recurso abrange a coima e a sanção acessória e que todas as questões com relevo para a condenação nestas duas vertentes integram o seu objecto.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I.
1. Por sentença, de 2007/11/08, proferida no recurso de impugnação judicial de decisão da autoridade administrativa n.º 2676/07.9TBBRG do Tribunal Judicial de Amares, foi – relativamente à decisão, proferida no âmbito da Delegação de Viação de Braga da Direcção Geral de Viação, no processo de contra ordenação n.º 248844778, de aplicar ao arguido José, com os demais sinais dos autos, por contra-ordenação ao disposto no 24.º, n.º 1, do DR n.º 22-A/98, de 1 de Outubro, a coima de €24,94 e a sanção acessória de inibição de conduzir perlo período de trinta dias – decidido:
– Manter integralmente a coima e o período de inibição aplicados pela autoridade administrativa; e
– Nos termos do art.º 141.º, n.os 1 e 2, do Código da Estrada (CE) e 51.º, n.º 1, do Código Penal (CP), suspender a execução da sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de 6 meses.
2. Inconformado com esta decisão o arguido e recorrente decidiu interpor recurso da mesma.
Terminou a motivação de recurso que apresentou, coma formulação das seguintes conclusões:

« I. O facto vertido no item d) supra foi incorrectamente julgado pelo Tribunal a quo, bem como foi incorrecta a subsunção jurídica feita na sentença recorrida, que entendeu que o recorrente pagou voluntariamente a coima fazendo uso do instituto de pagamento voluntário da coima previsto no art. 172.° do Código da Estrada, e que, por isso, não apreciou o recurso apresentado peio arguido;
« II. Com efeito, é efectivamente verdade que o arguido efectuou o pagamento da coima e das correspondentes custas de processo administrativo, na sequência e por causa da decisão final da entidade administrativa proferida em 08.01.2007, contudo é falso que esse pagamento tenha sido efectuado ao abrigo do instituto do pagamento voluntário da coima, previsto no art. 172.° do Código da Estrada;
« III. Desde logo porque, conforme claramente se refere no recurso da contra-ordenação apresentado na 1.ª instância, e ao contrário do aludido na fundamentação de direito pela Mm.ª Juíza a quo, aquele recurso tinha efeitos meramente devolutivos quanto ao acto de condenação no pagamento da coima (cfr. art. 187.° do Código da Estrada), sendo que outra solução não restaria ao aqui recorrente senão a de pagar a coima que lhe havia sido aplicada pela autoridade administrativa, no prazo de 15 dias a que alude o art. 182.° do Código da Estrada;
« IV. Contudo, porque o arguido não concordava com a respectiva condenação na prática da contra-ordenação e com a correspondente coima e sanção acessória de inibição de conduzir, fez constar, no primeiro – e único – momento em que para tal teve oportunidade, que esse pagamento efectuado via Multibanco – também esta a única forma ao dispor do arguido para efectuar aquele pagamento –, havia sido feito na modalidade de depósito (cfr. item 2.º do recurso apresentado perante a 1.ª instância);
« V. Ora, perante a obrigatoriedade legal de efectuar o pagamento da coima que lhe havia sido aplicada, bem como das correspondentes custas de processo, o arguido optou por prestar depósito, por forma a não pôr em causa o seu direito de defesa que sempre pretendeu exercer;
« VI. Deste modo, logo por aqui se vê que o arguido não recorreu ao instituto do pagamento voluntário da coima, e que, por isso, mal andou a Mm.ª Juíza a quo ao entender o contrário;
« VII. Por outro lado, o pagamento efectuado via Multibanco em 27.02.2007 nunca poderá ser considerado feito ao abrigo do instituto do pagamento voluntário da coima, uma vez que o art. 172.° do Código da Estrada e o art. 50.°-A do Regime Geral das Contra-Ordenações, prevêem expressamente a possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo legal, no prazo de 15 dias úteis a contar da notificação para o efeito, ou, em qualquer altura do processo, mas sempre antes da decisão (cfr. n.ºs 1 2 e 4 do art. 172.° do Código da Estrada);
« VIII. Ou seja, o recurso ao instituto do pagamento voluntário da coima, com todas as vantagens e inconvenientes a ele inerentes, tem um requisito temporal vertido no n.° 4 do art. 172.° do Código da Estrada, que dispõe que em qualquer altura do processo, mas sempre antes da decisão, o arguido pode optar pelo pagamento voluntário da coima;
« IX. Ora, in casu, o pagamento da coima – que ocorreu em 27.02.2007 – foi feito depois de proferida a decisão final administrativa que pôs termo ao processo contra-ordenacional – que teve lugar em 08.01.2007 –, ou seja, tal pagamento não foi feito ao abrigo do instituto do pagamento voluntário, por já ter decorrido o prazo legal previsto para o efeito, uma vez que nessa fase do processo já não era possível efectuar o pagamento voluntário da coima, conforme dispõe o art. 172.°, n.° 4 do Código da Estrada e o art. 50.°-A, n.° 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações;
« X. Face ao exposto, urge concluir que mal andou a Mm.ª Juíza a quo ao decidir que o arguido pagou voluntariamente a coima nos termos do art. 172.°, e, consequentemente, ao não apreciar o recurso interposto na parte em que punha em causa a prática da contra-ordenação;
« XI. Nesta conformidade, e demonstrado que está o erro na apreciação da prova em que incorreu o Tribunal a quo, deve modificar-se a matéria de facto dada como provada na 1ª instância, corrigindo-se o respectivo item d), onde deve passar a constar o seguinte:
« d) O arguido em 27.02,2007, efectuou o pagamento, na modalidade de depósito, da coima de € 24,94 que lhe foi aplicada pela prática dos factos referidos em a) e a 48,00 referentes às custas devidas pelo processo administrativo.
« XII. Mercê do que acima se deixou registado (que por mera facilidade aqui se dá por reproduzido) quanto à inexistência de pagamento voluntário da coima nos termos do disposto no art. 172.° do Código da Estrada, com a consequente alteração do facto dado como provado na al. d), não restam dúvidas de que o Tribunal a quo tinha obrigação de conhecer in totum o recurso tempestivamente apresentado pelo arguido, designadamente quanto à prática da contra-ordenação;
« XIII. Pelo que, decidindo de forma diversa, o Tribunal a quo infringiu, entre outras, as normas dos arts. 172.°, 173.°, 182.° e 187.°, todos do Código da Estrada e do art. 50.°-A, do Regime Geral das Contra-Ordenações, sendo que é nula a sentença assim proferida, por falta de pronúncia sobre questões que o Tribunal tinha obrigação de conhecer;
« XIV. Assim, deve ser declarada nula a sentença recorrida, nos termos do disposto na al. c) do n.° 1 do art. 379.° do CPPen., por não se ter pronunciado sobre a contra-ordenação em causa, nos termos suscitados pelo aqui recorrente;
« XV. De resto, na hipótese – que não se concebe, nem concede e apenas se admite por mera cautela de patrocínio — de assim não ser entendido e de se considerar que o recorrente procedeu ao pagamento voluntário da coima, nos termos do art. 172.° do Código da Estrada e do art. 50.º-A do Regime Geral das Contra-Ordenações, sempre deverá considerar-se que tal pagamento não exclui o direito de defesa do arguido quanto à aplicação da contra-ordenação e, por conseguinte, não determina o arquivamento do processo, sendo que uma decisão contrária viola expressamente o direito constitucionalmente previsto de que o processo assegura todas as garantia de defesa, incluindo o recurso, previsto no art.º 32.°, n.º 1, do CRP;
« XVI. Com efeito, tem o recorrente como certo que é inconstitucional a norma constante no art. 172.°, n.° 5, do Código da Estrada, no sentido de coarctar ao arguido o direito de recorrer da decisão que aplica a contra-ordenação, pelo facto de ter pago voluntariamente a coima, por violação do art. 32.°, n.° 1, da CRP, que consagra o direito fundamental que assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca para os legais efeitos.

Rematou com o pedido de provimento do recurso, com todas as le­gais consequências.
3. Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou resposta no sentido de lhe ser dado provimento.
4. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto foi de parecer de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente não respondeu, mantendo, no essencial, as posições da motivação.
6. Efectuado exame preliminar e não tendo havido reclamações, foram colhidos os vistos legais e foi o processo à conferência, para julgamento, nos termos do disposto no art.º 419.º do. CPP.

II.
1. É a seguinte, a fundamentação de facto da sentença recorrida.

« Como factos provados com relevância para a decisão do presente recurso temos que:
« a) No dia 17 de Maio de 2006, pelas 9h10m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 02-22-.. na Rua, em Amares, não cumprindo a indicação dada pelo sinal C11A (proibição de virar à direita) ali existente.
« b) No dia e hora referidos em a) foi levantado ao arguido auto de contra-ordenação por soldado autuante que presenciou a infracção, tendo o arguido sido notificado do mesmo.
« c) Por decisão proferida em 8.01.2007 foi o arguido condenado pela DGV na coima de €24,94, bem como na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias.
« d) O arguido em 27.02.2007, pagou voluntariamente o montante de 72,94 que corresponde à coima de €24,94 que lhe foi aplicada pela prática dos factos referidos em a) e a €48,00 referentes às custas devidas pelo processo administrativo.
« e) No registo individual de condutor do arguido de fls. 6 não constam averbadas quaisquer infracções.
« f) O arguido exerce a profissão de médico, com especialidade em pediatria e devido à sua profissão tem necessidade de deslocar-se diariamente para o seu local de trabalho, bem como para as inúmeras urgências a que acode diariamente, tornando-se a utilização do seu veículo imprescindível para o dia a dia profissional e familiar.
« Com relevância para a decisão da causa nos termos que esta se apresenta não resultaram provados quaisquer outros factos.
« CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
« Os factos provados resultaram do auto de notícia e da decisão administrativas juntas aos autos os quais fazem fé em juízo, bem como do teor dos documentos juntos aos autos a fls. 6 (Registo Individual de Condutor do arguido) e 27 (recibo de pagamento de Multibanco).
« Foi ainda tido em consideração o depoimento do próprio arguido e das testemunhas I e L, os quais depuseram de forma isenta e objectiva, merecendo a credibilidade do Tribunal e que referiram a profissão do arguido e explicaram com este para fazer face às suas necessidades profissionais necessita de utilizar o seu veículo no dia a dia.
2. Na motivação de direito da mesma sentença, focou ao constar, entre o mais, o seguinte:

« O arguido no seu recurso de impugnação alega factos em que pretende pôr em causa a verificação da contra-ordenação que lhe foi imputada, sustentando, nomeadamente que no caso o sinal C11 a - de proibição de virar à direita - aqui em causa, não cumpria os requisitos de validade impostos pelo Código da Estrada, que não se encontrava devidamente homologado pela entidade administrativa competente, que não estava devidamente colocado, porquanto a frente não estava virada para a via onde o arguido circulava, etc.
« Contudo, como o próprio arguido alega no seu recurso de contra-ordenação, (prova a fls. 27 dos autos e confirmou em sede de audiência de julgamento) procedeu ao pagamento voluntário da coima que lhe foi aplicada pelo seu mínimo legal, usando assim da factualidade prevista no art. 172°, n.º 1 do Código da Estrada.
«

Ora consoante dispõe o art. 172.º, n.º 5, do Código da Estrada o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma.
« Por sua vez o artigo 175.º, n.º 4 do Código da Estrada, refere que o pagamento voluntário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.
« Assim e uma vez que o arguido procedeu, como supra se referiu, ao pagamento voluntário da coima, nos termos dos citados preceitos legais, aceitou e conformou-se com a prática da contra-ordenação e desencadeou como que um arquivamento parcial do processo, ficando, por isso mesmo prejudicado, em sede de recurso de impugnação, o conhecimento das questões que invocou relativamente à verificação dos elementos integradores da contra-ordenação que lhe foi imputada.
« Desta forma o conhecimento da contra-ordenação extravasa o objecto legal da impugnação, constituindo já dado assente a prática pelo arguido da contra-ordenação que lhe foi imputada, e pela qual foi condenado pela entidade administrativa, pelo que nessa parte obviamente não se conhece do recurso.

É esta diferente visão da natureza e dos efeitos do pagamento mero depósito – ou, na versão do recorrente, – efectuado que se centra a controvérsia jurídica que é objecto do recurso.
Verificando-se, a ter razão o recorrente, a nulidade da alínea c) do n.º 1 do art. 379.° do CPP.
E, subsidiariamente, se a norma constante do art.º 172.º, n.º 5, do CE é inconstitucional.
Vejamos.
O recorrente foi autuado pela prática de uma contra-ordenação perigosa, punível com coima e inibição de conduzir.
Não deduziu defesa perante a autoridade administrativa autuante e, no termo do processo administrativo, cuja regularidade não se põe em causa, foi condenado em coima e na sanção acessória de inibição de conduzir.
Querendo reagir, por entender verificarem-se factos impeditivos da prática da contra-ordenação – em resumo, a não homologação do sinal de trânsito supostamente desrespeitado e o desconhecimento da proibição, causado pela deficiente orientação física do mesmo sinal –, interpôs, no prazo legal, recurso de impugnação judicial da decisão administrativa e pagou a coima. No recurso invocou os factos em causa.
Não há dúvida, porque é questão pacífica, que o facto de o recorrente não ter deduzido defesa perante a autoridade administrativa, não o impede de interpor o recurso de impugnação, com invocação de factos novos – no sentido em que não terem sido alegados perante a autoridade administrativa nem apreciados por ela –, ainda que nós, pessoalmente, propendêssemos para solução contrária.
E de que no recurso interposto da decisão da autoridade administrativa deve o Tribunal apreciar todas as questões com relevo para a determinação da responsabilidade contra-ordenacional do recorrente, sob pena de omissão de pronúncia, não o fazendo.
Pretende-se atribuir ao pagamento feito pelo recorrente os efeitos decorrentes do pagamento voluntário da coima, previstos no art.º 172.º, n.º 5 e 175.º, n.º 4, do CE; é a posição da sentença recorrida e do Ex.mo PGA.
Pretende-se, por outro lado, enquadrar o pagamento feito, na figura do depósito, prevista no art.º 173.º, n.os 2 e 3, do CE. É a posição do recorrente, e aceite pelo MP, em 1.ª instância.
Afigura-se-nos claro – salvo o devido respeito – que nem uma nem outra das posições merecem acolhimento, porque o “pagamento” efectuado nem obedece aos requisitos legais do pagamento voluntário da coima, nem aos da prestação de depósito de valor idêntico ao valor mínimo da mesma coima. É tão claro o desvio relativamente à regulamentação de ambos os institutos que nem vale a pena estar aqui a enfatizá-los.
Não pode, atento o tempo e o modo como foi feito, deixar de classificar-se esta entrega de dinheiro como um verdadeiro pagamento da coima em consequência da prévia condenação nesse sentido.
No entanto, dado o disposto no art.º 187.º, do CE. que no seu n.º 1, estabelece o efeito devolutivo para os recursos de impugnação judicial interpostos da aplicação da coima e, no seu n.º 2, consagra o efeito suspensivo para os recursos interpostos da aplicação de sanção acessória, não pode ter-se este pagamento por definitivo. Deve interpretar-se com o sentido de que o recorrente pretende antecipar-se a uma admissível execução da coima, poupando-se às despesas e incómodos inerentes.
Em consequência, tendo ele interposto recurso de impugnação da decisão administrativa no prazo legal, não há como não entender que o recurso abrange a coima e a sanção acessória e que todas as questões com relevo para a condenação nestas duas vertentes integram o seu objecto.
Assim sendo, como pensamos que é, ao não se pronunciar sobre as questões que o recorrente levantou no seu recurso e enuncia nas conclusões do seu recurso, o tribunal da 1.ª instância incorreu na nulidade contemplada no art.º 389.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Termos em que o recurso deve proceder.

III.
Por todo o exposto,
Declaramos nula a decisão recorrida e determinamos que, no tribunal que a proferiu a nulidade seja suprida mediante a realização de novo julgamento.
Não é devida tributação.

Guimarães, 2008/05/05