I – Se um arguido, ao mesmo tempo que impugna judicialmente uma decisão administrativa, paga a coima correspondente à contra-ordenação, a tal pagamento não se podem atribuir os efeitos decorrentes do pagamento voluntário, previstos no art.º 172.º, n.º 5 e 175.º, n.º 4, do Código da Estrada nem enquadrar o pagamento na figura do depósito, prevista no art.º 173.º, n.os 2 e 3, do mesmo Código, mas sim interpretar-se com o sentido de que o recorrente pretende antecipar-se a uma admissível execução da coima.
II – Com efeito, dado o disposto no art.º 187.º, do Código da Estrada, que no seu n.º 1, estabelece o efeito devolutivo para os recursos de impugnação judicial interpostos da aplicação da coima e, no seu n.º 2, consagra o efeito suspensivo para os recursos interpostos da aplicação de sanção acessória, não pode ter-se este pagamento por definitivo.
III – É que, tendo o arguido interposto recurso de impugnação da decisão administrativa no prazo legal, não há como não entender que o recurso abrange a coima e a sanção acessória e que todas as questões com relevo para a condenação nestas duas vertentes integram o seu objecto.
« I. O facto vertido no item d) supra foi incorrectamente julgado pelo Tribunal a quo, bem como foi incorrecta a subsunção jurídica feita na sentença recorrida, que entendeu que o recorrente pagou voluntariamente a coima fazendo uso do instituto de pagamento voluntário da coima previsto no art. 172.° do Código da Estrada, e que, por isso, não apreciou o recurso apresentado peio arguido;
« II. Com efeito, é efectivamente verdade que o arguido efectuou o pagamento da coima e das correspondentes custas de processo administrativo, na sequência e por causa da decisão final da entidade administrativa proferida em 08.01.2007, contudo é falso que esse pagamento tenha sido efectuado ao abrigo do instituto do pagamento voluntário da coima, previsto no art. 172.° do Código da Estrada;
« III. Desde logo porque, conforme claramente se refere no recurso da contra-ordenação apresentado na 1.ª instância, e ao contrário do aludido na fundamentação de direito pela Mm.ª Juíza a quo, aquele recurso tinha efeitos meramente devolutivos quanto ao acto de condenação no pagamento da coima (cfr. art. 187.° do Código da Estrada), sendo que outra solução não restaria ao aqui recorrente senão a de pagar a coima que lhe havia sido aplicada pela autoridade administrativa, no prazo de 15 dias a que alude o art. 182.° do Código da Estrada;
« IV. Contudo, porque o arguido não concordava com a respectiva condenação na prática da contra-ordenação e com a correspondente coima e sanção acessória de inibição de conduzir, fez constar, no primeiro – e único – momento em que para tal teve oportunidade, que esse pagamento efectuado via Multibanco – também esta a única forma ao dispor do arguido para efectuar aquele pagamento –, havia sido feito na modalidade de depósito (cfr. item 2.º do recurso apresentado perante a 1.ª instância);
« V. Ora, perante a obrigatoriedade legal de efectuar o pagamento da coima que lhe havia sido aplicada, bem como das correspondentes custas de processo, o arguido optou por prestar depósito, por forma a não pôr em causa o seu direito de defesa que sempre pretendeu exercer;
« VI. Deste modo, logo por aqui se vê que o arguido não recorreu ao instituto do pagamento voluntário da coima, e que, por isso, mal andou a Mm.ª Juíza a quo ao entender o contrário;
« VII. Por outro lado, o pagamento efectuado via Multibanco em 27.02.2007 nunca poderá ser considerado feito ao abrigo do instituto do pagamento voluntário da coima, uma vez que o art. 172.° do Código da Estrada e o art. 50.°-A do Regime Geral das Contra-Ordenações, prevêem expressamente a possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo legal, no prazo de 15 dias úteis a contar da notificação para o efeito, ou, em qualquer altura do processo, mas sempre antes da decisão (cfr. n.ºs 1 2 e 4 do art. 172.° do Código da Estrada);
« VIII. Ou seja, o recurso ao instituto do pagamento voluntário da coima, com todas as vantagens e inconvenientes a ele inerentes, tem um requisito temporal vertido no n.° 4 do art. 172.° do Código da Estrada, que dispõe que em qualquer altura do processo, mas sempre antes da decisão, o arguido pode optar pelo pagamento voluntário da coima;
« IX. Ora, in casu, o pagamento da coima – que ocorreu em 27.02.2007 – foi feito depois de proferida a decisão final administrativa que pôs termo ao processo contra-ordenacional – que teve lugar em 08.01.2007 –, ou seja, tal pagamento não foi feito ao abrigo do instituto do pagamento voluntário, por já ter decorrido o prazo legal previsto para o efeito, uma vez que nessa fase do processo já não era possível efectuar o pagamento voluntário da coima, conforme dispõe o art. 172.°, n.° 4 do Código da Estrada e o art. 50.°-A, n.° 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações;
« X. Face ao exposto, urge concluir que mal andou a Mm.ª Juíza a quo ao decidir que o arguido pagou voluntariamente a coima nos termos do art. 172.°, e, consequentemente, ao não apreciar o recurso interposto na parte em que punha em causa a prática da contra-ordenação;
« XI. Nesta conformidade, e demonstrado que está o erro na apreciação da prova em que incorreu o Tribunal a quo, deve modificar-se a matéria de facto dada como provada na 1ª instância, corrigindo-se o respectivo item d), onde deve passar a constar o seguinte:
« d) O arguido em 27.02,2007, efectuou o pagamento, na modalidade de depósito, da coima de € 24,94 que lhe foi aplicada pela prática dos factos referidos em a) e a 48,00 referentes às custas devidas pelo processo administrativo.
« XII. Mercê do que acima se deixou registado (que por mera facilidade aqui se dá por reproduzido) quanto à inexistência de pagamento voluntário da coima nos termos do disposto no art. 172.° do Código da Estrada, com a consequente alteração do facto dado como provado na al. d), não restam dúvidas de que o Tribunal a quo tinha obrigação de conhecer in totum o recurso tempestivamente apresentado pelo arguido, designadamente quanto à prática da contra-ordenação;
« XIII. Pelo que, decidindo de forma diversa, o Tribunal a quo infringiu, entre outras, as normas dos arts. 172.°, 173.°, 182.° e 187.°, todos do Código da Estrada e do art. 50.°-A, do Regime Geral das Contra-Ordenações, sendo que é nula a sentença assim proferida, por falta de pronúncia sobre questões que o Tribunal tinha obrigação de conhecer;
« XIV. Assim, deve ser declarada nula a sentença recorrida, nos termos do disposto na al. c) do n.° 1 do art. 379.° do CPPen., por não se ter pronunciado sobre a contra-ordenação em causa, nos termos suscitados pelo aqui recorrente;
« XV. De resto, na hipótese – que não se concebe, nem concede e apenas se admite por mera cautela de patrocínio — de assim não ser entendido e de se considerar que o recorrente procedeu ao pagamento voluntário da coima, nos termos do art. 172.° do Código da Estrada e do art. 50.º-A do Regime Geral das Contra-Ordenações, sempre deverá considerar-se que tal pagamento não exclui o direito de defesa do arguido quanto à aplicação da contra-ordenação e, por conseguinte, não determina o arquivamento do processo, sendo que uma decisão contrária viola expressamente o direito constitucionalmente previsto de que o processo assegura todas as garantia de defesa, incluindo o recurso, previsto no art.º 32.°, n.º 1, do CRP;
« XVI. Com efeito, tem o recorrente como certo que é inconstitucional a norma constante no art. 172.°, n.° 5, do Código da Estrada, no sentido de coarctar ao arguido o direito de recorrer da decisão que aplica a contra-ordenação, pelo facto de ter pago voluntariamente a coima, por violação do art. 32.°, n.° 1, da CRP, que consagra o direito fundamental que assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca para os legais efeitos.
Rematou com o pedido de provimento do recurso, com todas as legais consequências.
3. Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou resposta no sentido de lhe ser dado provimento.
4. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto foi de parecer de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente não respondeu, mantendo, no essencial, as posições da motivação.
6. Efectuado exame preliminar e não tendo havido reclamações, foram colhidos os vistos legais e foi o processo à conferência, para julgamento, nos termos do disposto no art.º 419.º do. CPP.
« Como factos provados com relevância para a decisão do presente recurso temos que:
« a) No dia 17 de Maio de 2006, pelas 9h10m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 02-22-.. na Rua, em Amares, não cumprindo a indicação dada pelo sinal C11A (proibição de virar à direita) ali existente.
« b) No dia e hora referidos em a) foi levantado ao arguido auto de contra-ordenação por soldado autuante que presenciou a infracção, tendo o arguido sido notificado do mesmo.
« c) Por decisão proferida em 8.01.2007 foi o arguido condenado pela DGV na coima de €24,94, bem como na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias.
« d) O arguido em 27.02.2007, pagou voluntariamente o montante de 72,94 que corresponde à coima de €24,94 que lhe foi aplicada pela prática dos factos referidos em a) e a €48,00 referentes às custas devidas pelo processo administrativo.
« e) No registo individual de condutor do arguido de fls. 6 não constam averbadas quaisquer infracções.
« f) O arguido exerce a profissão de médico, com especialidade em pediatria e devido à sua profissão tem necessidade de deslocar-se diariamente para o seu local de trabalho, bem como para as inúmeras urgências a que acode diariamente, tornando-se a utilização do seu veículo imprescindível para o dia a dia profissional e familiar.
« Com relevância para a decisão da causa nos termos que esta se apresenta não resultaram provados quaisquer outros factos.
« CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
« Os factos provados resultaram do auto de notícia e da decisão administrativas juntas aos autos os quais fazem fé em juízo, bem como do teor dos documentos juntos aos autos a fls. 6 (Registo Individual de Condutor do arguido) e 27 (recibo de pagamento de Multibanco).
« Foi ainda tido em consideração o depoimento do próprio arguido e das testemunhas I e L, os quais depuseram de forma isenta e objectiva, merecendo a credibilidade do Tribunal e que referiram a profissão do arguido e explicaram com este para fazer face às suas necessidades profissionais necessita de utilizar o seu veículo no dia a dia.
2. Na motivação de direito da mesma sentença, focou ao constar, entre o mais, o seguinte:
« O arguido no seu recurso de impugnação alega factos em que pretende pôr em causa a verificação da contra-ordenação que lhe foi imputada, sustentando, nomeadamente que no caso o sinal C11 a - de proibição de virar à direita - aqui em causa, não cumpria os requisitos de validade impostos pelo Código da Estrada, que não se encontrava devidamente homologado pela entidade administrativa competente, que não estava devidamente colocado, porquanto a frente não estava virada para a via onde o arguido circulava, etc.
« Contudo, como o próprio arguido alega no seu recurso de contra-ordenação, (prova a fls. 27 dos autos e confirmou em sede de audiência de julgamento) procedeu ao pagamento voluntário da coima que lhe foi aplicada pelo seu mínimo legal, usando assim da factualidade prevista no art. 172°, n.º 1 do Código da Estrada.
«
Ora consoante dispõe o art. 172.º, n.º 5, do Código da Estrada o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma.
« Por sua vez o artigo 175.º, n.º 4 do Código da Estrada, refere que o pagamento voluntário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável.
« Assim e uma vez que o arguido procedeu, como supra se referiu, ao pagamento voluntário da coima, nos termos dos citados preceitos legais, aceitou e conformou-se com a prática da contra-ordenação e desencadeou como que um arquivamento parcial do processo, ficando, por isso mesmo prejudicado, em sede de recurso de impugnação, o conhecimento das questões que invocou relativamente à verificação dos elementos integradores da contra-ordenação que lhe foi imputada.
« Desta forma o conhecimento da contra-ordenação extravasa o objecto legal da impugnação, constituindo já dado assente a prática pelo arguido da contra-ordenação que lhe foi imputada, e pela qual foi condenado pela entidade administrativa, pelo que nessa parte obviamente não se conhece do recurso.
É esta diferente visão da natureza e dos efeitos do pagamento mero depósito – ou, na versão do recorrente, – efectuado que se centra a controvérsia jurídica que é objecto do recurso.
Verificando-se, a ter razão o recorrente, a nulidade da alínea c) do n.º 1 do art. 379.° do CPP.
E, subsidiariamente, se a norma constante do art.º 172.º, n.º 5, do CE é inconstitucional.
Vejamos.
O recorrente foi autuado pela prática de uma contra-ordenação perigosa, punível com coima e inibição de conduzir.
Não deduziu defesa perante a autoridade administrativa autuante e, no termo do processo administrativo, cuja regularidade não se põe em causa, foi condenado em coima e na sanção acessória de inibição de conduzir.
Querendo reagir, por entender verificarem-se factos impeditivos da prática da contra-ordenação – em resumo, a não homologação do sinal de trânsito supostamente desrespeitado e o desconhecimento da proibição, causado pela deficiente orientação física do mesmo sinal –, interpôs, no prazo legal, recurso de impugnação judicial da decisão administrativa e pagou a coima. No recurso invocou os factos em causa.
Não há dúvida, porque é questão pacífica, que o facto de o recorrente não ter deduzido defesa perante a autoridade administrativa, não o impede de interpor o recurso de impugnação, com invocação de factos novos – no sentido em que não terem sido alegados perante a autoridade administrativa nem apreciados por ela –, ainda que nós, pessoalmente, propendêssemos para solução contrária.
E de que no recurso interposto da decisão da autoridade administrativa deve o Tribunal apreciar todas as questões com relevo para a determinação da responsabilidade contra-ordenacional do recorrente, sob pena de omissão de pronúncia, não o fazendo.
Pretende-se atribuir ao pagamento feito pelo recorrente os efeitos decorrentes do pagamento voluntário da coima, previstos no art.º 172.º, n.º 5 e 175.º, n.º 4, do CE; é a posição da sentença recorrida e do Ex.mo PGA.
Pretende-se, por outro lado, enquadrar o pagamento feito, na figura do depósito, prevista no art.º 173.º, n.os 2 e 3, do CE. É a posição do recorrente, e aceite pelo MP, em 1.ª instância.
Afigura-se-nos claro – salvo o devido respeito – que nem uma nem outra das posições merecem acolhimento, porque o “pagamento” efectuado nem obedece aos requisitos legais do pagamento voluntário da coima, nem aos da prestação de depósito de valor idêntico ao valor mínimo da mesma coima. É tão claro o desvio relativamente à regulamentação de ambos os institutos que nem vale a pena estar aqui a enfatizá-los.
Não pode, atento o tempo e o modo como foi feito, deixar de classificar-se esta entrega de dinheiro como um verdadeiro pagamento da coima em consequência da prévia condenação nesse sentido.
No entanto, dado o disposto no art.º 187.º, do CE. que no seu n.º 1, estabelece o efeito devolutivo para os recursos de impugnação judicial interpostos da aplicação da coima e, no seu n.º 2, consagra o efeito suspensivo para os recursos interpostos da aplicação de sanção acessória, não pode ter-se este pagamento por definitivo. Deve interpretar-se com o sentido de que o recorrente pretende antecipar-se a uma admissível execução da coima, poupando-se às despesas e incómodos inerentes.
Em consequência, tendo ele interposto recurso de impugnação da decisão administrativa no prazo legal, não há como não entender que o recurso abrange a coima e a sanção acessória e que todas as questões com relevo para a condenação nestas duas vertentes integram o seu objecto.
Assim sendo, como pensamos que é, ao não se pronunciar sobre as questões que o recorrente levantou no seu recurso e enuncia nas conclusões do seu recurso, o tribunal da 1.ª instância incorreu na nulidade contemplada no art.º 389.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Termos em que o recurso deve proceder.