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CESSÃO DE CRÉDITO HIPOTECÁRIO
DIREITO DE SEQUELA
Sumário
I Os créditos garantidos por hipoteca, podem ser cedidos ou transmitidos por negócio inter vivos sendo a situação regulada pelo artº 577º nº1 e 578º, nº2 do Código Civil. II - Por força do disposto no nº1 do artº 582º do mesmo diploma legal, tal cessão do crédito, importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido. III - A hipoteca é uma garantia real das obrigações que se traduz no direito concedido a certos credores de serem pagos pelo valor de certos bens imobiliários do devedor, com preferência a outros credores estando os seus créditos devidamente registados. Reveste-se da natureza de um direito real de garantia na medida em que apresenta as notas características dos direitos reais, tais como o direito de sequela e o direito de preferência. IV - A sequela constitui um direito, na medida em que se traduz na faculdade concedida ao titular de fazer valer tal garantia sobre a coisa, onde quer que ela se encontre. Significa isto que o credor hipotecário poderá ver solvido o seu crédito, por força do bem hipotecado, onde quer e com quer que este esteja, pois essa é, justamente, a função jurídico-social e económica da hipoteca.
Texto Integral
Agravo nº 583/05 – 2
(Incidente de Habilitação 71-B/2000)
1º Juízo da Comarca de Albufeira
Acordam na Secção Cível da Relação de Évora:
RELATÓRIO
Q., SA, por apenso aos autos de Execução Ordinária hipotecária que é movida pelo B. a E. todos com os sinais dos autos, veio requerer a sua habilitação como cessionária dos créditos do Exequente referido, alegando que por escritura pública outorgada em 27.03.2003, o aludido Banco transmitiu à ora requerente todos os seus direitos, incluindo os reclamados nos autos de Execução referidos.
Notificada a Requerida, veio a mesma deduzir oposição ao pedido, alegando, em resumo útil, que nos termos do artº 577º nº1 do Código Civil, pode o credor ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, dispondo o nº1 do artº 583º do mesmo diploma legal que a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada.
Que a Executada não é devedora nem nunca deveu o que quer que seja ao B. SA, ou aos antecessores do referido Banco, sendo apenas demandada na Execução por ter adquirido um imóvel que anteriormente se encontrava hipotecado a um dos Bancos antecessores do Banco Exequente e daí ter deduzido Embargos de Executado.
Nada devendo ao B., à Executada, ora Requerida, não pode ser aposto o estatuto de devedor e a sua obrigação de aceitar a cessão de crédito, pelo que o incidente de habilitação requerido deve ser julgado improcedente.
Foi proferida decisão do referido incidente, que, além do mais, considerou que a habilitação da Requerente em nada afecta as posições da Executada/Embargante no processo, nem daqui resulta o reconhecimento da sua qualidade de devedora, pelo que o julgando procedente o referido incidente de habilitação, declarou a Requerente habilitada como cessionária do Banco Exequente, nos termos do disposto no artº 376º/1 al. b) do COC, para prosseguir os termos processuais.
Inconformada com tal decisão, trouxe a Requerida recurso de Agravo para este Tribunal da Relação, rematando a sua alegação com as seguintes:
Conclusões:
I – Na sua oposição a agravante alegou que a cessão do crédito não produzia efeitos em relação a ela, em virtude de esta não ser devedora do exequente/cedente do crédito.
II – O facto de uma pessoa ter adquirido um bem que se encontra hipoteca a favor de outrem não a faz constituir-se devedora do credor hipotecário.
III – A validade do acto significa que nele concorrem, sem qualquer vício, os pressupostos e os elementos da sua estrutura e do seu conteúdo.
IV – O negócio jurídico que se encontra em tal situação está em condições de viver na ordem jurídica que o acolhe, mostrando-se apto a produzir os efeitos que correspondem ao conteúdo que lhe é definido pela lei e pela vontade do autor.
V – A validade do negócio pode ser de natureza formal ou de natureza substancial.
VI – A validade do negócio tem também de ser aferida, quando os intervenientes no negócio jurídico pretendem que o mesmo produz efeitos em relação a terceiros.
VII – Tem assim de se considerar uma validade relativa do negócio, em relação à pessoa contra quem se deseja que o mesmo produza efeitos.
VIII – A norma processual que prevê as circunstâncias em que o habilitando se pode opor à habilitação em caso de cessão, contempla não apenas a validade formal do negócio, como também a validade substancial, como também a validade relativa.
IX – Não sendo a agravante devedora do exequente/cedente e não tendo dado o seu consentimento à cessão, esta não produz efeitos em relação a ela, mesmo depois de lhe ser notificada.
X – Não podia assim ter procedido o incidente de habilitação.
XI – Disposições violadas: artigos 583° nº 1 do Código Civil e 376 nº 1 al. a) do Código do Processo Civil.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exmº Juiz do Tribunal a quo proferiu despacho de sustentação, mantendo a decisão nos seus precisos termos.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, já que nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, o qual é, com é sabido, delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos temos das disposições conjugadas dos artºs 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 4 do CPC.
FUNDAMENTOS
Comecemos por apreciar as primeiras duas conclusões da alegação da Agravante.
Diz a mesma que, na sua oposição, alegou que a cessão de crédito não produzia efeitos em relação a ela, em virtude de não ser devedora do Exequente/ Cedente do Crédito e que, o facto de uma pessoa ter adquirido um bem que se encontra hipotecado a favor de outrem, não a faz constituir-se devedora do credor hipotecário.
Como se sabe, a hipoteca é uma garantia real das obrigações que se traduz no direito concedido a certos credores de serem pagos pelo valor de certos bens imobiliários do devedor, com preferência a outros credores estando os seus créditos devidamente registados.
Reveste-se da natureza de um direito real de garantia (Mota Pinto, Direitos Reais, p. 136) na medida em que apresenta as notas características dos direitos reais, tais como o direito de sequela e o direito de preferência.
A sequela é, como também é sabido, a particularidade própria dos direitos reais nos termos da qual, o seu titular pode acompanhar a coisa, independentemente de quaisquer vicissitudes, onde quer que ela se encontre (Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1970, 440).
Ora a sequela constitui um direito, na medida em que se traduz na faculdade concedida ao titular de fazer valer tal garantia sobre a coisa, onde quer que ela se encontre, apelidado no direito francês de droit de suite (A. Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed. pag.171).
Isto significa literalmente que o credor hipotecário poderá ver solvido o seu crédito, por força do bem hipotecado, onde quer e com quer que este esteja, pois essa é, justamente, a função jurídico-social e económica da hipoteca.
Aliás, é conhecido o velho brocado romano "ubi rem meam invenio, ibi vindico".
Nisto mesmo se traduz literalmente a expressão do artº 683º do C.Civil ao estatuir que "a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor da certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro..."
Sendo este o quadro legal em que nos havemos de mover, desçamos agora ao plano dos factos concretos.
Segundo consta dos autos, pois é a própria Requerida no incidente de habilitação e ora Agravante, E. que o afirma, a mesma é demandada na Execução (daí os Embargos de Executado que requereu) por ter adquirido um imóvel que anteriormente se encontrava hipotecado a um dos Bancos antecessores do B.,SA. _ Cf. fls. 133.
Ora tendo o Banco em referência movido Execução hipotecária à ora Agravante, concretamente a Execução Ordinária 71/00 do 1º Juízo de Albufeira, conforme consta do documento de fls. 197, dúvidas não existem de que, salvo procedência dos Embargos de Executado deduzidos, o que ainda não se mostra provado, o referido Banco Exequente era credor hipotecário da ora Agravante E., não porque esta tivesse contraído um vínculo contratual com o referido Banco, mas porque é titular, por aquisição, de bens imóveis (as fracções BH e BI) onerados com hipoteca a favor daquele Banco ou dos seus antecessores, como consta da decisão proferida.
Dizemos era credor, por isso que, por escritura pública de 20 de Março de 2003, cedeu tal crédito, como vários outros à ora Requerente e aqui Agravada Quinta do Escarpão, com muito bem refere o despacho recorrido.
Portanto, por força dessa transmissão, a Quinta do Escarpão passou a ser a nova titular de tal crédito, a cessionária, na terminologia técnico-jurídica pertinente e, como é consabido, tal cessão de créditos não carece do consentimento do devedor, sendo dele independente, ex vi do disposto no artº 577º nº1 do Código Civil.
Isto, naturalmente, sem prejuízo da eventual procedência dos Embargos de Executado deduzidos ou da expurgação da (s) hipoteca (s) existente (s).
Alega a Requerida não ser devedora do referido Banco! Devedor é a pessoa que se encontra adstrita a efectuar uma prestação (a prestação debitória) [1] e a ora Agravante E., se quiser evitar a execução dos bens hipotecados, terá de realizar a prestação em dívida, garantida, justamente, pelas hipotecas constituídas, pois de contrário, tais bens responderão pelas obrigações a cuja garantia de cumprimento foram afectados.
Neste sentido, a ora Agravante é, na verdade, devedora (hipotecária) do Banco credor e, agora, por força da cessão de créditos referida, da Q..
Isto é assim, justamente, porque o direito de sequela acompanha o bem hipotecado, em todas as alienações, sendo certo que a sequela é nota característica, como vimos dos direitos reais, por isso, também dos direitos reais de garantia (penhor e hipoteca).
Se assim não fosse, bastava que se alienassem os bens hipotecados, para que as hipotecas fossem garantias puramente inúteis, pois o adquirente poderia sempre alegar, como, aliás, diz a Agravante, que o facto de uma pessoa ter adquirido um bem hipotecado a favor de outrem, não faz dela devedora do credor hipotecário.
Por sua vez, o devedor primitivo, tendo alienado o bem, seria indiferente à sorte do mesmo, podendo permanecer tranquilamente em tal situação debitória, tudo com manifesto prejuízo do credor que diligentemente havia procurado garantir o seu crédito, com a tutela da ordem jurídica!
Assim sendo. é manifesto que improcedem as conclusões 1ª e 2ª da alegação da Recorrente.
Tendo a ora Agravada adquirido, como cessionária, o crédito ou créditos em causa, e estando pendente em Juízo uma acção executiva para a cobrança de tal dívida garantida por hipoteca, lógica e naturalmente, a mesma requereu a sua habilitação, para, como substituta do anterior Exequente, prosseguir a demanda, ao abrigo do disposto no artº 376º do Código Civil.
Trata-se de uma substituição processual do cedente (Exequente) pela cessionária [2] , pois é esta que passou a ter, por força da cessão realizada, interesse em agir.
Esta substituição, como refere a decisão recorrida, não afecta a posição da Executada/Embargante que continuará em tal posição enquanto durar a relação processual
Neste incidente está prevista a possibilidade da contestação da parte contrária, mas tal contestação, como observa Salvador da Costa, «está limitada ao núcleo de factos relativo à vontade formal ou material do acto da cessão ou de transmissão ou à circunstância de ele apenas visar dificultação da posição do contestante na causa principal» (Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 3ª Ed. pg.257).
É também o que vem referido na decisão ora sob recurso, ao afirmar que a contestação da Requerida não se funda em qualquer dos motivos indicados na alínea a) do nº1 do artº 376º do Código de Processo Civil, pois tal preceito legal, como se disse, limita a oposição à impugnação referida quanto à validade do acto ou à alegação de que a transmissão foi feita para dificultar a sua posição no processo.
Ora como se vê da contestação da Requerida a fls. 134 do processo, esta apenas deduziu oposição com base na alegada inexistência da sua condição de devedora e, como tal, na inexistência de obrigação de aceitar a cessão de crédito, não tendo observado os requisitos referidos no sobredito comando legal adjectivo.
Só agora, em sede de recurso, vem a Agravante elaborar douta argumentação tendente a demonstrar a falta de validade substancial do negócio, todavia sem sucesso, como claramente e deixou demonstrado, pois assesta baterias no facto de não ser devedora do Banco Exequente e sustenta que o negócio tem de ser válido em relação à pessoa contra quem se deseja que o mesmo produza efeitos.
Já demonstramos que a cessão de créditos não carece de consentimento do devedor, por expressa disposição legal e, outrossim, já se demonstrou porque é que a Requerente/Agravante terá de responder, em princípio, com os bens hipotecados pelos créditos garantidos pelos mesmos, a menos que veja triunfar os Embargos de Executado deduzidos.
Vale isto dizer, que não procede o argumento de que a Agravante não é devedora, como também improcede o da falta do seu consentimento à cessão.
Apenas no caso de cessão da hipoteca, sem o crédito garantido, nos termos do artº727º nº1 in fine do Código Civil é que seria necessário o seu consentimento, mas tal não é a situação sub judicio.
No caso vertente, a transmissão teve por objecto o próprio crédito garantido por hipoteca, sendo, portanto, a situação regulada pelo artº 577º nº1 e 578º, nº2 do Código Civil.
Por força do disposto no nº1 do artº 582º do mesmo diploma legal, tal cessão do crédito, importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido.
Improcedem, destarte, todas as demais conclusões da alegação da Agravante, o que significa linearmente que se impõe a negação de provimento ao Agravo interposto.
DECISÃO
Em face de todo o exposto, acorda-se em negar provimento ao presente Agravo, confirmando-se, consequentemente, o despacho recorrido.
Custas pela Agravante.
Processado e revisto pelo relator.
Évora,
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[1] Galvão Telles «devedor é aquele sobre quem recai o dever de realizar a prestação» (Direito das Obrigações, 5ª ed. 34).
No mesmo sentido Menezes Cordeiro (Dir.Obrigações, 1980, 1º,227) e A. Varela (Das Obrigações em Geral, 5ª Ed. I, 61). [2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, anotado, 3ª ed., Vol I, pg. 604 e também Comentário ao Processo Civil, vol.III, pg 77.