MANDATO FORENSE
TRADUÇÃO DE DOCUMENTOS POR MANDATÁRIO
INCOMPATIBILIDADE
Sumário


1- O advogado subscritor da petição inicial, mandatário do A. e representante dos seus interesses, não pode traduzir, ele próprio, documentos e a certificar a sua própria tradução, e destinados a fazer prova no processo que patrocina, por não estarem asseguradas as garantias mínimas de rigor, isenção e fidelidade.
2- As limitações e incompatibilidades impostas aos notários, são aplicáveis, mutatis mutandis , à actividade de tradução e reconhecimento de documentos, exercida pelos Srºs Advogados, nos termos do disposto nos art.s 5º n.º 1 e 2 e 6º do DL n.º 237/01.

Texto Integral


Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Recorrente:
Michael ………..
Recorrido:
Actividades ………… (Propriedades), LDª e Cármen………...


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Michael …………..intentou a presente providência cautelar não especificada contra a sociedade «Actividades…………, LDª» e Carmen ……………. peticionando a suspensão de ambos os gerentes da sociedade (respectivamente a requerida Carmen e Jens Huffen), e em consequência, do decretamento dessa providência e do reconhecimento da falta de legitimidade da sócia requerida, deverá, nos termos do artº. 253º, do Código das Sociedades Comerciais, ser ordenado o registo de nomeação do sócio requerente como gerente e o impedimento da requerida de exercer o seu direito de voto até ao trânsito em julgado da acção.
Para tanto, alegou o que consta do seu extenso requerimento inicial do qual, em apertada síntese, se inferem as seguintes proposições conclusivas:
a) Falta de idoneidade dos gerentes para administrar a sociedade;
b) Receio de que os gerentes utilizem o seu cargo social para satisfação de interesses próprios em prejuízo da sociedade, do sócio requerente e de terceiros, mediante a venda dos prédios que constituem o património social;
c) Violação do direito à informação;
d) Falta de legitimidade da sócia Carmen …….
Juntou documentos.
2. Por despacho de fls. 133 determinou-se a tramitação da presente providência sem respeito pelo princípio do contraditório.
3. Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas e de seguida foi proferida decisão julgando improcedente a providência.
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Inconformada com a decisão, veio a requerente agravar, tendo rematado as suas alegações com as seguintes
conclusões:
« A - Julgou erradamente a douta Sentença do Tribunal a quo ao declarar improcedente o procedimento cautelar de suspensão dos gerentes da sociedade comercial identificada nos autos;
B - Compete ao Agravante, em sede de procedimento cautelar fazer uma prova sumária dos factos que alega, logo, não concorda, o mesmo, que não tenha feito prova bastante acerca dos factos dados como não provados pela douta Sentença, nomeadamente os constantes sob a alínea b) e todos os compreendidos entre a alínea d) a v) dos "Factos sumariamente tidos como não provados";
C - Os meios probatórios constantes do processo e juntos sob os Docs. n.° 2, 3, 4, 5 e 10 até 18, assim como o depoimento das testemunhas acerca dos factos alegados sob os artigos n.°13 e seguintes da P.I. de Procedimento, com especial ênfase para os referentes à situação financeira dos gerentes e à venda dos terrenos da sociedade Requerida, impunham decisão diferente da Recorrida;
D - Foi, em particular, e ao contrário do decidido pela douta Sentença, feita prova documental suficiente em relação ao estado de insolvência dos gerentes e em relação à falta de informação obtida, apesar de requerida à gerência, pelo Agravante, o que impõe a verificação dos factos que fundamentam a suspensão dos gerentes com justa causa.
E - Não existe qualquer incompatibilidade nem falta potencial de isenção da parte do advogado subscritor da Petição Inicial de Procedimento Cautelar ao traduzir e certificar os documentos juntos ao mesmo, pelo que não deverá a força probatória desses Documentos ficar abalada, ao contrário do que decidiu a douta Sentença.
F - Os impedimentos previstos pelos artigos 5.° e 68.° do Código do Notariado não se aplicam aos advogados subscritores de peças processuais e em relação aos documentos por eles juntos às mesmas;
G - A douta Sentença é nula porque não se pronuncia sobre questões que devia apreciar;
H - Efectivamente, a douta Sentença, ao desconsiderar expressamente os factos contidos sob os artigos 54.° a 94.° da P.I de Procedimento Cautelar, não ponderou, conforme deveria, que os actuais gerentes, atenta a circunstância de terem sido eleitos por deliberação nula, poderão prejudicar seriamente o Agravante e terceiros, através da prática reiterada de actos nulos, em nome da Sociedade;
I - As causas de suspensão de gerentes, em sede de procedimento cautelar, não são idênticas às que necessariamente se verificam para a destituição dos mesmos, nos termos do artigo 257.° do Código das Sociedades Comerciais;
J - Para a suspensão dos gerentes podem e devem, ao contrário do que se verifica para a destituição, onde se exige a justa causa, ser atendidos, além dos factos atinentes ao seu comportamento culposo e à respectiva incapacidade para o exercício do cargo, todos os demais factos que possam consubstanciar a ameaça e o receio do Requerente que o não decretamento dessa providência possa representar para o seu direito;
L - O procedimento cautelar de suspensão dos gerentes é o meio processual adequado à tutela dos direitos invocados pelo Agravante.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V . ExAS . , DOUTAMENTE, SUPRIRÃO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, SENDO, EM CONSEQUÊNCIA DECLARADA NULA A DOUTA SENTENÇA DO TRIBUNAL AD QUO, NOS TERMOS DA ALÍNEA D) DO NÚMERO 1 DO ARTIGO 668.° DO CPC, POR NÃO SE TER PRONUNCIADO SOBRE QUESTÕES QUE DEVERIA NECESSARIAMENTE TER APRECIADO, OU QUE, CASO ASSIM NÃO SEJA CONSIDERADO POR V .ERAS . , O QUE APENAS POR CAUTELA E DEVER DE BOM PATROCINIO SE CONCEDE, QUE A DOUTA SENTENÇA SEJA REVOGADA POR SE CONSIDERAREM INDICIADOS, CONFORME SE IMPUNHA EM SEDE DE PROVIDÊNCIA CAUTELAR, OS FACTOS ATINENTES À JUSTA CAUSA DE SUSPENSÃO DOS GERENTES DA SOCIEDADE IDENTIFICADA NOS AUTOS.
EM CONSEQUÊNCIA DEVERÃO OS GERENTES DA SOCIEDADE SER IMEDIATAMENTE SUSPENSOS, ASSIM COMO ORDENADO QUE SEJAM ATENDIDOS TODOS OS DEMAIS PEDIDOS FEITOS PELO AGRAVANTE EM SEDE DE REQUERIMENTO DE PROVIDÊNCIA CAUTELAR.»
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Não houve contra-alegações.
O sr. Juiz manteve o despacho recorrido.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) [1] salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).
Das conclusões decorre que as questões suscitadas são:
    1- Discordância quanto à apreciação da prova e consequente valoração da mesma, em especial quanto à matéria dada como não provada e consequentemente quanto decisão jurídica dela decorrente;
    2- Invalidade da certificação da tradução de documentos em língua estrangeira feita pelo próprio mandatário, por impedimento legal, devido a incompatibilidade de funções.
    3- Nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
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Comecemos pela última.
A nulidade invocada é a prevista na al. d) do art.º 668º do CPC (omissão de pronúncia). Esta nulidade está directamente relacionada com o comando previsto no art.º 660º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, e serve de cominação para o seu desrespeito [2] . Ora o dever imposto no art.º 660º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil diz respeito ao conhecimento, na sentença/despacho, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam, quanto à procedência ou improcedência do pedido formulado 3 [3] .
«E o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição directa sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou exclui (acórdão do STJ de 16.4.98, Proc. nº 116/98). Sublinhe-se, ainda, que a jurisprudência do STJ distingue entre "questões" e "argumentos" ou "razões" (para concluir que só a não apreciação das primeiras constitui nulidade), jurisprudência que também considera que não se verifica esta nulidade (artigo 668º, nº 1, d)) desde que tenham sido analisadas todas as questões colocadas ao tribunal, embora não as meras considerações ou juízos de valor (cfr. acórdãos de 1.2.95, Proc. nº 85.613, de 8.6.95, Proc. nº 86.702, de 30.4.97, Proc. nº 869/96, de 9.10.97, Proc. nº 180/97, de 1.6.99, Proc. nº 359/99 e de 17.10.2000, Proc. nº 2158/00)» - Ac. do STJ de 08/03/2001 in dgsi.pt – (relatror: Cons. Ferreira Ramos).
A imputação de que a decisão é nula por não ter tomado em consideração os documentos traduzidos e certificados pelo próprio advogado/mandatário do requerente de modo algum pode configurar a nulidade referida, tanto mais que a não admissão de tais documentos como meio de prova está devidamente fundamentada do ponto de vista jurídico e consequentemente houve pronúncia só que em sentido oposto o pretendido pelo requerente. O Tribunal não deixou pois de apreciar nenhuma das questões de fundo que deveria decidir, nem apreciou ou decidiu questão de que não pudesse conhecer pelo que não se verifica a referida nulidade.
Quanto à segunda questão, que esteve na base da hipotética nulidade, que como se viu não se verifica, os recorrentes também não têm qualquer razão, como muito bem resulta da fundamentação expendida pelo Sr. Juiz e que vale a pena transcrever. Justificando a razão porque não valorou as traduções apresentadas pelos requerentes e certificadas pelo seu próprio mandatário, interveniente nos autos como advogado, escreveu o seguinte:
« Em relação aos factos tidos por sumariamente não provados impõe-se uma observação prévia no que concerne aos documentos redigidos em língua estrangeira e cujas traduções foram oferecidas pelo requerente.
É certo que, nos termos do DL. 28/00, de 13 de Março, podem os Srs. Advogados certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais ou extrair fotocópias desses mesmos documentos, artºs. 1º-1 e 2 e 3.
Dispõe ainda o artº.1º-5, do referido DL 28/00 que as fotocópias conferidas nos números anteriores têm o valor dos originais.
Passou, por força deste Decreto-lei, a prática de um acto notarial a poder ser realizado por outros serviços e por outros profissionais.
Parece-nos, todavia, muito duvidoso, que no afã de cessar com a alegada morosidade e burocracia, o legislador tenha querido ir tão longe ao ponto de dispensar determinados requisitos que se impõem aos próprios notários no exercício da sua actividade, maxime, quando esteja em causa a intervenção de pessoa que não domina a língua portuguesa ou, então, um documento redigido em língua estrangeira.
De facto, se para os notários valem os impedimentos previstos nos artº. 5º-1 e 2, 68º, do Código do Notariado, se esse mesmo Código exige a intervenção de um intérprete sempre que o notário não domine a língua, se a ratio de todas estas normas é garantir a isenção da função notarial, não vemos como este regime não haja de valer para a tradução de documento redigido em língua estrangeira.
Explicitando: parece-nos que o advogado subscritor da petição inicial da presente providência, logo contratado pelo requerente da mesma e representando os seus interesses, não pode ser o mesmo a traduzir os documentos e a certificar a sua própria tradução.
Não ficam, salvo o devido respeito por opinião contrária, salvaguardadas as garantias mínimas de isenção a que supra nos referimos.
E com isto não queremos dizer, ou sequer, insinuar, que o Ilustre causídico não haja traduzido de forma correcta, integral e verdadeira, os documentos que apresentou.
Para mais quando o DL. 237/01, de 30/8, consagra a aplicabilidade dos termos previstos no Código do Notariado aos reconhecimentos e refere que os reconhecimentos e as traduções efectuados pelos Srs. advogados e outros conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial, artº. 5º-1 e 2 e 6º, do referido diploma legal.
Destes considerandos resulta, do nosso entendimento, abalada a força probatória ainda que, à economia da presente decisão, baste uma sumaria cognitio que, todavia, não se confunde com ausência de prova ou com uma prova tão frágil que não garanta as necessidades do procedimento cautelar».
Não podemos deixar de concordar, em absoluto, com o decidido. Na verdade embora não haja norma expressa a impedir a cumulação da função notarial do advogado com a função representativa enquanto mandatário forense. Os princípios éticos e deontológicos que regem o exercício da profissão e bem assim os processuais, impõem uma separação absoluta das funções. A não ser assim, qualquer dia teríamos o mandatário forense a intervir num dado processo , não só na qualidade de advogado, como também de perito, notário/certificador ou mesmo como parte (para prestar depoimento) …..
Haja pudor….!
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Quanto à primeira questão, a discordância dos recorrentes assenta essencialmente na não valoração pelo Tribunal, dos documentos traduzidos e certificados pelo ilustre mandatário dos requerentes e residualmente em não ter sido devidamente ajuizado o depoimento das testemunhas. Quanto aos documentos já se deixou dito que se concorda com a decisão tomada e consequentemente não poderiam servir como meio de prova.
Quanto à valoração da prova testemunhal e sua reapreciação impunha-se ao recorrente, sob pena de rejeição, que desse cumprimento o disposto no art.º 690-A, designadamente no seu n.º 1 e 2. Não o fez!
Assim nessa parte impõe-se a rejeição do recurso (art.º 690-A n.º 1) e consequentemente mantém-se a factualidade fixada na primeira instância. Dessa factualidade, a provada é insuficiente para fundamentar a providência requerida.
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Assim concordando-se com a fundamentação de facto e de direito, constante do despacho recorrido, para o qual se remete, nos termos do disposto no n.º 5 do art.º 713º do CPC, acorda-se em negar provimento ao agravo e confirma-se a douta decisão recorrida.
Custas pelos agravantes.
Registe e notifique.
Évora, em …………………
(Bernardo Domingos – Relator)

(Pedro Antunes – 1º Adjunto)

(Sérgio Abrantes Mendes – 2º Adjunto)




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[1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa -1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra - 2000, págs. 103 e segs.
Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, págs. 142-143 nota 5 e 53 e segs.; J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 247 nota 5 e 228 nota 2.
[3] Esta causa de nulidade, a que Alberto dos Reis "CPC Anotado", vol. V, pp. 143 e 497-498 chamou omissão de pronúncia, consiste no facto de a sentença não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do disposto no artigo 660º, nº 2 (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª ed., 1985, p. 690; cfr., também, Rodrigues Bastos, "Notas ao CPC", vol. III, 1972, p. 247). Desse dever de resolução de todas as questões, são "exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras", pelo que, em relação a estas, não pode haver omissão de pronúncia (acórdão do STJ de 17.2.2000, Proc. nº 1203/99)- Ac. do STJ de 08/03/2001 in dgsi.pt – (relatror: Cons. Ferreira Ramos).