ACÇÃO SUB-ROGATÓRIA
REPÚDIO DA HERANÇA
Sumário


I – O repúdio da herança é um negócio jurídico unilateral, não receptício, incondicional, não sujeito a termo, irrevogável e cujos efeitos se retroagem ao momento da abertura da sucessão.

II – Na pendência duma acção executiva, tendo o executado renunciado a uma herança, pode o exequente deduzir a respectiva acção de sub-rogação contra os herdeiros.

Texto Integral

PROCESSO Nº 44/05
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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Por apenso aos autos de execução ordinária que moveu contra “A” veio a “B” propor contra aquele e ainda contra “C”; “D” e “E”, a presente acção especial sub-rogatória, nos termos do nº1 do artº 1469 do C.P.C., alegando, em síntese, que:
- O ora R. “A” é sócio da A., tendo-lhe solicitado em 24/11/97, um empréstimo de campanha no montante de € 21.822,41.
- Após subscrever as suas propostas, a A. concedeu ao R. o referido empréstimo.
- O R. apenas pagou a primeira amortização do capital mutuado, vencido em 15/01/99 e os correspondentes juros remuneratórios.
- O aqui R. não deduziu oposição no processo executivo.
- Nesse processo, o exequente nomeou à penhora o quinhão hereditário pertencente ao executado na herança aberta por óbito de sua mãe “F”, tendo vindo o ora R. “C”, seu irmão, opor-se à penhora com fundamento na existência de uma escritura de repúdio da referida herança por parte do executado.
- Tal escritura foi outorgada já na pendência da acção executiva mencionada e nela o R. “A” declarou repudiar a referida herança a favor de seu irmão “C”, o mesmo que veio deduzir oposição à penhora.
Conclui pedindo que seja julgada totalmente nula a escritura outorgada no Cartório Notarial de … em 13/12/2002 e o R. “A” considerado concorrente à sucessão de sua mãe “F” e, em conformidade, titular do respectivo direito e acção à herança.
Subsidiariamente,
Pede que seja o R. “A” condenado a pagar à A. a quantia de € 10.911,20 respeitante à parte do capital mutuado em dívida e os juros remuneratórios e moratórios vencidos e liquidados até 2003/10/02, no montante de € 6.810,12 e os vincendos desde aquela data até integral pagamento, às taxas anuais, respectivamente, de 11% e de 2% sobre o capital de € 10.911,20.
Seja julgada parcialmente nula a escritura de repúdio na parte em que consubstancia uma transmissão do quinhão que caberia ao R. “A” para o R. “C” e se considere a herança aberta por óbito de “F” aceite pela ora A. no lugar do repudiante e ora R. “A”.

Citados, vieram os RR. contestar nos termos de fls. 56 e segs. concluindo pela improcedência da acção e consequente absolvição dos pedidos contra eles formulados.
Houve resposta conforme fls. 86 e segs.

Produzida a prova, foi proferida a sentença de fls. 124 e segs. que julgando a acção procedente, condenou o R. “A” a pagar à A. a quantia peticionada de € 10.911.20 e os juros remuneratórios e moratórios vencidos e vincendos e declarou parcialmente nula a escritura de repúdio na parte em que consubstancia uma transmissão do quinhão que caberia ao R. “A” para o R. “C” e considerou a herança aberta por óbito de “F” aceite pela ora A. no lugar do repudiante e ora R. “A”.

Inconformados, apelaram os RR. alegando e formulando as seguintes conclusões:
1 - Os motivos de irresignação dos recorrentes tangem à errada interpretação e pior aplicação que a sentença recorrida faz dos artºs 2062º e 606º, ambos do C. Civil. No que ao primeiro respeita, sempre se terá de referir que o acto a que se refere (repúdio da herança) é negócio jurídico unilateral, não receptício, irrevogável, incondicional e não sujeito a termo que no caso dos autos foi sujeito à forma de escritura pública outorgada no Cartório Notarial de …, em 13/12/2002, por via da qual o recorrente “A” repudiou a herança aberta por óbito de sua mãe, fazendo-o a favor do irmão, também recorrente, “C”.
2 - A sentença recorrida declara parcialmente nula a escritura pública em crise, na parte que envolveu a transmissão do quinhão hereditário entre os irmãos “A” e “C”, no entanto, mal, segundo cremos. Desde logo, porque - cfr. artº 2062º do C.C. - os efeitos do repúdio retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, nessa consonância se devendo considerar o R. “A” como se nem sequer tivesse sido chamado à sucessão, tudo se passando, enfim, como se aquele jamais tivesse figurado no quadro dos sucessíveis por morte da mãe “F”.
3 - É-se do entendimento que, por força do disposto no artº 2062º do CC, o repúdio do recorrente “A” teve como consequência fundamental a aniquilação da vocação sucessória que por lei lhe cabia na morte de sua mãe e que esse acto retroage todos os seus efeitos até ao momento da abertura da sucessão.
4 - E é óbvia tal retroactividade do repúdio, que é intrinsecamente necessária para possibilitar a retroactividade da aceitação do chamado (no caso, o recorrente “C”) após o repúdio de “A”. O mesmo é dizer que por força do acto em crise e em particular dos seus efeitos legais, sempre se terá de considerar que o repudiante nunca foi sucessível, mas também que o irmão (“C”) sempre o foi e desde o tempo da abertura da sucessão.
5 - Ademais, não se alcançam os motivos da sentença sob recurso declarar nula a escritura de repúdio, na parte que respeitou ao quinhão hereditário. Tal acto foi total, não foi feito sob condição, nem a termo, sendo certo que respeitou os requisitos de forma exigidos por lei. Entendem os recorrentes, que tal declaração de nulidade parcial está destituída de fundamento legal, porquanto nada obsta no ordenamento jurídico nacional à efectivação do repúdio a favor de um terceiro.
6 - O repúdio configura acto jurídico, a que nos termos do artº 295 do CC são aplicáveis os princípios gerais dos negócios jurídicos, relativos à capacidade, vícios da vontade, legalidade ou licitude do objecto. No concreto, o acto de repúdio realizado mostra-se formal e substancialmente válido, nada havendo na letra ou no espírito da lei que o impeça, nos moldes em que foi feito.
7 - Por seu turno, atente-se que a sub-rogação só é permitida quando seja essencial à satisfação ou garantia do credor conforme o exige o nº 2 do artº 606º do CC, sendo que os articulados da A. de fls., em momento algum se prova muito menos se alega, a referida essencialidade.
8 - O entendimento unânime da doutrina e jurisprudência aponta, sem margem para dúvidas no sentido de que uma das condições inafastáveis do exercício da acção subrogativa por parte do credor é que esse exercício seja essencial, fundamental e indispensável à satisfação do seu direito.
9 - É indiscutível que a A. não provou, tão pouco alegou, quaisquer factos dos quais se pudesse concluir por tal essencialidade, o que nessa conformidade impunha a necessária improcedência da acção e dos correspondentes pedidos formulados pela mesma.
10 - O regime próprio explanado no artº 2068 do CC para a acção sub-rogativa da A. fixa-lhe o prazo de exercício do direito e os efeitos da aceitação, não obstante, não a desobriga de demonstrar que esse exercício é essencial, fundamental e indispensável para a satisfação do seu direito, até porque o citado preceito expressamente remete para o artº 606º do mesmo diploma.
11 - Pelas supra expostas razões, entendem os recorrentes ser a decisão a quo susceptível do reparo que se impõe, ao não interpretar e mal aplicar, seja a matéria referente ao acto de repúdio do recorrente “A” (mormente artºs 2062 e segs. do C.C.) e consequente transmissão do seu quinhão hereditário, seja depois no que se refere à própria acção de subrogação, no que ao nº 2 do artº 606º do C.C. respeita.

A apelada contra-alegou nos termos de fls. 159 e segs. concluindo pela confirmação da sentença.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Delimitando-se o âmbito dos recursos pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artºs 684 nº 3 e 690 nº 1 do CPC, abrange apenas as questões delas constantes.
Do que decorre das mesmas verifica-se que as questões a decidir no presente recurso respeitam à validade e eficácia da escritura de repúdio da herança quanto à transmissão do quinhão hereditário do R. “A” e aos requisitos da acção de sub-rogação.
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Na sentença recorrida a Exmª juíza não descriminou os factos que resultaram provados e que fundamentam a sua decisão.
Contudo, mostram-se os mesmos claramente indicados na subsunção que deles faz no direito aplicável pelo que a decisão está suficientemente fundamentada de facto.
Mas, ainda que se entendesse que se verificava a nulidade da sentença por falta de discriminação dos factos provados, sempre este tribunal conheceria do objecto do recurso pois consta dos autos toda a prova que serviu de fundamento à decisão recorrida, com excepção do depoimento da única testemunha ouvida, oralmente produzido, que depôs sobre a matéria dos artºs 14 a 19 da contestação, matéria irrelevante para o conhecimento do recurso (artº 715 nº 1 do CPC).
Assim, face à prova documental constante dos autos e da execução apensa (artº 514 nº 2 do C.P.C.), consideram-se provados os seguintes factos:
1 - Nos autos de acção executiva ordinária a que estes autos se encontram apensos, a A. “B”, ali exequente, reclamou do R. “A”, ali executado, as seguintes quantias:
- A quantia de € 10.911,20 correspondentes ao capital mutuado em dívida.
- O juros remuneratórios postecipados desde 15/01/1999, à taxa anual de 11% e os juros moratórios à taxa anual de 2% desde 15/01/2000, tudo a liquidar sobre o capital de € 10.911,20 e até integral cumprimento, sendo os liquidados até 2/10/2003 no montante de € 6.810,12.
2 - Nessa execução, proposta em 27/05/2002, o executado “A”, ora R., não deduziu qualquer oposição nem nomeou bens à penhora.
3 - Por requerimento apresentado em 12/03/2003 a exequente, ora A. “B”, “considerando o insucesso da penhora das viaturas, conforme documento que junta”, requereu a penhora do quinhão hereditário pertencente ao executado na herança aberta por óbito de sua mãe, “F”.
4 - Em 4/04/2003, a exequente foi notificada do requerimento de oposição à penhora apresentado pelo ora R. “C”.
5 - A oposição à penhora teve como fundamento uma escritura de repúdio da referida herança, por parte do executado, ora R. “A”.
6 - Em 13/12/2002, por escritura outorgada no Cartório Notarial de …, “A” declarou que “(...) pela presente escritura repudia a herança aberta por óbito de “F” (...) a favor de “C” (...)”.
5 - Nesses autos de execução, tendo sido notificado para informar se possuía outros bens susceptíveis de penhora, o executado veio indicar dois prédios rústicos que se encontravam onerados com hipotecas e penhoras, um deles já com venda designada - cfr. fls. 102, 122 a 127 e 132 dos autos de execução.
6 - Tendo sido novamente notificado para “indicar outros bens que se mostrem suficientes para pagamento dos valores em causa”, veio o executado “informar que não possui mais nenhum bem” - cfr. 131 e 140 dos autos de execução.

Estes os factos.

Conforme se referiu, insurgem-se os recorrentes contra a sentença recorrida por duas ordens de razões:
- incorrecta interpretação e aplicação do artº 2062 do C.C.
- incorrecta interpretação e aplicação do nº 2 do artº 606º do C.C. ex vi do artº 2067 nº 1 do mesmo Código.

Vejamos.
I - Conforme resulta dos artºs 2064 e 2066 do C. Civil e foi ponderado pelas partes quer nos seus articulados, quer no recurso, o repúdio da herança é um negócio jurídico unilateral não receptício, incondicional, não sujeito a termo e irrevogável.
Relativamente aos seus efeitos, consagra o artº 2062 do C.C. que “os efeitos do repúdio da herança retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia, salvo para efeitos de representação”.
Como escrevem Pires de Lima e A. Varela em anotação a este artigo, o que a lei prescreve é que, quando o sucessível chamado repudia a herança, a destruição retroactiva dos efeitos operada pelo repúdio faz com que tudo se passe como se o sucessível não tivesse sido chamado - e chamados passassem a ser, como se o fossem ab initio, aqueles que a lei teria chamado, no caso de o repudiante não ter chegado a existir. (cfr. Cód. Civ. Anotº Vol. VI, p. 105).
Ora, sendo certo, como referem os recorrentes, que o repúdio do recorrente “A” teve como consequência fundamental a aniquilação da vocação sucessória que por lei lhe cabia na morte de sua mãe e que esse acto retroage todos os seus efeitos até ao momento da abertura da sucessão, não se vê como podem pretender que seja válido um acto de disposição do direito do repudiante quando decorre do repúdio que tudo se passa como se ele nunca tivesse chegado a existir.
Assim, aceitando os recorrentes que “por força do acto em crise e em particular dos seus efeitos legais, sempre se terá de considerar que o repudiante nunca foi sucessível” é contraditório que a seguir concluam que “também o irmão (“C”) sempre o foi e desde o tempo da abertura da sucessão”, por um acto de disposição do próprio repudiante.
Se a lei considera o sucessível que repudia como se não tivesse sido chamado, tudo se passa como se não tivesse sido titular do quinhão hereditário e chamados passam a ser aqueles que o seriam no caso de o repudiante não ter chegado a existir.
Não assiste, pois, razão aos apelantes no que a esta questão se refere, improcedendo as conclusões 1ª a 5ª da sua alegação.

II - Quanto à interpretação e aplicação do artº 606º do C. Civil.
Também quanto a esta questão, adianta-se desde já, não assiste razão aos apelantes.
Com efeito, dispõe o nº 1 do artº 2067 do C.C. que “Os credores do repudiante podem aceitar a herança em nome dele, nos termos do artº 606º e seguintes”.
Por sua vez, resulta deste dispositivo legal que sempre que o devedor o não faça, tem o credor a faculdade de exercer, contra terceiros, os direitos de conteúdo patrimonial que competem àquele, excepto se, por sua própria natureza ou disposição da lei, só puderem ser exercidos pelo respectivo titular (nº 1), sendo que, porém, a sub-rogação só é permitida quando seja essencial à satisfação ou garantia do direito do credor (nº 2).
Trata-se de um meio de tutela do direito comum de garantia dos credores sobre o património do devedor.
Pretendem os recorrentes que não se mostra demonstrada nos autos o requisito da sub-rogação de que o exercício do direito é essencial à satisfação ou garantia do credor, a ora apelada.
Ora, não têm razão os apelantes.
Com efeito, conforme se verifica dos factos considerados provados, a presente acção foi proposta na pendência da acção executiva que a apelada moveu ao R. “A”, à qual este não deduziu oposição nem nomeou bens à penhora e onde se veio a constatar que, para além dos dois imóveis que após insistência do tribunal veio indicar como sua pertença mas que se encontravam já onerados com outras penhoras e hipotecas, o ora R. não era possuidor de qualquer outro bem, segundo o próprio informou.
Assim sendo, é manifesta a essencialidade do exercício do direito à satisfação ou garantia do credor ora A., que de outro modo se frustaria.
A presente acção configura-se, pois, como o único meio de protecção dos legítimos interesses do credor, ora A., prejudicado pelo repúdio do R. “A” à herança aberta por óbito de sua mãe.
Pelo exposto, improcedem também as conclusões 7º a 10ª da alegação dos recorrentes.

DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.

Évora, 6/10/2005